A REDE E A ARTE - DA ERA DO OBJETO À ERA DA CIRCULAÇÃO

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    A REDE E A ARTE: DA ERA DO OBJETO ERA DA CIRCULAO

    Paula Braga - UNICAMP

    RESUMO

    Esse artigo apresenta uma reflexo sobre o impacto das redes de comunicaocibernticas no desenvolvimento de um novo campo poltico para a arte. Embasado notexto de Walter Benjamin sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica, e noconceito de partilha do sensvel de Jacques Rancire, discutimos a emancipao doespectador e a distribuio do direito de enunciao e autoria propiciado pelas redes.

    Palavras-chaves: Redes, poltica, participador

    ABSTRACT

    This article presents thought on the impact of the cyber-communication networks on thedevelopment of a new political arena for art making. Based on the text by Walter Benjaminon the work of art in the age of technical reproduction, and on the concept of distribution ofthe sensible by Jacques Rancire, we discuss the emancipation of the spectator and thedistribution of the right to enunciation and authorship in the network.

    Key-words: Networks, politics, participator

    A atividade poltica a que desloca um corpo do lugar que lhe era

    designado ou muda a destinao de um lugar; ela faz ver o que no cabia

    ser visto, faz ouvir um discurso ali onde s tinha lugar o barulho, faz ouvir

    como discurso o que s era ouvido como barulho (Jacques Rancire)1

    Arte no existe como algo em si, mas sempre depende do que uma era entende

    como sendo arte. A pesquisa esttica em arte contempornea empenha-se em redefinir otermo arte, fornecendo conceitos e categorias para a compreenso de uma produo que

    ainda no se chama arte, posto que no se encaixa no sentido da palavra usado na era

    anterior. Com isso, a pesquisa impulsiona tambm alteraes no fazer artstico, liberta

    artistas do significado anterior da palavra. A produo terica salienta que algumas

    poucas produes artsticas, que passam quase imperceptveis e margem do campo

    conhecido, esto anunciando um novo significado para essa palavra inquieta e sujeita a

    mutaes. A arte mais relevante de uma era no se parece nada com arte ao surgir. Arte

    1Jacques Rancire, O Desentendimento: poltica e filosofia. So Paulo: Editora 34, 2006, p. 42

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    ento guarda como devir exatamente aquilo que uma era no consegue ainda chamar de

    arte. Arte parceira da transformao e resiste a tudo o que impea seu devir arte.

    Esses ciclos de transformao da obra de arte, que Grard Lebrun pertinentemente

    chama de ciclos semnticos da palavra arte (posto que, ao contrrio da idia de morte

    da arte, o que ocorre que o significado de arte altera-se de tempos em tempos)2

    , somuitas vezes vinculados a um salto tecnolgico, mas no porque os artistas passem a

    usar algum dispositivo ou tecnologia anteriormente no disponvel e da reinventem a

    arte. O que a tecnologia faz que mais interessa arte alterar as formas de

    relacionamento com o mundo sensvel, impactar a formao da subjetividade e da

    compreenso do tempo e do espao. nesse registro que entendemos a importncia das

    redes cibernticas para a arte contempornea.

    Quando Walter Benjamin escreveu A obra de arte na era de sua reprodutibilidadetcnica, a fotografia e o cinema apresentavam-se como novidades tecnolgicas capazes

    de alterar a percepo das pessoas sobre o mundo. E consequentemente, capazes de

    alterar o estatuto da obra de arte. O cinema e a fotografia fadavam runa as antigas

    categorias estticas de autenticidade, unicidade, e o decorrente valor de culto da obra

    como objeto raro. A obra de arte feita por filme ou fotografia existe em inmeras cpias,

    todas autnticas, algo impensvel anteriormente, quando as reprodues de obras, feitas

    com gravuras ou moldes, no eram consideradas originais. O filsofo alemo escreve seu

    texto num misto de lamento e esperana: a perda da aura poderia significar uma

    instrumentalizao fascista da obra de arte, mas tambm uma democratizao do acesso

    arte. As massas poderiam ser manipuladas pelo cinema, ou acharem nele um veculo

    de libertao e reivindicao de seus direitos.3 Essa ambiguidade detectada por Benjamin

    atualiza-se no paradoxo da distribuio e controle inerente s redes de comunicao:

    todos na rede tm poder de enunciao, ao mesmo tempo em que todos esto sendo

    ouvidos, monitorados e controlados, questo poltica anloga apontada por Benjamin.

