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Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377 Curso de Direito - N. 4, JAN/JUN 2008 A UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS E A SUPERAÇÃO DA RAZÃO LIBERAL Cláudia das Graças Ignácio Érika Rodrigues Campos RESUMO Analisar a aplicação dos direitos humanos não só em uma sociedade específica, mas em toda a sociedade internacional, constitui o objetivo do presente artigo. O interesse no estudo do tema se justifica na controvérsia existente em torno da possível sobreposição de uma cultura sobre a outra. A problemática se dá quando se objetiva a aplicação dos direitos humanos, tendo em vista contextos sociais marcados por diferenças culturais em relação aos padrões do ocidente. Nesse sentido, é necessário verificar que uma população oprimida e isolada tem o direito ao mínimo de vida digna, que inclui o desejo de ter ou não sua cultura desenraizada. Os direitos humanos têm sido um fator de suma importância nos âmbitos regional e global, para conter violações graves e sistemáticas da dignidade humana. São direitos inerentes à pessoa humana, que visam a resguardar a sua integridade física e psicológica, garantindo o mínimo fundamental e necessário para que uma pessoa viva com dignidade perante seus semelhantes e o Estado. Dessa forma, cumpre ao presente trabalho investigar se uma determinada sociedade cultural – qual seja sociedade africana - caberia a imposição de uma nova cultura taxada como tipicamente ocidental. Palavras-chave: Direito Internacional, Direitos Humanos, Contexto Africano, Razão Liberal. ABSTRACT To not only analyze the application of the human rights in a specific society, but in all the international society, constitutes the objective of the present article. The interest in the study of the subject if justifies in the existing controversy around the possible overlapping of a culture on the other. The problematic one if of the when if objective application of the human rights, in view of social contexts marked by cultural differences in relation to the standards of occident. In this direction, it is necessary to verify that an oppressed and isolated population has the right to the minimum of worthy life, that includes the desire to have or not its “non-root” culture. The human rights have been a factor of utmost importance in the scopes regional and global, to contain serious and systematic breakings of the dignity human being. They are right inherent to the person human being, that they aim at to protect its physical and psychological integrity, guaranteeing the basic and necessary minimum so that a living person with dignity before its fellow creatures and the State. Of this form, it fulfills to the present work to investigate if one definitive cultural society - which is African society - would fit the imposition of a new taxed culture as typically occidental person. Keywords: International Law, Human rights, African Context, Reason Liberal.

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Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery

http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377

Curso de Direito - N. 4, JAN/JUN 2008

A UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS E A SUPERAÇÃO DA RAZÃO LIBERAL

Cláudia das Graças Ignácio

Érika Rodrigues Campos RESUMO Analisar a aplicação dos direitos humanos não só em uma sociedade específica, mas em toda a sociedade internacional, constitui o objetivo do presente artigo. O interesse no estudo do tema se justifica na controvérsia existente em torno da possível sobreposição de uma cultura sobre a outra. A problemática se dá quando se objetiva a aplicação dos direitos humanos, tendo em vista contextos sociais marcados por diferenças culturais em relação aos padrões do ocidente. Nesse sentido, é necessário verificar que uma população oprimida e isolada tem o direito ao mínimo de vida digna, que inclui o desejo de ter ou não sua cultura desenraizada. Os direitos humanos têm sido um fator de suma importância nos âmbitos regional e global, para conter violações graves e sistemáticas da dignidade humana. São direitos inerentes à pessoa humana, que visam a resguardar a sua integridade física e psicológica, garantindo o mínimo fundamental e necessário para que uma pessoa viva com dignidade perante seus semelhantes e o Estado. Dessa forma, cumpre ao presente trabalho investigar se uma determinada sociedade cultural – qual seja sociedade africana - caberia a imposição de uma nova cultura taxada como tipicamente ocidental. Palavras-chave: Direito Internacional, Direitos Humanos, Contexto Africano, Razão Liberal.

ABSTRACT To not only analyze the application of the human rights in a specific society, but in all the international society, constitutes the objective of the present article. The interest in the study of the subject if justifies in the existing controversy around the possible overlapping of a culture on the other. The problematic one if of the when if objective application of the human rights, in view of social contexts marked by cultural differences in relation to the standards of occident. In this direction, it is necessary to verify that an oppressed and isolated population has the right to the minimum of worthy life, that includes the desire to have or not its “non-root” culture. The human rights have been a factor of utmost importance in the scopes regional and global, to contain serious and systematic breakings of the dignity human being. They are right inherent to the person human being, that they aim at to protect its physical and psychological integrity, guaranteeing the basic and necessary minimum so that a living person with dignity before its fellow creatures and the State. Of this form, it fulfills to the present work to investigate if one definitive cultural society - which is African society - would fit the imposition of a new taxed culture as typically occidental person. Keywords: International Law, Human rights, African Context, Reason Liberal.

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INTRODUÇÃO

O Estado de Direito, como momento histórico da humanidade, torna-se possível a

partir da positivação dos direitos. O conceito de sociedade pressupõe organização em

conseqüência do próprio Direito, que, no seu conjunto de normas a serviço do homem, traça

normas de conduta, disciplina o convívio das pessoas em sociedade e, assim, traça as regras que

cada um de nós devemos seguir, inclusive o próprio Estado, que o impõe e deve a ele

obediência.

A sociedade civil, como agrupamento de pessoas, em face de fatores culturais,

educacionais, históricos, econômicos, filosóficos, começou a organizar-se de maneira diferente

do estado absolutista (feudalismo), fase que precedeu o atual Estado de Direito (capitalismo).

