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Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery
http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377
Curso de Direito - N. 4, JAN/JUN 2008
A UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS E A SUPERAÇÃO DA RAZÃO LIBERAL
Cláudia das Graças Ignácio
Érika Rodrigues Campos RESUMO Analisar a aplicação dos direitos humanos não só em uma sociedade específica, mas em toda a sociedade internacional, constitui o objetivo do presente artigo. O interesse no estudo do tema se justifica na controvérsia existente em torno da possível sobreposição de uma cultura sobre a outra. A problemática se dá quando se objetiva a aplicação dos direitos humanos, tendo em vista contextos sociais marcados por diferenças culturais em relação aos padrões do ocidente. Nesse sentido, é necessário verificar que uma população oprimida e isolada tem o direito ao mínimo de vida digna, que inclui o desejo de ter ou não sua cultura desenraizada. Os direitos humanos têm sido um fator de suma importância nos âmbitos regional e global, para conter violações graves e sistemáticas da dignidade humana. São direitos inerentes à pessoa humana, que visam a resguardar a sua integridade física e psicológica, garantindo o mínimo fundamental e necessário para que uma pessoa viva com dignidade perante seus semelhantes e o Estado. Dessa forma, cumpre ao presente trabalho investigar se uma determinada sociedade cultural – qual seja sociedade africana - caberia a imposição de uma nova cultura taxada como tipicamente ocidental. Palavras-chave: Direito Internacional, Direitos Humanos, Contexto Africano, Razão Liberal.
ABSTRACT To not only analyze the application of the human rights in a specific society, but in all the international society, constitutes the objective of the present article. The interest in the study of the subject if justifies in the existing controversy around the possible overlapping of a culture on the other. The problematic one if of the when if objective application of the human rights, in view of social contexts marked by cultural differences in relation to the standards of occident. In this direction, it is necessary to verify that an oppressed and isolated population has the right to the minimum of worthy life, that includes the desire to have or not its “non-root” culture. The human rights have been a factor of utmost importance in the scopes regional and global, to contain serious and systematic breakings of the dignity human being. They are right inherent to the person human being, that they aim at to protect its physical and psychological integrity, guaranteeing the basic and necessary minimum so that a living person with dignity before its fellow creatures and the State. Of this form, it fulfills to the present work to investigate if one definitive cultural society - which is African society - would fit the imposition of a new taxed culture as typically occidental person. Keywords: International Law, Human rights, African Context, Reason Liberal.
2
INTRODUÇÃO
O Estado de Direito, como momento histórico da humanidade, torna-se possível a
partir da positivação dos direitos. O conceito de sociedade pressupõe organização em
conseqüência do próprio Direito, que, no seu conjunto de normas a serviço do homem, traça
normas de conduta, disciplina o convívio das pessoas em sociedade e, assim, traça as regras que
cada um de nós devemos seguir, inclusive o próprio Estado, que o impõe e deve a ele
obediência.
A sociedade civil, como agrupamento de pessoas, em face de fatores culturais,
educacionais, históricos, econômicos, filosóficos, começou a organizar-se de maneira diferente
do estado absolutista (feudalismo), fase que precedeu o atual Estado de Direito (capitalismo).
Assim, antes da positivação dos direitos, isto é, antes do seu ingresso no ordenamento jurídico
do Estado, segundo a filosofia jusnaturalista, pode-se dizer que os direitos humanos possuem
uma pré-história, ou seja, existiram antes mesmo de sua positivação. Esta é a razão pela qual
seriam tidos por naturais, inerentes ao homem pela própria natureza humana, tendo em vista o
conceito de ciência desenvolvido a partir do século XVI, na Europa. Sendo assim, não é
necessário que uma lei dissesse que “todos têm direito à vida”, pois a vida é um direito inerente
ao ser humano. Atribui-se à pré-história, de todo e qualquer direito, a fase embrionária de um
determinado valor, o qual passa a brotar no seio da sociedade, até ganhar corpo e relevância
necessária e suficiente para ser positivado pelo processo legislativo. Por exemplo, a igualdade
jurídica entre homens e mulheres, a criminalização de condutas discriminantes (racismo e
qualquer outro tipo de preconceito) e a proteção ao meio ambiente.
Nosso intuito é enfatizar a importância dos direitos humanos não só em uma
sociedade específica, mas como em toda a sociedade internacional. Ou seja, antes de tudo,
destacar que falar de direitos humanos é falar de dignidade, liberdade e de tudo aquilo que um
governo democrático responsável tem o dever de proporcionar aos seus cidadãos. Todavia, tal
importância se problematiza no momento em que se objetiva a aplicação dos direitos humanos,
tendo em vista contextos sociais marcados por diferenças culturais em relação aos padrões do
Ocidente. Nesse contexto, queremos problematizar que apesar da possível sobreposição de uma
cultura sobre outra, é preciso verificar que esta população oprimida e isolada tem o direito ao
mínimo de vida digna, que inclui o desejo de ter ou não sua cultura desenraizada.
