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A produção de sentido na música marginal de Criolo Weber Wagner R. Silva¹ Na oficina de estudos literários, que enfoca o estudo das diversidades socioculturais, somos levados a adotar uma perspectiva desapegada de estigmas pré-conceituais e que se aproximam da visada hermenêutica, procurando, para tanto, compreender o ser de maneira ontológica. Tendo em vista esse objetivo disciplinar, procederemos com uma abordagem que não pretende exaltar aspectos culturais dominantes, mas que busca compreender a forma pela qual o rap, o estilo de vida e o contexto social de criação da música de Criolo carregam de sentido as letras das canções deste artista, ou mestre de cerimônias (MC), como ele mesmo prefere ser chamado, fazendo com que elas concentrem o poder necessário para transcender as barreiras socioculturais e, assim, serem apreciadas e respeitadas em diversos meios. Para iniciarmos nosso mergulho nas águas turvas da música marginal, revelo que a canção que me motivou a fazê-lo chama-se Grajauex do CD Nó na Orelha, uma referência e uma reverência ao distrito da zona sul de São Paulo onde Criolo nasceu e se criou. Acredito que a razão de meu estranhamento o que, portanto, me motiva a querer proceder com esta análise, provavelmente, resida no fato de a letra apresentar uma espécie de cacoete americanizado, perceptível com a expressão sistematizada do “ex” que poderia ser lido como estrangeirismo, como crítica, ironia ou antropofagismo. Para continuar, sem mais delongas, segue a letra da música tema deste trabalho: Grajauex The Grajauex Duas laje é triplex No morro os moleques, o vapor É o Play 3 na golfera te sai, chanex É o ouro branco, o pó mágico e o poder de um Rolex Na favela, com fome, atrás dos Nike Air Max Os canela cinzenta que não tem nem cotonets Os MC das antiga é dinossauro T-Rex Pra fazer bobaginha cole ali com Jontex ¹ Graduando em Letras – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Email para contato: [email protected]

A produção de significados na música marginal de Criolo

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A produção de sentido na música marginal de Criolo

Weber Wagner R. Silva¹

Na oficina de estudos literários, que enfoca o estudo das diversidades socioculturais, somos levados a adotar uma perspectiva desapegada de estigmas pré-conceituais e que se aproximam da visada hermenêutica, procurando, para tanto, compreender o ser de maneira ontológica. Tendo em vista esse objetivo disciplinar, procederemos com uma abordagem que não pretende exaltar aspectos culturais dominantes, mas que busca compreender a forma pela qual o rap, o estilo de vida e o contexto social de criação da música de Criolo carregam de sentido as letras das canções deste artista, ou mestre de cerimônias (MC), como ele mesmo prefere ser chamado, fazendo com que elas concentrem o poder necessário para transcender as barreiras socioculturais e, assim, serem apreciadas e respeitadas em diversos meios.

Para iniciarmos nosso mergulho nas águas turvas da música marginal, revelo que a canção que me motivou a fazê-lo chama-se Grajauex do CD Nó na Orelha, uma referência e uma reverência ao distrito da zona sul de São Paulo onde Criolo nasceu e se criou. Acredito que a razão de meu estranhamento o que, portanto, me motiva a querer proceder com esta análise, provavelmente, resida no fato de a letra apresentar uma espécie de cacoete americanizado, perceptível com a expressão sistematizada do “ex” que poderia ser lido como estrangeirismo, como crítica, ironia ou antropofagismo. Para continuar, sem mais delongas, segue a letra da música tema deste trabalho:

Grajauex

The GrajauexDuas laje é triplexNo morro os moleques, o vapor

É o Play 3 na golfera te sai, chanexÉ o ouro branco, o pó mágico e o poder de um RolexNa favela, com fome, atrás dos Nike Air MaxOs canela cinzenta que não tem nem cotonetsOs MC das antiga é dinossauro T-RexPra fazer bobaginha cole ali com JontexPra zuar na rua com os cachorro é pex pexE as princesinha na nóia de um papel faz bo...

