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“A Pele”
À mulher do livro, no metrô de Bruxelas.
“Vocês trucidarão meu corpo com suas espadas.
Reduzirão minha carne e meus ossos a grãos de areia.
Mas apesar disso, meu espírito retornará num instante.
E eu respirarei como o homem que foi libertado do mal.”
Christopher Marlowe
-A Trágica História do Dr. Fausto, Ato V, cena II.
Alejandro Finzi
Sugestões para montagem:
-Deve-se dar atenção especial ao desenho sonoro proposto pelo texto.
-O horário, na fala de Ana, deve coincidir, aproximadamente, com o da
representação.
Essa luz difusa que entra pela janela quase fechada do quarto poderia ser
de outono.
Porem, o que realmente ilumina as duas camas, a arrumação inumana,
pulcra e asséptica do seu entorno, é o som regular e constante das vozes,
dos passos, dos ruídos, das modulações produzidas pela vida que ficaram
impregnadas na atmosfera deste hospital.
Walter e Ana entram no quarto. Ele caminha com muita dificuldade e traz
um binóculo pendurado no pescoço. Ela carrega um casaco.
Neste tipo de instituições existe a recomendação expressa de fazer
silêncio. Mas, em quê consiste esse silêncio? Ana e Walter sabem. Para
ambos o ambiente é absolutamente familiar, movimentam-se nele como
se estivessem num lugar conhecido.
Então, Walter vai até a janela.
Ana: Não, não! Fica quieto no seu lugar.
Walter: Quero abrir.
Ana: Agora não pode.
Walter: Agora pode.
Ana: Espera um pouco.
Walter: Espero nada. Vou abrir.
Ana: Deixa eu abrir. Assim, só um pouquinho.
Walter: Toda.
Ana: Toda não dá. Vai se sentar, vai.
Walter: Eu disse toda.
Ana: Senta nesta cadeira. Nessa sem encosto.
Walter: Você não quer abrir a janela para mim. (Quer avançar)
Ana: Você fica quieto aí. (Vai até a janela) Assim está bem?
Walter: Quero que fique toda aberta. (Senta-se) Aqui estou melhor.
Ana: Bom, já falaram para você. Desse jeito, tudo bem. Deixa eu te ajudar.
Vamos tirar essa roupa agora, e colocar esse camisolão que deixaram
aqui pronto para você usar. Depois pra cama, esperar pelo médico.
Walter: Sai da frente! Não dá para ver nada! Sai da janela! (Tenta se
levantar e tirar Ana da frente. Quase cai.)
Ana: Walter! (Percebendo que não pode gritar nesse lugar.) O que você
está fazendo? Você não entende que não pode?
Walter: Quero que a janela fique bem aberta e que ninguém fique na
minha frente. O outono está quase chegando. Quero ver os
pássaros atravessando o céu rumo ao rio.
Ana: Você vai ter tempo de sobra, Walter.
Walter: Acho que você já disse isso para mim!
Ana: Eu abro a janela, mas depois você vai tirar essa roupa e entrar na
cama. (Walter tenta novamente levantar-se. Desta vez consegue.)
Walter: Estou falando que eu posso sozinho! Sai da frente. (Chega até a
janela. Tenta abrir.) Sai! O que você está pensando? Eu posso, sim.
Claro que eu posso. Ah é, tem uma persiana. Mais nada. Olha isso,
a janela tem vidro duplo. Está grudado, não dá para mexer. Era só
o que faltava.
Ana: Volta.
Walter: Vai chover. Olha essas nuvens. Apreendi isso aqui dentro, Ana:
antes de chover, as nuvens ficam da mesma cor que a luz artificial
do hospital. É assim...
Ana: Agora vem deitar.
Walter: É a chuva. (Olhando pelo binóculo) O que estarão fazendo meus
patos lá no rio? Como estarão eles? Ah, eu os imagino esticando o
pescoço: “as nuvens por aqui e a tormenta por lá”. Esses são os
meus patos: “Cadê você Walter?” Eu estou aqui, estou aqui!
“Walter, levaram você outra vez?”.
Ana: Walter... o médico vai chegar.
Walter: Ah, o médico. Quem é ele desta vez?
Ana: Você sabe muito bem que não é um, são vários médicos.
Walter: Certo, é um pelotão. Quem é o médico chefe, o maior, quem?
Ana: Vamos, você sabe quem é. É o doutor Demorgongon.
Walter: Ele aceitou. O grande cirurgião austríaco aceitou.
Ana: É, e por causa disso agora vamos nos afastar da janela.
Walter: Devia ter vindo logo que chegou. Tenho que explicar tudo para
ele.
Ana: Chegou ontem à noite. Ninguém acreditava que aceitaria te operar.
Walter: Tenho que falar com ele imediatamente. Que venha já. (Só agora
deixa que Ana o conduza.) Primeiro eu tenho que explicar tudo pra
ele. Tem que saber por mim. Onde está ele?
Ana: Eu vi quando ele chegou no hospital. Me aproximei... todo mundo
sabia quem era eu, mas ninguém me apresentou a ele. Isso foi
quando te levaram ao laboratório para terminar os exames. Além do
mais, ninguém entende o que ele fala. Então, em agradecimento por
ele ter vindo te curar, agora você vai deixar tirar sua roupa e você vai
se enfiar nessa cama.
Walter: Não! O paletó, não! Como é...?
Ana: Fica quieto...
Walter: Como convenceram ele a vir? Talvez tenha sido naquela tarde em
que o doutor Demorgongon estava olhando pela janela da sua
clínica vienense...
Ana: Foi Walter, agora toma cuidado com os braços...
Walter: A clínica São Sulpício de Bremonte?
Ana: É Walter, o doutor Demorgongón é um dos maiores especialistas do
mundo. (Walter esconde um gemido)
Walter: Imaginemos a cena por um instante: Estamos em Viena, o Dr.
Demorgongón passeia nervoso, tenta ficar calmo olhando para o
remanso do Danúbio.
Ana: Olha o braço, Walter!
Walter: “Doutor Demorgongón?” “ Já?” “ Doutor é uma mensagem de
terras longínquas, da América do sul.” “ -Geben sie mir.” O Dr.
Demorgongón abre o envelope com um corta-papéis muito antigo,
sua folha é tão fina que ao cortar o papel fica retorcido como uma
flor. “- Get to the point!” Quando os especialistas internacionais
ficam entusiasmados, eles falam em inglês.
Ana: Fica quieto!
