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809 809 ARTIGO ARTICLE Uma abordagem histórica da trajetória da parasitologia A historical approach of the trajectory of the parasitology 1 Departamento de Parasitologia, Instituto de Biociências, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Campus de Botucatu/SP. Distrito de Rubião Júnior, s/n 18618-000. Botucatu SP. [email protected] Luciene Maura Mascarini 1 Abstract The text describe the ways follow- ing for the parasitology, a science that emerged in century 19 with the sprouting and the es- tablishment of some areas of the medicine, be- tween them, the tropical medicine. This sci- ence in agreement with bibliographical sum- mary was indicated initially as a branch of nat- ural history, being constructed with the dis- covery and subsequent description of several pathogenic agents responsible for some mor- bid processes, until then not attributable by external organisms to the individual. Some parasitologists around of the world began to describe, beyond of pathogenic agents, the vec- tors and the mechanisms of transmission of the several diseases caused by the parasites. In Brazil, the report of the parasitology borders the itinerary of the tropical medicine, with the constant shock between the doctors of the So- ciety of Medicine and Surgery of Rio de Janeiro and Bahian Tropicalista School. Already in 1900, famous doctors parasitologists appear in the Brazilian scene: Oswaldo Cruz and Carlos Chagas that by their discoveries, they stimu- lated the parasitology until the current days. Key words Historical of the medicine, Para- sitology, Tropical medicine Resumo O texto relata os caminhos trilhados pela parasitologia, uma ciência que emergiu no século 19 com o surgimento e o estabeleci- mento de várias áreas da medicina, entre elas, a medicina tropical. Essa ciência, segundo o sumário bibliográfico, foi indicada inicialmen- te como um ramo da história natural, sendo construída com a descoberta e posterior des- crição de vários agentes patogênicos, respon- sáveis por alguns processos mórbidos, até en- tão não atribuíveis a organismos externos ao indivíduo. Alguns parasitologistas ao redor do mundo começaram a descrever, além dos agen- tes patogênicos, os vetores e os mecanismos de transmissão das diversas doenças causadas pe- los parasitas. No Brasil, o histórico da parasi- tologia margeia o trajeto da medicina tropi- cal, com o constante embate entre os médicos da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro e da Escola Tropicalista Baiana. Já em 1900, renomados médicos parasitologistas surgem no cenário brasileiro: Oswaldo Cruz e Carlos Chagas que, através de suas descober- tas, impulsionaram a parasitologia até os dias atuais. Palavras-chave Histórico da medicina, Pa- rasitologia, Medicina tropical

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Uma abordagem histórica da trajetória da parasitologia

A historical approach of the trajectory of the parasitology

1 Departamento deParasitologia, Instituto de Biociências, UniversidadeEstadual Júlio de MesquitaFilho (Unesp). Campus de Botucatu/SP. Distrito de Rubião Júnior, s/n18618-000. Botucatu [email protected]

Luciene Maura Mascarini 1

Abstract The text describe the ways follow-ing for the parasitology, a science that emergedin century 19 with the sprouting and the es-tablishment of some areas of the medicine, be-tween them, the tropical medicine. This sci-ence in agreement with bibliographical sum-mary was indicated initially as a branch of nat-ural history, being constructed with the dis-covery and subsequent description of severalpathogenic agents responsible for some mor-bid processes, until then not attributable byexternal organisms to the individual. Someparasitologists around of the world began todescribe, beyond of pathogenic agents, the vec-tors and the mechanisms of transmission of theseveral diseases caused by the parasites. InBrazil, the report of the parasitology bordersthe itinerary of the tropical medicine, with theconstant shock between the doctors of the So-ciety of Medicine and Surgery of Rio de Janeiroand Bahian Tropicalista School. Already in1900, famous doctors parasitologists appear inthe Brazilian scene: Oswaldo Cruz and CarlosChagas that by their discoveries, they stimu-lated the parasitology until the current days.Key words Historical of the medicine, Para-sitology, Tropical medicine

