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A ORIGEM DE UMA OBRA E A CRIAÇÃO DE UM NOVO MUNDO: LEITURAS A PARTIR DA CRIAÇÃO DO MUNDO DEPOIS DE WITKACY
THE ORIGIN OF A WORK AND THE CREATION OF A NEW WORLD: READINGS FROM CREATION OF THE WORLD AFTER WITKACY
Lívia Zacarias Rocha / UnB Biagio D’Angelo / UnB
RESUMO O presente trabalho busca refletir sobre as origens de uma obra de arte a partir dos objetos que estimulam o artista em seu processo criativo. Para conduzir tal reflexão, será explorada a obra Criação do mundo depois de Witkacy, painel inspirado na composição Criação do mundo, do artista polonês Stanisław Ignacy Witkiewicz, conhecido pelo pseudônimo Witkacy. Com o objetivo de construir um discurso intertextual e novas visualidades, ao longo do estudo também são chamadas para o diálogo outras referências visuais que seguem o tema da obra principal, bem como as proposições teóricas do artista polonês, que colaboram nas reflexões sobre o existir. PALAVRAS-CHAVE Origem de uma obra; Criação do mundo; Intertextualidade; Witkacy. ABSTRACT The present work aims to reflect on the origins of a work of art from the objects that stimulate the artist in his creative process. To conduct such reflection, the work Creation of the World after Witkacy, a panel inspired by the composition Creation of the World, by the Polish artist Stanisław Ignacy Witkiewicz, known by the pseudonym Witkacy, will be explored. In order to construct an intertextual discourse and new visualities, during the study other visual references that follow the theme of the main work, as well as the theoretical propositions of the Polish artist, that collaborate in the reflections on the existent are also called for the dialogue. KEYWORDS Origin of a Work; Creation of the world; Intertextuality; Witkacy.
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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1. O objeto de arte e o artista
Pensar sobre quais objetos estimulam o processo criativo de um artista ou as
origens de uma obra é um exercício bastante abrangente e que, provavelmente,
nunca se esgotará, especialmente se considerarmos a quantidade de processos
disponíveis atualmente e todas as mutações sofridas pelos meios de comunicação
sobre os sistemas de representação. Ao versar sobre o fenômeno do processo
criativo, está se investigando o subjetivo, não tanto no sentido do pessoal, mas, mais
além, no sentido do impalpável, do intangível, do que não poderia ser investigado
cientificamente. Estar-se-ia no terreno das aporias. Com efeito, inúmeras são as
referências que um artista pode utilizar na elaboração de uma obra – um texto
literário, uma paisagem, uma imagem, uma experiência vivida, etc. Muito complexa
resultaria a operação de querer relacionar todas elas, dando a elas uma perspectiva
unívoca e explicativa. O fato é que essa reflexão conduz para outras discussões
relacionadas à arte, como originalidade e autoria, bem como questões voltadas à
intertextualidade e à visualidade.
Ao falar em sua célebre Aula sobre a opressão que a língua impõe, diz que, ao
menos na língua francesa, Roland Barthes vê-se obrigado a colocar-se
primeiramente como sujeito, antes de enunciar a ação que, desde então, será
apenas seu atributo: “o que faço não é mais do que a consequência e a consecução
do que sou” (BARTHES, 2004, p. 12). Essa sentença é de um poder discursivo
intenso e desperta reflexões filosóficas profundas sobre o eu e a construção do
sujeito. Seria possível deslocar esse raciocínio para o âmbito das artes visuais?
Seria possível dizer que, parafraseando Barthes, o que o artista faz não é mais do
que a consequência e a consecução do que ele é? E, finalmente, do que é feito um
artista? O primeiro dado tangível é que os artistas são seres construídos
socialmente e culturalmente. Nesse sentido, a produção de um artista seria o reflexo
do seu eu, reflexo da sua formação social e cultural. Uma mistura de tudo aquilo que
viu, viveu e aprendeu. A existência é também memória. As imagens capturadas pelo
olhar e o cruzamento de todas essas informações em algum lugar misterioso da
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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mente se inter-relaciona e constrói cadeias de sentido.