The GrajauexDuas laje é triplexNo morro os moleques, o vapor (2x)

Os irmão que tão com fome desce três marmitexSabão de côco não é Pompom com ProtexNo almoço o Sodex, meu advogado é o AlexE se jogo do bicho é contravenção, Mega Sena é ilusão pra colar com durexA responsa de chegar garante o seu retornex*The IporanguIX a connect co ex*Atrás de um verdix pra mandar por sedexZona sul é o universo e os vagabundo é belezexAqui eu não to de tricotex

¹ Graduando em Letras – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Email para contato: [email protected]

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E eu também não tô com medo irmãozexÉ, zona sul é o universo, filho, tá pagando de louco?

The GrajauexDuas laje é triplexNo morro os moleques, o vapor (2x)

(Criolo doido)

The GrajauexDuas laje é triplexNo morro os moleques, o vapor (2x)

A escolha da música e da perspectiva, dita hermenêutica, comunga significado com a proposta da Oficina na medida em que passa por uma negação da proposição de uma máxima que diz: “quem gosta de miséria é intelectual”; não pra dizer que não gosta, mas pra dizer que juízos de valor carregados de preconceitos, também não farão deste local mais ou menos apreciável, ou seja, é o que é. Desta forma, a música ao falar sobre o dia a dia da periferia não nega sua existência, contrapondo-se ao processo de invisibilização do sujeito das camadas mais externas da sociedade, como diz Hélio Flanders vocalista do grupo Vanguart em vídeo de entrevista no heliporto da Folha de São Paulo: “não dá pra você ouvir música que fica mentindo pra você, (...)não tem como você fingir que a vida é mais leve do que é”; endossa também ideologias presentes em músicas de grupos de referência como os Racionais mc’s em Hey Boy: “Isso tudo é verdade/Mas não tenha dó de mim/Por que esse é meu lugar/Mas eu o quero mesmo assim/Mesmo sendo o lado esquecido da cidade/E bode expiatório de toda e qualquer mediocridade”.

A criação de modelos e padrões relativiza a condição do ser humano, sem fornecer a ele os meios pelos quais possa, enfim, alcançá-los; sempre se quer o que não se pode ter, e assim vivemos num futuro que nunca chega, ou que quando chega já é passado e já se quer outras coisas. Vive-se num constante negligenciamento do presente, da realidade, ou seja, em alienação. Entendo que devemos procurar formas de melhorar nossas condições de vida, mas também percebo, que de certa forma, olhar para o modelo como um fim, fortalece quase que unicamente os meios que os sustentam e, ao mesmo tempo, nos oprime e reserva à marginalidade. A ostentação presente na música de Criolo passa de forma consciente por coisas mais tangíveis e próximas do morador da periferia, como a ideia de se bater mais uma laje na casa e expandir o ambiente presente no seguinte trecho: “Duas laje é tríplex”; constituindo assim um lugar onde se possa ter algum lazer em família. Tudo isso, sem deixar de fora o pensamento de ter que se trabalhar duro, como formigas operárias que mal podem descansar, construindo, quando possível, uma casa por toda a vida, aturando paredes sem reboco, enquanto o modelo, generalizado, exposto na televisão, numa realidade inconsistente, exibe os palacetes da “única” gente que, de maneira ideal, ”acontece”. Vemos na música de racionais em Vida Loca (Parte 2) a ostentação e a idealização do lugar americano de se morar no seguinte trecho: “E eu que... e eu que/Sempre quis com um lugar,/Gramado e limpo, assim, verde como o mar/Cercas brancas, uma seringueira com balança/(...)”; quando então é despertado para a realidade: “How... how Brown/Acorda sangue bom,/Aqui é capão redondo,

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tru/Não pokemón/Zona sul é o invés, é stress concentrado/Um coração ferido, por metro quadrado”.

À sua maneira o mestre de cerimônias organiza o caos da favela e nomeia aquilo, que quem está fora do contexto desta sociedade marginal, ao passar olhando de longe, não consegue ver, com isso possibilita que mesmo aqueles que estão no seu interior, mas que só veem o que dizem que é verdade, alienados, como os moradores da caverna de Platão, possam, através de sua obra, terem uma chance de, como o próprio Criolo diz no vídeo em entrevista a Hans Ulrich Obrish “se perceber no mundo”.

