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Artigo sobre Pequena Palestra com um mumia de Edgar Allan Poe
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A viagem no tempo: o satrico e o fantstico em Pequena conversa com uma
mmia de Poe
Ncolas Totti LEITE1
Resumo
A proposta deste artigo a de analisar o conto de Edgar Allan Poe intitulado Pequena
conversa com uma mmia, demonstrando o dialogismo entre elementos que compe o
fantstico e as consideraes acerca da stira menipeia feitas por Mikhail Bakhtin. Ao
relacionar o fantstico stira menipeia, o escritor norte-americano tece vrias crticas
sociedade da qual faz parte. Por meio da figura de uma mmia, Poe problematiza
questes filosficas, histricas e sociais, como por exemplo, a experincia do tempo e o
progresso, satirizando a modernidade de seu pas.
Palavras-chave: Literatura fantstica; stira menipeia; contexto histrico; Edgar Allan
Poe.
Abstract
The purpose of this article is analyzing Edgar Allan Poes short story entitled Some
words with a mummy, showing the dialogism between some aspects that compose the
fantastic and the considerations about menippean satire made by Mikhail Bakhtin. By
relating the fantastic to the menippean satire, the American writer criticizes the society
in which he lives. Through the mummys image, Poe discusses philosophical, historical
and social issues, for instance, the time experience and the progress, satirizing his
countrys modernity.
Keywords: Fantastic literature; menippean satire; historical context; Edgar Allan Poe.
1 Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Letras: Teoria Literria e Crtica da Cultura, pela Universidade Federal de So Joo del-rei, (UFSJ), CEP. 36301-160, So Joo del-rei, MG. Brasil. Atualmente, professor na AFARP-UNIESP (Associao Faculdade de Ribeiro Preto). E-mail: [email protected].
Em O Fantstico (2006), Remo Ceserani distingue do crescimento dos estudos
tericos e das diversas antologias sobre o tema, duas abordagens predominantes. Uma
reduz o campo da ao do fantstico, identificando-o como um gnero literrio
historicamente limitado a algumas obras e escritores do sculo XIX do romantismo
europeu. A outra abordagem alarga o campo da ao do fantstico, deixando-o sem
limites histricos, abarcando uma quantidade de textos heterogneos, como a Bblia, as
obras de Homero, as de fico cientfica, entre outros2.
No livro anteriormente citado, Ceserani prope uma sutil mudana metodolgica
ao no considerar a literatura fantstica um gnero, mas um modo literrio, isto , um
conjunto de procedimentos retrico-formais, comportamentos cognoscitivos e
associaes temticas que se situou em diversos gneros e subgneros. O fantstico,
nesse sentido, no nem caracterizado simplesmente como um evento que transcende,
nega e/ou se ope realidade tal qual a conhecemos, nem por procedimentos formais
e temas isolados considerados exclusivos de um gnero, tal como concebe Tzvetan
Todorov em Introduo literatura fantstica, publicado pela primeira vez em 1970.
O crtico italiano (2006), assim como muitos outros tericos, aponta como o
surgimento dessa modalidade a transio entre o antigo regime e a modernidade. De
acordo com Ceserani, a literatura fantstica no pode se restringir aos elementos ou s
estruturas retrico-formais e a temas especficos, uma vez que um escritor pode se
apropriar de diversos procedimentos existentes na histria da literatura e criar outros
com o objetivo de discutir os limites da realidade. Ao enfatizar, em sua anlise, o
estudo de estruturas retricas e temticas predominantes nesta modalidade, o crtico
italiano associa o fantstico apenas s abordagens intrnsecas e imanentes da literatura,
ignorando o fato de que o fantstico tambm estabelece relaes com o contexto
histrico.