É possível afirmar que uma obra é exequível de forma original, livre de qualquer
influência externa a ela? Os discursos da pós-modernidade têm se posicionado
contra essa ideia de originalidade na obra artística. A esse respeito, Julia Kristeva
(2005) aponta que Bakhtin, quem introduziu o termo “intertextualidade”, é o
responsável por iniciar essa discussão no campo da teoria literária. Segundo a
autora, Bakhtin introduziu a ideia de que “todo texto se constrói como um mosaico
de citações, todo texto é a absorção e a transformação de outro texto. Em lugar da
noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade, e a linguagem poética
lê-se pelo menos com dupla.” (KRISTEVA, 2005, p. 68)
Partindo desse raciocínio, é possível dizer que a produção estética de um artista não
surge do inexplicável. Sempre haverá algum estímulo externo que, ao ser
interiorizado pelo sujeito, adquire um novo formato. A produção de um artista é fruto
das experiências sensoriais e cognitivas que ele teve existencialmente. E,
consciente ou não, tais influências e experiências são citadas em sua obra, às vezes
de forma evidente, às vezes de forma sutil. Fenomenologicamente essas
experiências são os saberes que o sujeito/artista se apropria ao longo do tempo e,
quando os saberes adquiridos assumem uma dimensão artística, são exteriorizados
de maneira dramática, não epistemológica, como sugere Barthes (2004) em relação
à literatura. O filósofo francês afirma que
A literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. [...] o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor; que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens. [...] Porque ela encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la, a literatura engendra o saber no rolamento da reflexividade infinita: através da escritura, o saber reflete incessantemente sobre o saber, segundo um discurso que não é mais epistemológico mas dramático (BARTHES, 2004, p. 17-18, grifos do autor).
Com efeito, o significado de uma obra não pode ser reduzido à intenção do artista.
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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Sendo assim, é possível analisar em uma obra de arte, aquilo que o artista quis
dizer, o que o sujeito evidencia, o que dissimula e também aquilo que está de tal
forma interiorizado que resulta incógnito ou escondido a ele mesmo.
Ao seguir essa concepção de que não existe uma originalidade absoluta na
produção de um objeto de arte, que um texto sempre estará citando um outro,
entende-se que a transvisualidade, ou a intertextualidade – tema especialmente
utilizado em âmbito da teoria literária – torna-se um argumento abundante e
inexaurível no campo das artes, considerando que os desdobramentos e as
possibilidades de interconexões entre as obras de arte multiplicam-se ao infinito. A
medida que o campo se abre, os desafios que o envolvem também proliferam,
enriquecendo o material crítico e as hipóteses de trabalho sobre ele. Dentre os
problemas que envolvem a visualidade e a intertextualidade, é importante citar a
necessidade de ampliação de um campo educacional que permita alargar os
conhecimentos sobre a recepção e os regimes de produção de imagem. A relação
estabelecida entre os indivíduos e as imagens alterou-se bastante nos últimos anos.
Por exemplo, a quantidade de imagens com que tem-se contato diariamente, na
contemporaneidade, é infinitamente superior se comparada a um século atrás. Não
há dúvida que esse fator também influencie, consequentemente, nos modos de olhar
do artista enquanto observador.
Por conseguinte, é importante compreender as transformações ocorridas em relação
à produção de imagens, especialmente nos últimos dois séculos, com ênfase nos
métodos de automatização dos processos de criação e reprodução de imagem
(pintura, fotografia, cinema, imagem digital etc.) para que seja possível não só olhar,
mas buscar apreender a imagem no sentido cultural e sociológico que ela se insere.
Há, portanto, a necessidade de uma educação do olhar. Para isso, é fundamental
dotar esse olhar de procedimentos que sejam capazes de refletir de forma
aprofundada sobre o objeto estudado. Trabalhar a arte e seus meios de produção de
forma mais destacada e eficiente na sociedade deve ter em vista o desenvolvimento
de um olhar emancipatório no sujeito observador.
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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Essas discussões acerca da transvisualidade e intertextualidade relacionam-se de
forma bem ativa com o campo da semiologia e da cultura visual. Além disso os
estudos interartes também contribuem de forma positiva para uma abordagem crítica
das imagens, visto que não existe uma arte que seja puramente visual e nem um
texto que seja puramente verbal.
Fomentar o conhecimento sobre arte utilizando-se dela mesma, buscando os
vestígios existentes entre as obras, os deslocamentos de sentidos para construir
novos significados para levá-la à sua máxima flexibilidade, são alguns dos desafios
contemporâneos relacionados à teoria e história da arte. Essas referências e
discussões são importantes para ampliar a compreensão da disciplina, para que
possam se abrir novas fronteiras epistemológicas.
