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A ROSA DO POVO

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A ROSA DO POVO

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coleção carlos drummond de andrade conselho editorial

Antonio Carlos SecchinDavi Arrigucci Jr.Eucanaã FerrazLuis Mauricio Graña DrummondPedro Augusto Graña DrummondSamuel Titan Jr.

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CARlOS DRummOnD De AnDRADe A ROSA DO POVOposfácio

Antonio Carlos Secchin

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Copyright © 2012 by Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond www.carlosdrummond.com.br

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

capa e projeto gráfico

warrakloureirosobre Retrato de Jorge de Castro, de Candido Portinari, 1932, óleo e têmpera sobre tela, 100 x 80 cm. Coleção particular.Imagem do Acervo Projeto Portinari. Reprodução autorizada por João Candido Portinaripesquisa iconográfica

Regina Souza Vieiraestabelecimento de texto

Júlio Castañon Guimarães (Casa de Rui Barbosa)revisão final

Antonio Carlos Secchinpreparação

Márcia Copolarevisão

Isabel Jorge CuryHuendel Viana

[2012]Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 – São Paulo – spTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987.A rosa do povo/ Carlos Drummond de Andrade. —

1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

isbn 978-85-359-2027-7

1. Poesia brasileira i. Título.

11-14431 cdd-869.91

Índice para catálogo sistemático:1. Poesia: Literatura brasileira 869.91

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Sumário

9 Consideração do poema 11 Procura da poesia 13 A flor e a náusea 15 Carrego comigo 19 Anoitecer 20 O medo 23 Nosso tempo 30 Passagem do ano 32 Passagem da noite 34 Uma hora e mais outra 38 Nos áureos tempos 41 Rola mundo 45 Áporo 46 Ontem 47 Fragilidade 48 O poeta escolhe seu túmulo 49 Vida menor 50 Campo, chinês e sono 51 Episódio 52 Nova canção do exílio 53 Economia dos mares terrestres 54 Equívoco 55 Movimento da espada 57 Assalto 59 Anúncio da rosa 61 Edifício São Borja 64 O mito 71 Resíduo 74 Caso do vestido 81 O elefante 84 Morte do leiteiro 87 Noite na repartição

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94 Morte no avião 99 Desfile 101 Consolo na praia 102 Retrato de família 104 Interpretação de dezembro 107 Como um presente 111 Rua da madrugada 113 Idade madura 116 Versos à boca da noite 119 No país dos Andrades 120 Notícias 121 América 126 Cidade prevista 128 Carta a Stalingrado 131 Telegrama de Moscou 132 Mas viveremos 135 Visão 1944 139 Com o russo em Berlim 142 Indicações 145 Onde há pouco falávamos 149 Os últimos dias 153 Mário de Andrade desce aos infernos 157 Canto ao homem do povo Charlie Chaplin

165 PosfácioA rosa, o povo, antonio carlos secchin

179 Leituras recomendadas 180 Cronologia 186 Crédito das imagens 187 Índice de primeiros versos

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consideração do poema

Não rimarei a palavra sonocom a incorrespondente palavra outono.Rimarei com a palavra carneou qualquer outra, que todas me convêm.As palavras não nascem amarradas,elas saltam, se beijam, se dissolvem,no céu livre por vezes um desenho,são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminhoou apenas um rastro, não importa.Estes poetas são meus. De todo o orgulho,de toda a precisão se incorporaramao fatal meu lado esquerdo. Furto a Viniciussua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.Que Neruda me dê sua gravatachamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.São todos meus irmãos, não são jornaisnem deslizar de lancha entre camélias:é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terrae é ainda mais do que ela. É qualquer homemao meio-dia em qualquer praça. É a lanternaem qualquer estalagem, se ainda as há.— Há mortos? há mercados? há doenças?É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,por que falsa mesquinhez me rasgaria?Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.O beijo ainda é um sinal, perdido embora,da ausência de comércio,boiando em tempos sujos.

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Poeta do finito e da matéria,cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,boca tão seca, mas ardor tão casto.Dar tudo pela presença dos longínquos,sentir que há ecos, poucos, mas cristal,não rocha apenas, peixes circulandosob o navio que leva esta mensagem,e aves de bico longo conferindosua derrota, e dois ou três faróis,últimos! esperança do mar negro.Essa viagem é mortal, e começá-la.Saber que há tudo. E mover-se em meioa milhões e milhões de formas raras,secretas, duras. Eis aí meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escutaouvido rente ao chão. Mas é tão altoque as pedras o absorvem. Está na mesaaberta em livros, cartas e remédios.Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,o uniforme de colégio se transformam,são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objetoou recusar-se ao grande? Os temas passam,eu sei que passarão, mas tu resistes,e cresces como fogo, como casa,como orvalho entre dedos,na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,e te desejo e te perco, estou completo,me destino, me faço tão sublime,tão natural e cheio de segredos,tão firme, tão fiel… Tal uma lâmina,o povo, meu poema, te atravessa.

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procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.Não há criação nem morte perante a poesia.Diante dela, a vida é um sol estático,não aquece nem ilumina.As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.Não faças poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso [à efusão lírica.Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escurosão indiferentes.Nem me reveles teus sentimentos,que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo [das casas.Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas [junto à linha de espuma.O canto não é a naturezanem os homens em sociedade.Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas)elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,não indagues. Não percas tempo em mentir.Não te aborreças.Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de famíliadesaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

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Não recomponhastua sepultada e merencória infância.Não osciles entre o espelho e amemória em dissipação.Que se dissipou, não era poesia.Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.Lá estão os poemas que esperam ser escritos.Estão paralisados, mas não há desespero,há calma e frescura na superfície intata.Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.Espera que cada um se realize e consumecom seu poder de palavrae seu poder de silêncio.Não forces o poema a desprender-se do limbo.Não colhas no chão o poema que se perdeu.Não adules o poema. Aceita-ocomo ele aceitará sua forma definitiva e concentradano espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.Cada umatem mil faces secretas sob a face neutrae te pergunta, sem interesse pela resposta,pobre ou terrível, que lhe deres:Trouxeste a chave?

Repara:ermas de melodia e conceito,elas se refugiaram na noite, as palavras.Ainda úmidas e impregnadas de sono,rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

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a flor e a náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas,vou de branco pela rua cinzenta.Melancolias, mercadorias espreitam-me.Devo seguir até o enjoo?Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:Não, o tempo não chegou de completa justiça.O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.O tempo pobre, o poeta pobrefundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.Sob a pele das palavras há cifras e códigos.O sol consola os doentes e não os renova.As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.Quarenta anos e nenhum problemaresolvido, sequer colocado.Nenhuma carta escrita nem recebida.Todos os homens voltam para casa.Estão menos livres mas levam jornaise soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?Tomei parte em muitos, outros escondi.Alguns achei belos, foram publicados.Crimes suaves, que ajudam a viver.Ração diária de erro, distribuída em casa.Os ferozes padeiros do mal.Os ferozes leiteiros do mal.

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Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.Ao menino de 1918 chamavam anarquista.Porém meu ódio é o melhor de mim.Com ele me salvoe dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.Uma flor ainda desbotadailude a polícia, rompe o asfalto.Façam completo silêncio, paralisem os negócios,garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.Suas pétalas não se abrem.Seu nome não está nos livros.É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tardee lentamente passo a mão nessa forma insegura.Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.