3
CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS
Partindo do pressuposto de que os direito humanos pertencem a todos os seres
humanos, pressupõe-se que todos os direitos são humanos, razão pela qual o termo “direitos
humanos” muito pouco revela acerca de seu conteúdo. Podemos averiguar, então, que a
expressão é utilizada de forma didática para exprimir que estes direitos, tidos como
humanos, se referem àqueles direitos do homem. Diria que são direitos que visam a
resguardar os valores mais preciosos da pessoa humana, ou seja, direitos que visam a
resguardar a solidariedade, a igualdade, a fraternidade, a liberdade e a dignidade da pessoa
humana, tal como os ideais da Revolução Francesa. No entanto, apesar de facilmente
identificado, a construção de um conceito que o defina não é uma tarefa fácil, em razão da
amplitude do tema. Portanto, para fim de compreensão do artigo podemos conceituar que
os Direitos Humanos são aqueles direitos inerentes à pessoa humana, que visam a
resguardar a sua integridade física e psicológica, bem como garantir o bem-estar social,
aquilo que é o mínimo fundamental e necessário para que uma pessoa possa viver com
dignidade perante seus semelhantes e perante o Estado, de forma a limitar os poderes das
autoridades, garantindo, assim, a igualdade e a fraternidade, proibindo qualquer espécie de
discriminação entre os seres humanos.
Por outro lado, com a mesma finalidade, devemos ter os direitos humanos como
todos aqueles direitos fundamentais, que foram recepcionados pelo ordenamento jurídico
de um determinado Estado (Constituição e Leis). Facilmente se percebe que não pode
haver identidade de conteúdo entre as expressões “direitos humanos” e “direitos
fundamentais”, são sinônimos de forma geral, já que tratam de um mesmo conteúdo, a
garantia do imprescindível ao ser humano, daquilo que é essencial, por exemplo, para que
haja a sua proteção contra as crueldades que um mundo escravizado por um sistema
econômico é capaz, conforme analisaremos neste artigo.
Podemos observar que, no decorrer da história, a luta por um ideal foi um
instrumento perfeito para grandes conquistas. Segundo Rudolf Von Jhering1, o direito é
originado da própria sociedade, através da constante batalha por melhores condições de
vida digna e de igualdade de direitos. Os direitos fundamentais são, acima de tudo, fruto de
1 JHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. Trad. Pietro Nassetti. Ed. Martim Claret, 2002.
4
reivindicações concretas, geradas por situações de injustiça e ou de agressão a bens
fundamentais e elementares do ser humano. Assim sendo, a unidade constituída reconhece
o movimento de interesses de um determinado grupo que só tem seus direitos reconhecidos
no momento em que lutam para solução das lides decorrentes, principalmente, da
desigualdade social.
PRESENTE E FUTURO DOS DIREITOS HUMANOS
O surgimento dos Direitos Humanos, na história da humanidade, coincide com o
aparecimento do Estado de Direito, pois é no momento em que se começa a falar da
proteção do indivíduo frente à opressão do Estado, que se inicia a construção dos direitos
humanos, como freio ou limitação ao poder estatal, proporcionando ao indivíduo, ou a
grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado. A preocupação atual
com os direitos do homem é de que forma mais eficaz pode-se impedir, apesar das solenes
declarações, que eles sejam continuamente violados. Nesse sentido pondera Norberto
Bobbio, o maior problema dos direitos humanos hoje “não é mais o de fundamentá-los, e
sim protegê-los2.
Quando os Direitos do Homem eram considerados direitos naturais, a única
forma possível de defesa contra a sua violação pelo Estado era por um Direito igualmente
natural, o direito de resistência. A partir da positivação desses direitos, o direito natural de
resistência transformou-se no direito positivo de promover uma ação judicial contra os
próprios órgãos do Estado.
A constitucionalização dos direitos universalizou os direitos humanos, no
sentido de abranger a todos os indivíduos, impondo-se o seu respeito, inclusive, pelo
próprio poder público, por meio do controle da constitucionalidade, dos tratados
internacionais, das agências internacionais de proteção, dos direitos fundamentais, dos
princípios. Com a supremacia dos direitos fundamentais, conferida pelas constituições,
impôs um limite de atuação aos governantes como garantia dos cidadãos. Nessa fase, os
2 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. Rio de Janeiro: Campos, 2004, p. 30.
5
direitos humanos demarcaram uma esfera de autonomia privada3 dos cidadãos e definiram
os limites de intervenção do Estado, chamados direitos negativos, na qual consistem na
abstenção de comportamentos e na proteção do cidadão contra os atos de discricionariedade
do Estado.
Num segundo plano, os direitos humanos vieram como uma resposta aos graves
problemas sociais e econômicos. Fruto da Revolução Industrial e da constatação de que
somente a positivação dos direitos não garantiria o gozo desses mesmos direitos pelos
cidadãos ameaçados uns pelos outros. A questão não era mais proteger-se do Estado, como
instituição, mas sim do próprio ser humano, que passará a violar e a ameaçar o direito
natural dos indivíduos. O Estado é chamado a intervir novamente nas relações sociais,
porém de forma controlada, o bastante para garantir à sociedade o mínimo de bem-estar
social e de igualdade. A essência da proteção dos direitos nesse momento é a preocupação
com as necessidades do ser humano. O Estado ampliou suas funções, que se encontravam
restritas, enquanto o Estado árbitro cedeu espaço para o Estado das prestações. O homem,
liberto do jugo do Poder estatal, reclama agora uma nova forma de proteção da sua
dignidade, qual seja, a satisfação das necessidades mínimas para que se tenha dignidade e
sentido na vida humana.
O Estado precisava entrar no “jogo”, intervir com a prestação positiva. Para
tanto, deve agir em prol dos menos favorecidos pela ordem social e econômica, atuando na
promoção do bem-estar social.
Os direitos, até então de âmbito regional, passaram a assumir dimensão global,
despersonalizaram-se, passando do caráter individual para o coletivo e difuso. Esses
direitos abrangem um número indeterminado de pessoas, não sendo possível a
individualização de seus destinatários, tais como o desenvolvimento, paz, ambiente, saúde,
educação pública, proteção ao consumidor, à infância e à juventude, ao idoso e ao
deficiente físico.