Assim, antes da positivação dos direitos, isto é, antes do seu ingresso no ordenamento jurídico

do Estado, segundo a filosofia jusnaturalista, pode-se dizer que os direitos humanos possuem

uma pré-história, ou seja, existiram antes mesmo de sua positivação. Esta é a razão pela qual

seriam tidos por naturais, inerentes ao homem pela própria natureza humana, tendo em vista o

conceito de ciência desenvolvido a partir do século XVI, na Europa. Sendo assim, não é

necessário que uma lei dissesse que “todos têm direito à vida”, pois a vida é um direito inerente

ao ser humano. Atribui-se à pré-história, de todo e qualquer direito, a fase embrionária de um

determinado valor, o qual passa a brotar no seio da sociedade, até ganhar corpo e relevância

necessária e suficiente para ser positivado pelo processo legislativo. Por exemplo, a igualdade

jurídica entre homens e mulheres, a criminalização de condutas discriminantes (racismo e

qualquer outro tipo de preconceito) e a proteção ao meio ambiente.

Nosso intuito é enfatizar a importância dos direitos humanos não só em uma

sociedade específica, mas como em toda a sociedade internacional. Ou seja, antes de tudo,

destacar que falar de direitos humanos é falar de dignidade, liberdade e de tudo aquilo que um

governo democrático responsável tem o dever de proporcionar aos seus cidadãos. Todavia, tal

importância se problematiza no momento em que se objetiva a aplicação dos direitos humanos,

tendo em vista contextos sociais marcados por diferenças culturais em relação aos padrões do

Ocidente. Nesse contexto, queremos problematizar que apesar da possível sobreposição de uma

cultura sobre outra, é preciso verificar que esta população oprimida e isolada tem o direito ao

mínimo de vida digna, que inclui o desejo de ter ou não sua cultura desenraizada.

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CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS

Partindo do pressuposto de que os direito humanos pertencem a todos os seres

humanos, pressupõe-se que todos os direitos são humanos, razão pela qual o termo “direitos

humanos” muito pouco revela acerca de seu conteúdo. Podemos averiguar, então, que a

expressão é utilizada de forma didática para exprimir que estes direitos, tidos como

humanos, se referem àqueles direitos do homem. Diria que são direitos que visam a

resguardar os valores mais preciosos da pessoa humana, ou seja, direitos que visam a

resguardar a solidariedade, a igualdade, a fraternidade, a liberdade e a dignidade da pessoa

humana, tal como os ideais da Revolução Francesa. No entanto, apesar de facilmente

identificado, a construção de um conceito que o defina não é uma tarefa fácil, em razão da

amplitude do tema. Portanto, para fim de compreensão do artigo podemos conceituar que

os Direitos Humanos são aqueles direitos inerentes à pessoa humana, que visam a

resguardar a sua integridade física e psicológica, bem como garantir o bem-estar social,

aquilo que é o mínimo fundamental e necessário para que uma pessoa possa viver com

dignidade perante seus semelhantes e perante o Estado, de forma a limitar os poderes das

autoridades, garantindo, assim, a igualdade e a fraternidade, proibindo qualquer espécie de

discriminação entre os seres humanos.

Por outro lado, com a mesma finalidade, devemos ter os direitos humanos como

todos aqueles direitos fundamentais, que foram recepcionados pelo ordenamento jurídico

de um determinado Estado (Constituição e Leis). Facilmente se percebe que não pode

haver identidade de conteúdo entre as expressões “direitos humanos” e “direitos

fundamentais”, são sinônimos de forma geral, já que tratam de um mesmo conteúdo, a

garantia do imprescindível ao ser humano, daquilo que é essencial, por exemplo, para que

haja a sua proteção contra as crueldades que um mundo escravizado por um sistema

econômico é capaz, conforme analisaremos neste artigo.

Podemos observar que, no decorrer da história, a luta por um ideal foi um

instrumento perfeito para grandes conquistas. Segundo Rudolf Von Jhering1, o direito é

originado da própria sociedade, através da constante batalha por melhores condições de

vida digna e de igualdade de direitos. Os direitos fundamentais são, acima de tudo, fruto de

1 JHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. Trad. Pietro Nassetti. Ed. Martim Claret, 2002.

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reivindicações concretas, geradas por situações de injustiça e ou de agressão a bens

fundamentais e elementares do ser humano. Assim sendo, a unidade constituída reconhece

o movimento de interesses de um determinado grupo que só tem seus direitos reconhecidos

no momento em que lutam para solução das lides decorrentes, principalmente, da

desigualdade social.

PRESENTE E FUTURO DOS DIREITOS HUMANOS

O surgimento dos Direitos Humanos, na história da humanidade, coincide com o

aparecimento do Estado de Direito, pois é no momento em que se começa a falar da

proteção do indivíduo frente à opressão do Estado, que se inicia a construção dos direitos

humanos, como freio ou limitação ao poder estatal, proporcionando ao indivíduo, ou a

grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado. A preocupação atual

com os direitos do homem é de que forma mais eficaz pode-se impedir, apesar das solenes

declarações, que eles sejam continuamente violados. Nesse sentido pondera Norberto

Bobbio, o maior problema dos direitos humanos hoje “não é mais o de fundamentá-los, e

sim protegê-los2.

Quando os Direitos do Homem eram considerados direitos naturais, a única

forma possível de defesa contra a sua violação pelo Estado era por um Direito igualmente

natural, o direito de resistência. A partir da positivação desses direitos, o direito natural de

resistência transformou-se no direito positivo de promover uma ação judicial contra os

próprios órgãos do Estado.

A constitucionalização dos direitos universalizou os direitos humanos, no

sentido de abranger a todos os indivíduos, impondo-se o seu respeito, inclusive, pelo

próprio poder público, por meio do controle da constitucionalidade, dos tratados

internacionais, das agências internacionais de proteção, dos direitos fundamentais, dos

princípios. Com a supremacia dos direitos fundamentais, conferida pelas constituições,

impôs um limite de atuação aos governantes como garantia dos cidadãos. Nessa fase, os

2 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. Rio de Janeiro: Campos, 2004, p. 30.