Nesse estudo, analisamos um conto de Edgar Allan Poe luz das consideraes
feitas por Mikhail Bakhtin sobre a stira menipeia. Em Pequena conversa com uma
mmia (1981)3, Poe utiliza a figura de uma mmia para desenvolver a temtica da
viagem no tempo e a do dilogo dos mortos. A mmia utilizada pelo escritor para
2 Nesta abordagem, o peso terico conferido, sobretudo, pela coletnea realizada pelos escritores Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo e Adolfo Bioy Casares denominado Antologia da literatura fantstica, publicado pela primeira vez em 1977. 3 Neste artigo utilizamos a traduo feita por Oscar Mendes e Milton Amado em Fico Completa, Poesia & Ensaio, 1981.
satirizar a modernidade, problematizando a experincia de tempo como progresso. Os
elementos que compem o fantstico so articulados por Poe para deixar entrever uma
precisa relao com o contexto histrico, revelando crticas modernidade de um pas
que caminhava rumo ao industrialismo. Mesmo sendo uma modalidade que pretende
deslocar os limites da realidade, as obras fantsticas esto intimamente ligadas ao
contexto em que foram elaboradas. Ao desenvolver elementos fantsticos para criticar
aspectos da sociedade norte-americana, a narrativa de Poe manifesta os medos e os
receios de indivduos que viveram em um perodo repleto de incertezas.
O fantstico e a stira menipeia
As narrativas do escritor Edgar Allan Poe (1809-1849) se destacaram no s
devido ao apreo dos leitores pelo gtico, pelo macabro e pelo grotesco, mas tambm
pelo modo como o escritor concilia o imaginrio s questes filosficas. As obras de
Poe marcaram a consolidao de uma precisa tradio textual na qual o modo
fantstico usado para organizar a estrutura fundamental da representao e para
transmitir de maneira forte e original experincias inquietantes mente do leitor.
(2006, p. 12). Contos como A queda da casa de Usher (1839) e William Wilson
(1834), para no citar outros, so exemplos de obras fantsticas que contriburam para
tornar Poe a figura norte-americana mais representativa do sculo XIX nesta tradio
literria.
Articulando de um modo especfico as estruturas formais e os sistemas
temticos, as obras de Poe revelam algumas inquietaes do homem do sculo XIX. De
acordo com Walter Benjamin em O Flneur,
Poe foi um dos maiores tcnicos da literatura moderna. Pela primeira
vez, como nos observa [Paul] Galery, fez experincias [...] com a
moderna cosmogonia, [e] com a descrio de fenmenos patolgicos.
Tais gneros valiam para ele como produes exatas de um mtodo
para o qual reivindicava validez universal. (BENJAMIN, 2000, p. 40).
No que concerne s estruturas formais, so desenvolvidas nas narrativas de Poe a
unidade de efeito, que consiste na relao entre a extenso do conto e a reao que a
leitura provoca no leitor. Muitos dos temas presentes nas obras de Poe podem ser
associados ao terror. Alm dos textos em que os artifcios temtico-composicionais so
utilizados para causarem medo ou surpresa no leitor, existe ainda uma corrente na sua
fico composta por textos satricos e humorsticos. Precisamente nesta linha que
melhor pode ser situado o conto intitulado Pequena conversa com uma mmia, escrito
em 1845. Neste conto, o fantstico aliado s questes filosficas no para suscitar
terror, mas comicidade, o que nos permite entrever o dialogismo entre o fantstico e a
stira menipeia. Antes de analisarmos este conto de Poe, parece-nos central apresentar
algumas caractersticas sobre a stira menipeia elaboradas por Mikhail Bakhtin a
propsito da assimilao singular feita por Dostoivski deste gnero da Antiguidade
Clssica, na poca do helenismo.
De acordo com Bakhtin (1981), a stira menipeia um dos diversos gneros que
compe o campo cmico-srio. Esse campo caracterizado por sua profunda relao
com o folclore carnavalesco, cuja estrutura bsica a cosmoviso carnavalesca que
penetra totalmente esses gneros, determina[ndo]-lhes as particularidades fundamentais
e coloca[ndo]-lhes a imagem e a palavra numa relao especial com a realidade (p. 92).
A stira um recurso recorrente em obras literrias que criticam a sociedade de que o
escritor faz parte, como ocorre, por exemplo, em As viagens de Gulliver (1735) de
Jonathan Swift.