Como se vê, esses direitos estão a serviço dos direitos à vida, à liberdade, à
igualdade e à propriedade, uma vez que a sua essência encontra-se em sentimentos como a
3 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, 2 V.
6
solidariedade e a fraternidade, constituindo mais uma conquista da humanidade no sentido
de ampliar os horizontes de proteção e de emancipação.
O Estado nunca conseguiu alcançar o seu objetivo, desincumbir-se das
atribuições que lhe foram cometidas, ou seja, proporcionar aos indivíduos da sociedade
condições dignas de vida. Isso acontece porque o Estado, objetivando promover o
desenvolvimento humanitário igualitário, não pode simplesmente se abster da atual
realidade de solucionar as desigualdades entre os indivíduos, uma vez que há na sociedade,
de forma geral, uma necessidade cada vez maior de implementação de mecanismos de
proteção aos direitos humanos, não só aos que dele necessitam, bem como assegurar a
efetividade daquilo que já se conquistou. Ademais, é necessário que o Estado venha a
cumprir de fato a sua função social independentemente de qualquer raça, etnia.
O Estado, infelizmente, não é neutro e acaba fazendo a sua opção, na maioria
das vezes, contra a população desfavorecida. Facilmente percebemos que o gozo da
cidadania é privilegio de poucos; entendida a cidadania como a possibilidade concreta do
exercício dos direitos humanos, outorgados pela ordem jurídica – que, por sua vez, não
proporciona a inclusão de todos os indivíduos no conceito de cidadania. A idéia de
cidadania é eminentemente política, porque não está necessariamente ligada a valores
universais, mas a decisões políticas. Os direitos de cidadania dizem respeito a uma
determinada ordem jurídico-política de um país. Assim, passa-se a ter duas classes de
indivíduos, ou seja, os incluídos no conceito de cidadania e os excluídos desse processo.
Exatamente por se tratar de direitos oponíveis a todos e, por conseguinte, direitos que
constroem o próprio conceito material de cidadania e inclusão, a sua observância significa
nada mais que a inserção na esfera social do homem - como cidadão. A ausência dos
direitos fundamentais ou humanos é nada mais do que a ausência material da cidadania, ou
seja, exclusão. A previsão dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico de um
Estado, reflete a mais real e nítida imagem do estatuto de oposição dos excluídos frente à
exclusão.
O Estado não cumpre sua função social, isto é, não inclui os excluídos. O
próprio Estado, criador do Direito, com o intuito de organizar a sociedade, por intermédio
do Poder Executivo ou Legislativo, ameaça ou viola os direitos dos cidadãos, ou um
cidadão agride outro cidadão em seu direito. É o poder Judiciário, no exercício da função
7
jurisdicional que estabelecerá a ordem jurídica violada e, conseqüentemente, a paz social,
tornando efetivo o direito ameaçado ou violado. Diante da realidade excludente, de
violação de direitos humanos, compete ao “Estado-Juiz” incluir os excluídos, com respeito
aos direitos violados, os quais, se respeitados, podem proporcionar vida digna.
O “Estado-Juiz” configura-se no Poder Judiciário, pois, a partir do momento
histórico em que se retirou dos cidadãos a possibilidade de fazerem justiça com as próprias
mãos (autotutela), quando tivessem um direito ameaçado ou violado, o Estado assumiu a
tarefa de fazer valer o ordenamento jurídico, assim como o restabelecimento da paz social,
por meio do poder jurisdicional.
Segundo Niklas Luhman4, o Direito tem que ser estruturalmente compatível
com um maior número possível de fatos, algo que não observamos na realidade. O objetivo
de maior alcance muitas vezes não é concretizado, o que constrói perversamente a
desigualdade. A diferença é construtiva e enriquecedora, garante a autenticidade, o direito à
identidade, à diferença cultural, a diferença de nossas raízes. A desigualdade traz a semente
da hierarquia, do superior e do inferior, o que gera a semente da discriminação, que muitas
vezes gera o ódio. A tolerância, portanto, representa igualmente o reconhecimento da
diferença, nunca da desigualdade5. E o reconhecimento de que, apesar das diferenças, todos
têm direitos iguais e individuais acarreta a construção de uma ordem configurada de modo
a gerar justiça distributiva, em torno de bens inalienáveis e prementes. As diferenças que
têm origem natural ou cultural não induzem a um tratamento de superioridade ou
inferioridade, mas, ao contrário, elas exigem até mesmo um tratamento diferenciado. As
desigualdades são sempre a manifestação de um corte vertical na sociedade, estabelecendo-
se camadas superiores e camadas inferiores, fazendo com que, entre elas, perpasse sempre
uma manifestação de desprezo, de hostilidade ou de exploração.
Os Direitos Humanos são os instrumentos essenciais para defesa da autonomia
da pessoa humana, se concebermos a autonomia como a capacidade moral que todos têm
em determinar-se. É necessário, primeiramente, o reconhecimento desses direitos. O
desrespeito às leis, existência cotidiana provida pelas instituições, é um tratamento desigual
4 LUHMANN, Niklas. “A formação do direito: Bases de uma teoria sociológica do Direito”. In: Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, vol.I. p. 42-166. 5 RAWLS, John. Law of peoples. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999.