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direitos humanos demarcaram uma esfera de autonomia privada3 dos cidadãos e definiram

os limites de intervenção do Estado, chamados direitos negativos, na qual consistem na

abstenção de comportamentos e na proteção do cidadão contra os atos de discricionariedade

do Estado.

Num segundo plano, os direitos humanos vieram como uma resposta aos graves

problemas sociais e econômicos. Fruto da Revolução Industrial e da constatação de que

somente a positivação dos direitos não garantiria o gozo desses mesmos direitos pelos

cidadãos ameaçados uns pelos outros. A questão não era mais proteger-se do Estado, como

instituição, mas sim do próprio ser humano, que passará a violar e a ameaçar o direito

natural dos indivíduos. O Estado é chamado a intervir novamente nas relações sociais,

porém de forma controlada, o bastante para garantir à sociedade o mínimo de bem-estar

social e de igualdade. A essência da proteção dos direitos nesse momento é a preocupação

com as necessidades do ser humano. O Estado ampliou suas funções, que se encontravam

restritas, enquanto o Estado árbitro cedeu espaço para o Estado das prestações. O homem,

liberto do jugo do Poder estatal, reclama agora uma nova forma de proteção da sua

dignidade, qual seja, a satisfação das necessidades mínimas para que se tenha dignidade e

sentido na vida humana.

O Estado precisava entrar no “jogo”, intervir com a prestação positiva. Para

tanto, deve agir em prol dos menos favorecidos pela ordem social e econômica, atuando na

promoção do bem-estar social.

Os direitos, até então de âmbito regional, passaram a assumir dimensão global,

despersonalizaram-se, passando do caráter individual para o coletivo e difuso. Esses

direitos abrangem um número indeterminado de pessoas, não sendo possível a

individualização de seus destinatários, tais como o desenvolvimento, paz, ambiente, saúde,

educação pública, proteção ao consumidor, à infância e à juventude, ao idoso e ao

deficiente físico.

Como se vê, esses direitos estão a serviço dos direitos à vida, à liberdade, à

igualdade e à propriedade, uma vez que a sua essência encontra-se em sentimentos como a

3 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, 2 V.

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solidariedade e a fraternidade, constituindo mais uma conquista da humanidade no sentido

de ampliar os horizontes de proteção e de emancipação.

O Estado nunca conseguiu alcançar o seu objetivo, desincumbir-se das

atribuições que lhe foram cometidas, ou seja, proporcionar aos indivíduos da sociedade

condições dignas de vida. Isso acontece porque o Estado, objetivando promover o

desenvolvimento humanitário igualitário, não pode simplesmente se abster da atual

realidade de solucionar as desigualdades entre os indivíduos, uma vez que há na sociedade,

de forma geral, uma necessidade cada vez maior de implementação de mecanismos de

proteção aos direitos humanos, não só aos que dele necessitam, bem como assegurar a

efetividade daquilo que já se conquistou. Ademais, é necessário que o Estado venha a

cumprir de fato a sua função social independentemente de qualquer raça, etnia.

O Estado, infelizmente, não é neutro e acaba fazendo a sua opção, na maioria

das vezes, contra a população desfavorecida. Facilmente percebemos que o gozo da

cidadania é privilegio de poucos; entendida a cidadania como a possibilidade concreta do

exercício dos direitos humanos, outorgados pela ordem jurídica – que, por sua vez, não

proporciona a inclusão de todos os indivíduos no conceito de cidadania. A idéia de

cidadania é eminentemente política, porque não está necessariamente ligada a valores

universais, mas a decisões políticas. Os direitos de cidadania dizem respeito a uma

determinada ordem jurídico-política de um país. Assim, passa-se a ter duas classes de

indivíduos, ou seja, os incluídos no conceito de cidadania e os excluídos desse processo.

Exatamente por se tratar de direitos oponíveis a todos e, por conseguinte, direitos que

constroem o próprio conceito material de cidadania e inclusão, a sua observância significa

nada mais que a inserção na esfera social do homem - como cidadão. A ausência dos

direitos fundamentais ou humanos é nada mais do que a ausência material da cidadania, ou

seja, exclusão. A previsão dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico de um

Estado, reflete a mais real e nítida imagem do estatuto de oposição dos excluídos frente à

exclusão.

O Estado não cumpre sua função social, isto é, não inclui os excluídos. O

próprio Estado, criador do Direito, com o intuito de organizar a sociedade, por intermédio

do Poder Executivo ou Legislativo, ameaça ou viola os direitos dos cidadãos, ou um

cidadão agride outro cidadão em seu direito. É o poder Judiciário, no exercício da função

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jurisdicional que estabelecerá a ordem jurídica violada e, conseqüentemente, a paz social,

tornando efetivo o direito ameaçado ou violado. Diante da realidade excludente, de

violação de direitos humanos, compete ao “Estado-Juiz” incluir os excluídos, com respeito

aos direitos violados, os quais, se respeitados, podem proporcionar vida digna.

O “Estado-Juiz” configura-se no Poder Judiciário, pois, a partir do momento

histórico em que se retirou dos cidadãos a possibilidade de fazerem justiça com as próprias

mãos (autotutela), quando tivessem um direito ameaçado ou violado, o Estado assumiu a

tarefa de fazer valer o ordenamento jurídico, assim como o restabelecimento da paz social,

por meio do poder jurisdicional.