Este gnero caracterizado por abordar as questes da vida e da morte com
extrema universalidade e, muitas vezes, as personagens encontram-se nesse limiar. Eis o
ponto convergente mais evidente entre o conto de Poe e a stira menipeia, pois, como
fica explcito no ttulo do conto, o relato apresenta a figura da mmia como elemento
principal. A mmia a prpria imagem do limiar, por seu carter ambguo: o de no
estar nem viva e nem morta, e por ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Karen E.
Macfarlane (2010), ao analisar a imagem das mmias nas fices imperialistas do
sculo XIX, ressalta que no momento que elas saem da posio de artefato ou relquias
e entram na ordem simblica do Ocidente, como sujeitos atuantes (apesar de
condicionalmente), elas representam um conflito entre Oriente e Ocidente, passado e
presente, entre cognoscvel e incognoscvel. Como demonstraremos ao longo de nossa
anlise, a mmia articulada no conto de Poe para desenvolver o conflito entre antigos
e modernos.
A caracterstica fundamental da narrativa de Poe a ironia, feita ora pelo
narrador, ora pela mmia. Essa caracterstica desenvolvida no incio do relato por
meio do narrador-personagem, que, apesar de almejar fazer uma ceia leve, acaba
ingerindo uma quantidade duvidosa de cervejas, o que torna o relato no confivel. Ele
um homem burgus e, como veremos posteriormente, ter suas crenas, costumes e
convices ridicularizados pela mmia.
Depois da refeio frugal, o narrador deita-se na esperana de dormir at tarde
do outro dia. No entanto, seu sono interrompido e ele faz a seguinte pergunta que
caracteriza a ideia central da narrativa: Mas quando teve a humanidade satisfeitas as
suas esperanas? (1981, p. 595). A pergunta revela a insatisfao do homem diante de
sua condio de sujeito burgus, prisioneiro dos costumes, dos valores e das crenas do
seu tempo e de sua sociedade. O pessimismo e a melancolia, presentes no narrador-
personagem, so caractersticas das personagens das narrativas de Poe, que carregam
consigo a prpria condio de seres marginais e excntricos.
O sono do narrador foi interrompido por um mensageiro que trazia um bilhete a
mando de seu amigo Ponnonner, dizendo que havia conseguido permisso para
examinar a mmia. O sugestivo nome da mmia, Allamistakeo (desmembrado, o nome
em ingls, revela-se all a mistake o, que pode ser traduzido como tudo um erro),
nos d uma sugesto da importncia da mmia na narrativa. O tom srio e ao mesmo
tempo zombeteiro se torna explcito na seguinte fala do narrador-personagem:
A aplicao da eletricidade a uma mmia, velha de trs ou quatro mil
anos pelo menos, era uma ideia, se no bastante sensata, contudo
suficientemente original e todos a acolhemos sem detena. Com quase
um dcimo de seriedade e nove dcimos de troa, dispusemos uma
bateria no gabinete do doutor e para l levamos o egpcio. (POE,
1981, p. 598)
A juno dos elementos srios e cmicos tambm permite aproximar o conto
stira menipeia, pois, segundo Mikhail Bakhtin (1981), tais caractersticas remontam ao
folclore carnavalesco. De acordo com o terico russo, um dos elementos fundamentais
de toda a literatura carnavalizada o riso carnavalesco, que na literatura do sculo
XVIII e XIX consideravelmente reduzido, chegando ironia e ao humor. Nesse
sentido, podemos determinar no s a passagem anterior como uma evidncia menor do
riso reduzido, como tambm na passagem subsequente, momento em que os homens
veem fechado o glbulo da mmia, o qual, at ento, estivera aberto, e a seguinte cena
descrita:
No posso dizer que fiquei alarmado diante do fenmeno porque, no
meu caso, alarmado no bem o termo. possvel, porm, que, sem
as cervejas pretas, talvez me tivesse sentido um pouco nervoso.