Walter “-Quem é o paciente?” “–Walter. Herr Doktor.” “ –Walter? Você
disse Walter?” O atendente faz que sim com a cabeça. “-Esse
homem sabe alguma coisa que ninguém nem imagina!”
Ana: Para de se mexer!
Walter: E aqui estou eu. Me larga, por favor. Não quero sua ajuda. Eu
consigo sozinho. Estou dizendo que não. Ana me deixa, quero ficar
só. Tenho que continuar com meus estudos, com minha pesquisa.
Vai cair um temporal. Como é que um bando de patos consegue
pressentir a chuva? Alguma vez você já se perguntou isso? O
bando está lá, voando, fazendo um desenho sobre o rio enquanto
espera a chuva cair, cada pato é uma linha desse desenho. Mas, o
que significa esse desenho? Talvez signifique para eles o mesmo do
que para a gente, quando vemos as nuvens se abraçando no céu.
Você sabia disso? (Tenta tirar o paletó por conta própria. A
dificuldade é enorme.)
Ana: Você não consegue, sozinho. O médico disse para...
Walter: Qual? Qual deles? Eu nem lembro mais os nomes deles. Não lembro
nem quem me operou pela primeira vez.
Ana: Foi o doutor Sebastian. (Ajudando Walter)
Walter: Quem? Quem era esse?
Ana: O doutor Sebastian. Como é que você não lembra? O oncologista.
Escuta, se você ficar quieto pelo menos um instante, eu vou poder te
ajudar.
Walter: O oncologista?
Ana: Eu e as crianças tínhamos esperanças. O doutor Sebastian é muito
respeitado. Ele nunca esqueceu de você. Ele gosta de você, gosta
muito de você. “Tenha confiança, senhora”. O encontrei na rua não
faz pouco tempo. “Como está se alimentando o seu marido? Tenha
fé, Ana, tenha fé”. Boa pessoa o doutor Sebastian. (Walter volta a se
queixar) Tudo bem?
Walter: Quanto tempo durou a operação? Depois chegaram à conclusão:
“Não, isto não é câncer”. “Mas vocês tinham afirmado...”
“Tínhamos afirmado” “Os exames de distonia neurovegetativa” “O
que será feito agora?” “Outra operação?” Quanto tempo durou?
Ana?!
Ana: Para que você quer saber?
Walter: Olha, Ana! (Descobrindo algo com seu binóculo.) Ana, olha, é
extraordinário! Você consegue enxergar? Olha, está quase
chovendo, os patos de peito listrado estão chegando e eu ainda
aqui... lá vão eles, lá, lá... olha, eles de novo, o peito listrado em
cores escuras, trazendo um sorriso no bico, olha eles, Ana. (Tem um
terrível ataque de tosse.) Ana, me dá a minha caderneta! Ana! A
minha caderneta!
Ana: A sua caderneta?
Walter: Sim, me dá. Tenho que fazer umas anotações agora. Cadê?
Ana: Ah sim, a sua caderneta. Ela está aí do outro lado, Walter. Do outro
lado da cama, entre a minha bolsa e o meu casaco.
Walter: Preciso dela agora!
Ana: Sim, está certo. Mas espera um pouco. Fica sossegado.
Walter: Você viu eles?
Ana: Claro que vi. Esta vai ser a sua última operação Walter. O doutor
Demorgongón é um grande especialista. Isso quer dizer que você vai
ter todo o tempo do mundo para estudar os seus patos. (Ele sofre um
novo ataque de tosse.)
Walter: Quando tocam a superfície, os patos de peito listrado, inclinam a
pata esquerda num angulo de 17 graus em relação à direita. Falta
verificar o angulo dos patos de peito claro. (Ana consegue tirar seu
o paletó.) Os patos de peito cor de caramelo têm um índice de
rotação de... (Ele tem outro terrível ataque de tosse. Ana se
precipita, lhe dá um lenço. Walter, desesperado, pega e o coloca
na boca.)
Ana: Dá para mim.
Walter: Não. Deixa, está todo manchado. Vou jogar fora.
Ana: Não tem importância. Já estou acostumada. Dá para mim. (Joga fora
o lenço.) Agora vamos deitar.
Walter: Eu pedi uma coisa para você. Dá e depois me deixa só.
Ana: Tudo bem. Primeiro você deita e depois eu te dou a caderneta.
Walter: Eu quero a caderneta agora.
Ana: Só quando você deitar na cama. Você está entendendo? Olha,
você tem de melhorar a sua postura. Não pode ficar desse jeito. Os
seus movimentos devem ser contínuos, e não do jeito que você quiser.
Walter: Isso você aprendeu com quem? Com o quinto médico que me
operou, foi? É, desse eu lembro, foi o doutor Soudron. Ele se
chamava Soudron, não é?
“–Senhor Walter, esta intervenção que estamos prestes a fazer
representa um enorme avanço em relação às anteriores. Eu preciso
de sua total confiança. Você também concorda conosco e sabe
que seu caso é difícil, esquisito. Porém agora, com esta nova
cirurgia estamos dando um passo adiante, temos esperança...” –
Esperança? “-Muita esperança. Mesmo enfrentando uma doença
que é de origem desconhecida...” De origem desconhecida,
doutor? Como é que o senhor pode afirmar isso, como é que os
médicos que me operaram antes do senhor podem afirmar que
desconhecem a origem, se eu já falei como tudo começou? Por
que vocês não querem me ouvir?
Ana: Walter, os resultados dos exames são contraditórios.
Walter: “-Diletos colegas, vocês foram convocados para tratar de um caso
inédito na história da Medicina. Vejam estes exames, não dá para
acreditar. Porem é verdade, o paciente está ali. Ele foi trazido ao
hospital e prontamente isolado. Por enquanto, a sua mulher pode
lhe fazer companhia, mas é só por enquanto. Trata-se de uma
grave miastenia grave necrosante? É muito provável, mas não
existe um único precedente sequer. Nenhum caso desse tipo foi
detectado até hoje.” (Tosse catarrosa.) Dr. Soudrón, senhores
médicos, deixem-me explicar, é muito simples, eu sei como tudo
começou. Vocês, que me levaram de uma sala de operações para
outra, que descartaram inúmeras doenças, ainda teimam em não
querer entender! “-Não é mais conveniente que a esposa do Sr.
Walter continue acompanhando-o. Isolamento total.” –Ana?
Ana: Eu estou aqui, ao seu lado. Fica quieto, para de falar senão a tosse
volta.