Resumo O texto relata os caminhos trilhadospela parasitologia, uma ciência que emergiuno século 19 com o surgimento e o estabeleci-mento de várias áreas da medicina, entre elas,a medicina tropical. Essa ciência, segundo osumário bibliográfico, foi indicada inicialmen-te como um ramo da história natural, sendoconstruída com a descoberta e posterior des-crição de vários agentes patogênicos, respon-sáveis por alguns processos mórbidos, até en-tão não atribuíveis a organismos externos aoindivíduo. Alguns parasitologistas ao redor domundo começaram a descrever, além dos agen-tes patogênicos, os vetores e os mecanismos detransmissão das diversas doenças causadas pe-los parasitas. No Brasil, o histórico da parasi-tologia margeia o trajeto da medicina tropi-cal, com o constante embate entre os médicosda Sociedade de Medicina e Cirurgia do Riode Janeiro e da Escola Tropicalista Baiana. Jáem 1900, renomados médicos parasitologistassurgem no cenário brasileiro: Oswaldo Cruz eCarlos Chagas que, através de suas descober-tas, impulsionaram a parasitologia até os diasatuais.Palavras-chave Histórico da medicina, Pa-rasitologia, Medicina tropical

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A história nos mostra que ao invés de existirum processo linear e relativamente simples detransição epidemiológica, no qual as chamadasdoenças de pobreza são substituídas pelos ma-les da modernidade, o que se observa é um qua-dro complexo de alterações, mudanças, adap-tações e emergências típicas dos fenômenos vi-vos. A relação entre as populações de homens,vetores e agentes etiológicos é bastante comple-xa e não parece estar no horizonte, para os pró-ximos anos, a miragem de uma vida livre de in-fecções (Barata, 2000).

Entre as doenças decorrentes da “pobreza”,destacamos as parasitárias, ou as parasitoses.Entende-se que parasitismo é apenas um dentremuitos tipos de associação de dois organismose não há um caráter único possível para rotularum animal como parasita (Wilson, 1980).

O parasita obtém alimento às expensas deseu hospedeiro, consumindo-lhe os tecidos ehumores ou o conteúdo intestinal, sendo queo relacionamento do parasita com seu hospe-deiro tem base nutricional não podendo lesardrasticamente o hospedeiro, evitando altera-ções comprometedoras, o que o faria perder oseu hospedeiro. O parasitismo ideal é aqueleque não causa dano ao hospedeiro e, por conse-guinte, não provoca doença. Isso é o que acon-tece com alguns parasitas que, ao longo de mi-lhares de anos, se adaptaram de tal forma aosseus hospedeiros que passaram a viver outro ti-po de relação entre dois organismos denomi-nada simbiose.

Por volta de 1860, os fundamentos da ciên-cia chamada de parasitologia foram estabeleci-dos e os parasitas se tornaram então os respon-sáveis por importantes doenças do homem edos seus animais domésticos. Apesar de muitosparasitologistas terem qualificações médicas, aparasitologia se estabeleceu como um ramo dahistória natural na metade do século 19; mui-tos dos personagens que se distinguiram na pa-rasitologia eram médicos, zoólogos, ou de ou-tros ramos da história natural. Embora hou-vesse muita especulação se os parasitas seriamos responsáveis pelas sérias condições patoló-gicas apresentadas pelas doenças, foi nesse pe-ríodo que se constatou que a hidatidose e a tri-chinelose tinham como agentes patogênicos osparasitas (Foster, 1965).

Segundo Foster, a história da parasitologianão é uma história de grandes eventos; ela se

desenrolou ao longo dos séculos 19 e 20 nos la-boratórios das universidades, na grande maio-ria das vezes, em precárias condições. Os maio-res avanços e descobertas da parasitologia tro-pical foram realizados por homens isolada-mente ao redor do mundo pertencentes a algu-mas universidades: Army e Laveran, na Argélia;Bunch, na África do Sul; Ross, na Índia; Man-son, na China; e Bancroft, Queensland e Wu-cherer, no Brasil. Na Europa, podemos destacarRudolphi, Von Siebold e Leuckhart, apoiadospor grandes universidades e Kcheinmeister eCobbold, indivíduos independentes, que nun-ca tiveram posição acadêmica de muita impor-tância.

Em 1872, Timoty Lewis localizou o nema-tóide causador da filariose no sangue de hema-túricos, denominando-o Filaria sanguinis ho-minis. Os primeiros relatos dos parasitas adul-tos apareceriam anos depois em um abscessolinfático examinado por Bancroft. Manson,atento a essas observações, desvendou grandeparte do ciclo da filária, entre 1877 e 1878. Con-seguiu comprovar o mecanismo de infecção pe-lo mosquito Culex e a “periodicidade” que a fi-lária realizava invadindo a circulação periféri-ca ao cair da tarde e refluindo durante o dia, deacordo com o ciclo de vida do vetor, através dadissecação progressiva dos mosquitos (Foster,1965).