Segundo Niklas Luhman4, o Direito tem que ser estruturalmente compatível

com um maior número possível de fatos, algo que não observamos na realidade. O objetivo

de maior alcance muitas vezes não é concretizado, o que constrói perversamente a

desigualdade. A diferença é construtiva e enriquecedora, garante a autenticidade, o direito à

identidade, à diferença cultural, a diferença de nossas raízes. A desigualdade traz a semente

da hierarquia, do superior e do inferior, o que gera a semente da discriminação, que muitas

vezes gera o ódio. A tolerância, portanto, representa igualmente o reconhecimento da

diferença, nunca da desigualdade5. E o reconhecimento de que, apesar das diferenças, todos

têm direitos iguais e individuais acarreta a construção de uma ordem configurada de modo

a gerar justiça distributiva, em torno de bens inalienáveis e prementes. As diferenças que

têm origem natural ou cultural não induzem a um tratamento de superioridade ou

inferioridade, mas, ao contrário, elas exigem até mesmo um tratamento diferenciado. As

desigualdades são sempre a manifestação de um corte vertical na sociedade, estabelecendo-

se camadas superiores e camadas inferiores, fazendo com que, entre elas, perpasse sempre

uma manifestação de desprezo, de hostilidade ou de exploração.

Os Direitos Humanos são os instrumentos essenciais para defesa da autonomia

da pessoa humana, se concebermos a autonomia como a capacidade moral que todos têm

em determinar-se. É necessário, primeiramente, o reconhecimento desses direitos. O

desrespeito às leis, existência cotidiana provida pelas instituições, é um tratamento desigual

4 LUHMANN, Niklas. “A formação do direito: Bases de uma teoria sociológica do Direito”. In: Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, vol.I. p. 42-166. 5 RAWLS, John. Law of peoples. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999.

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e se justifica por certas desigualdades, resulta na desconsideração de igual dignidade de

cada um. Na norma, contradiz o princípio de igual dignidade. Na prática, sua existência

gera a perda de confiança entre os cidadãos e nas autoridades políticas, dificultando a

cooperação social ou a ação coletiva. De acordo com John Commons6, o direito moderno

surge de um conjunto de instituições destinadas a regular a circulação de riquezas em uma

sociedade, a qual diferencia as relações de troca como padrão fundamental da sociabilidade.

A partir disso, verificamos que, no momento em que as instituições não acompanham os

valores e as normas criadas na própria sociedade, ela se modifica mais rapidamente do que

as instituições. A vida institucional proporciona o surgimento das desigualdades

econômicas e sociais, pois suas normas acabam atingindo um pequeno grupo de

favorecidos, proporcionando o surgimento assíduo de excluídos.

EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: O PROCESSO

DEINTERNACIONALIZAÇÃO

A preocupação com a proteção à integridade da pessoa humana remonta de

muitos e muitos séculos e faz parte da própria natureza humana, que busca o

reconhecimento de suas necessidades em prol de uma sociedade que garanta uma

distribuição igualitária e justa. Não se pode vincular algo que faz parte da natureza humana

com as determinações da lei, que muitas vezes nada têm a ver com justiça e muito menos

com as limitações do poder estatal, visto que a preocupação humana com relação à proteção

de suas necessidades básicas existe até mesmo antes de tais limitações legais, em

constituições e leis. A limitação do poder, embora importante, não assegura, por si só o

respeito aos Direitos Humanos. No entendimento de Cesare Beccaria7, apenas com boas

leis se podem impedir certos abusos, uma vez que numa reunião de homens há a

concentração de pequena parcela de benefícios, tais como: o privilégio, o poder e a

felicidade. Noutra, verifica-se a miséria e a debilidade8. Assistimos em épocas passadas e

6 COMMONS, John R. Legal Foundation of Capitalism. Nova York, 1924; Trad. It. I fondamenti

giuridici del capitalismo, Bolonha, 1981. 7 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo:

Martin Claret, 2004, p. 15. 8 Id., 2004, p.15.

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estamos assistindo, nos dias de hoje, ao desrespeito dos Direitos Humanos em países onde

eles são legais e constitucionalmente garantidos. Mesmo em países de longa estabilidade

política e tradição jurídica, os Direitos Humanos são, em diversas situações concretas,

rasgados e vilipendiados.

Utilizando-se a expressão "Direitos Humanos" como quaisquer direitos

atribuídos ao homem, pode-se encontrar o reconhecimento de tais direitos até mesmo na

Antiguidade. Como exemplos, o Código de Hamurábi, no século XVIII a. C., na Babilônia;

os pensamentos do imperador do Egito, Amenófis IV, no século XIV a.C.; as idéias de

Platão, na Grécia, no século IV a.C.; o Direito Romano, e várias outras civilizações e

culturas ancestrais.

Os primeiros marcos da internacionalização dos Direitos Humanos foram

constituídos pelo Direito Humanitário, aplicado nas hipóteses de guerra, tendo como

escopo impor limites à atuação do Estado e assegurar, dessa forma, a observância dos

direitos fundamentais, de modo a proteger, nesses casos, os militares postos fora de

combate e as populações civis9. Para Thomas Buergenthal, o Direito Humanitário constitui

o componente de direitos humanos da lei e da guerra (The human rights component of the

Law of war)10.

O direito humanitário é um ramo integrado, completamente, dos direitos

humanos na medida em que é um instrumento de garantia da vida digna, da liberdade, da

saúde e de muitos outros direitos fundamentais codificados na legislação internacional.

Quando se garante ás populações submetidas a uma situação de conflito o acesso à

alimentação, a medicamentos e à vestimentas, está se protegendo os direitos fundamentais.

9 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra Editora, 1988. V. 4, p. 192-193. De acordo com o autor: “A proteção humanitária, associada sobretudo à ação da Cruz Vermelha, é instituto destinado a proteger, em caso de guerra, militares postos fora de combate (feridos, doentes, náufragos, prisioneiros) e populações civis. Remontando à Convenção de 1864, tem como fontes principais as quatro Convenções de Genebra de 1949 e os seus princípos devem aplicar-se hoje quer às guerras civis e a outros conflitos armados. A proteção humanitária refere-se a situação de extrema necessidade, integráveis no chamado Direito internacional da guerra, e em que avulta o confronto com um poder exterior”. 10 BUERGENTHAL, Thomas. International human rigths. Minnesota: West Publising, 1988, p. 14. Ao definir Direito Humanitário prolata o autor que: “é o ramo do Direito dos Direitos Humanos que se aplica aos conflitos armados internacionais e, em determinadas circunstâncias, aos conflitos armados nacionais” (p. 190).