Walter: (Descobre algo na janela e pega novamente no binóculo.) Um
pequeno bando de patos-reais! Não acredito. Veja só, estão
fugindo da tempestade. É uma maravilha, Ana. Você está
entendendo o que isso significa? Você leu o que eu tinha escrito na
caderneta? Os adem, ou patos-reais, ou anas boschas, estão em
fase de extinção. Mas, olha eles aí. Seus olhinhos quase fechados
ainda devem ver a imagem da lagoa.
Ana: Pára, fica quieto!
Walter: Agora me dá a caderneta! Ainda tenho que fazer algumas
anotações!
Ana: Primeiro tira os sapatos, depois te dou a caderneta.
Walter: Tenho que mudar de quarto, é impossível ficar aqui. Preciso de um
quarto com janela que dê para abrir.
Ana: Isso é impossível. Você sabe... Isolamento, afastamento, contato
restrito.
Walter: Os patos-reais... em vias de extinção? Os patos não têm como
saber onde fica essa lagoa. Quando a espécie fica reduzida, eles
vão perdendo as defesas. Deve ser deöag#r. O sentido de
orientação cria um pequeno buraco negro no tecido da córnea e
o ar, ao bater nele, faz barulho: drum, drum. Você está ouvindo?
(Novo ataque de tosse. Ana lhe dá um novo lenço que voltará a
converter-se num outro trapo repugnante.)
Ana: Você tem que obedecer.
Walter: Quando é que isto vai acabar, doutor Soudron? Por que não
querem me falar o que eu tenho? “-Por enquanto, não temos
resposta.” O que vai acontecer comigo?
Ana: É melhor você entrar na cama e calar essa boca.
Walter: O senhor não me respondeu, doutor Soudron. “-Veja você, no caso
de ser encontrada a etiologia da doença...” A etiologia, doutor?
Por que é que vocês não querem me escutar? Eu já disse como
tudo começou! “-Você já disse...?” Quantas vezgs(ká fui operado ?
Perdi a conta, esqueci quantas vezes foram. Quer dizer, não
esqueci, acontece que não consigo suportar a dor. Essa dor que
não se resolve nem com calmantes, nem com soníferos. Por que
vocês acham que a dor é uma moeda? Por que ninguém me
ajuda?
Ana: Todos estão ajudando. Todos, estamos enfrentando esta situação,
Walter.
Walter: Não é 6erEade! Cadê o Dr. Demorgongon, eu quero falar com ele!
Ana: Se você continuar gritando, a tosse vai voltar. O Dr. Demorgongon
está numa junta médica. Eles estão deixando tudo pronto...
Walter: Ele vai entender, ele vai me ouvir! Ana me dá a caderneta. Preciso
dela. Além do mais, ainda tenho que fazer umas anotações sobre
os patos de pescoço preto e peito de penas furta-cor.
Ana: Primeiro, você fica quieto para eu poder tirar as suas calças. Isso.
Walter: Se você não me dá a caderneta pode ir embora. Não preciso mais
de você!
Ana: Antes, tire as calças.
Walter: Ñua,to tempo falta?
Ana: Falta pouco. Quando você era levado pelo corredor passou o Dr.
Ponfil, você nem percebeu.
Walter: O que é que ele queria? Que operação ele fez, a número onze?
Ana: Ele me cumprimentou.
Walter: Ele é muito amável. E o que mais? O que é que ele falou?
Ana: Ele estava com pressa.
Walter: Eu lembro que a única coisa que consegui falar, antes de entrar na
sala de operações foi: Dr. Ponfil, deixa eu lhe explicar como tudo
começou? Ele deu um sorriso. Nunca consegui esquecer esse
sorriso. Parecia estar dizendo: “Não seja besta, o que é que você
acha que pode explicar para mim?” Eu quis falar porem a
anestesia não deixou. “Dr. esta vai ser a última operação?” Eu acho
que ele compreendeu, porque o seu sorriso pendurado no lábio
inferior, parecendo um aviso de vende-se, estava dizendo:
“Estamos descobrindo o que você tem. A ciência ganhou a
batalha, novamente”. E olha eu aqui.
Ana: Walter, eles continuam pesquisando. O seu caso é raro. Os médicos
não deixaram de trabalhar para você um dia sequer.
Walter: Não, eles não trabalham para mim.
Ana: (Terminando de tirar-lhe as calças) Pronto.
Walter: Agora você me dá a caderneta.
Ana: Agora a camisa.
Walter: Eu posso sozinho.
Ana: É você pode sozinho, mas eu sou a sua mulher e estou aqui agora. Eu
ajudo. (Ele tem outro ataque de tosse. Ana é atingida pela saliva
purulenta.)
Walter: Você sabe se já está contaminada?
Ana: Eu estou bem. Isso não tem importância. Dá para você me ouvir? Eu
estou bem, estou ótima. Não tenho nada. (Walter vai até Ana,
procura nas suas costas tentando perceber algo. Depois de um
instante, Ana se afasta dele.) Estou dizendo que não tenho nada.
Estou ótima, como sempre.
Walter: Quem garante? Quem? Ninguém.
Ana: Walter, eu também fiz exame no laboratório, fui a todas as consultas,
fui aos conselhos médicos. Eu também0n£g lembro quando comecei
a fazer todo tipo de análise. Eu estou bem. Não tenho absolutamente
nada.
Walter: Eles não sabem de nada! Quando é que chegam?
Ana: Estão quase chegando, já.
Walter: E o Dr. Demorgongon?
Ana: Deve estar chegando. Ele deve estar saindo da ala de cirurGiá>
Devem ter acabado os preparativos. Ele deve estar vindo para cá.
Walter: Você está ouvindo?
Ana: O que?
Walter: Olha! (Volta a pegar no binóculo) Eu nunca me enganei. É o
chamado do pato de pescoço preto. Está ouvindo? Esse grasnido
avisa quando chega a tempestade. Porem, ninguém consegue
entender como é que os patos se orientam ao atravessar a música
dos trovões. O que aconteceria se eu dissesse a você que o pato
de pescoço preto possui uma variedade ainda não estudada de
penas cor de melancia?
Ana: Eu acreditaria. Mas, para de caminhar, não estou conseguindo tirar as
suas calças.
Walter: A caderneta.
Ana: Sim, a caderneta. Suas calças vão ficar aqui. Agora vamos tirar a
camisa. Eu disse a camisa. (Ela tenta tirar-lhe a camisa, mas não
consegue. Ele se queixa muito quando movimenta os braços, a dor é
insuportável.) Devagar. Devagar.