A descoberta de Manson consagrou um no-vo modelo de experiência e reformulou umasérie de questões no campo da patologia. Ques-tões que requeriam novos saberes e dinâmicasde pesquisa para dar conta dos complexos ci-clos de vida dos parasitos patogênicos, envol-vendo mudança de hospedeiros e numerosasadaptações e metamorfoses nos organismos pa-rasitados e no meio externo (Benchimol, 2000)

Inspirado nas idéias de Patrick Manson, Ro-nald Ross, médico do serviço inglês na Índia,identificou, em 1897, o parasito da malária de-senvolvendo-se nas paredes do estômago de ummosquito do gênero Anopheles. Em 1898, estu-dando malária aviária, Ross estabeleceu, de ma-neira definitiva, seu mecanismo de transmissão(Matos, 2000).

As oportunidades de desenvolvimento daparasitologia aumentaram com a criação e oestabelecimento das escolas de medicina e hos-pitais nos trópicos, fato que só ocorreu no finaldo século 19, criando assim oportunidade deestudar os parasitas tropicais. Embora não hou-vesse clara distinção entre a medicina dos tró-picos e das regiões temperadas, a maioria dos

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trabalhos de parasitologia no final do século foirealizada nos trópicos (Lacaz, 1972).

A primeira escola de medicina tropical emclima temperado foi inaugurada em Liverpoolem 1899, com Boyce como professor de patolo-gia e chefe organizador, e Ross como conferen-cista convidado. Os maiores trabalhos da esco-la foram inicialmente testar as idéias de Ross naerradicação da malária através da destruiçãodo vetor, e foi também nessa escola que Duttonidentificou o primeiro tripanossomo humano,Trypanossoma gambiense, no sangue de um pa-ciente e descrevendo logo após o segundo, o T.rhodesiense.

A London School of Tropical Medicine de-senvolveu dois ramos de atividade sob a dire-ção de Manson: a “muck-room”, ou sala de fe-zes, como o laboratório ficou conhecido e oSeaman’s Hospital, em Greenwich. Nessa esco-la foram descritos pela primeira vez, pelo mé-dico inglês George Low, embriões de Wuchere-ria bancroft na probóscide dos mosquitos (Fos-ter, 1965).

A exemplo da Inglaterra, outras escolas demedicina tropical e de parasitologia se esta-beleceram: o French Institute de Médicine Co-loniale, em 1902 e o original Pasteur Institu-te, fundado em 1888, em Paris, que encorajavaseus alunos a saírem da França e alçar vôos,fundando outros institutos. O primeiro PasteurInstitute no Norte da África francesa foi funda-do em 1893 em Tunis. Dentre os trabalhos des-ses institutos destacavam-se os de investigaçãona área da biologia e da medicina tropical, masinevitavelmente muitos dos trabalhos eram so-bre parasitologia médica.

Outro importante centro de pesquisa foi ode Cambridge, fundado em 1906, responsávelpela editoração da segunda revista científica deparasitologia – Parasitology que, juntamentecom o primeiro periódico de parasitologia –Archives de Parasitologie –, editado em 1898,constitui os primeiros traços da história da pa-rasitologia. Parasitologistas de renome deixa-ram neles seus artigos: Davaine, Cobbold, Nut-tall, Blanchard e Hoeppli (Foster, 1965).

O estudo da parasitologia iniciou-se nosEUA em 1850 com Joseph Leidy, que ficou sozi-nho por aproximadamente 20 anos, publican-do, entre outros trabalhos relevantes, a descri-ção, em 1860, do parasita Trichinella spirallis.Em 1910 foi fundada a Helmintological Societye em 1952 a American Society of Parasitology.

As descobertas de Laveran, Ross e Bruce, nofinal do século 19, expandiram a protozoologia

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como importante ramificação da parasitologia.Em 1903, o Imperial Health Office, em Berlim,fundou a divisão de protozoologia e Schaudinnfoi chamado para dirigi-la, sendo que em 1906nascia a primeira escola de protozoologia, esta-belecida em Londres em conexão com o ListenInstitute.