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Os Direitos Humanitários terminam por regular, juridicamente, o emprego da

violência no âmbito internacional e limitar, com isso, a liberdade e a autonomia dos

Estados.

A história dos Direitos Humanos iniciou-se com a limitação, pela lei, da

autonomia estatal. Ora, o que afirmamos é que, assim como no plano interno, um dos

primeiros marcos da internacionalização dos Direitos Humanos constituiu-se nas limitações

dos poderes do Estado, de forma a assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa

humana.

Além do Direito Humanitário, outro importante marco foi a Liga das Nações,

criada após a primeira guerra mundial com o intuito de promover a cooperação, a paz e a

segurança internacional, de forma a condenar as agressões externas contra a integridade

territorial e a independência política de seus membros. Por intermédio de uma convenção

da Liga das Nações, os Estados tinham o compromisso de assegurar condições justas e

dignas de trabalho para homens, mulheres e crianças, sendo estabelecidas sanções

econômicas e militares contra Estados que, porventura, viessem a violar seus preceitos. Seu

principal objetivo era "promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança

internacionais”11.

Junto com tais organizações, estava, também, a OIT (Organização Internacional

do Trabalho), que deixou importantes contribuições para o chamado processo de

internacionalização dos Direitos Humanos. A OIT foi criada após a Primeira Guerra

Mundial, para promover parâmetros básicos de trabalho e de bem-estar social. Um de seus

objetivos foi a regularização da condição dos trabalhadores no âmbito mundial12.

Essas instituições forneceram parcela de contribuição para o processo de

internacionalização dos Direitos Humanos e se assemelham, na medida em que projetam o

11 Nesse ínterim, urge salientar o que consagrava o preâmbulo da Convenção da Liga das Nações: “As partes contratantes, no sentido de promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança internacionais, com aceitação da obrigação de não recorrer à guerra, com o propósito de estabelecer relações amistosas entre as nações, pela manutenção da justiça e com o extremo respeito para com todas as obrigações decorrentes dos tratados no que tange à relação entre povos organizados uns com os outros, concordam em firmar este convênio da Liga das Nações. 12 Com relação à Organização Internacional do Trabalho, acrescenta Antonio Cassesse: “Imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi criada e um de seus objetivos foi o de regular a condição dos trabalhadores no âmbito mundial. Os Estados foram encorajados a não apenas elaborar e aceitar as Convenções internacionais (relativas à igualdade de remuneração no emprego para mulheres e menores, à jornada de trabalho noturno, à liberdade de associação, dentre outras), mas também a cumprir estas novas obrigações internacionais” (Human rights in a changing world, p. 172).

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tema dos Direitos Humanos na ordem internacional, uma vez que estão todos voltados,

exclusivamente, para a guarda e proteção dos direitos do ser humano. Com esse processo de

internacionalização, o Estado deixou de ser o único sujeito do direito internacional, não se

podendo, atualmente, negar a personalidade internacional do indivíduo.

Entretanto, foi em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra

Mundial e com o intuito de proteger os seres humanos das atrocidades do Holocausto e das

barbaridades cometidas pelos nazistas contra os judeus, na Alemanha, que surgiram as mais

profundas preocupações no que pertine à proteção internacional dos Direitos Humanos.

Preocupações, estas, que consistiam em afirmar que a soberania estatal encontra-se limitada

pelo respeito aos Direitos Humanos, não sendo, portanto, totalmente absoluta. E foi

justamente essa preocupação que acabou por impulsionar o processo de internacionalização

dos Direitos Humanos, culminando com a criação de normas de proteção internacional, as

quais possibilitaram a responsabilização do Estado no domínio internacional, quando as

instituições nacionais se mostrarem falhas ou omissas na tarefa de proteção dos Direitos

Humanos.

Podemos afirmar, portanto, que foi a Carta das Nações Unidas de 1945 que

internacionalizou os Direitos Humanos. No entanto, apesar de conter, em seu bojo, normas

que determinavam a importância de se defender, promover e respeitar os direitos humanos

e as liberdades fundamentais, ela não definiu o conteúdo dessas expressões, que só vieram a

ser definidas, com precisão com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos,

em 1948.

Diante da violência, da miséria, da discriminação e do preconceito que assolam

o nosso planeta, não poderíamos deixar de reconhecer e, sobretudo, ressaltar a importância

dos Direitos Humanos para toda a população mundial. É inevitável indagar o que se deve

fazer para garantir o respeito igualitário de tais direitos, de forma que atinjam, também, as

classes menos privilegiadas e que, portanto, são as que mais sofrem todo o tipo de

preconceito e discriminação, em um desrespeito total à sua dignidade humana, isto é, que

deveria ser respeitada sem distinção de cor, sexo, religião.

A preocupação atual com os direitos do homem é de que forma mais segura que

eles podem ser garantidos, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam

continuamente violados. É necessário que seja convicto a existência dos direitos

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fundamentais no plano universal. Contudo, seria preciso solucionar o problema do

fundamento. Mas pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve

sua solução atual na declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela

Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.

Segundo Bobbio13, a Declaração representa a única prova por meio da qual um

sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e

essa prova é o consenso geral acerca de sua validade. Ela pode ser acolhida como a maior

prova histórica até hoje dada do consensus omnium gentium (consenso geral acerca da sua

validade – consenso geral do fundamento do direito) sobre um determinado sistema de

valores. É o reconhecimento de não só uma comunidade de Estados, mas de indivíduos

livres e iguais. Uma sociedade de deveres passaria a ser considerada uma sociedade

constituída de indivíduos com direitos garantidos a todos, tendo em vista o horizonte da

autonomia cotejada nos termos liberais.