2. Um paradigma
A obra A Criação do mundo depois de Witkacy (Creation of the World After Witkacy),
desenvolvida por um grupo de artistas para a exibição “Legacy” – Polish art links
between the beginnings of XX and XXI centuries (POSK Gallery, Londres, 2009/
Curadoria: Kasia Kaldowski) é paradigmática pois tem origem explícita no trabalho
do escritor, poeta, ensaísta e artista polonês Witkacy.
Artista ainda pouco conhecido no Brasil, “Witkacy” foi o pseudônimo adotado por
Stanisław Ignacy Witkiewicz (1885 – 1939), artista polonês do período entreguerras.
É conhecido por ter produzido de forma bem ampla em diversos campos estéticos.
Foi pintor, fotógrafo, dramaturgo, romancista, teórico de arte, filósofo e representa
uma das grandes referências da vanguarda artística polonesa. Além de possuir uma
vasta produção literária, também ostenta uma extensa produção visual. A ideia
filosófica principal que conduziu grande parte do sistema de pensamento e das
produções literárias e artísticas de Witkacy, era poder criar uma obra de arte
perfeita, uma espécie de utopia estética, baseada na sensação metafísica da
unidade na multiplicidade, para, assim, experimentar o universo na sua forma mais
pura. O conceito de “Forma pura” é, nesse sentido, um axioma fundamental da
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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estética witkaciana. O termo “forma”, no entanto, não é empregado no entendimento
aristotélico (onde faz-se distinção entre forma e conteúdo), mas estaria mais para
uma visão global da realidade da vida em seu sentido prático e palpável. Witkacy
acreditava que a arte era a única atividade humana capaz de promover ao indivíduo
um sentimento metafísico, de experimentar o “Mistério da Existência”.
O início do século XX, período em que Witkacy se desenvolve como artista, a
Polônia era fortemente influenciada pelo pós-Impressionismo, o cubismo e a pintura
abstrata. A arte polonesa neste período é marcada pela inovação, foi uma época em
que os artistas tiveram a oportunidade de investigar novas formas de arte. Foi um
período bem conhecido por revoluções, guerras e rebeliões, nesse contexto, os
artistas poloneses eram encorajados pela onda moderna que se estabelecia na arte
europeia. Assim como em outros países, a liberdade de forma e expressão tornou-
se o principal aspecto da criação artística. A necessidade de expressão individual do
artista ocupava um lugar de maior destaque, era considerado mais importante do
que a beleza, apesar desta última permanecer em abundância na produção de
diversos artistas, como Bruno Schulz, Stanisław Wyspiański, assim como na
produção de Witkacy. Em virtude de sua produção considerada muito “literal”,
Witkacy foi um pouco menosprezado durante um período. Essa literalidade presente
em sua produção artística era muito malvista por seus pares naquela época, para
estes, as pinturas de Witkacy eram antiquadas e excessivamente figurativas.
A geração do início do século XX ainda permanece como grande influência das
novas gerações de artistas poloneses. A exposição “Legacy” – Polish art links
between the beginnings of XX and XXI centuries foi idealizada com o objetivo de
expor obras inspiradas nessa geração e contou também com obras realizadas
especialmente para o evento, tendo como destaque, a obra A Criação do mundo
depois de Witkacy. A obra foi realizada por nove artistas, membros da Associação
dos Artistas Poloneses da Grã-Bretanha (APA), de forma cooperativa, e foi baseada
na obra de Witkacy, A Criação do Mundo (1921-22). A primeira é dividida em nove
painéis separados, onde cada artista teve a oportunidade de se expressar de forma
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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independente e “criar seu próprio mundo”. O objetivo por traz do projeto era o
incentivo do individualismo em colaboração e harmonia com as diversas ideias dos
artistas envolvidos. Devido principalmente à própria diversidade de Witkacy, foi
possível aos artistas a utilização de uma expressão conjunta e, ao mesmo tempo,
distinta. (KALDOWSKI, 2015, website)
Figura 1. J. Ciechanowska, S. Blatton, O. Sienko, A. Hamilton, E. Chojak, A. Mazur, J. Baranowska, M. Kaleta, M. Kaldowski – A Criação do mundo depois de Witkacy, 2009. 300cm x 450cm. Fonte:
“Legacy” – Polish art links between the beginnings of XX and XXI centuries, exposição na Kaldowski Gallery, Londres.