Ainda no refrão da canção Criolo fala dos moleques e do vapor. Certamente o rapper traz à tona a questão das drogas que são usadas na comunidade. Mas a ideia não fica só nesta questão, pois a construção da frase traz a máquina a vapor à sinestesia, uma “loco-motiva”, uma sensação de movimento, de transito constante, de vai-e-vem, que não deve ser compreendida apenas de uma forma negativa e pendente apenas para o consumo de drogas, mas também para o contexto de grande força, de grande massa batalhadora, que tem que sair todo dia de madrugada para sustentar a sua família e a da classe dominante, lembra também, em um contexto de guerra, daqueles que vão à luta na frente dos pelotões e que por isso irão morrer primeiro, sonhando ser um dia o comandante de suas tropas, a infância, o infante, a infantaria.

A impressão que se cria com o ritmo e o compasso da música é que o eu lírico da música está passando pela rua sem compromissos (de bobeira) e retratando a rotina da periferia, vê uns moleques conversando, com fome, e querendo um nike air max, o cara passando de Golf e pegando as menininhas, brincando (zuando) na rua com os cachorro “pex, pex”, a sexualidade aflorada e normal demonstrada com o uso da expressão “pra fazer bobaginha, cole ali com jontex” e ”as princesinhas na nóia de um papel faz bo...”.

A construção sonora é composta por sons graves caracterizando um ambiente pesado e, em certa medida, perigoso, de tempos em tempos ouve se o som de uma arma sendo engatilhada, esta sensação é reforçada no trecho: “a responsa de chegar garante seu retornex”. Criolo está o tempo todo opondo o seu mundo particular, o seu gheto, com o mundo modelar, ou perfeito, ou ideal, como podemos observar no trecho em que canta: “*The IporanguIX a connect co ex*/Atrás de um verdix pra mandar por sedex/Zona sul é o universo e os vagabundo é belezex”; pode até ser mera coincidência, mas ele praticamente faz uma menção direta ao seriado americano Um maluco no pedaço com o ator Will Smith. Este seriado conta história de Will (Will Smith) que devido a um problema com uma gangue da Filadélfia, onde morava, teve que ir para a casa de seu tio o Juiz Philip Banks (James Avery), negro, que mora no pedante e aristocrata bairro de Bel Air ("belezex") em Connecticut ("connect co ex*") e que por sua condição deve se esforçar sobremaneira para manter o respeito por sua família e seu status na sociedade local. Já Will faz o papel do malandro que apesar de seus trejeitos desclassificados se dá bem nas mais diversas situações em que é colocado, tudo isso sem perder a sua personalidade, o seu jeito de ser, superando sempre e sem esforço seu primo nerd e mauricinho, Carlton Banks (Afonso Ribeiro). De muitas maneiras o MC Criolo se encaixa no papel desse malandro que transcende a periferia e tem muito mais que a permissão, tem a “responsa” de chegar na Favela e garantir o seu retorno. O Cantor diz

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“Aqui eu não to de tricotex/ E eu também não tô com medo irmãozex” e finaliza curtindo o seu status construído com muitos anos de dedicação aos amigos e à vizinhança do bairro: “É, zona sul é o universo, filho, tá pagando de louco?”.

O mestre de cerimonias faz jus a seu apelido de "Criolo" sendo essa uma das formas do substantivo, uma espécie de contração do nome crioulo, ou pelo menos, a expressão do nome cria a sensação de o dizer não o dizendo. Assim, pode não dizer, mas diz: o crioulo, o negro, é aquele que trabalhou a duras penas na construção das bases de nossa sociedade e até hoje é aquele que constrói e lota os ônibus do subúrbio é aquele que vive a margem da sociedade. A mesma palavra, crioulo, numa outra interpretação diz de uma língua que é formada do caos e do contato de diversas outras línguas que num primeiro momento instala-se como pidgin e com a persistência e o nascimento e o crescimento de crianças nessas comunidades, tal qual o rapper que também nasceu e cresceu no distrito de Grajau, “gramaticalizam” o idioma deste gheto e nesse estado torna-se um “Criolo”.

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