8
e se justifica por certas desigualdades, resulta na desconsideração de igual dignidade de
cada um. Na norma, contradiz o princípio de igual dignidade. Na prática, sua existência
gera a perda de confiança entre os cidadãos e nas autoridades políticas, dificultando a
cooperação social ou a ação coletiva. De acordo com John Commons6, o direito moderno
surge de um conjunto de instituições destinadas a regular a circulação de riquezas em uma
sociedade, a qual diferencia as relações de troca como padrão fundamental da sociabilidade.
A partir disso, verificamos que, no momento em que as instituições não acompanham os
valores e as normas criadas na própria sociedade, ela se modifica mais rapidamente do que
as instituições. A vida institucional proporciona o surgimento das desigualdades
econômicas e sociais, pois suas normas acabam atingindo um pequeno grupo de
favorecidos, proporcionando o surgimento assíduo de excluídos.
EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: O PROCESSO
DEINTERNACIONALIZAÇÃO
A preocupação com a proteção à integridade da pessoa humana remonta de
muitos e muitos séculos e faz parte da própria natureza humana, que busca o
reconhecimento de suas necessidades em prol de uma sociedade que garanta uma
distribuição igualitária e justa. Não se pode vincular algo que faz parte da natureza humana
com as determinações da lei, que muitas vezes nada têm a ver com justiça e muito menos
com as limitações do poder estatal, visto que a preocupação humana com relação à proteção
de suas necessidades básicas existe até mesmo antes de tais limitações legais, em
constituições e leis. A limitação do poder, embora importante, não assegura, por si só o
respeito aos Direitos Humanos. No entendimento de Cesare Beccaria7, apenas com boas
leis se podem impedir certos abusos, uma vez que numa reunião de homens há a
concentração de pequena parcela de benefícios, tais como: o privilégio, o poder e a
felicidade. Noutra, verifica-se a miséria e a debilidade8. Assistimos em épocas passadas e
6 COMMONS, John R. Legal Foundation of Capitalism. Nova York, 1924; Trad. It. I fondamenti
giuridici del capitalismo, Bolonha, 1981. 7 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo:
Martin Claret, 2004, p. 15. 8 Id., 2004, p.15.
9
estamos assistindo, nos dias de hoje, ao desrespeito dos Direitos Humanos em países onde
eles são legais e constitucionalmente garantidos. Mesmo em países de longa estabilidade
política e tradição jurídica, os Direitos Humanos são, em diversas situações concretas,
rasgados e vilipendiados.
Utilizando-se a expressão "Direitos Humanos" como quaisquer direitos
atribuídos ao homem, pode-se encontrar o reconhecimento de tais direitos até mesmo na
Antiguidade. Como exemplos, o Código de Hamurábi, no século XVIII a. C., na Babilônia;
os pensamentos do imperador do Egito, Amenófis IV, no século XIV a.C.; as idéias de
Platão, na Grécia, no século IV a.C.; o Direito Romano, e várias outras civilizações e
culturas ancestrais.
Os primeiros marcos da internacionalização dos Direitos Humanos foram
constituídos pelo Direito Humanitário, aplicado nas hipóteses de guerra, tendo como
escopo impor limites à atuação do Estado e assegurar, dessa forma, a observância dos
direitos fundamentais, de modo a proteger, nesses casos, os militares postos fora de
combate e as populações civis9. Para Thomas Buergenthal, o Direito Humanitário constitui
o componente de direitos humanos da lei e da guerra (The human rights component of the
Law of war)10.
O direito humanitário é um ramo integrado, completamente, dos direitos
humanos na medida em que é um instrumento de garantia da vida digna, da liberdade, da
saúde e de muitos outros direitos fundamentais codificados na legislação internacional.
Quando se garante ás populações submetidas a uma situação de conflito o acesso à
alimentação, a medicamentos e à vestimentas, está se protegendo os direitos fundamentais.
9 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra Editora, 1988. V. 4, p. 192-193. De acordo com o autor: “A proteção humanitária, associada sobretudo à ação da Cruz Vermelha, é instituto destinado a proteger, em caso de guerra, militares postos fora de combate (feridos, doentes, náufragos, prisioneiros) e populações civis. Remontando à Convenção de 1864, tem como fontes principais as quatro Convenções de Genebra de 1949 e os seus princípos devem aplicar-se hoje quer às guerras civis e a outros conflitos armados. A proteção humanitária refere-se a situação de extrema necessidade, integráveis no chamado Direito internacional da guerra, e em que avulta o confronto com um poder exterior”. 10 BUERGENTHAL, Thomas. International human rigths. Minnesota: West Publising, 1988, p. 14. Ao definir Direito Humanitário prolata o autor que: “é o ramo do Direito dos Direitos Humanos que se aplica aos conflitos armados internacionais e, em determinadas circunstâncias, aos conflitos armados nacionais” (p. 190).
10
Os Direitos Humanitários terminam por regular, juridicamente, o emprego da
violência no âmbito internacional e limitar, com isso, a liberdade e a autonomia dos
Estados.
A história dos Direitos Humanos iniciou-se com a limitação, pela lei, da
autonomia estatal. Ora, o que afirmamos é que, assim como no plano interno, um dos
primeiros marcos da internacionalização dos Direitos Humanos constituiu-se nas limitações
dos poderes do Estado, de forma a assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa
humana.
Além do Direito Humanitário, outro importante marco foi a Liga das Nações,
criada após a primeira guerra mundial com o intuito de promover a cooperação, a paz e a
segurança internacional, de forma a condenar as agressões externas contra a integridade
territorial e a independência política de seus membros. Por intermédio de uma convenção
da Liga das Nações, os Estados tinham o compromisso de assegurar condições justas e
dignas de trabalho para homens, mulheres e crianças, sendo estabelecidas sanções
econômicas e militares contra Estados que, porventura, viessem a violar seus preceitos. Seu
principal objetivo era "promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança
internacionais”11.