Quanto a meus companheiros, no tentaram ocultar o terror
inequvoco que deles se apossara. O Dr. Ponnonner fazia lstima. O
Sr. Gliddon, graas a no sei que processo peculiar, tornara-se
invisvel. Presumo que o Sr. Silk Buckingham no ter por certo a
coragem de negar que se arrastou de quatro ps para baixo da mesa.
(POE, 1981, p. 598)
Alm do riso reduzido, presente na narrativa atravs da ironia e comicidade,
possvel destacar na passagem acima algumas caractersticas presentes na literatura
carnavalizada, como o que Bakhtin denomina por pluritonalidade de estilos, que
consiste na fuso do sublime e do vulgar, do srio e do cmico. (1981, p. 93). Nessa
passagem, o srio e o cmico se fundem de tal modo que o espanto das personagens
que na maior parte dos relatos fantsticos causaria medo aos leitores possibilita o riso.
Desse modo, Poe articula os elementos fantsticos associando-os ao humor.
Como aponta Bakhtin, o carnaval a festa do tempo que tudo destri e tudo
renova, e tal caracterstica vista na simbologia de coroao e destronamento. Esse
ritual consiste no coroamento e destronamento de um escravo como rei carnavalesco,
invertendo as ordens hierrquicas, instaurando o que Bakhtin denomina de mundo s
avessas. A praa pblica aproxima os homens que, na vida cotidiana, esto separados
por uma intransponvel barreira hierrquica. Esse ritual se manifesta no conto de Poe de
duas maneiras: ao colocar passado e presente em uma mesma realidade, Poe aproxima
homens que esto temporalmente distantes, subvertendo as ordens temporais. A
segunda leitura possvel consiste no prosseguimento ao conto, quando a mmia comea
o seu discurso:
Devo dizer-vos, cavalheiros, que estou to surpreso quanto
mortificado pela vossa conduta. Do Dr. Ponnonner nada de melhor se
poderia esperar. um pobre tolheiro que nada sabe de nada. Tenho
pena dele e perdoo-lhe. Mas vs, Sr. Gliddon... e vs, Silk (...). Vs, a
quem sempre fui levado a olhar, como amigo fiel das mmias...
realmente esperava de vs uma conduta mais cavalheiresca! Que devo
pensar de vossa atitude tranquila vendo-me assim to estupidamente
tratado? Que devo supor de vs, consentindo que Fulano, Sicrano e
Beltrano me arranquem dos meus caixes, tirem-me as roupas, neste
clima miseravelmente frio? (POE, 1981, p. 599)
Na stira menipeia, os rituais de coroao-destronamento instauram o mundo s
avessas devido inverso hierrquica. No conto de Poe, essa inverso manifestada
no comportamento da mmia e dos homens. Esperava-se que a mmia, por estar morta
e ser de outro tempo, agisse de um modo brbaro e desumano. No entanto, a mmia no
s se mostra completamente civilizada, como tambm exibe repulsa perante as atitudes
dos vndalos. Portanto, o aspecto cmico da narrativa resultado da inverso de
papis na medida em que os homens modernos so caracterizados como brbaros e a
mmia como civilizada.
Diante de uma situao inslita, a conduta natural dos homens, segundo o
narrador-personagem, deveria ser, mais uma vez, sair correndo, cair em ataques
histricos ou ento desmaiarem. Mas,
[...] no posso compreender como ou por que foi que no fizemos nem
uma coisa nem outra. Mas, talvez, a verdadeira razo esteja no esprito
deste tempo que procede totalmente de acordo com a regra dos
contrrios e agora usualmente admitida como soluo de todos os
paradoxos e impossibilidades. (POE, 1981, p. 599/600)
H, em algumas narrativas de Poe, a convergncia entre imaginao, filosofia e
crtica social. O escritor viveu uma poca em que os Estados Unidos no s
caminhavam em direo ao industrialismo e ao progresso, como tambm viviam um
crescimento demogrfico. Algumas narrativas do escritor manifestam as marcas da
modernidade dos Estados Unidos, o que permite aproxim-las ao contexto histrico,
uma vez que elas revelam as transies do pas naquele perodo.