Depois da Declaração Universal é que podemos ter a certeza histórica de que a

humanidade partilha alguns valores comuns e, assim, podemos crer na universalidade dos

valores. Sua formação se distinguiu em três fases. Na primeira fase, as declarações nascem

como teorias filosóficas. Na segunda fase, os valores passam da teoria à prática. Ganham

em concretude, todavia perdem em universalidade. Valem somente no âmbito do Estado

que os reconhecem, ou seja, somente o Estado pode impor aos seus cidadãos. Na terceira

fase, o direito é ao mesmo tempo universal e positivo: universal no sentido de que os

destinatários dos princípios nele contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele

Estado, mas todos os homens; positivo no sentido de que põe em movimento um processo

em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas

idealmente reconhecidos, porem efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio

Estado que os tenha violado.

Em vista dos preceitos da universalidade, como afirma Bobbio, a razão liberal,

cotejada para a construção dos direitos humanos, deve ser matizada, de forma que, como

mostraremos abaixo, a positivação carece de substância valorativa, porque está ligada ao

plano formal de normas, sem antever contextos multiculturais, em que as diferenças

impõem relações particulares ou mesmo locais, em vista de processos universais, como é a

13 BOBBIO, op. cit., p

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marcação da universalidade dos direitos humanos. Por outras palavras, queremos matizar a

razão liberal que perpassa a universalidade dos direitos humanos, de modo a chamar a

atenção para o fato das diferenças culturais, no plano internacional.

A VALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS: O CASO DO MUNDO AFRICANO

A África é um continente extremamente assombrado pelo horror pós-

colonização. Sua descolonização desenvolveu-se conforme os anseios legítimos de

liberdade política dos povos africanos. Reféns da guerra fria acabaram contaminados pela

influência soviética, chinesa ou norte-americana.

As diferenças étnicas, religiosas e tribais favoreceram, em alguns países do

continente, o aparecimento de governos autoritários, após o fim do domínio colonial. O

peso da colonização da África pelas potências européias, com pilhagem dos recursos,

transformação de milhões de pessoas em escravos e a definição de fronteiras artificiais,

ainda traz conseqüências.

Na segunda metade do séc. XX, ocorre a descolonização, a qual não foi

acompanhada de desenvolvimento econômico capaz de elevar o padrão de vida da região.

A economia continua a basear-se na exportação de produtos agrícolas e minerais, e muitos

países dependem de ajuda internacional. O continente africano é o mais pobre do planeta e

o único que, nos últimos 25 anos, viu crescer o número de miseráveis. A África

Subsaariana possui cerca de 690 milhões de habitantes, na qual a metade vive com renda

inferior a um dólar por dia14. Há um grande número de guerras civis, golpes e contragolpes

de Estado, com disputas por recursos naturais que se confundem com os conflitos étnicos e

religiosos. Além desses, enfrenta outros problemas decorrentes de uma tradição religiosa

que condiciona a vida dos africanos a um risco intenso, por não permitir o uso de

preservativos, o que propicia a disseminação do HIV. De cada dez portadores do vírus da

AIDS em todo o mundo, cerca de sete vivem na África Subsaariana: são 25 milhões de

pessoas15.

14 A SIDA no Mundo- sida, hiv. Rochenet - Estatísticas e Números no Mundo - site Roche SIDA VIH- www.roche.pt/sida. < http://www.roche.pt/sida/estatisticas/mundo.cfm>. Acesso em: 08 agosto de 2006. 15 Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/NEWS/PressRelease/20194983/pr2004-309-po.pdf#search=%22estatisticas%20africa%20subsaariana%22. Acesso em: 08 de agosto de 2006.

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A colonização deixou marcas profundas no território e na população africana,

cuja cultura foi sistematicamente agredida e, de certa forma, modificada drasticamente. A

organização social foi destruída sem que as populações afetadas pudessem assimilar

completamente o modo de vida dos povos invasores. Além disso, tendo dividido o território

segundo seus interesses, as potências colonizadoras estabeleceram fronteiras que não

respeitavam as diferenças étnicas, reunindo povos inimigos em um mesmo território.

A par disso, nada se fez para promover a integração étnica. Pelo contrário. Com

base na ideologia da superioridade dos povos europeus, acabou vigorando em algumas

regiões africanas uma rígida e odiosa segregação racial. A África do Sul foi palco de uma

das mais cruéis e odiosas manifestações de segregação racial da história contemporânea. A

elite branca que comandava o país, extremamente racista e autoritária, estabeleceu

legalmente o apartheid, que significa “desenvolvimento separado”.

Num primeiro momento, essa segregação recebeu o nome de “Pequeno

Apartheid”, que perdurou durante os anos de 1948-1966. Esse momento se caracterizou

pelas intensas separações tribais e a forte imposição de leis que restringiam a liberdade do

indivíduo, impondo à população uma série de leis ditatoriais que extinguiam quaisquer

liberdades. Ergueu-se um edifício jurídico e constitucional destinado a negar a igualdade

dos cidadãos diante das leis, que tinham como horizonte a desnacionalização da população

africana. A legislação excluía a população negra do acesso à propriedade e aos direitos

políticos, obrigando-a a viver em zonas separadas das dos brancos. Uniões entre pessoas de

etnias diferentes também foram proibidas. Em um outro momento, instalou-se o que foi

chamado de “Grande Apartheid” (1966-1984). Nesse aspecto configurou-se a criação de

Estados étnicos nas terras reservadas para os africanos, com o intuito de funcionar como

base de legitimidade do “desenvolvimento separado”. As tribos foram submetidas a uma

retribalização territorial, gerando o que se pode dizer de multiculturalismo interno. Isto é, se

estruturou a construção de uma sociedade multiétnica, e conseqüentemente confrontando

diferentes ideologias, culturas e conceitos.