No Brasil, o histórico da parasitologia mar-geia o caminhar da medicina tropical, quandoem 1829, foi criada a Sociedade de Medicina eCirurgia do Rio de Janeiro que, através de umamplo programa, se estendeu desde a adoçãode medidas de higiene pela população até a me-dicina legal, passando pela educação física dascrianças, enterro nas igrejas, denúncias da ca-rência em hospitais, estabelecimento de regula-mentos sobre as farmácias, elaboração de me-didas para melhor atendimento aos doentesmentais, alerta da insalubridade dos prostíbu-los, destacando o saneamento básico. Foi a épo-ca da medicalização das instituições – hospi-tais, cemitérios, escolas, quartéis e prostíbulos–, quando o projeto de medicina procurou des-tacar o saneamento (Nunes, 2000).

A Escola Tropicalista Baiana, integrada porvários parasitologistas de renome, designavainicialmente um conjunto de médicos que seorganizavam ao redor de um periódico funda-do em 1866 – A Gazeta Médica da Bahia – àmargem da Faculdade de Medicina existente naantiga capital do Brasil Colônia. Os tropicalis-tas permaneceram na fronteira entre o para-digma miasmático/ambientalista e a Teoria dosGermes, sendo que a escola estava preocupadaem refutar o preconceito historiográfico de quea medicina brasileira era imitação da européia,produzindo investigações originais sobre as pa-tologias nativas da Bahia e se posicionando in-dependentemente face à medicina acadêmicaeuropéia e a classe médica local (Benchimol,2000).

Peard (1992) enfatiza o antagonismo entreos integrantes dessa escola e os médicos da ca-pital do Império, encastelados na academia ena Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.A Sociedade Médica de Cirurgia do Rio de Ja-neiro encarava o progresso como imitaçãoda ciência e das instituições européias; os tro-picalistas baianos investigavam a singularidadedas doenças dos trópicos, a influência do climasobre as raças e sobre a geração ou multiplica-ção de miasmas e germes, com interesse cres-cente pelo papel dos parasitas como produto-res de doenças. Segundo esse mesmo autor, foio modelo científico, que deslocava a atenção do

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meio ambiente para as etiologias parasitáriasespecíficas, que deu “clara e poderosa” identi-dade aos tropicalistas baianos. Essa identidadeadveio principalmente das investigações deWucherer, relacionadas à ancilostomíase, à fila-riose e à malária.

Segundo Benchimol (2000), as contribui-ções brasileiras ao programa de controle das fi-larioses seriam dadas pelas pesquisas embrio-lógicas e patogênicas de Júlio de Moura e PedroSeveriano de Magalhães, destacando os traba-lhos de Adolfo Lutz, o mais preparado para im-plementar o modelo mansoniano em áreas ain-da não exploradas pelos helmintologistas bra-sileiros, inclusive no campo da veterinária.

A Escola Tropicalista Baiana tinha comomembro, em 1841, José Cruz Jobim que elabo-rou trabalho sobre as doenças que mais afli-giam escravos e indigentes do Rio de Janeiro.Entre elas, sobressaía uma doença vulgarmen-te conhecida como opilação, cansação, caque-xia africana e, na literatura estrangeira, “tropi-cal chlorosis”, “mal de coen”, etc. Baseando-senos trabalhos de Jobim, Otto Wucherer diag-nosticou, em 1865, um caso adiantado de hi-poemia em um escravo que faleceu em segui-da. Na autópsia, encontrou vermes da espécieAnchylostomum duodenale, identificado porAngelo Dubini, em 1838. As investigações so-bre essa doença prosseguiram na Bahia e noRio de Janeiro, após a morte prematura deWucherer em 1873, porém as questões funda-mentais relativas à biologia e aos hábitos dosparasitas só seriam retomadas, num patamarbem mais sofisticado, em meados de 1880 porAdolfo Lutz (Benchimol, 2000).

Cerca de 20 anos depois do surgimento daEscola Tropicalista Baiana, Oswaldo Cruz cria-ria uma nova escola de medicina, voltada paraa saúde pública. Em 1902, ele assume a direçãoda área de saúde pública no governo de Rodri-gues Alves, propondo ao congresso que o Ins-tituto Soroterápico Federal fosse transforma-do “num instituto para estudo das doenças in-fecciosas tropicais, segundo as linhas do Insti-tuto Pasteur de Paris” (Benchimol, 2000). Elenão foi atendido, porém destinou verbas pró-prias para elevar a categoria do então Institutode Manguinhos. As fronteiras de Manguinhosse alargaram e seus cientistas se embrenharampelos sertões do Brasil para estudar e combaterdoenças, principalmente a malária.