Junto com tais organizações, estava, também, a OIT (Organização Internacional
do Trabalho), que deixou importantes contribuições para o chamado processo de
internacionalização dos Direitos Humanos. A OIT foi criada após a Primeira Guerra
Mundial, para promover parâmetros básicos de trabalho e de bem-estar social. Um de seus
objetivos foi a regularização da condição dos trabalhadores no âmbito mundial12.
Essas instituições forneceram parcela de contribuição para o processo de
internacionalização dos Direitos Humanos e se assemelham, na medida em que projetam o
11 Nesse ínterim, urge salientar o que consagrava o preâmbulo da Convenção da Liga das Nações: “As partes contratantes, no sentido de promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança internacionais, com aceitação da obrigação de não recorrer à guerra, com o propósito de estabelecer relações amistosas entre as nações, pela manutenção da justiça e com o extremo respeito para com todas as obrigações decorrentes dos tratados no que tange à relação entre povos organizados uns com os outros, concordam em firmar este convênio da Liga das Nações. 12 Com relação à Organização Internacional do Trabalho, acrescenta Antonio Cassesse: “Imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi criada e um de seus objetivos foi o de regular a condição dos trabalhadores no âmbito mundial. Os Estados foram encorajados a não apenas elaborar e aceitar as Convenções internacionais (relativas à igualdade de remuneração no emprego para mulheres e menores, à jornada de trabalho noturno, à liberdade de associação, dentre outras), mas também a cumprir estas novas obrigações internacionais” (Human rights in a changing world, p. 172).
11
tema dos Direitos Humanos na ordem internacional, uma vez que estão todos voltados,
exclusivamente, para a guarda e proteção dos direitos do ser humano. Com esse processo de
internacionalização, o Estado deixou de ser o único sujeito do direito internacional, não se
podendo, atualmente, negar a personalidade internacional do indivíduo.
Entretanto, foi em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra
Mundial e com o intuito de proteger os seres humanos das atrocidades do Holocausto e das
barbaridades cometidas pelos nazistas contra os judeus, na Alemanha, que surgiram as mais
profundas preocupações no que pertine à proteção internacional dos Direitos Humanos.
Preocupações, estas, que consistiam em afirmar que a soberania estatal encontra-se limitada
pelo respeito aos Direitos Humanos, não sendo, portanto, totalmente absoluta. E foi
justamente essa preocupação que acabou por impulsionar o processo de internacionalização
dos Direitos Humanos, culminando com a criação de normas de proteção internacional, as
quais possibilitaram a responsabilização do Estado no domínio internacional, quando as
instituições nacionais se mostrarem falhas ou omissas na tarefa de proteção dos Direitos
Humanos.
Podemos afirmar, portanto, que foi a Carta das Nações Unidas de 1945 que
internacionalizou os Direitos Humanos. No entanto, apesar de conter, em seu bojo, normas
que determinavam a importância de se defender, promover e respeitar os direitos humanos
e as liberdades fundamentais, ela não definiu o conteúdo dessas expressões, que só vieram a
ser definidas, com precisão com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
em 1948.
Diante da violência, da miséria, da discriminação e do preconceito que assolam
o nosso planeta, não poderíamos deixar de reconhecer e, sobretudo, ressaltar a importância
dos Direitos Humanos para toda a população mundial. É inevitável indagar o que se deve
fazer para garantir o respeito igualitário de tais direitos, de forma que atinjam, também, as
classes menos privilegiadas e que, portanto, são as que mais sofrem todo o tipo de
preconceito e discriminação, em um desrespeito total à sua dignidade humana, isto é, que
deveria ser respeitada sem distinção de cor, sexo, religião.
A preocupação atual com os direitos do homem é de que forma mais segura que
eles podem ser garantidos, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam
continuamente violados. É necessário que seja convicto a existência dos direitos
12
fundamentais no plano universal. Contudo, seria preciso solucionar o problema do
fundamento. Mas pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve
sua solução atual na declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela
Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.
Segundo Bobbio13, a Declaração representa a única prova por meio da qual um
sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e
essa prova é o consenso geral acerca de sua validade. Ela pode ser acolhida como a maior
prova histórica até hoje dada do consensus omnium gentium (consenso geral acerca da sua
validade – consenso geral do fundamento do direito) sobre um determinado sistema de
valores. É o reconhecimento de não só uma comunidade de Estados, mas de indivíduos
livres e iguais. Uma sociedade de deveres passaria a ser considerada uma sociedade
constituída de indivíduos com direitos garantidos a todos, tendo em vista o horizonte da
autonomia cotejada nos termos liberais.
Depois da Declaração Universal é que podemos ter a certeza histórica de que a
humanidade partilha alguns valores comuns e, assim, podemos crer na universalidade dos
valores. Sua formação se distinguiu em três fases. Na primeira fase, as declarações nascem
como teorias filosóficas. Na segunda fase, os valores passam da teoria à prática. Ganham
em concretude, todavia perdem em universalidade. Valem somente no âmbito do Estado
que os reconhecem, ou seja, somente o Estado pode impor aos seus cidadãos. Na terceira
fase, o direito é ao mesmo tempo universal e positivo: universal no sentido de que os
destinatários dos princípios nele contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele
Estado, mas todos os homens; positivo no sentido de que põe em movimento um processo
em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas
idealmente reconhecidos, porem efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio
Estado que os tenha violado.