Walter: Ana, não consigo.
Ana: É melhor rasgar.
Walter: Não. Rasgar, não.
Ana: Vou precisar pefiz!ajuda. Walter me escuta, por favor, sim? Quanto
tempo eu vou ter de ficar atrás de você com a roupa na mão? Quero
que você me escute que preste atenção, muita atenção. A gente
não está aqui para brincar. Eu não estou aqui brincando. Eu estou
aqui lutando por você o tempo todo. Eu também não sei quanto
tempo faz que isto começou. E você não quer colaborar, assim tudo
fica mais difícil. Você está me escutando?
Walter: Sempre. Você está cansada? Não é? Viu? Você está entendendo
agora? É um silencio parecido com o seu. É o mesmo tipo de
pergunta que o pequeno bando de patos-reais se faz. Eles se
perguntam, uns aos outros, por que estamos perdendo a
necessidade de raspirar?
Ana: Então é para pedir ajuda?
Walter: Para qual doUtïb? Não, pode deixar. Deito assim mesmo.
Ana: Eles disseram para por “o camisolão”.
Walter: E eu digo, que vou por “a minha camisa”. Eu sei o que eles
disseram. A cada operação eles repetem a mesma coisa. Estou
cansado de saber. Eu fico com a minha camisa. Não agüento mais,
Ana!
Ana: Esta será a última operação, você vai ver. O Dr. Demorgongon veio
finalmente, Walter. O próprio! Você está entendendo o que isso
significa? A maior autoridade no assunto aceitou te operar. Dizem que
é o maior, o mais importante renovador da medicina moderna, o
melhor que existe em cirurgia. Chegou de Viena, cruzou o oceano,
Walter.
Walter: Me deixa! Não! Os binóculos são meus! Olha.
Ana: O que? Não vejo nada.
Walter: Por favor, Ana. Fiquei esses anos todos ensinando para agora você
não ver nada? Olha ali, no clarão da tempestade que desaparece
ao longe: o adem, um pequeno bando de patos-reais com as
pontas das asas enegrecidas...
Ana: Onde? (Walter indica que olhe pelo binóculo.) Não vejo nada.
Walter: Que eu tentei, tentei. Todo mundo é testemunha. Mas, quando não
há interesse, quando não existe vontade. Como é que você não
consegue distinguir um único tipo de pato, mulher?!
Ana: Pára! Você está ficando agitado. Eu gosto dos patos.
Walter: Gosta nada! (Indo deitar na cama) Agora, me dá a caderneta, por
favor.
Ana: Olha, Walter! Olha a janela, olha o bando. Quantos patos, Walter.
Que lindo!
Walter: Do que você está falando? Esses não são patos, são gansos. Pelo
amor de Deus, você ainda não conseguiu apreender a diferença
entre pato e ganso!
Ana: Eu não sabia...
Walter: A caderneta. (Tem um novo ataque de tosse) A caderneta! O que
é que está acontecendo? Me dá! Me dá a caderneta!
Ana: Walter, por favor...
Walter: Então?
Ana: Não está comigo! (A tosse aumenta. Walter não tem mais lenços, usa
as mãos para limpar-se.)
Walter: Como é que é?
Ana: Não está comigo. Não está aqui. Você consegue me ouvir?
Walter: Sim, ainda consigo. Então, estou ouvindo.
Ana: Acho que ficou no laboratório. Foi lá, tenho certeza. É isso, ficou no
laboratório. Foi quando te levaram da sala de observação para a
primeira UTI Agora estou lembrando, Walter, eu me lembro que
quando te levaram você tinha o livro no colo. E quando os
enfermeiros saíram do elevador, o livro ainda!e÷tava com você.
Depois começaram os exames, foram sete horas de exames, testes e
análises. Depois, novamente os enfermeiros, o elevador, a primeira UTI
Aí, o livro já tinha desaparecido, você estava dormindo por causa dos
remédios. Foi justamente na UTI que eu percebi. Você deve ter
esquecido a caderneta no laboratório. Depois chegamos aqui,
Walter. Porem, eu acredito, tenho certeza que a caderneta ficou lá
no laboratório...
Walter: Vai embora.
Ana: Walter!
Walter: Vai embora, eu disse.
Ana: Eu estava pensando em ir depois. Quando o Dr. Demorgongon tivesse
chegado, aproveitar justamente o momento e...
Walter: Estou falando: não quero ver você! O que é que você está falando,
o que é eu estou falando? Esse é jeito da gente se comunicar? É
jeito? Serve para alguma coisa? Dá o fora daqui! Já não preciso de
você! Nunca precisei. Dá o fora daqui! Não agüento mais. Não
quero ver você nunca mais!!
Ana: Escuta, Walter, não há de ser nada, a caderneta ficou lá no
laboratório.
Walter: Dá o fora daqui. (Ana procura pelo seu casaco e sua bolsa.
Começa ir embora, pega na maçaneta, está abrindo a porta.)
Walter: Não vai embora, Ana. Vêm Ana, não me deixe. (Ana recua, gira e
deixa os seus pertences onde estavam.) Ana? Eu quero transar.
(Ana, rápida, volta a pegar seu casaco e sua bolsa. Está quase indo
embora quando é detida por um novo e feroz ataque de tosse de
Walter, desta vez, terrível e comprido que a faz desistir.) Tudo bem,
já passou. Ana? Eu quero transar, Ana.
Ana: Não dá, Walter.
Walter: Quantas operações já me fizeram?
Ana: O Dr. Demorgongon veio para...
Walter: Quer dizer então que também devo perder a capacidade de fazer
o amor? Não sei até quando vou conseguir me mexer! Não quero
que me operem mais, Ana.
Ana: Tenho medo. Eu também tenho medo. O que somos nos? O que foi o
que a gente virou?
Walter: O que foi o que eu virei?
Ana: Você e eu: nós. Quando, na nossa vida, íamos imaginar isto? Quem
era capaz de imaginar isto? Por que, comigo?
Walter: Por que, com você? Por que, comigo?
Ana: Porque ninguém, nenhum médico, sabe de nada. Agora vem esse
Demorgongon com seus códigos genéticos. No instante em que eles
olham para você, também estão olhando com piedade para mim.
Também é meu este lugar, este hospital, esta prisão, este isolamento.
O que está sendo estudado por eles, racionalizado, procurado,
transforma-se num verme que exala lentamente sua baba viscosa.