É pertinente retomar aqui algumas concepções de Witkacy. O artista polonês
escreve que a criação de uma pintura, como aparece na imaginação do artista, é
determinada por sua psique, por suas experiências e por todo o mundo de
imaginação e sentimento que ele vivencia. Como estímulo para seu processo
criativo, Witkacy usou sua experiência pessoal assim como qualquer coisa que o
intrigava ou inspirava em outras obras de artistas ou escritores. Suas obras são,
voltando ao conceito de intertextualidade promovido por Kristeva, “um mosaico de
citações”. As citações então são transformadas e reorganizadas, obedecendo à sua
própria teoria.
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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Talvez o exemplo mais óbvio de como Witkacy se apropriava de elementos de
outras obras está presente na composição A Criação do Mundo (Stworzenie świata)
(1921-1922). Assim como em diversas pinturas, Witkacy coloca na prática sua teoria
da Forma Pura, representando um mundo plural autocontido de realidades
diferentes, mantendo-se fiel à sua filosofia de unidade na multiplicidade. Apesar de,
devido ao título da obra, fazer-se uma relação imediata com a criação do mundo
descrita no Gênesis da Bíblia, ao contrário, o artista apresenta uma visão
completamente diferente de tal momento.
Figura 2. Stanisław Ignacy Witkiewicz – Criação do Mundo, 1921-1922. Óleo sobre tela, 115x117cm.
Fonte: Museu de Arte, Lodz.
Na Criação do mundo segundo Witkacy, o artista coloca como figura central de uma
paisagem colorida e imaginária, a criação de uma mulher, como fonte de vida,
rodeada de figuras e formas estranhas. A figura da mulher tem os membros
alongados e, posicionada de costas para o observador, sugere um esforço
despendido na tentativa de tocar as figuras amarelas da direita. Seriam estas formas
que ela tenta tocar uma representação do pecado ou do vício? Das criaturas
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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estranhas presentes na composição, há uma que se assemelha a uma espécie de
balão vermelho flagelado entre as nuvens, esta parece manter uma ligação com o
corpo feminino central, como um cordão umbilical. A cabeça da mulher, com cabelos
loiros e formas avermelhadas que se alongam como chifres, é tocada pela mão de
um velho barbudo – Deus, seu criador. A figura localizada abaixo de Deus também é
bastante inquietante, com um adereço na cabeça, uma espécie de turbante,
acompanha toda a cena apenas com o olhar. Seria esta forma a morte ou o diabo?
A figura de Deus na composição de Witkacy, segundo Anna Żakiewicz (2015, p. 57),
é a citação de uma figura de Stanisław Wyspiański, em um famoso vitral da Igreja
Franciscana de Cracóvia, retratando também a criação. Enquanto o trabalho de
Wyspiański é “imbuído de uma aura de solenidade, a pintura de Witkacy está focada
no ato de criar uma mulher com nádegas enormes e seios caídos, cercada por todos
os tipos de monstros.” (ŻAKIEWICZ, 2015, p. 57). Apesar de marcadamente
figurativa, esta obra testemunha a ironia que o artista mantinha em relação a tudo,
até mesmo sobre um tema significativo como a Gênesis.
Figura 3. Stanisław Wyspiański – Deus o Criador, 1904. Vitral, Fonte: Basílica de São Francisco de
Assis, Cracóvia.
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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Guardadas as devidas diferenças temporais e de composição, é possível
estabelecer uma aproximação entre a interpretação de Witkacy acerca da criação e
àquela realizada por Hieronymus Bosch, em seu famoso tríptico O Jardim das
Delícias Terrenas. Na composição localizada entre o paraíso (O Jardim do Éden) e o
inferno (O Inferno Musical), Bosch celebra os prazeres da carne, expõe a luxúria,
como se a vida e o pecado se posicionassem entre o bem e o mal. Ao passo que, na
composição de Witkacy, a criatura central se esforça para alcançar o pecado ao
mesmo tempo em que a figura de Deus parece controlar sua cabeça. A
representação do momento da criação em Bosch também aparece de forma atípica,
uma vez que não representa a criação de Eva da costela de Adão. Deus, segurando
Eva pelo braço, parece apenas apresentá-la a Adão. Há uma variedade de criaturas
que trazem significados diversos, ainda assim, constituem uma ‘unidade na
multiplicidade’, ideia defendida por Witkacy em sua proposição estética. Não é
possível afirmar que Witkacy tenha tido contato com a obra de Bosch, tampouco que
essa lhe serviu de inspiração, no entanto, o que desperta a atenção aqui diz respeito
à forma particular e irreverente registrada por cada artista de um episódio fortemente
consolidado em uma tradição visual.