Em vista dos preceitos da universalidade, como afirma Bobbio, a razão liberal,
cotejada para a construção dos direitos humanos, deve ser matizada, de forma que, como
mostraremos abaixo, a positivação carece de substância valorativa, porque está ligada ao
plano formal de normas, sem antever contextos multiculturais, em que as diferenças
impõem relações particulares ou mesmo locais, em vista de processos universais, como é a
13 BOBBIO, op. cit., p
13
marcação da universalidade dos direitos humanos. Por outras palavras, queremos matizar a
razão liberal que perpassa a universalidade dos direitos humanos, de modo a chamar a
atenção para o fato das diferenças culturais, no plano internacional.
A VALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS: O CASO DO MUNDO AFRICANO
A África é um continente extremamente assombrado pelo horror pós-
colonização. Sua descolonização desenvolveu-se conforme os anseios legítimos de
liberdade política dos povos africanos. Reféns da guerra fria acabaram contaminados pela
influência soviética, chinesa ou norte-americana.
As diferenças étnicas, religiosas e tribais favoreceram, em alguns países do
continente, o aparecimento de governos autoritários, após o fim do domínio colonial. O
peso da colonização da África pelas potências européias, com pilhagem dos recursos,
transformação de milhões de pessoas em escravos e a definição de fronteiras artificiais,
ainda traz conseqüências.
Na segunda metade do séc. XX, ocorre a descolonização, a qual não foi
acompanhada de desenvolvimento econômico capaz de elevar o padrão de vida da região.
A economia continua a basear-se na exportação de produtos agrícolas e minerais, e muitos
países dependem de ajuda internacional. O continente africano é o mais pobre do planeta e
o único que, nos últimos 25 anos, viu crescer o número de miseráveis. A África
Subsaariana possui cerca de 690 milhões de habitantes, na qual a metade vive com renda
inferior a um dólar por dia14. Há um grande número de guerras civis, golpes e contragolpes
de Estado, com disputas por recursos naturais que se confundem com os conflitos étnicos e
religiosos. Além desses, enfrenta outros problemas decorrentes de uma tradição religiosa
que condiciona a vida dos africanos a um risco intenso, por não permitir o uso de
preservativos, o que propicia a disseminação do HIV. De cada dez portadores do vírus da
AIDS em todo o mundo, cerca de sete vivem na África Subsaariana: são 25 milhões de
pessoas15.
14 A SIDA no Mundo- sida, hiv. Rochenet - Estatísticas e Números no Mundo - site Roche SIDA VIH- www.roche.pt/sida. < http://www.roche.pt/sida/estatisticas/mundo.cfm>. Acesso em: 08 agosto de 2006. 15 Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/NEWS/PressRelease/20194983/pr2004-309-po.pdf#search=%22estatisticas%20africa%20subsaariana%22. Acesso em: 08 de agosto de 2006.
14
A colonização deixou marcas profundas no território e na população africana,
cuja cultura foi sistematicamente agredida e, de certa forma, modificada drasticamente. A
organização social foi destruída sem que as populações afetadas pudessem assimilar
completamente o modo de vida dos povos invasores. Além disso, tendo dividido o território
segundo seus interesses, as potências colonizadoras estabeleceram fronteiras que não
respeitavam as diferenças étnicas, reunindo povos inimigos em um mesmo território.
A par disso, nada se fez para promover a integração étnica. Pelo contrário. Com
base na ideologia da superioridade dos povos europeus, acabou vigorando em algumas
regiões africanas uma rígida e odiosa segregação racial. A África do Sul foi palco de uma
das mais cruéis e odiosas manifestações de segregação racial da história contemporânea. A
elite branca que comandava o país, extremamente racista e autoritária, estabeleceu
legalmente o apartheid, que significa “desenvolvimento separado”.
Num primeiro momento, essa segregação recebeu o nome de “Pequeno
Apartheid”, que perdurou durante os anos de 1948-1966. Esse momento se caracterizou
pelas intensas separações tribais e a forte imposição de leis que restringiam a liberdade do
indivíduo, impondo à população uma série de leis ditatoriais que extinguiam quaisquer
liberdades. Ergueu-se um edifício jurídico e constitucional destinado a negar a igualdade
dos cidadãos diante das leis, que tinham como horizonte a desnacionalização da população
africana. A legislação excluía a população negra do acesso à propriedade e aos direitos
políticos, obrigando-a a viver em zonas separadas das dos brancos. Uniões entre pessoas de
etnias diferentes também foram proibidas. Em um outro momento, instalou-se o que foi
chamado de “Grande Apartheid” (1966-1984). Nesse aspecto configurou-se a criação de
Estados étnicos nas terras reservadas para os africanos, com o intuito de funcionar como
base de legitimidade do “desenvolvimento separado”. As tribos foram submetidas a uma
retribalização territorial, gerando o que se pode dizer de multiculturalismo interno. Isto é, se
estruturou a construção de uma sociedade multiétnica, e conseqüentemente confrontando
diferentes ideologias, culturas e conceitos.
De tal forma, se podemos concluir que a finalidade do “Pequeno Apartheid” era
frear o processo de urbanização dos negros, o “Grande Apartheid” visava, acima de tudo,
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impedir que a maioria numérica africana se convertesse em uma maioria política. O grande
problema advindo da segregação racial africana, como já citado anteriormente, foi a
erradicação das identidades tribais, a qual ocorre devido ao restabelecimento de novas de
fronteiras, por meio de leis, que desestruturaram muitas tribos. O fenômeno decorrente
dessa realidade foi a busca pelo surgimento de uma sociedade ideal. Contudo, esse
fenômeno da segregação trouxe fortes problemas no que tange à busca por uma sociedade
ideal, visto que propiciou o surgimento de vários conflitos ideológicos, culturais e
conceituais.