    Benjamin percebeu que a obra de arte reprodutvel rompia de vez o liame da arte

    com o ritual. Em tempos remotos, o objeto de arte estivera a servio de um ritual primeiro

    mgico, depois religioso.4 O culto unicidade da obra de arte era um resqucio dessa

    funo ritualstica, desse apreo pelo inatingvel5: "com a secularizao desta ltima [a

    2Grard Lebrun, A Mutao da Obra de Artein Leo, Emmanuel Carneiro et al. Arte e Filosofia. Rio de Janeiro:FUNARTE/INAP, 1983. p. 24

    3Walter Benjamin. "A Obra de Arte na poca de suas tcnicas de reproduo. trad. Jos Lino Grnewald em A Ideiade Cinema, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1969, p. 55-95.

    4 ibid., p. 675

    Em nota de rodap, Benjamin esclarece: De fato, a qualidade principal de uma imagem que serve para o culto deser inatingvel. Devido sua prpria natureza, ela est sempre 'longnqua por mais prxima que possa estar'. Pode-se aproximar de sua realidade material, mas sem se alcanar o carter longnquo que ela conserva, a partir de

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    arte], a autenticidade torna-se o substituto do valor de culto.6 As obras de arte

    reprodutveis por definio, como o filme e a fotografia, das quais no h um exemplar

    original, no so mais inatingveis. Disso, Benjamin conclui que em lugar de se basear

    sobre o ritual, ela [a funo da arte] se funda, doravante, sobre uma outra forma de

    praxis: a poltica.7

    Benjamin no elabora diretamente essa afirmao estrondosa: a arte desde o

    advento dos meios de reprodutibilidade tecnolgicos no se baseia mais no ritual mas na

    poltica. O objeto de arte no mais parte de um culto, e sim de uma ao ou inteno

    poltica. Desligou-se do mgico para cair no campo do poder. Ora, certamente o poder

    tem seus cultos e todo culto pressupe uma hierarquia de poder. O mais interessante da

    afirmao de Benjamin a identificao da inter-relao que unifica o trinmio tecnologia-

    poltica-arte. Ao longo de seu ensaio, Benjamin expe as conexes entre esses trselementos, que nos interessam muito para a anlise da obra de arte na era das redes de

    comunicao.

    possvel estabelecer no texto de Benjamin trs eixos de atuao poltica da arte

    na era da reprodutibilidade tcnica. O primeiro o eixo da acessibilidade: a obra passa a

    estar disponvel a um grande nmero de pessoas, e no mais escondida e exposta

    somente durante rituais na medida em que as obras de arte se emancipam de seu uso

    ritual, as ocasies para serem expostas tornam-se mais numerosas.8 So expostas, por

    exemplo, em jornais e revistas, de ampla distribuio, porm nessa verso amplamente

    distribuda, as obras trazem legendas explicativas, que conduzem o espectador a uma

    leitura determinada, mediada (controlada). A fruio da obra no acontece mais

    individualmente: j vem em parte construda, no mnimo por comentrios de outros

    espectadores.

    O segundo ponto de atuao poltica da arte na era das tcnicas de

    reprodutibilidade seria a incluso do espectador, se no ainda como autor, ao menos

    como ator. Qualquer um poderia atuar em um filme, desempenhando por exemplo o papel

    de si mesmo em uma tomada que exigisse uma massa de pessoas. As tcnicas de

    edio consertariam qualquer impreciso de atuao. Benjamin compara essa dissoluo

    da diferena entre ator e pblico que o cinema possibilita com a proximidade entre

    escritor e leitor propiciada pela imprensa. Qualquer um poderia ser um escritor, j que os

    jornais passaram a ser tribuna para que os leitores se manifestassem por escrito: a

    quando aparece. ibid., p. 67.6

    Ibid., nota de rodap 8, p. 677

    Ibid., p. 698

    Ibid., p. 70

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    competncia literria no mais se baseia sobre formao especializada, mas sobre uma