Você a toca, você a vê, mas não pode movimentar-se; te restam
apenas os olhos, os meus olhos. O Dr. Demorgongon também tem
olhos, mas são diferentes. Tem íris de aço; eu vi suas mãos, são finas,
precisas. Por que não se começou por ele? Por que ele não foi
procurado primeiro, aquele que sabe mais, o mais estudioso, o
melhor? Mexer os olhos, olhar eo0pedor...
Walter: Ana.
Ana: Quanto tempo passou? Não sei, não. Eu cheguei perto dele, mas
ninguém quis apresentá-lo para mim. Nesse momento lembrei das três
palavras em alemão que tinha apreendido com meu namorado da
época em que eu ainda trabalhava. Fui chegando devagar;
lembrando as palavras, arranjando-as como um novo idioma para
poder falar com ele. Eram três palavras combinadas de tal maneira
que deveriam disser: “Dr. Demorgongon, não dê ouvidos a eles,
doutor; foram eles que operaram e fracassaram. Me escute, eu sou
Ana, a esposa do Walter. Eu preciso de uma palavra sua, largue esses
médicos e olhe para mim...”
Walter: Ana, o Dr. Demorgongon vai chegar...
Ana: “...Por quê? Em que consiste esta doença afinal, o que vai acontecer
conosco? Você, que veio de tão longe, que aceitou curar o meu
esposo, saiba que o Walter deve ficar bom, sarar, ficar bom para
poder voltar para casa...” Eram três palavras criando um novo idioma,
três palavras que serviam para que ele me escutasse... ich liebe dich.
Walter: Ich liebe dich?
Ana: E eu me aproximei olhando aqueles médicos que teimavam em me
ignorar. Eles conseguiram levá-lo para outro canto do laboratório. Eu
fui atrás deles e antes de entrarem na sala de isolamento radioativo
me aproximei o s5fiBiente para poder dizer...
Walter: Ich liebe dich.
Ana: Será que ele ouviu? Walter. Eu só queria que ele prestasse atenção
em mim. Que ele percebesse com o som dessas palavras, que ali
havia alguém que tinha algo urgente para falar. Mas, eu não sei se
ele percebeu, ele girou a cabeça e numa fração de segundo seus
olhos metálicos viram, por um instante apenas, quem estava falando.
“Doutor!”
Walter: Mas Ana! Ich liebe dich? Ich liebe dich quer dizer pato branco da
Sibéria.
Ana: Então, a janelinha de vidro esfumaçado di Pkrta de vai-e-vem ficou
tremendo de frio. Eu posso falar com o Dr. Demorgongon? “Senhora
vai embora, por favor. Ninguém pode ficar aqui!”
Walter: Quem falou isso?
Ana: Não sei. Acho que era uma mwl`dr de branco que entrava ou saía.
Não sei.
Walter: Ana vem aqui. Olhe seus cabelos. Ficaram sujos.
Ana: Meus cabelos? Parece como se a gente sempre tivesse morado aqui,
não é? Aqui tudo some: os dias, os meses. É como a tempestade
chegando, escuta. Como a chuva de outono, colo¤fazer companhia
um para o outro, igual a essa tempestade que se forma sem nunca
cair. É esperar. Esperar. O cabelo cresce, as unhas dos pés ficam
tortas, as articulações com artrite, e todos os dias o amanhecer muda
teu coração numa canção triste. Onde estou?
Walter: Vamos Ana, vem.
Ana: Quero viajar depois que isto acabar. Eu quero que a gente faça uma
viagem. Quero achar um lugar para ir. Deixar tudo isto aqui e partir.
Walter: Você lembra das dunas, Ana?
Ana: Faz quanto tempo já? Vinte e oito? Estamos casados há vinte e oito
anos? Quantas vezes a gente voltou lá, nas dunas? Três. Três vezes em
vinte e oito anos. O amor é feito de ciclos, mas os ciclos são
compridos, dependem da chegada do vento. E nunca sabemos
quando ele vai!cìegar. Enquanto dura o ciclo acreditamos que
conseguiremos cuidar de alguém, ter filhos, possuir algo, mesmo que
seja miserável. Porém, uma manhã você descobre seus filhos fugindo,
porque a lua cheia é uma mentira que ficou aí pendurada enquanto
cuidavas dos sonhos deles. E o que ficou para você?
Eu queria fazer uma viagem. Uma viagem longa, para onde ninguém me
conheça, e que alguém venha e me diga: “Ana, que dia foi esse em
que você começou a viver?”. E eu possa olhar para minhas mãos,
mostrando-as, ficar com a boca semi-aberta, sem falar uma palavra,
podendo exibir todos meus dentes. Como é que a gente apreende a
respirar? Você se perguntou alguma vez como é que a gente
apreende a respirar? Os patos contaram para você. Para mim,
ninguém contou. Eu descobri através dos sonhos. Descobri quando te
vi dormir, porque a tua sobrancelha direita contra o travesseiro,
parecia uma aranha esticando as patas na escuridão. Sempre pensei
nisso. Mas também, não é assim. Quando você sai caminhando para
ir ao trabalho, é como se você estivesses no fundo do mar.
Respirando, sempre respirando, porque é o melhor jeito de se
esconder, porque ninguém fala, só respira. A única coisa que temos
para trocar com os outros, é a respiração. As palavras, o que é
falado, só servem para interromper a conversação. Eu respiro, você
respira; desse jeito eu te escuto. Eu queria falar com o doutor
Demorgongon, eu tinha essas três palavras. Walter será que ele
escutou como eu respiro?
Walter: Vem cá.
Ana: Qual será o resultado dos exames agora?
Walter: Esquece.
Ana: Eles vão chegar.
Walter: É, mas enquanto isso...
Ana: Não, enquanto isso, nada. (Vai até a janela) Eu vou ficar por aqui. Eu
espero por você aqui. Depois a gente vai embora. Depois a gente sai.
Quem são eles? Você os conhece? Não. Você olhou bem? Não sei,
talvez.. Como eles se chamam? Quando se conheceram? Parece
que foi agora. Não é possível. Será uma coincidência, talvez? “Vocês
ai, estão indo... para onde?”. Daqui a pouco vai chover. É sempre
assim a gente viaja e chove, chove e viaja. Aí ficamos na frente de
um vidro que faz desenhos, e esses desenhos mudam o perfil da tua
cara, da maçã do rosto, das sobrancelhas, da inclinação da fronte.