Um dos focos a ser abordado, ainda em questão, é a enorme contribuição que
esse fenômeno político-social gerou. Os Direitos humanos foram, e ainda são, objetos de
desrespeito e desprezo no continente africano, uma vez que, essa separação possibilitou que
tribos inimigas tivessem que se unirem por causa de uma retribalização, a qual só favoreceu
para que um pudesse explorar o outro. Forma esta que, com as rivalidades originárias do
continente africano, supostamente pela diversidade cultural, étnica e racial, o apartheid fez
com que, por exemplo, uma pequena porção de uma tribo fosse separada e agregada à outra
rival, de tal forma que esta, sendo maioria, submetesse a outra a trabalhos escravos,
humilhação pública, discriminação. Além disso, essa minoria deveria se adequar a uma
nova língua, cultura e etnia, o que favoreceu a erradicação da identidade do indivíduo, já
que, a língua étnica aparece como traço básico da identidade nacional, ou seja, a própria
nação encontra fundamentos essenciais na raça, na cultura e na etnia.
Os países africanos são grande foco das empresas capitalistas que lá instalaram,
com o único intuito de enriquecer exageradamente às custas das riquezas minerais
inesgotáveis, salários baixos e lucros compensadores. Muitas vezes, inclusive, são
utilizados instrumentos desumanos, que, indiscutivelmente, não dignificam a pessoa
humana.
Para que se possa avaliar o quadro dos direitos humanos na África subsaariana é
necessário fazer uma distinção entre os direitos do indivíduo, tal como se refletem nas
relações familiares e tribais, e os direitos políticos. No primeiro caso, as peculiaridades das
sociedades africanas resultam em graves restrições, sobretudo no que diz respeito à situação
da mulher. Os direitos políticos, por sua vez, são violados com grande freqüência, em
virtude da forma pela qual o Estado moderno foi introduzido no continente africano pelas
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potências coloniais, com tribos divididas e administrações coloniais concebidas com a
preocupação principal de assegurar a manutenção do status quo.
Não obstante a proliferação de regimes autoritários, que resultaram das
características mesmas do colonialismo na África e da forma pela qual o processo de
descolonização foi conduzido – com o favorecimento de “condottiere” em detrimento de
lideranças civis -, há que se reconhecer que existe uma “democracia de base” na maioria
das tribos africanas. Nas aldeias, as decisões são tomadas assim por consenso, em reuniões
do conselho dos anciãos. Não há tema que escape à atenção destes últimos, cabendo-lhes
opinar sobre os assuntos os mais variados, como relações com as tribos vizinhas,
modalidades de cultivo nas áreas comuns da tribo, disputas familiares, festejos. Os conflitos
entre tribos pela posse da terra são raros, pois, na concepção africana, é a terra que possui o
homem, e não vice-versa.
Para uma etnia que tem sido alvo, nas Américas, sobretudo, de algumas das
manifestações mais generalizadas de racismo, é de certa forma paradoxal que tenha ela
encontrado no próprio Continente de origem o exemplo mais dramático de discriminação.
Referência ao regime do “apartheid”, por meio do qual a minoria branca pretendeu manter-
se no poder na África do Sul. Caberia salientar a propósito que, embora tenham sido os
africânderes (pertencente ou relativo à língua falada na África do Sul e em parte da
Namíbia, originada do holandês do séc. XVII) que institucionalizaram o “apartheid”, foram
os ingleses que introduziram no referido país os ingredientes básicos daquele sistema. O
drama vivido por africanos, mestiços e asiáticos na África do Sul merece registro no quadro
panorâmico que queremos mostrar, quer pela extrema gravidade com a qual direitos
fundamentais foram violados, quer pelo papel desempenhado pelas Nações Unidas na
eliminação de prática tão odiosa.
Na África subsaariana são grandes as contradições no que diz respeito à situação
da mulher. Por um lado haveria que mencionar o papel importante, ainda que trabalhoso e
árduo, desempenhado pelas mulheres na economia do Continente: nas comunidades rurais
são elas as responsáveis pela lavoura, da preparação dos campos para o cultivo às
atividades da colheita; nos centros urbanos, são elas as vendedoras nos mercados e, em
muitos casos, operam já pequenas empresas, com demonstrações freqüentes de grande
habilidade comercial. Sua participação no processo decisório é, contudo indireta, na melhor
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das hipóteses, pois não são ouvidas nos conselhos tribais e, nas estruturas governamentais,
a sua presença limita-se quase sempre a cargos de menor relevo.
As desvantagens que as mulheres sofrem na África subsaariana se estendem a
outros setores, cabendo mencionar, por exemplo, a humilhação que representa o regime do
“lobola”, em que elas são compradas pelos noivos, freqüentemente sob a forma de troca por
animais domésticos; as mutilações sexuais, que violam as suas personalidades; os
inconvenientes não menores que padecem em sociedades em que a poligamia é prática
generalizada; o desrespeito que representa, em algumas tribos, o costume de as viúvas
serem “herdadas” pelos cunhados; e a própria falta de reconhecimento dos direitos mais
elementares, de herança e outros, em caso de falecimento dos maridos. São costumes
arraigados, que operam em flagrante contravenção dos direitos da mulher africana.