    multiplicidade de tcnicas e, assim, ela se transforma num bem comum.9 O privilgio da

    autoria, antes propriedade de poucos, passa a ser distribudo. Voltando ao filme,

    Benjamin identifica a tendncia de filmar o homem como ele no cinema russo, no qual o

    homem comum desempenhava o papel de si mesmo, no mnimo como coadjuvante, masadverte que no cinema Ocidental, a indstria cinematogrfica insistia em estimular a

    ateno das massas para representaes ilusrias e espetculos equvocos10. Benjamin

    nota que no Ocidente, o cinema mantinha uma artificial separao entre o homem comum

    e o homem representado na tela, inviabilizando o campo das formas de representao do

    prprio homem como terreno de emancipao.

    O terceiro eixo de atuao poltica do novo tipo de arte estaria na face poltica do

    sensvel. Benjamin menciona a alargamento de percepo que a imagem cinematogrficaproporciona, seja pelo enquadramento inusitado, seja pela cmera lenta, ou por exibir

    imagens de lugares distantes e desconhecidos. Comparando o mgico que cura pela

    imposio de mos ao cirurgio que penetra na carne do paciente com bisturis, Benjamin

    diz que o pintor mantm uma distncia entre a realidade e ele prprio, como o mgico,

    representando a realidade de forma global, ao passo que o filmador, como um cirurgio,

    penetra em profundidade no real, expondo-o em partes ultra-detalhadas.11 Percebemos

    de outra forma o mundo depois de o termos visto pelos olhos da cmera (e no ser

    assim com toda obra de arte relevante? No a obra mais valiosa sempre uma cmera a

    ampliar algum detalhe do mundo?). A cmera, diz Benjamin, propiciou ao homem

    representar o mundo de outra maneira; ela nos abre pela primeira vez a experincia do

    inconsciente visual, assim como a psicanlise facultava a anlise de realidades, at

    ento, inadvertidamente perdidas no vasto fluxo das coisas percebidas."12 A cmera

    poderia fazer-nos ver o que antes passava desapercebido. desnecessrio enfatizar o

    quanto a cmera tambm atuou nas ltimas dcadas como ditadora das formas de

    percepo do mundo, como impositora de padres de aparncia e comportamento nas

    massas, estreitando ao invs de alargar a percepo de mundo.

    Nos trs grandes eixos que listamos acima e que marcam a diferena entre a arte

    da era da reproduo tcnica da obra em relao a fases precedentes de culto ritualstico

    ou de culto autenticidade da obra, Benjamin apresenta os benefcios da

    reprodutibilidade da obra de arte e indica uma contrapartida menos nobre da

    9 Ibid.,p. 8010

    Ibid., p. 8111

    Ibid., p. 82-8312

    Ibid., p. 85, 87

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    acessibilidade, da dissoluo da fronteira entre autor/ator e pblico e da modificao da

    experincia de apreenso do sensvel. A dialtica implcita na discusso de Benjamin

    resumida pela diferena entre politizar a esttica ou estetizar a poltica, entre o

    espectador que penetra na obra ou a obra que travestida de diverso penetra nas

    massas. Politizar a esttica reconhecer o poder da arte em ampliar a percepo domundo, em conferir voz aos passivos observadores. Estetizar a poltica manipular as

    massas com o apelo da imagem, injetando-lhe, na seringa da boa forma, um anestsico

    que lhe barra a ao, que diverte e assim distrai, que conforma em um padro e em um

    estado das coisas.

    Lido hoje, Benjamin aqui nos provoca uma primeira questo sobre a relao entre

    arte contempornea e poltica: estaramos tentando evitar apraxis poltica da arte ao

    insistirmos na preservao de certos cultos arte? Cultua-se metafisicamente a artecomo objeto com poder de salvao (basta citarmos a afirmao de Louise Bourgeois de

    que a arte uma garantia de sanidade). Cultua-se o artista como um intelectual cujo

    conceitualismo est para alm da compreenso do pblico ou como aquele que ajuda o

    mundo revelando verdades msticas, como diz o neon de Bruce Nauman.13 Permanece

    tambm hoje o culto raridade da obra de arte e a seu valor no mercado (nossa era do