Se no bastassem todas essas caractersticas que correlacionam o conto de Poe
stira menipeia, o ponto alto da carnavalizao na narrativa o momento em que a
mmia sente um tremor de frio e vestida com roupas dos homens modernos. Apesar
da disparidade de tamanho entre a mmia e o dono das roupas proporcionar uma
imagem grotesca, na viso do narrador-personagem podia-se dizer que ele estava bem
vestido. (1981, p. 601). A mmia se traveste, como ocorre no ritual carnavalesco, de
peculiares vestimentas, instaurando o mundo s avessas. Vrios elementos da stira
menipeia so articulados no conto de Poe, como o riso reduzido, o sarcasmo, entre
outros, para instaurar o mundo s avessas, que permite a Poe, por meio da figura da
mmia, revisar o passado e ironizar o presente.
A viagem no tempo
Em Introduo literatura fantstica (2004), Todorov preocupou-se em
desenvolver um estudo imanente, baseado [...] unicamente em unidades internas (p.
166) das narrativas. Sua anlise sustenta-se em trs aspectos: o aspecto verbal, que
reside nas frases concretas que constituem o texto; o segundo o sinttico, isto , as
relaes entre as unidades que se referem apreciao das personagens sobre os
acontecimentos da narrativa, e por fim, o semntico, ou seja, os temas das obras.
Todorov, no final de seu estudo, reconhece que o fantstico tambm apresentou
uma funo social, pois se constituiu como uma ferramenta para os escritores poderem
debater certos tabus ou, pelo menos, discutir certas censuras. No entanto, acreditamos
que a relao do fantstico com o contexto no deve ser elaborada por critrios to
especficos e rgidos, como faz Todorov ao restringir o fantstico como tendo apenas
essa funo. luz do contexto de uma obra, devem-se ampliar os modos de abordagens
do inslito para reconhecer que o fantstico pode apresentar distintas funes sociais.
Para compreender o modo como o fantstico se desenvolve neste conto de Poe,
necessrio analisar no s a temtica e as estruturas que regem o discurso literrio, mas
tambm as relaes que esta obra apresenta com o contexto histrico. No conto, Poe
problematiza a experincia do tempo, por meio de uma mmia, que inserida na
narrativa para questionar o presente e romper com a viso progressista do tempo. A
necessidade de analisar o fantstico a partir de suas relaes com outros discursos
consiste em reconhecer que o fantstico um modo de criticar e debater vrios aspectos
da sociedade, como a poltica, a moralidade e, neste conto, a modernidade e o
progresso.
Um dos ncleos temticos desenvolvidos pela literatura fantstica a vida dos
mortos4. Apesar de no ser um tema novo, j que a temtica est presente nas visitas ao
alm-mundo que ocorre em Odisseia de Homero, na modalidade fantstica tal ncleo se
constri com novos aspectos. Nos dizeres de Ceserani, a temtica liga-se a novas
exploraes filosficas e experimentaes pseudocientficas, com o desenvolvimento
das filosofias materialistas e sensitivas, das filosofias da vida e da fora, dos
experimentos sobre o magnetismo. (2006, p. 80). No conto, apesar de a mmia afirmar
aos modernos que ela no havia morrido, a sua imagem suscita uma inevitvel relao
4 A temtica tambm denominada por dilogo dos mortos, dependendo da escolha do tradutor.
com a morte. No sculo XIX, tal temtica ganha uma nova dimenso e complexidade,
sobretudo devido aos experimentos de Luigi Galvani, tal como citado no conto por
Poe. O galvanismo sugeriu a possibilidade de reanimar os mortos por meio de corrente
eltrica, o que instigou a imaginao de escritores como Mary Shelley ao escrever
Frankenstein (1831).