De tal forma, se podemos concluir que a finalidade do “Pequeno Apartheid” era

frear o processo de urbanização dos negros, o “Grande Apartheid” visava, acima de tudo,

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impedir que a maioria numérica africana se convertesse em uma maioria política. O grande

problema advindo da segregação racial africana, como já citado anteriormente, foi a

erradicação das identidades tribais, a qual ocorre devido ao restabelecimento de novas de

fronteiras, por meio de leis, que desestruturaram muitas tribos. O fenômeno decorrente

dessa realidade foi a busca pelo surgimento de uma sociedade ideal. Contudo, esse

fenômeno da segregação trouxe fortes problemas no que tange à busca por uma sociedade

ideal, visto que propiciou o surgimento de vários conflitos ideológicos, culturais e

conceituais.

Um dos focos a ser abordado, ainda em questão, é a enorme contribuição que

esse fenômeno político-social gerou. Os Direitos humanos foram, e ainda são, objetos de

desrespeito e desprezo no continente africano, uma vez que, essa separação possibilitou que

tribos inimigas tivessem que se unirem por causa de uma retribalização, a qual só favoreceu

para que um pudesse explorar o outro. Forma esta que, com as rivalidades originárias do

continente africano, supostamente pela diversidade cultural, étnica e racial, o apartheid fez

com que, por exemplo, uma pequena porção de uma tribo fosse separada e agregada à outra

rival, de tal forma que esta, sendo maioria, submetesse a outra a trabalhos escravos,

humilhação pública, discriminação. Além disso, essa minoria deveria se adequar a uma

nova língua, cultura e etnia, o que favoreceu a erradicação da identidade do indivíduo, já

que, a língua étnica aparece como traço básico da identidade nacional, ou seja, a própria

nação encontra fundamentos essenciais na raça, na cultura e na etnia.

Os países africanos são grande foco das empresas capitalistas que lá instalaram,

com o único intuito de enriquecer exageradamente às custas das riquezas minerais

inesgotáveis, salários baixos e lucros compensadores. Muitas vezes, inclusive, são

utilizados instrumentos desumanos, que, indiscutivelmente, não dignificam a pessoa

humana.

Para que se possa avaliar o quadro dos direitos humanos na África subsaariana é

necessário fazer uma distinção entre os direitos do indivíduo, tal como se refletem nas

relações familiares e tribais, e os direitos políticos. No primeiro caso, as peculiaridades das

sociedades africanas resultam em graves restrições, sobretudo no que diz respeito à situação

da mulher. Os direitos políticos, por sua vez, são violados com grande freqüência, em

virtude da forma pela qual o Estado moderno foi introduzido no continente africano pelas

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potências coloniais, com tribos divididas e administrações coloniais concebidas com a

preocupação principal de assegurar a manutenção do status quo.

Não obstante a proliferação de regimes autoritários, que resultaram das

características mesmas do colonialismo na África e da forma pela qual o processo de

descolonização foi conduzido – com o favorecimento de “condottiere” em detrimento de

lideranças civis -, há que se reconhecer que existe uma “democracia de base” na maioria

das tribos africanas. Nas aldeias, as decisões são tomadas assim por consenso, em reuniões

do conselho dos anciãos. Não há tema que escape à atenção destes últimos, cabendo-lhes

opinar sobre os assuntos os mais variados, como relações com as tribos vizinhas,

modalidades de cultivo nas áreas comuns da tribo, disputas familiares, festejos. Os conflitos

entre tribos pela posse da terra são raros, pois, na concepção africana, é a terra que possui o

homem, e não vice-versa.

Para uma etnia que tem sido alvo, nas Américas, sobretudo, de algumas das

manifestações mais generalizadas de racismo, é de certa forma paradoxal que tenha ela

encontrado no próprio Continente de origem o exemplo mais dramático de discriminação.

Referência ao regime do “apartheid”, por meio do qual a minoria branca pretendeu manter-

se no poder na África do Sul. Caberia salientar a propósito que, embora tenham sido os

africânderes (pertencente ou relativo à língua falada na África do Sul e em parte da

Namíbia, originada do holandês do séc. XVII) que institucionalizaram o “apartheid”, foram

os ingleses que introduziram no referido país os ingredientes básicos daquele sistema. O

drama vivido por africanos, mestiços e asiáticos na África do Sul merece registro no quadro

panorâmico que queremos mostrar, quer pela extrema gravidade com a qual direitos

fundamentais foram violados, quer pelo papel desempenhado pelas Nações Unidas na

eliminação de prática tão odiosa.

Na África subsaariana são grandes as contradições no que diz respeito à situação

da mulher. Por um lado haveria que mencionar o papel importante, ainda que trabalhoso e

árduo, desempenhado pelas mulheres na economia do Continente: nas comunidades rurais

são elas as responsáveis pela lavoura, da preparação dos campos para o cultivo às

atividades da colheita; nos centros urbanos, são elas as vendedoras nos mercados e, em

muitos casos, operam já pequenas empresas, com demonstrações freqüentes de grande

habilidade comercial. Sua participação no processo decisório é, contudo indireta, na melhor

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das hipóteses, pois não são ouvidas nos conselhos tribais e, nas estruturas governamentais,

a sua presença limita-se quase sempre a cargos de menor relevo.

As desvantagens que as mulheres sofrem na África subsaariana se estendem a

outros setores, cabendo mencionar, por exemplo, a humilhação que representa o regime do

“lobola”, em que elas são compradas pelos noivos, freqüentemente sob a forma de troca por

animais domésticos; as mutilações sexuais, que violam as suas personalidades; os

inconvenientes não menores que padecem em sociedades em que a poligamia é prática

generalizada; o desrespeito que representa, em algumas tribos, o costume de as viúvas

serem “herdadas” pelos cunhados; e a própria falta de reconhecimento dos direitos mais

elementares, de herança e outros, em caso de falecimento dos maridos. São costumes

arraigados, que operam em flagrante contravenção dos direitos da mulher africana.