    capitalismo tardio insiste em definir um nmero de edies, cpias autnticas, para

    fotografias e vdeos digitais, apesar de j em 1936 Benjamin afirmar que reproduzem-se

    cada vez mais obras de arte que foram feitas justamente para serem reproduzidas. Da

    chapa fotogrfica pode-se tirar um grande nmero de provas; seria absurdo indagar qual

    delas a autntica14). Ser que manter a arte nesse pedestal inacessvel do valor de

    raridade (hoje traduzido por preo) e do valor como objeto de elevao intelectual,

    salvao ou revelao, atravanca a funo poltica da arte? Creio que no. Ao contrrio,

    estabelecem um campo de tenso importante para apraxis poltica da arte, um campo

    para a ambivalncia que incita a reflexo crtica: ao vender suas obras em um leilo em

    absoluta transgresso ao sistema das galerias, Damien Hirst est aumentando o culto ao

    mercado ou exibindo sua falcia? Ao remunerar indignamente -- para os padres das

    classes sociais que vivem longe da pobreza -- a US$150 por 3 horas de trabalho e 2 dias

    de ensaios osperformers que participaram de sua obra apresentada em um jantar de gala

    no MOCA-LA, Marina Abramovic est compactuando com as inequalidades do sistema

    capitalista ou aumentando nossa percepo sobre o funcionamento do sistema?15

    13 cf. Bruce Nauman, The true artist helps the world by revealing mystic truths, non, 1967, 59 x 52 x 2 in14 Benjamin, op. cit., p. 6815

    http://www.artinfo.com/news/story/755667/marina-abramovic-advocates-serfdom-for-artists-in-overlooked-moca-gala-video

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    Quando exibe um abajur gigantesco de beleza extasiante na Bienal de So Paulo, que

    funciona pela fora de trs trabalhadores braais, simultaneamente escondidos e exibidos

    no subsolo da obra, Cildo Meireles est sendo cruel ou abrindo os olhos de uma

    sociedade cnica?Evidentemente, a discusso poltica que essas trs obras engendram

    (aqui considerando a atuao de Hirst como obra) depende da ampla circulao do relatosobre a obra, das redes de comunicao, dos blogs. So obras que na rede tm uma

    sobrevida e alcance incomparavelmente maiores do que uma obra de Hans Haacke dos

    anos 1960 de crtica instituio de arte. A rede propicia que a obra contempornea no

    apenas circule mas tambm ganhe adendos imprevisveis. Marina Abramovic no poderia

    imaginar que sua performance receberia como adendo uma carta de repdio de Yvonne

    Rainer, vital para o aquilo no que a obra iniciada por Abramovic se transformou. O

    espetculo anunciado por Guy Debord nos anos 1960 tomou propores de organismovivo na era das redes.

    No s de obras espetaculares vive a arte contempornea baseada na tecnologia

    das redes de comunicao. H as obras silenciosas, andarilhas das redes, que crescem

    sem chamar a ateno, e no param nunca. Aqui ento temos o adendo que as redes

    trazem discusso iniciada por Walter Benjamin. As redes mantm a obra em processo

    perptuo de construo. Apoisis interminvel e potencialmente coletiva16. Por viverem

    na estrutura das redes cibernticas, so obras que se materializam como informao

    passvel de ser transferida nos dutos da internet. s vezes encorpam-se. Mais

    frequentemente substituem o tomo da matria pelo bitda informao. So forma e no-

    forma. Acima de tudo, sinalizam uma aposta ou esperana no potencial poltico da arte

    contempornea.

    assim que propomos olhar para as redes de comunicao: campo para a

    retomada contempornea da resistncia moderna a categorias tradicionais das belas-

    artes, como autoria e originalidade, bem como nostalgia do revolucionrio. O artista passa

    a ser um propositor de estruturas a serem usadas por qualquer um, dentro da grande

    estrutura rizomtica da rede, com objetivos genricos como emancipao, liberdade e

    igualdade, ainda que no exista no horizonte do artista contemporneo um grande

    projeto-alvo, como houve no final dos anos 1950 e incio dos anos 1960 no Brasil.