Figura 4. Hieronymus Bosch – O Jardim das Delícias Terrenas, 1490-1500. Tríptico, óleo s/ madeira,
220x389cm. Fonte: Museu do Prado, Madrid.
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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A iniciativa de Kasia Kaldowski, de propor a diferentes artistas a criação de uma
obra conjunta, a partir de suas percepções individuais de criação do mundo, mesmo
tendo como referência a proposta de Witkacy, está também em total consonância
com a teoria desenvolvida pelo artista, de unidade na multiplicidade. Os painéis são
acompanhados ainda das declarações de cada artista, onde alguns explicam sua
compreensão de criação do mundo.
Na releitura feita pelo coletivo de artistas, a figura central feminina permanece, no
entanto, esta é modernizada ao se adicionar tatuagens e piercings ao seu corpo. A
autora do painel central, Ela Chojak Mysko, incluiu também a inscrição “czysta
forma” (Forma Pura), conceito chave da teoria estética desenvolvida pelo artista. O
uso de inscrições codificadas na composição é algo bem recorrente na produção de
Witkacy, especialmente nos retratos, onde o artista registrava o “estilo” da pintura e
códigos que indicavam as drogas que ele havia usado durante a realização da obra.
A criatura estranha acima da figura feminina também continua similar na releitura,
nesta parte do painel, realizada por Slavek Blatton. No painel de Agata Spus
Hamilton (primeiro painel da segunda linha), a artista cita o próprio Witkacy, pintando
algo semelhante a seus famosos e múltiplos autorretratos. Em relação à obra
original, este retrato foi posicionado próximo de onde havia a figura da morte. Talvez
uma referência ao artista em decorrência do constante estado depressivo e
pensamentos suicidas que o acompanharam durante muitos anos.
Os gatos da parte inferior esquerda da obra de Witkacy, que apareciam comendo
algum tipo de fruto (seria um fruto proibido?), foram substituídos pela artista Janina
Baranowska por duas figuras nuas com um cachorro e um cavalo, inseridos em uma
paisagem tranquila. Seriam estes personagens Adão e Eva no paraíso?
O lado direito (último painel da segunda linha), realizado por Alicja Mazur, é
composto por uma paisagem melancólica com corpos nus pintados, dando um tom
dramático à composição. Os corpos sem vida parecem boiar e se diluir em um rio de
sangue. Já Olga Sienko, decidiu em seu painel (último à direita, na primeira linha)
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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substituir o amarelo do original por um cavalo estilizado, um cachorro e uma paleta
de artista, além da imagem simplificada de perfil avermelhado de uma mulher.
Apesar de ser tão diferente do original, a artista desenvolve a essência da teoria da
forma pura em seu fragmento, refletindo formas abundantes e sobrepostas, assim
como Witkacy.
Nas composições de Maria Kaleta e Mariusz Kaldowski, as duas últimas da terceira
linha, os artistas mantem bastante semelhança com o original, ao ponto em que a
figura do animal retratado, dividido entre os dois painéis, se completa perfeitamente.
A autora da parte que corresponde à figura de Deus (primeiro painel à esquerda),
Joanna Ciechanowska, fez uma modificação considerável em relação ao original.
Essa substituiu a figura do homem barbado pela imagem do ícone pop, Michael
Jackson. A artista lembra a inquietude de Witkacy sobre o grande “Mistério da
Existência” e se pergunta: por que sou exatamente esse ser e não aquele outro?
Sobre A Criação do mundo depois de Witkacy, Anna Żakiewicz ainda comenta:
Na arena da "Criação do Mundo", os artistas conjuraram seus próprios mundos, usando seus próprios pensamentos e suas próprias maneiras de expressões. No entanto, os principais conceitos de Witkacy permanecem: criatividade, adaptação habilidosa à realidade dada e unidade na multiplicidade. [...] Todos os elementos criam uma surpreendente harmonia entre si e com o modelo – a grande pintura de Witkacy completada há quase 90 anos. Isso mostra que seu legado pode ser interpretado de muitas maneiras e sua criatividade é uma fonte interminável de inspiração. (ŻAKIEWICZ, 2009, website)
O mistério do Ser é, sem dúvida, um tema largamente explorado por artistas ao
longo da história. Imagens que aludem às origens do universo, que pensam e
questionam o existir são encontradas em abundância. A criação do mundo depois de
Witkacy é, portanto, uma obra paradigmática, no sentido proposto acerca das
origens, bem como pertinente para um discurso de análise intertextual, pois
demonstra como essas relações podem atuar em forma de looping. A obra de
Witkacy metaforiza o conceito de “origem”, como princípio necessário e perturbador
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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para a criação de uma forma pura. Apesar disso, a forma pura witkaciana é uma
ilusão, uma utopia do projeto estético do autor polonês. Na Criação do mundo,
Witkacy não apenas tematiza a origem, mas “metateoriza” justamente aqueles
objetos e temas mitológicos que formam e estimulam o processo criativo de um
artista ou as origens de uma obra de arte.