O instituto chefiado por Oswaldo Cruz foia única instituição sul-americana a participardo 14o Congresso Internacional de Higiene e

Demografia, realizado em Berlim em 1907. Nes-se evento, Oswaldo Cruz recebeu medalha deouro pela sua atuação em Manguinhos, tendoessa condecoração uma enorme repercussão noBrasil.

Em 1906 foi inaugurada, em Belo Horizon-te, a primeira filial do antigo Instituto de Man-guinhos e Carlos Chagas executou a primeiracampanha antipalúdica, em Itatinga, interior deSão Paulo, onde se construía uma hidrelétrica.

Em 1908, o então denominado Instituto deManguinhos foi renomeado de Instituto Os-waldo Cruz. O modelo de médico da época docampanhismo era Oswaldo Cruz, que susten-tava que o saber assentava-se na pesquisa e naexperimentação com o objetivo de combater asendemias e as epidemias (Nunes, 2000).

Em 1909, Carlos Chagas, médico e pesqui-sador do Instituto Oswaldo Cruz, descobririauma nova doença em Lassance, interior de Mi-nas Gerais, a tripanossomíase americana, oudoença de Chagas. Pela primeira vez na histó-ria da medicina, um mesmo pesquisador iden-tificaria o vetor (inseto conhecido como “bar-beiro”), o agente etiológico (o protozoário Try-panossoma cruzi) e a doença causada por esseparasita. A ênfase dada à originalidade cientí-fica da descoberta de Carlos Chagas expressoua importância assumida no processo de insti-tucionalização da ciência biomédica no Brasil(Kropf et al., 2000).

No ano seguinte, 1910, Chagas obteve oprêmio Shaudinn, conferido pelo Instituto Na-val de Medicina de Hamburgo, por uma co-missão que reunia a nata da microbiologia e damedicina tropical mundial. A doença de Cha-gas consolidou a protozoologia como área deconcentração das pesquisas, assim como a in-serção de Manguinhos (IOC) na comunidadecientífica internacional como importante cen-tro de estudos sobre as doenças tropicais (Ben-chimol, 2000)

Segundo Barata (2000), a forma de ocupa-ção do espaço agrário e do espaço urbano emSão Paulo em meados do século 20 determi-nou as condições extremamente favoráveis àocorrência de doenças transmitidas por veto-res, doenças de transmissão hídrica e doençasde transmissão respiratória. Dentre as doençastransmitidas por vetores, destacaram-se nesseperíodo a febre amarela, a peste, a malária, asleishmanioses cutâneo-mucosas e a doença deChagas.

Em meados do século 20, eclodiu em SãoPaulo a epidemia de leishmaniose tegumentar

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durante a construção da Estrada de Ferro No-roeste, disseminando-se por toda a Alta Soro-cabana, Alta Paulista e região noroeste do Esta-do, seguindo a penetração do homem e a der-rubada das matas. A designação “úlcera de Bau-ru” surgiu em decorrência desse surto, vistoque o acampamento dos trabalhadores locali-zava-se nessa cidade. Outros surtos ocorreramem cidades da região (Pirajuí, Birigui, Pená-polis, Araçatuba), sendo que os casos ocorre-ram entre trabalhadores que derrubavam ma-tas, moradores de vilas e povoados recém-ins-talados bem como sitiantes e fazendeiros (Pes-sôa, 1949).

No final do século, a endemia retornou aoEstado, apresentando-se agora como doença deáreas periurbanas submetidas a processos dedesmatamento para loteamento, nas quais osvetores apresentariam variação domiciliar. Adoença, considerada inexistente no Estado, semanifestou em área que sofreu grande trans-formação econômica substituindo a criação degado pelo plantio da cana, na qual se emprega,temporariamente, grande contingente de mãode obra migrante durante a colheita (Barata,2000).