Do outro lado do vidro tudo passa depressa, rapidamente, de tal
forma que para que as coisas, as pequenas coisas com as que
convivemos, ou mesmo alguém se detenha, a gente tem de
esquecer o nome delas. –Você vem de onde, Ana? –Eu? Não sei. –
Você vem do trabalho! Quem espera por você? Quem está
esperando você chegar? Você entrar? Quem está lá dentro? –Não
sei. –Como é que você não sabe?
Walter: Sou eu.
Ana: -Como é que você não sabe? –O que está acontecendo com
Walter? -Walter não está aqui. –Não está? –Não.
Walter: Ana!
Ana: A gente anda, vai pela praia. Estamos separados, estamos longe um
de outro. –Não caminhes tão depressa, estou afundando! –Me dá tua
mão, Ana! –Não consigo acompanhar você! Essas luzes que se
alongam na areia, essas luzes são úmidas, deixam na língua umas
partículas de areia. Muda o sabor dos lábios. É um sabor diferente
cada vez que procuro por você. Onde posso ir, antes..? Onde posso ir
antes que chegue a água? Essa água gelada que vai tomando a
forma de um lugar tão pequeno onde mal cabem dois, apenas dois...
(Walter vai levantando da cama, tenta novamente tirar a camisa).
...até que aquela forma... O que é isso? É um ponto cálido. Está em
você, está em mim? É um ponto cálido que vai partir porem fica, que
está indo porem permanece, mas ele vai, vai me levando. Quem é
você? Não faço idéia. A pele te toca porque as ondas mordem a
praia, eu não sou uma ostra, não, não sou uma ostra, eu deixo o
buraquinho me deixar, o buraquinho grita, não sabe que tem sede. Os
sedentos nunca se afogam, nunca. (Ana se cala, Walter tira a camisa
com um gemido subumano e mostra sua deformidade. Eles se
aproximam, procuram encontrar-se, tocar-se, reconhecer-se
sexualmente. Essa procura mutua ainda conserva o rubor e a
vergonha mutilada imposta pela dificuldade física que a situação os
faz compartilhar. Lentidão amorosa esta, a dos velhos amigos, a dos
velhos conhecidos. Momentos depois, ainda abraçados, Ana lança
um grito de horror: surgiu uma ferida nas costas de Walter. Ela sai do
quarto.)
Ajuda! Socorro! Ajuda!
Walter: (Reage com tranqüilidade, está acostumado a curar suas feridas.
Olha para a desordem em torno dele, volta a pendurar os binóculos
no pescoço.) Boa noite. (Para o público) Insisto que é preciso
entender como começou esta história toda. Está parecendo que é
uma pretensão excessiva da minha parte querer ser ouvido pelos
médicos que participaram do meu caso. Vejamos, faz pouco
tempo que eu me aposentei, e com a aposentadoria chegaram os
dias de maior disponibilidade de tempo. É uma bobagem absoluta
que esta possibilidade de ócio chegue justamente numa idade
como a minha. Porem, como já afirmara esse santo homem que foi
Giordano Bruno, tudo indica que o mundo sempre muda para que
as coisas continuem justamente do mesmo jeito. (Ouvem-se trovões
anunciando a tempestade, a chuva está próxima.) Vocês estão
ouvindo, também? É a chuva. Vai chover. (Confirma olhando pela
janela.) É a chuva. Bom, com essa fartura de tempo na minha
frente consegui redescobrir o meu velho interesse pelos patos,
enquanto passeava sem rumo algum pela beira do rio, sim daquele
rio que todo mundo conhece. Falo de velho interesse porque
quando criança o meu pai, que trabalhava no correio, falava para
mim das grandes viagens que faziam esses pássaros. Eram viagens
cheias de perigo. Mais ainda: quando meu pai, que nunca tinha
viajado na sua vida, me levava com ele para entregar as cartas,
ele mostrava os selos e me explicava a sua teoria caminhando
perto do rio. Era uma teoria realmente curiosa, ele afirmava que as
cores que embelezavam os selos dos países distantes provinham
das asas dos patos; que estavam grudadas nelas.
Muito bem.
Já está chovendo, não é?
Quando me aposentei compreendi que o divertimento do meu pai
carteiro, que muito provavelmente também fora herdado por ele,
tinha sido preservado por mim sem que ao menos eu o tivesse
percebido. Não deixa de ser interessante essa lembrança. Olhar os
patos na margem e ver que com apenas um movimento simétrico
das suas asas e patas conseguiam que a água refletisse a vida
imóvel ao seu redor. Volto a vê-los depois de tantos anos passados,
e o que descubro? Descubro que depois do movimento simétrico,
os patos com um gesto quase imperceptível, turvam as águas. Tudo
o que está refletido se movimenta também, imperceptivelmente. O
que é que eu tinha descoberto entre um movimento e outro? É
muito simples, tinha descoberto o tempo. Ouçam, é a chuva.
Os patos estavam lá, no rio. Eu comecei a observá-los de novo, na
água cinzenta do entardecer. Esse obstinado exercício de
observação foi-se transformando num livro: Guia dos Patos da
República. É um volumoso exemplar do qual sou autor. Tenho
publicado nele uma descoberta que vai abalar a comunidade
científica internacional. (O som de um trovão sacode o céu. Ouve-
se depois a chuva cair, suavemente no início.)
Puxa!
Todas as tardes eu sentava num banco em frente ao rio. (Começa
a trocar os móveis de lugar para montar o seu banco frente ao rio.)
Ficava escrevendo o livro. É uma pena que por causa de tudo o
que está acontecendo, nesse momento não o tenha aqui. Acredito
que representa um aporte ao estudo de novos elementos sobre o
vôo dos pássaros. (Fica incrivelmente ágil nos seus movimentos.)
Podemos afirmar, em linhas gerais, que o pato possui uma
propulsão idêntica à de um aeroplano. Começou à chover, mas
não tem importância. (Procura proteger-se da chuva que cai agora
com maior violência. Encontra uns lençóis para cobrir-se.) Outro
assunto importante é a época do ano em que os patos costumam
mudar de plumagem. No meu livro vocês vão encontrar algumas
informações sobre isso.
Está chovendo forte, não?
Nenhum médico dentre os que me operaram, nenhum deles, quis
simplesmente entender como isto começou. Quero crer que a fina
sensibilidade do doutor Demorgongon, seu reconhecido critério,
seu alto profissionalismo o façam escutar-me. Numa dessas tardes
em que eu estava sentado no meu banco fazendo as minhas
anotações, e não chovia, não, acabei por me machucar aqui. Foi
alguma coisa, uma pequena lasca enferrujada e pontuda
atravessando a minha camisa, foi nesse banco esquecido pelos
enamorados, sumido na solidão da intempérie. Apareceu uma
pequena ferida, era tão pequena que pensei que em poucos dias
ia cicatrizar e desaparecer sozinha. Mas, não.