A anlise do fantstico, relacionando-o com o contexto da obra, se faz
importante no conto de Poe, sobretudo porque o autor manipula os elementos da
narrativa, aproximando o inslito stira menipeia com o objetivo de satirizar a
modernidade dos Estados Unidos. Neste sentido, como afirma o crtico Zabel, as obras
do escritor norte-americano vo alm da imaginao, pois,
Em suas fantasias humorsticas, Poe torna-se um historiador e um
crtico social, e muito nos tem a contar sobre os males crescentes e as
perigosas possibilidades pelas quais passaram os Estados Unidos ao se
fundirem numa s nao, com todos os elementos raciais e morais
concebveis do mundo. (ZABEL, 1949, p. 95)
As crticas de Poe so desenvolvidas por meio do tema da viagem do tempo da
mmia, que dinamiza a relao conflituosa entre o passado e o presente. As crticas aos
seus contemporneos so abordadas por meio da discusso entre os homens e a mmia,
que prossegue na segunda parte do conto. Como fica evidente por meio do narrador-
personagem e das outras personagens, Poe ridiculariza a classe burguesa da qual faz
parte, como no momento em que o narrador afirma que as aes e o esprito de seu
tempo so motivados pela regra dos contrrios. Desse modo, Poe critica os valores
morais e cientficos de sua sociedade, sobretudo no que diz respeito aos avanos de seu
pas, dos quais muitos se orgulhavam.
A querela entre o antigo e os modernos permeada de ironia e sarcasmo. Outro
exemplo da viso escarnecedora com a qual a modernidade abordada est no tom de
arrogncia e de presuno com que a mmia critica o conhecimento e os avanos dos
homens modernos, ao afirmar: - Ah percebo! Deplorvel estado de ignorncia! (p.
602). Os homens do sculo XIX querem provar mmia a acentuada inferioridade dos
velhos egpcios em todos os ramos da cincia, quando comparados com os modernos, e
mais especialmente com os ianques. (p. 605). Para isso, os homens recorrem
arquitetura, aos saberes astrolgicos, metafsicos e democracia. Mas a mmia
ridiculariza e destri a viso de superioridade dos modernos em relao aos antigos, no
que diz respeito aos avanos da cincia e da sociedade.
De acordo com o narrador, a mmia mostra aos espectadores modernos que
Grandes Movimentos eram coisas excessivamente comuns no seu tempo. (p. 607). Os
modernos utilizam a democracia por julgarem ser a conquista mxima de seu tempo
em relao s civilizaes antigas com o intuito de provar que a sua sociedade no
est fadada a desaparecer como a do egpcio. Sobre a democracia, a mmia relata que
treze provncias egpcias resolveram libertar-se e criaram a mais engenhosa
constituio que possvel conceber-se, mas a coisa acabou no mais odioso e
insuportvel despotismo de que jamais se ouviu falar na superfcie da terra (p. 608).
No sem ironia, o nome do tirano era Populaa. Ao apresentar a democracia como um
regime falido e fracassado em seu tempo, a mmia, aos poucos, vai destruindo a viso
de superioridade dos modernos, rompendo assim com a viso progressista da
experincia de tempo.
O conto finalizado com uma reviravolta inesperada no debate entre o antigo e
os modernos, em que a mmia derrotada pelo argumento das vestimentas que ela
prpria, to comodamente, havia aceitado. Assim, o satrico levado ao extremo na
medida em que a vitria dos modernos no se deve aos mritos que eles julgavam como
marcas do progresso do seu tempo, mas s roupas. A vitria dos homens faz com que a
mmia se mortifique, transformando-se em p diante dos olhos dos mesmos sujeitos
que ressuscitaram o antigo. Apesar do desvanecimento da mmia, a presena da ironia
torna a passagem ambgua, dificultando determinar quem ganhou o debate. Em um tom
irnico, ao eleger as roupas como fator mximo de modernidade, Poe demonstra
como sua sociedade est presa s superficialidades.