As características epidemiológicas da ocor-rência de malária em São Paulo refletem ascondições de desenvolvimento socioeconômi-co do Estado. O início da cultura cafeeira, noséculo 19, começa a modificar as condições deocupação do espaço no Estado, intensificandoo processo de desmatamento, promovendo in-tensos fluxos migratórios internos e externos,estimulando a construção de ferrovias e propi-ciando grande crescimento econômico (Barata,1997).

As referências às febres palustres intermi-tentes e febres paulistas são freqüentes nesseperíodo. É possível supor, a despeito da carên-cia de dados numéricos sobre a doença, que to-do o processo de ocupação, intensificado du-rante o século 19, tenha propiciado a instala-ção, consolidação e o aumento da endemia noEstado. Os relatos de epidemias no interior doEstado, durante a década de 1910, registramprevalências altas, atingindo de 40 a 85% dapopulação. A ampliação dos conhecimentos re-lativos à produção da malária evidencia paula-tinamente a complexidade e o número de fato-res envolvidos, seja em relação às diferentes es-pécies de plasmódios, em relação aos vetores eseus comportamentos extremamente variadosou em relação ao homem e às suas condiçõesde vida (Barata, 1997).

Dessa forma, a entrar no século 20, a malá-ria tem sua sentença epidemiológica central:a relação entre o agente, o meio ambiente e ohospedeiro. Além dos estudos entomológicos,o avanço da parasitologia e da imunologia per-mitiu, no decorrer do século, avançar no co-nhecimento dos ciclos do parasito no homeme no mosquito, na produção de drogas espe-cíficas a cada fase do desenvolvimento dos di-ferentes plasmódios e, mais recentemente, nabusca de uma vacina (Matos, 2000).

Entre as endemias rurais importantes, a úl-tima a aparecer em São Paulo foi a esquistosso-mose, cujos primeiros casos autóctones foramregistrados em 1923. Foram registrados 11 ca-sos sem que se conhecesse a espécie de trans-missor envolvido. Não foi atribuída maior im-portância à descoberta visto que se acreditavanão haver condições propícias para a instala-ção da endemia (Barata, 2000). Na Segundametade do século 20, surgem casos autóctonesde esquistossomose nos municípios de Ouri-nhos, Palmital e Ipauçú, região onde é encon-trada a Biomphalaria glabrata, hospedeiro in-termediário com maior potencial para a manu-tenção de focos. Novos focos são detectadosainda no vale do Ribeira e vale do Paraíba, re-gião que se tornará endêmica para a doença,sendo a transmissão associada principalmenteà lavoura de arroz em alagados (Chieffi e Wald-man, 1988).

Além da esquistossomose, as enteroparasi-toses, ao longo da história, são indicadas comoum dos mais sérios problemas de saúde públi-ca do Brasil (Pessôa, 1949, 1963, 1982; Rey,1991; Neves, 2000).

Pessôa (1949, 1963) afirmou que entre ostrópicos de Câncer e Capricórnio, existem maisinfecções helmínticas que pessoas. Observandoos diversos e numerosos levantamentos sobreas enteroparasitoses realizados em todo o mun-do e especialmente em nosso país, vemos que aafirmação é bastante atual (Bundy, 1995; Fer-reira et al., 2000).

Considerando a morbidade e a mortalida-de que podem advir das infecções por entero-parasitas, a diminuição da capacidade de tra-balho dos adultos parasitados e os custos so-ciais de assistência médica ao indivíduo e à co-munidade, percebe-se facilmente que as para-sitoses intestinais humanas representam ex-pressivo problema de saúde pública nos paísesdo Terceiro Mundo (Barata, 2000).

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Comentários finais

Neste início de século 21, as parasitoses deixa-ram de ser doenças em torno das quais são mo-bilizados recursos internacionais de diferentesordens, cedendo lugar a novos problemas, aschamadas “doenças da modernidade”, como asíndrome da imunodeficiência adquirida (Aids)e as chamadas doenças reemergentes (antigosproblemas), como a tuberculose e outras a elaassociadas.

A história nos mostra que os antigos malespersistem nos países do Terceiro Mundo, frutosna sua grande maioria de condições socioeco-nômicas, sanitárias e higiênicas deficientes, danão-implantação de políticas públicas que pro-movam o crescimento econômico, da não-dis-tribuição igualitária de renda e do não-acessouniversal à educação e aos serviços básicos desaneamento e de saúde.

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Artigo apresentado em 21/10/2002Aprovado em 18/11/2002Versão final apresentada em 26/11/2003