Olhem, reparem nas gotas de chuva na margem do rio. Cada gota
de chuva reproduz a cavidade ocular durante a travessia, apesar
de que eu mesmo, eu Walter, eu nunca fiz nenhuma travessia. Só
viajo de um hospital a outro e cada vez que eles dizem que vão
tratar do fio de sangre que ficou desenhado nas minhas costas, ele
cresce.
Então, eu falo para mim mesmo, afirmo que todos esses
instrumentos com que me operam não servem para nada, porque
eles também enferrujam, é oxido que os médicos acumulam nas
suas luvas o que lhes dificulta a higiene das orelhas.
A primeira coisa que vou fazer quando sair daqui e veja meu livro
publicado será enviar uma carta ao estudioso João Mendes
Pedrinho de Manaus. Ele é autor de um memorável estudo sobre o
ritual de acasalamento e o desenvolvimento da plumagem dos
patos da espécie cairina, conhecida também como pato-do-
mato. Como vocês podem perceber eu não estou me
preocupando com a repercussão que provocará o meu
descobrimento nas cátedras do mundo inteiro. Por isso, nada de
afobação, deixem que os historiadores apontem quem é quem na
História da Ornitologia Contemporânea. Saibam apenas, que se
trata de um descobrimento extraordinário. (Procura por algo para
proteger-se da chuva.)
Ana não vai voltar com esta chuva.
Dá para ver a chuva sobre o rio? Parece um telegrafo em tempos
de paz: escreve letras que na distancia se organizam numa única
palavra, na palavra que cada um precisa ouvir. (Protegendo-se da
chuva.) Sim, realmente. Essa descoberta é minha, doutor
Demorgongon. Mas, não me pergunte em que consiste, leia o meu
livro.
O que eu vou dizer agora vocês não ouviram em lugar nenhum,
vocês leram nas páginas de um livro. No livro escrito por mim. Não
preciso mais de testemunhas para minhas descobertas. A ciência
ornitológica afirma... (O barulho da chuva para de repente, Walter
interrompe-se, Ana vestida de enfermeira acaba de entrar no
quarto.) Ana!
Ana: Como é que é?
Walter: Você voltou, Ana! Olha, consegui sozinho...
Ana: Do que você está falando? Eu sou a enfermeira Ana. A enfermeira
Ana. Não, Ana!
Walter: Mas...
Ana: O que é que o senhor está fazendo no meio dessa bagunça, de pé e
vestido desse jeito?
Walter: Acontece que...
Ana: O que é que está acontecendo aqui? O que é isso? Olhe para isso!
Vamos, mexa-se um pouco que estou com pressa!
Walter: O que é isso, Ana? O que é que está acontecendo com você?
Ana: Enfermeira, Ana! Agora chega de cerimônias, tire esses trapos sujos e
coloque essa camisola!
Walter: Mas acontece que... eu tenho...de ir...
Ana: Onde é que o senhor acha que vai, me diga. Faça-me o favor! O
senhor acabou de morrer na sala de operações, às vinte e duas
horas, dezessete minutos e cinqüenta e nove segundos!
Walter: Eu estou morto?
Ana: É isso ai, o senhor está morto. Agora, por favor, tire tudo, queira despir-
se rápido, sim?
Walter: Mas, e o doutor Demorgon?
Ana: O doutor Demorgongon, essa é boa! Lá vai o seu doutor
Demorgongon! Venha comigo e olhe pela janela. Vamos, venha e
olhe. Está vendo? Está vendo aquele avião lá? Lá vai o seu doutor.
Subiu no avião às esconsas, não queria que ninguém soubesse do
fracasso da operação. Lá vai ele, lá vai o grande especialista, o
grande médico de fama internacional. Ele, o maior, fracassou de
forma estrepitosa, não conseguiu fazer nada após nove horas de
quirófano. Foi uma vergonha, um papelão. Olhe, olhe direito...
Walter: Isso não é um avião, não! Isso é um pato. Um pato do Danúbio! Um
pato que voa mesmo na chuva. Voa acobertado pela escuridão
da noite, até o outro lado do oceano!
Ana: Volte já para a cama!
Walter: Cadê a minha caderneta, Ana?
Ana: Sua o que? A sua caderneta?
Walter: Tinha ficado lá no laboratório de analises.
Ana: No laboratório, uma caderneta?
Walter: O meu “Guia dos Patos da República”!
Ana: Do que é que o senhor está falando?
Walter: Da caderneta de anotações para o livro, Ana!
Ana: Um livro. Que livro? Eu vi sair a moça da limpeza do outro turno.O
senhor disse um livro? Ou um caderninho? Um caderninho de folhas
manchadas e com a capa quase caindo? É isso? (Walter não
responde) De que livro o senhor está falando? Era sobre o que? A
moça levava o saco de lixo numa mão e na outra o esfregão e a
garrafa com desinfetante. Um caderninho? É isso que o senhor está
procurando? Olha, o que ninguém reclama fica... Fica onde fica, eu
ao sei onde fica. É tudo guardado, não, não é bem guardado. É tudo
jogado, não, também não é jogado. Pois é, vai saber onde fica o que
deixam jogado por ali? Vai saber. Vamos moço, tire tudo isso.
Walter: Eu quero ficar aqui.
Ana: Não pode.
Walter: Quero ficar aqui, na janela. Quero ver.
Ana: Ver o que? A chuva deixou o vidro todo embaçado.
Walter: Deixe-me ficar.
Ana: Não posso. Tenho muito que fazer. Sua esposa está lá fora esperando.
Seus filhos também estão, eles que querem entrar para vê-lo.
Walter: Enfermeira, deixe-me ficar mais um pouco.
Ana: Olha, o meu turno acaba daqui a pouco, faltam sete minutos. Acho
que o senhor não está entendendo o que eu estou falando.
Walter: Olha lá. Isso! Olha só...
Ana: Eu só estou repetindo o que a enfermeira Cecília, a do quinto andar,
falou. “Eu não dou de presente nem um minuto sequer a esta
instituição que me explora e que não paga o que vale meu trabalho!”
Certo? Agora pode pegar isto e vestir. Depois eu abro para que entre
a sua mulher, para que entrem os seus filhos.