Alm disso, ao invs da mortificao da mmia ocasionar uma sensao de
soberania e de vitria, o narrador tomado por um imenso vazio, como demonstrado
na seguinte passagem:
Ao chegar em casa, descobri que j passava das quatro horas e fui
imediatamente para a cama. So agora dez horas da manh. Estou de
p desde as sete, rabiscando estas notas em benefcio de minha famlia
e da humanidade. [...]. A verdade que estou absolutamente
convencido de que tudo vai mal. Alm disso, anseio por saber quem
ser o presidente em 2045. Portanto, to logo acabe de barbear-me e
de engolir uma xcara de caf, irei casa de Ponnonner fazer-me
embalsamar por uns duzentos anos. (POE, 1981, p. 608).
Ao se convencer de que tudo vai mal, o narrador-personagem transforma-se
num sujeito melanclico, sentimento presente em sujeitos modernos. Desse modo, Poe
narra a histria de um homem que viu todas as suas crenas se dilurem diante de seus
olhos, o que ocasionou sua fatal transformao. O pessimismo com que o progresso
retratado, e incorporado pelo narrador, uma forma no s de questionar os avanos do
pas, mas tambm de ironizar o modo como as pessoas lidam com tais avanos.
Incapacitado de ver sentido em sua sociedade, o narrador-personagem v no
embalsamento o seu destino, transformando-se, assim como a mmia, em um viajante
do tempo.
Ao escolher a mmia como o elemento central da narrativa, Poe problematiza a
relao conflituosa de tempos distintos, representando o progresso de sua sociedade
com grande pessimismo. Antoine Compagnon em Cinco Paradoxos da Modernidade
(2010) ressalta que essa dimenso melanclica e desesperada, que ficar inseparvel da
f moderna no progresso e do reconhecimento de nossa historicidade sem fim (p. 22)
uma constante nas narrativas modernas, que tem como principais representantes as
obras do poeta francs Charles Baudelaire e as de Edgar Allan Poe.
Concluso
Todas as nossas consideraes anteriores a respeito de uma dimenso fantstica
que se integra s questes filosficas, desenvolvidas com mincia em nossa anlise,
assim como a nfase que atribumos comicidade ou ao humor predominante no conto,
levaram aproximao com a stira menipeia. Trata-se de uma aproximao que
esclarece a combinao desses traos no conto de Poe. Com esse passo, no se pretende
aqui encerrar definitivamente as questes relacionadas interpretao de Pequena
conversa com uma mmia, mas estabelecer uma aproximao que se mostra inevitvel.
O conto de Poe associa o fantstico ao contexto histrico ao utilizar a mmia
para satirizar a modernidade. As narrativas do escritor norte-americano apresentam
valiosas contribuies para a literatura moderna na medida em que permitem entrever
relaes com o contexto em que a obra foi escrita, sobretudo no que tange
caracterizao pessimista ao associar o progresso decadncia. A necessidade de
abordar o modo como o contexto vislumbrado na obra se deve ao fato de o fantstico
permitir a discusso de alguns aspectos histricos e sociais importantes, como a
democracia norte-americana e a prpria experincia de tempo como progresso.
O fantstico, assim como a stira menipeia, um jogo de experincias dos
limites entre o racional e o irracional, entre a imaginao e a realidade. Outras
polaridades se unem a essas, tais quais: a vida e a morte, o trgico e o cmico, o sublime
e o vulgar, de modo que as barreiras que separam to fixamente tais polaridades so
dissolvidas nos contos fantsticos e nas stiras menipeias, produzindo novas
experincias. Desse modo, somos levados a uma ltima aproximao entre o fantstico
do conto de Poe e a stira menipeia: o fantstico foi utilizado por Poe para, como
lembrou Benjamin, reivindicar a validez universal. A menipeia, ao ser associada ao
campo do cmico-srio, proclama a alegre relatividade da cosmoviso carnavalesca em
que debilitam-se a sua seriedade retrica unilateral, a racional, a univocidade e o
dogmatismo. (1981, p. 92). Portanto, o fantstico do conto de Poe, assim como a
menipeia, como afirmou Bakhtin, nada absolutizam, mas proclamam a relatividade de
tudo.
Referncias bibliogrficas
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