Como se pode compreender, é difícil a convivência dos padrões que
conhecemos no Ocidente com aspectos da estrutura familiar e social na África subsaariana.
O que existe é um delicado modus vivendi, dificultado ainda mais pelo próprio costume que
caracteriza a vida nas aldeias e nos centros urbanos da referida região. Nas sociedades
africanas não é possível afirmar, em suma, que haja uma percepção mais clara dos direitos
humanos, mesmo porque a figura do indivíduo, portador desses direitos, não existe. São
sociedades que, em geral, não superaram ainda a fase tribal, guardando, por vezes, um
verniz apenas da cultura ocidental que lhes foi legada – o que explica, por exemplo, os
sangrentos conflitos étnicos presenciados ainda na África Central.
CONCLUSÃO
Concluído este estudo do panorama cultural das sociedades africanas, caberia
indagar se, face às particularidades e mesmo aos antagonismos culturais que se observam,
seria realista definir uma plataforma de direitos humanos de aplicação universal, que todos
os países pudessem subscrever.
Os intensos conflitos decorrentes de uma sociedade oprimida por governos
autoritários e de uma crescente e avassaladora desigualdade política e econômica têm
dizimado milhões de indivíduos reféns da miséria, das doenças e dos ataques civis. Esse
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intenso combate está longe de cessar, é preciso que as autoridades locais busquem soluções
para isso.
É por intermédio da ONU, Organização das Nações Unidas, que o Estado pode
solicitar a intervenção humanitária. A ONU é uma organização internacional que tem por
papel principal a manutenção da paz e, assim, proteger os indivíduos contra as violações
dos direitos humanos. Todavia, a intervenção só é possível em caso de ameaça
internacional, mediante consenso internacional e do prévio respaldo do Conselho de
Segurança.
É importante destacar que num país extremamente tradicional, em que seus
nativos têm origem tribal e possuem valores peculiares, não é possível simplesmente a
imposição de uma nova cultura taxada como tipicamente ocidental. Porém, há outras
maneiras de implementar, mesmo nesses países que aderem fortemente aos seus valores
étnicos e religiosos, formas de garantir o mínimo de vida digna e respeito àqueles direitos
que chamamos humanos. O tratado é um importante mecanismo bilateral ou multilateral de
um comum acordo entre os signatários, ou seja, o Estado infrator e as organizações de
defesa humanitária. É por meio desses tratados que se estabelecem o dever do Estado de
garantir a proteção mínima dos direitos humanos de cada cidadão. Outro mecanismo é a
utilização de influência política por meio da “barganha” entre os Estados interessados, isto
é, na medida em que as normas de direitos humanos forem implantadas e obedecidas
naquela sociedade, os países poderão ser beneficiados, por exemplo, pelas facilidades
comerciais e benefícios econômicos previamente estabelecidos.
O processo a ser trilhado pela África ocorre lentamente. Isso porque, como já foi
mencionado anteriormente, não cabe à ONU invadir o país para impor os direitos
fundamentais. Contudo, é preciso que a sociedade oprimida, por vezes, pelas suas próprias
tradições, convicções e ideais, permita tal interferência ou mesmo se conscientize de que
estas constantes violações aos seus direitos humanos (integridade física, psicológica, bem -
estar social) não podem continuar. A questão primordial é identificar o que se deve fazer
para que essa população tribal, tradicional e perdida em sua história entender que seus
rituais, disputas por territórios, enfim, a sua cultura deve ser modificada por conter pontos
que caminham para a constante perda de valores tidos como humanos.
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Além da ONU, existem programas de ajuda patrocinados pelos países
desenvolvidos que objetivam a manutenção da paz e o provimento de vida digna à
população de países subdesenvolvidos. Esses programas servem como incentivo à proteção
dos Direitos Humanos, de modo a dirimir a corrupção, as desigualdades e a constante
violação à dignidade da população africana. De acordo com o Departamento de Estado
Americano, o governo do Sudão tem feito grandes esforços para reduzir e erradicar a
escravidão moderna no país, responsável pelo tráfico de pessoas, sobretudo mulheres e
crianças, submetidos a trabalho forçado, abuso sexual, recrutamento paramilitar e servidão.
Até junho de 2005, o Sudão encontrava-se no pior nível, junto a países que não satisfazem
requisitos sociais mínimos para combater a exploração16. Segundo a colunista Clara
Cavour17 “a paz no Sudão nunca estará garantida enquanto interesses de escravos e outras
vítimas continuarem a serem sacrificadas por objetivos de certas políticas externas, com a
preservação da unidade islâmica do governo a cooperação de um estado designado como
‘terrorista’ na lista contra o terror”.
É fundamental, para a efetivação e para a devida aplicação dos direitos
humanos, que haja o reconhecimento das particularidades culturais e sistêmicas que
existem na ordem internacional, de modo a constituir os termos de uma justa distribuição
dos bens, criando contextos favoráveis para a resolução de conflitos e dilemas estruturais.
Para que a razão liberal, defensora de critérios de universalidade na constituição e na
aplicação de normas no plano dos Direitos Humanos, seja superada, é fundamental a
percepção dos contextos multiculturais que originam dilemas estruturais e sistêmicos para a
construção de uma efetividade dos Direitos Humanos, de modo a marcar a sociedade pela
autonomia, tanto privada quanto pública, e pela solidariedade. Os contextos multiculturais
são prementes e não podem ser prescindidos para a construção dos Direitos Humanos.
16 CAVOUR, Clara. África: Escravidão. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 23 de out. 2005. Internacional, p. A13. 17 Id., p. A. 13.
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