    Lembremos que Benjamin criticou o uso das novas tecnologias quando estas no

    16A proximidade entre tecnologia e arte est tambm na origem da palavra arte: Ars, artis, palavra latina da qual anossa derivou, corresponde ao grego tkne, que significa todo e qualquer meio apto obteno de determinado fim.

    Quanto apiesis, de significado semelhante a tkne, aplica-a Aristteles de modo espacial, para designar a poesia etambm a Arte, na acepo estrita do termo. Piesis um produzir que d forma, um fabricar que engendra, umacriao que organiza, ordena e instaura uma realidade nova, um ser (...) dando forma matria bruta preexistente,ainda indeterminada, em estado de mera potncia. NUNES, Benedito. Introduo Filosofia da Arte. So Paulo:

    tica, 2010, p. 17, 20.

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    mexiam com o regime de propriedade, quando a tecnologia propiciava que as massas se

    expressassem, sem nada alterar na distribuio de riqueza -- o que ele chamou de uso

    fascista dos novos meios de circulao da arte, ou de estetizao da poltica. Ora, de

    imediato, a rede resiste a um tipo especfico de propriedade: distribui a criao intelectual.

    A arte na rede pode ser acessada, copiada, alterada, ou construda em conjunto. Aomexer nesse ponto da propriedade, a arte feita em rede politizada. A resistncia no

    fica circunscrita ao campo esttico; no mnimo apresenta um modelo alternativo de

    distribuio de propriedade intelectual: alarga a percepo do real. Pode-se especular

    que essa sensibilizao a uma nova possibilidade venha a alterar outras categorias

    fundamentais da sociedade capitalista. Mas seria s uma especulao apressada e

    instrumentalizadora, assim como no possvel estabelecer uma relao imediata entre a

    arte participativa desenvolvida no Brasil no final dos anos 1960 com a abertura polticados anos 1980.

    No entanto, Toni Negri identifica uma correspondncia entre formas de resistncia

    em evoluo e as transformaes da produo econmica e social: em cada era, em

    outras palavras, verifica-se que o modelo de resistncia mais eficaz tem a mesma forma

    que os modelos dominantes de produo econmica e social.17 Seguindo o pensamento

    de Negri, bastante lgico procurar a resistncia na rede. A resistncia na arte pode

    tambm ser mais eficaz se assimilar a mudana tecnolgica e comportamental causada

    pelas redes.

    Na rede todos falam, todos escutam. Todos tm acesso a todos os ns se

    dominarem a informao que nela circula. E a informao, nos diz Anne Cauquelin, no

    transmite um contedo, mas refora o continente, o contentor, que a rede. Se voc me

    ouve, h uma rede, e voc est nela. No h contedo mais significante que outro no

    uso do canal, nada vem marcado com uma caneta luminosa, tudo circula com a mesma

    cor, no mesmo volume, num pice de igualdade e perigo de mediocrizao -- atualizao

    da dialtica Benjaminiana entre o fascismo e a democracia -- que uma das novas

    contradies da arte. Uma possvel sada seria abolir a rede, estar fora da rede, derrubar

    o sistema. Seja marginal, seja off-line, diz a pardia de Andr Dahmer da obra Seja

    Maginal, seja heri de Hlio Oiticica. Mas a rede sem sada e a pardia circula na rede.

    Cumpre perguntar qual esse real que o corpo-rede alcana. Aqui, o modelo

    proposto por Jacques Rancire de entendimento da conexo entre arte e poltica, o da

    partilha do sensvel, serve-nos de bssola na deriva pela regio definida por essa

    17HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multido: guerra e democracia na era do imprio. Rio de Janeiro: Record, 2005,p. 103

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    pergunta. O sensvel, de que nos fala Rancire, acesso a um comum, e a partilha do

    sensvel, define os possveis, dentro daquele comum.

    As prticas artsticas, nos diz Rancire, so 'maneiras de fazer' que intervm na

    Andr Dahmer, 2011, pardia de Seja Marginal, Seja Heri, de Hlio Oiticica

    distribuio geral das maneiras de fazer e nas relaes com maneiras de ser e formas de

    visibilidade. A prtica artstica, portanto, altera a distribuio dos fazeres, do trabalho, e

    portanto as subjetividades. Estremece as partilhas do comum instauradas, causa a

    desregulao das partilhas do espao e do tempo.18 Eis a poltica da arte: alterar a

    partilha do sensvel. Quando a arte feita em rede embaralha os papis de artista e

    espectador, altera a partilha do sensvel. Um blog, mesmo quando no escrito por um

    jornalista ou escritor profissional, d a seu enunciador o poder de um novo fazer, que

    contesta a estabelecida distribuio hierrquica dos fazeres

    .