A visão particular do artista acerca da Criação, onde coloca uma figura feminina no
centro da narrativa, em que o bem e o mal não se posicionam de forma oposta e
polarizada, onde os elementos são dispostos a fim de estabelecer uma ‘unidade na
multiplicidade’, não só altera uma tradição clássica, mas também possibilita ao
observador questionar sua própria existência e as tradições estabelecidas sobre a
representação deste episódio. Proporciona uma interpretação alternativa e a
possibilidade de engendrar novos caminhos para questionar a criação e o existir.
Chamar para o discurso intertextual sobre as origens uma figura ainda pouco
frequentada como a que Witkacy representa é igualmente muito significativo,
também por outra razão. Se, por um lado, o artista polonês acreditava que a
criatividade estava fadada ao desaparecimento em virtude de uma sociedade
dominada pela mecanização, pelo outro, mantinha, ao mesmo tempo, o sentimento
utópico de que a arte era a única saída, isto é a única forma de enfrentar o horror e a
incoerência da existência contemporânea. Witkacy ainda afirmava que a religião e a
filosofia já haviam perdido, há muito tempo, o poder de ligar o indivíduo às questões
existenciais, restando somente à arte a missão e a capacidade de reconectá-lo com
sua existência, fazendo-o experimentar o verdadeiro “Mistério da Existência”. O
trabalho do Artista, portanto, na perspectiva de Witkacy, corresponde a um elemento
essencial do retorno à origem, uma origem inquieta, perturbada pela consciência
utópica e pela metateorização do fazer Arte.
Referências
BARTHES, Roland. Aula. Aula Inaugural da Cadeira de Semiologia Literária do Colégio De França. Pronunciada dia 7 de janeiro de 1977 (Tradução de Leyla Perrone-Moisés) São Paulo: Cultrix, 2004.
ROCHA, Lívia Zacarias; D’ANGELO, Biagio. A origem de uma obra e a criação de um novo mundo: leituras a partir da criação do mundo depois de Witkacy, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1567-1580.
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KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
WITKIEWICZ, Stanislaw Ignacy. The Witkiewicz reader/ Stanislaw Ignacy Witkiewicz; edited, tanslated and with an introdution by Daniel Gerould. Northwestern University Press, 1992.
ŻAKIEWICZ, Anna. Witkacy. Olszanica/Kraków, Bosz: 2015
ŻAKIEWICZ, Anna. Legacy - Witkacy’s aftermath. Disponível em: http://www.kaldowskigallery.co.uk/kasia_kaldowski_legacy_project.html. Acesso em: 02 mai 2019.
Referências eletrônicas
Kaldowski Gallery: http://www.kaldowskigallery.co.uk/kasia_kaldowski_legacy_project.html. Acesso em: 02 mai 2019.
Museu do Prado: https://www.museodelprado.es/. Acesso em: 22 mai 2019.
Museu de Arte, Lodz: https://msl.org.pl/. Acesso em: 10 mai 2019.
Lívia Zacarias Rocha
Mestra em Teoria e História da Arte do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade de Brasília (UnB), possui licenciatura em Artes Cênicas (UnB - 2009). Atualmente é doutoranda do PPGAV (UnB) e professora - Secretaria de Estado de Educação (DF). Trabalhou em escolas como professora de artes, artes cênicas e teatro.
Biagio D’Angelo
Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 (CNPq), é Professor de Teoria, Crítica e História da Arte na Universidade de Brasília. Realizou um Pós-Doutorado Senior na Universidade Paris Saint-Denis sob a supervisão de François Soulages (2017-2018). Formado em línguas e literaturas orientais, com ênfase na área de arte e cultura russa, pela Universidade de Veneza Ca' Foscari.
http://www.kaldowskigallery.co.uk/kasia_kaldowski_legacy_project.htmlhttp://www.kaldowskigallery.co.uk/kasia_kaldowski_legacy_project.htmlhttps://www.museodelprado.es/https://msl.org.pl/