Como se pode compreender, é difícil a convivência dos padrões que

conhecemos no Ocidente com aspectos da estrutura familiar e social na África subsaariana.

O que existe é um delicado modus vivendi, dificultado ainda mais pelo próprio costume que

caracteriza a vida nas aldeias e nos centros urbanos da referida região. Nas sociedades

africanas não é possível afirmar, em suma, que haja uma percepção mais clara dos direitos

humanos, mesmo porque a figura do indivíduo, portador desses direitos, não existe. São

sociedades que, em geral, não superaram ainda a fase tribal, guardando, por vezes, um

verniz apenas da cultura ocidental que lhes foi legada – o que explica, por exemplo, os

sangrentos conflitos étnicos presenciados ainda na África Central.

CONCLUSÃO

Concluído este estudo do panorama cultural das sociedades africanas, caberia

indagar se, face às particularidades e mesmo aos antagonismos culturais que se observam,

seria realista definir uma plataforma de direitos humanos de aplicação universal, que todos

os países pudessem subscrever.

Os intensos conflitos decorrentes de uma sociedade oprimida por governos

autoritários e de uma crescente e avassaladora desigualdade política e econômica têm

dizimado milhões de indivíduos reféns da miséria, das doenças e dos ataques civis. Esse

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intenso combate está longe de cessar, é preciso que as autoridades locais busquem soluções

para isso.

É por intermédio da ONU, Organização das Nações Unidas, que o Estado pode

solicitar a intervenção humanitária. A ONU é uma organização internacional que tem por

papel principal a manutenção da paz e, assim, proteger os indivíduos contra as violações

dos direitos humanos. Todavia, a intervenção só é possível em caso de ameaça

internacional, mediante consenso internacional e do prévio respaldo do Conselho de

Segurança.

É importante destacar que num país extremamente tradicional, em que seus

nativos têm origem tribal e possuem valores peculiares, não é possível simplesmente a

imposição de uma nova cultura taxada como tipicamente ocidental. Porém, há outras

maneiras de implementar, mesmo nesses países que aderem fortemente aos seus valores

étnicos e religiosos, formas de garantir o mínimo de vida digna e respeito àqueles direitos

que chamamos humanos. O tratado é um importante mecanismo bilateral ou multilateral de

um comum acordo entre os signatários, ou seja, o Estado infrator e as organizações de

defesa humanitária. É por meio desses tratados que se estabelecem o dever do Estado de

garantir a proteção mínima dos direitos humanos de cada cidadão. Outro mecanismo é a

utilização de influência política por meio da “barganha” entre os Estados interessados, isto

é, na medida em que as normas de direitos humanos forem implantadas e obedecidas

naquela sociedade, os países poderão ser beneficiados, por exemplo, pelas facilidades

comerciais e benefícios econômicos previamente estabelecidos.

O processo a ser trilhado pela África ocorre lentamente. Isso porque, como já foi

mencionado anteriormente, não cabe à ONU invadir o país para impor os direitos

fundamentais. Contudo, é preciso que a sociedade oprimida, por vezes, pelas suas próprias

tradições, convicções e ideais, permita tal interferência ou mesmo se conscientize de que

estas constantes violações aos seus direitos humanos (integridade física, psicológica, bem -

estar social) não podem continuar. A questão primordial é identificar o que se deve fazer

para que essa população tribal, tradicional e perdida em sua história entender que seus

rituais, disputas por territórios, enfim, a sua cultura deve ser modificada por conter pontos

que caminham para a constante perda de valores tidos como humanos.

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Além da ONU, existem programas de ajuda patrocinados pelos países

desenvolvidos que objetivam a manutenção da paz e o provimento de vida digna à

população de países subdesenvolvidos. Esses programas servem como incentivo à proteção

dos Direitos Humanos, de modo a dirimir a corrupção, as desigualdades e a constante

violação à dignidade da população africana. De acordo com o Departamento de Estado

Americano, o governo do Sudão tem feito grandes esforços para reduzir e erradicar a

escravidão moderna no país, responsável pelo tráfico de pessoas, sobretudo mulheres e

crianças, submetidos a trabalho forçado, abuso sexual, recrutamento paramilitar e servidão.

Até junho de 2005, o Sudão encontrava-se no pior nível, junto a países que não satisfazem

requisitos sociais mínimos para combater a exploração16. Segundo a colunista Clara

Cavour17 “a paz no Sudão nunca estará garantida enquanto interesses de escravos e outras

vítimas continuarem a serem sacrificadas por objetivos de certas políticas externas, com a

preservação da unidade islâmica do governo a cooperação de um estado designado como

‘terrorista’ na lista contra o terror”.

É fundamental, para a efetivação e para a devida aplicação dos direitos

humanos, que haja o reconhecimento das particularidades culturais e sistêmicas que

existem na ordem internacional, de modo a constituir os termos de uma justa distribuição

dos bens, criando contextos favoráveis para a resolução de conflitos e dilemas estruturais.

Para que a razão liberal, defensora de critérios de universalidade na constituição e na

aplicação de normas no plano dos Direitos Humanos, seja superada, é fundamental a

percepção dos contextos multiculturais que originam dilemas estruturais e sistêmicos para a

construção de uma efetividade dos Direitos Humanos, de modo a marcar a sociedade pela

autonomia, tanto privada quanto pública, e pela solidariedade. Os contextos multiculturais

são prementes e não podem ser prescindidos para a construção dos Direitos Humanos.

16 CAVOUR, Clara. África: Escravidão. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 23 de out. 2005. Internacional, p. A13. 17 Id., p. A. 13.

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