    Superflex, Freebeer, 2007

    18Jacques Rancire.A Partilha do Sensvel: esttica e poltica. So Paulo: EXO experimental.org; Editora 34, 2005, p.17-18

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    Quando o grupo Superflex produz a FreeBeer e distribui a receita da cerveja,

    confere ao antes-consumidor um poder de produtor. O contedo pode no ser

    revolucionrio, risco que existe no s na rede, mas no palco, no cinema, na televiso,

    como bem identificou Benjamin. O fazer que revolucionrio, e na rede, est mais mo do que o palco, o cinema ou a televiso. O fazer implica em uma autonomia, uma

    emancipao, ainda que venha com os riscos e desacertos de quem se inicia em uma

    atividade, seja ela fabricar cerveja ou protestar nas praas. Se o regime do consumo

    conviveu com a ambivalncia dos artistas entre a recusa ou adeso ao mercado, o regime

    da comunicao conviver com o paradoxo da democratizao e mediocrizao.

    Tanto a poltica quanto a arte feitas em rede cumprem aquilo que Rancire atribui

    ao palco e performance teatrais: ensinar a seus espectadores os meios de deixarem deser espectadores e de se tornarem agentes de uma prtica coletiva.19 No campo da arte,

    significa oferecer estruturas para que o espectador torne-se inventor. O artista no mais

    um ser iluminado que vai ensinar algo ao espectador, pois a obra no uma mensagem

    fechada, ainda que diante da arte contempornea muitos ainda queiram extrair um

    significado, saber o que ela expressa. Ora, a obra no significa da forma como outras

    coisas no mundo significam. O artista no sabe exatamente que tipo de pensamento a

    obra vai emanar, a obra algo que o artista no controla. Ela , como diz Rancire, uma

    terceira coisa, entre o artista e o espectador. A obra se encontra entre a ideia do artista e

    a sensao ou compreenso do espectador.20

    sem dvida uma obra que se imiscui na vida, quer estar no cotidiano, mas se por

    um lado herdam o conceito da participao dos anos 1960, no se encaixam no termo

    arte relacional dos anos 1990. No se trata de oferecer aos annimos outsiders do

    mundo da arte situaes artsticas em tempo real. 21 A obra-estrutura no presta

    servios, no se interessa pelo artista como um poderoso sbio capaz de esclarecer as

    mentes alienadas. Tenta ser uma estrutura contra-hegemnica e atuar at mesmo contra

    a hegemonia da arte. Ela vai sempre parecer no-arte. E vai buscar no o esclarecimento

    do espectador, mas sua emancipao, aqui entendido como um rompimento com as

    formas de subjetivao que so dadas pelo biopoder, pelas manobras do atual estado do

    capitalismo que torna nossos corpos manipulveis pela lgica do mercado da vida. Se o

    participador nos anos 70 era uma fora contra-atuante s manobras do espetculo e do

    19Jacques Rancire, O espectador emancipado, Lisboa: Orfeu Negro, 2010, p. 15. Texto original publicado em

    ArtForum XLV, n. 7, Maro de 2007.20

    ibid., 2421

    Rodrigo Ziga, La demarcacin de los cuerpos: tres textos sobre arte y biopoltica . Santiago de Chile: MetalesPesados, 2008, p. 43

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    lazer dirigido por um sistema produtivista, hoje o espectador emancipado recebe da arte

    impulso para ser, resistindo a um pret-a-porter que estabelece como conduzir a vida,

    como gerir seu corpo, como compreender o mundo. muita responsabilidade para a arte

    ser esse impulso? A questo : o que mais poderia a arte ser hoje? A arte no pode

    continuar a existir somente no plano do regime do consumo. H outros planos surgindo,como o da produo biopoltica no sentido descrito por Negri e Hardt.