Walter: Eu não percebi que tinha parado de chover.
Ana: Mas eu percebi sim, olhe que coisa. É hoje que vou ter de caminhar
no meio da lama para chegar até minha casa, isso sem falar na lama
que vai grudar nos dedos do pé. Nem sequer vou conseguir saber em
que poça de água eu estou caindo. É um monte de quarteirão
desde o ponto de ônibus. Olha, o senhor está atrapalhando o meu
trabalho com toda essa bagunça aqui. O senhor sabe que dia é
hoje?
Walter: Eu sei, sim...
Ana: Não, o senhor não sabe, não. Vamos tire isso. Tire logo essa roupa.
Hoje é o aniversário do Marcelo, o meu filho. E se eu não achar a
baunilha? Ainda tenho de comprar baunilha para o bolo. Que
acontece se eu não achar? O moleque já deve estar voltando da
escola.
Walter: Ah, é...
Ana: Cale essa boca e deixe eu tirar esse negócio. O que é isso que o
senhor tem ai?
Walter: É o meu binóculo.
Ana: Acho que o senhor não vai precisar mais.
Walter: Não.
Ana: Dou para quem? Jogo fora?
Walter: Não sei. Jogue fora se quiser. Quantos anos vai fazer o seu filho?
Ana: Nove. A professora diz que ele tem problemas com matemática. O
que ele gosta mesmo é do bolo. Deite-se. (Walter liberta-se dos
lençóis. Procura pelo camisolão.)
Walter: O bolo vai ser do que?
Ana: De chocolate, cortado ao meio e recheado de doce de leite. Vou
jogar açúcar de confeiteiro na cobertura. Vou usar as velas do ano
passado, corto uma pela metade e assim ficam nove. Ninguém vai
perceber porque vão ficar bem afundadas no bolo.
Walter: E o pai?
Ana: Nem me fale! (Começa arrumar a habitação.)
Walter: Por que?
Ana: Ele acha que é o único que trabalha nessa casa. O único que arruma
dinheiro. O único que fica cansado. O único que tem algum direito.
Vista logo isso. Quer ajuda? Pode sozinho? (Walter entra na cama.)
Pronto.
Agora, antes de ir embora tenho que terminar de arrumar o resto,
meu turno está quase acabando. Trabalhando sempre trabalhando,
e sempre tem alguém para mandar, ninguém sabe de onde chegam
as ordens, mas todas elas sempre chegam na gente. Ô desgraça!
Olha como ficou este quarto, olha a bagunça. Vejamos, agora por
aqui.
Walter: Enfermeira. (Ana não liga para Walter.) Enfermeira. Enfermeira!
Ana: O que é?
Walter: Pode vir, por favor?
Ana: O senhor já não precisa mais de ninguém.
Walter: Isso eu já sei. Venha, enfermeira Ana.
Ana: Meu turno está acabando e é agora que o senhor me chama. Dá
para imaginar o que o senhor quer?
Walter: Uma pergunta.
Ana: E quem vai fazer o meu trabalho, o senhor por acaso?
Walter: É apenas uma pergunta.
Ana: Está bom, o que é?
Walter: Eu estava na mesa de operações e morri lá. A senhora estava lá?
Ana: Estava, sim. E aí?
Walter: E ai que a senhora deve saber o que acontece no momento
derradeiro.
Ana: Claro que sei. Olha que pergunta.
Walter: Ana?
Ana: Acontece que encontramos a outra via, a complementar.
Walter: Ah.
Ana: Mais tranqüilo agora? O senhor não percebe que está me fazendo
perder tempo? Olha, como ficou tarde. Marcelo já deve estar
chegando em casa e eu ainda aqui. Sempre é assim, mesmo que o
pai fale o contrário. Acontece que quem deve cuidar da criança é a
mãe. Agora não tenho tempo para mais nada. Vinte e oito anos, um
igual ao outro. Viver é isso?
Walter: Enfermeira. Enfermeira, Ana.
Ana: Faltam três minutos para acabar o meu turno. Termino de arrumar o
quarto e vou embora.
Walter: Enfermeira, Ana.
Ana: Não o estou escutando mais, entende? Agora ninguém o escuta!
Walter: Enfermeira Ana, antes de a senhora ir...
Ana: (Olhando em volta e percebendo que o quarto ficou arrumado.) Muito
bem, parece que...
Walter: Antes de a senhora ir, enfermeira...
Ana: O que é?
Walter: Pode me dar uma lembrança antes de ir?
Ana: Assim é demais! Olha, veja só!
Walter: Se a senhora me der uma lembrança eu conto o que é a morte.
Ana: (Ela fica muda, pára com a arrumação. Está fascinada pela proposta.)
Não, não. Não posso. Eu já disse. Não. Estou atrasada. Tenho muito
trabalho que fazer ainda.
Walter: Eu vou lhe contar, Ana.
Ana: Não. Não. (Porem, Ana vai até o leito. Walter faz gestos para que ela
se aproxime. Ela o faz lentamente, inclina-se sobre ele. Walter fala no
seu ouvido muito brevemente. Só ela, Ana, pode ouvir o que ele fala.
O rosto de Ana vai mudando, as suas feições vão deixando
transparecer uma expressão que revela uma infinita doçura e uma
profunda beleza. Longo silencio. Ana volta ao trabalho e termina de
arrumar o quarto.) Bom, acho que acabei.
Walter: Ana.
Ana: Sim?
Walter: E a minha lembrança?
Ana: Sua lembrança?
Walter: É, cadê a minha lembrança. (Ana volta aproximar-se de Walter.
Acaricia-o lenta e amorosamente, inclina-se sobre ele e o beija na
boca. É um beijo impregnado de amor. Walter, aos poucos, vai
abraçando Ana. Quando termina de abraçá-la, e está levemente
incorporado no leito, adquire a rigidez cadavérica. Como no início,
com idêntica doçura e enorme cuidado, Ana tenta desfazer-se do
abraço em que ficou presa. Ao fazê-lo arrasta o cadáver de Walter
que quase cai da cama, mas de alguma forma ele ficará na atitude
estática do abraço para sempre. Ela não toca mais no corpo de
Walter, deixando-o como ficou, quase caído. Ana aproxima-se da
janela, olha-se nela, talvez faça um desenho no vidro embaçado.
Enquanto se olha, arruma sua roupa, passa a mão nos cabelos.)
Ana: Agora está tudo em ordem. (Aproxima-se da porta e abre.) Pronto.
Podem entrar.