    Essa emancipao do espectador tem na plataforma das redes digitais uma

    equivalncia no campo do ativismo. H alguns anos, o ativista ciberntico enviava

    mensagens indignadas sobre alguma atrocidade ou injustia social. Mais recentemente,

    as mensagens passaram a ser convocatrias, como ocorreu em 2011 na Primavera

    rabe, nos protestos nas praas de Madri em maio de 2011, no movimento Occupy Wall

    Street, e nos incipientes protestos contra a corrupo no Brasil.

    Occupy Wall Street, fotografia annima, 2011

    Em geral essas convocatrias demonstram um descontentamento geral, carregam

    uma atmosfera de clamor por mudana, e no um manifesto com exigncias bem

    definidas. Movimentam os corpos e a rede, numa dana que no mnimo chacoalha a

    passividade. Com exceo da Primavera rabe, os protestos convocados e divulgados

    em rede no atingem um resultado concreto, movimentam, mas sem uma finalidade bem

    definida, optam por questionar o estabelecido: protestam contra uma cultura vigente, um

    pensamento que antes parecia inquestionvel, mas no apresentam o percurso definidopara a mudana. A esttica aqui vem antes da cincia poltica e econmica. Elaborar um

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    planejamento de mudana radical de um sistema econmico ou poltico tarefa para

    poucos. A heterogeneidade de conhecimentos da rede abarca o movimento que para

    qualquer um, que no exige um saber especfico para alm da alterao dos corpos, dos

    comportamentos, numa evoluo coreogrfica, que no deixa de comover como a antiga

    categoria do belo. No faltam nessas manifestaes as caras pintadas, os coros, o poderintoxicador do coletivo, como nas cenas fimadas e armazenadas na Internet do discurso

    de Slavoj Zizek na Liberty Plaza sendo ecoado pelo sistema do microfone humano.22 O

    protesto convocado em rede s tm por objetivo provocar o acontecimento que os

    resume (...) No formam o meio de uma finalidade exterior, mas tm em sua prpria

    realizao sua razo suficiente.23

    Slajov Zizek discursando para manifestantes de Occupy Wall Street

    A falta de finalidade que caracteriza tanto a arte quanto o ativismo feito em rede

    bem exemplificada pelo WikiLeaks. A ao de guerrilha de Julian Assange divulgar na

    rede o contedo controlado, que no deveria chegar a todos os espectadores.

    importante para nossa discusso sobre arte e poltica na era das redes o fato de HansUlrich Obrist ter includo Assange em sua lista de entrevistados. A conversa entre o

    curador mais influente do planeta e o hacker mais perseguido do mundo foi publicada em

    maio de 2011 no e-flux. Diz Assange que, observando o mar de informaes que circula

    na rede, perguntou-se sobre um critrio para identificar a informao que pudesse ser

    transformadora. Notou que alguns desses bits tinham a peculiaridade de estarem sendo,

    a grande custo econmico, escondidos. E concluiu que esse seria seu critrio: quanto

    mais o poder financeiro se esforasse para parar a circulao de uma informao, mais

    22http://occupywallst.org/article/today-liberty-plaza-had-visit-slavoj-zizek/

    23Jean Galard,A Beleza do Gesto: uma esttica das condutas. So Paulo: EDUSP, 2008. p. 61

  • 7/29/2019 A REDE E A ARTE - DA ERA DO OBJETO ERA DA CIRCULAO

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    ele se interessaria em divulg-la. Para que? Talvez para que bloggeiros pudessem

    replic-la, analis-la. Talvez para que as pessoas soubessem do controle. Ou

    simplesmente pelo gesto insubmisso em relao diviso do comum, um poder da rede.

    Reportagem em Artinfo, 30/06/2011

    Paula BragaPs-doutoranda no Instituto de Artes da UNICAMP/ FAPESP, a autora doutora emFilosofia da Arte pela FFLCH-USP e mestre em Histria da Arte pela University of Illinois,Estados Unidos, onde tambm obteve o ttulo de Bacharel em Pintura. Sua rea principalde pesquisa a obra de Hlio Oiticica, sobre a qual organizou a coletnea "Fios Soltos: aarte de Hlio Oiticica", publicada pela Editora Perspectiva em 2008.