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Dissertação de Mestrado sobre a Onerosidade Excessiva no Direito Brasileiro.
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LUIZ PHILIPE TAVARES DE AZEVEDO CARDOSO A ONEROSIDADE EXCESSIVA NO DIREITO CIVIL
BRASILEIRO
Dissertao de mestrado
PROFESSOR ORIENTADOR: ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO
(JAN/2007-NOV/2009) CLAUDIO LUIZ BUENO DE GODOY
(NOV/2009-MAR/2010)
FACULDADE DE DIREITO DO LARGO SO FRANCISCO
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
SO PAULO
2010
2
LUIZ PHILIPE TAVARES DE AZEVEDO CARDOSO A ONEROSIDADE EXCESSIVA NO DIREITO CIVIL
BRASILEIRO
Dissertao apresentada Banca
Examinadora da Faculdade de Direito do Largo So Francisco da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de mestre em Direito Civil, iniciada e desenvolvida sob a orientao do Professor Titular Antonio Junqueira de Azevedo, de janeiro de 2007 a novembro de 2009, e finalizada sob a orientao do Professor Associado Claudio Luiz Bueno de Godoy, de novembro de 2009 a maro de 2010.
SO PAULO
2010
3
LUIZ PHILIPE TAVARES DE AZEVEDO CARDOSO A ONEROSIDADE EXCESSIVA NO DIREITO CIVIL
BRASILEIRO
Dissertao de mestrado em Direito Civil
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
FACULDADE DE DIREITO DO LARGO SO FRANCISCO
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
SO PAULO
2010
4
A meus pais,
Maria Ins e Luiz Reynaldo
5
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Associado Claudio Luiz Bueno de Godoy, por ter aceito finalizar
a orientao desta dissertao, e que com suas observaes contribuiu de maneira
determinante para a melhoria de seu contedo e estrutura.
Ao Professor Doutor Renan Lotufo, pelas observaes no exame de
qualificao, pelos ensinamentos no convvio dirio e, principalmente, por ter dado o
impulso decisivo para minha ps-graduao e o apoio constante durante a feitura deste
trabalho acadmico.
Ao Professor Doutor Joo Alberto Schtzer Del Nero, por todo o conhecimento
que me propiciou, desde as aulas ministradas na graduao, passando pela ps-graduao e
pela oportunidade de estgio em docncia, at o exame de qualificao.
Aos funcionrios das bibliotecas e da secretaria de ps-graduao da Faculdade
de Direito do Largo So Francisco da Universidade de So Paulo, por terem viabilizado o
estudo e as formalidades necessrias a esta jornada.
Aos colegas de escritrio, Professora Doutora Maria Alice Zaratin Lotufo, Ana
Flvia, Joo Lus e, especialmente, Valria e ao Gilberto, pelo saudvel convvio dirio e
por toda ajuda durante esse perodo.
Aos meus pais, meu irmo, meu av, minha namorada, e toda minha famlia,
pelo incentivo, pelas inumerveis ajudas e pela necessria pacincia.
Aos colegas mestrandos e doutorandos, pela superao e ajuda mtuas na ps-
graduao.
E a todos os professores, colegas, amigos, que fizeram parte desta caminhada,
agradeo.
Agradeo, enfim, ao Professor Antonio Junqueira de Azevedo (in memorian).
Somente uma narrativa daria conta de expressar sua importncia para mim, o quanto e por
quanto lhe sou grato. Este estudo, por sua vez, nasceu de suas aulas, de sua orientao, de
seus escritos, de sua sabedoria, de sua amizade. ainda um texto de um iniciante. Um dia,
se Deus quiser, poderei dedicar ao querido Professor Junqueira um escrito sua altura.
6
RESUMO
Esta dissertao tem como tema a onerosidade excessiva no direito civil brasileiro.
Primeiramente, fazem-se necessrios uma noo inicial da figura, uma delimitao
conceitual do problema e uma sntese de seu desenvolvimento histrico no direito civil
brasileiro. Feito isso, so apresentadas as teorias utilizadas para sua fundamentao pela
doutrina e pela jurisprudncia brasileiras antes do advento de texto legal expresso sobre a
matria. Concluda essa fase preparatria, adentra-se no direito positivo vigente,
precisamente no Cdigo Civil, para explicar o contedo da onerosidade excessiva, de seus
pressupostos e de suas conseqncias. So diretamente estudados os artigos 478, 479, 480,
317 e ainda outros especficos de alguns tipos contratuais. So abordados ainda alguns
tpicos correlatos que finalizam o entendimento da matria, como os pressupostos
negativos da figura, sua incidncia em contratos de sinalagma indireto e nos contratos
aleatrios e as diferenas nos pressupostos para sua configurao no Cdigo de Defesa do
Consumidor.
Palavras-chave: Onerosidade excessiva desequilbrio econmico superveniente
do contrato onerosidade equivalncia das prestaes imprevisvel clusula rebus sic
stantibus teoria da impreviso reviso e resoluo do contrato.
7
ABSTRACT
The theme of this dissertation is known in english as hardship, which means
the fundamental alteration of the equilibrium of the contract. Firstly, it is necessary to
make an introductional notion of the figure, a conceptual delineation of the problem and a
summary of its historical evolution in the brazilian civil law. After that, it is presented the
theories used by authors and courts to reason the solution of the problem before the
existence of legal text about the issue. Then, we study the related articles of the brazilian
Civil Code to explain the content of hardship, the content of its requirements, and the
content of its consequences. The articles 478, 479, 480, 317 are directly studied, and also
other articles from particular named contracts. Some related issues finalize the
understanding of the theme, as the negative requirements of the figure, its incidence in
some particular categories of contracts, and the difference of its requirements in the
Consumer Defense Code.
Keywords: hardship alteration of the equilibrium of the contract
unpredictable rebus sic stantibus clause adaptation and termination of the contract.
8
NDICE
Introduo...........................................................................................................................11.
Captulo I.
Delimitao conceitual do problema..................................................................................15.
Captulo II.
Sntese do desenvolvimento histrico da onerosidade excessiva no direito civil
brasileiro.............................................................................................................................26.
Captulo III.
A clusula REBUS SIC STANTIBUS
Introduo............................................................................................................................34.
Seo 1
Antigidade clssica......................................................................................................36.
Seo 2
Direito romano..............................................................................................................39.
Seo 3
Glosadores.....................................................................................................................48.
Seo 4
Canonistas.....................................................................................................................52.
Seo 5
Ps-glosadores..............................................................................................................55.
Seo 6
A primeira teoria sobre a clusula REBUS SIC STANTIBUS: ALCIATO, humanismo
jurdico..........................................................................................................................58.
Seo 7
Jusracionalismo, consensualismo, codificaes e o declnio da clusula REBUS SIC
STANTIBUS.......................................................................................................................61.
Captulo IV.
9
Desenvolvimento da alterao das circunstncias no positivismo jurdico alemo:
pressuposio e base do negcio........................................................................................64.
Captulo V.
Os fatos supervenientes e o PACTA SUNT SERVANDA no positivismo jurdico francs: a teoria
da impreviso......................................................................................................................75.
Captulo VI.
O superveniente desequilbrio econmico do contrato no positivismo jurdico italiano: a
excessiva onerosidade.........................................................................................................80.
Captulo VII
Fundamento da onerosidade excessiva...............................................................................84.
Captulo VIII.
Onerosidade excessiva no direito civil vigente.
Seo 1
Conceito, pressupostos e conseqncias da onerosidade excessiva: art. 478 do Cdigo
Civil.
Subseo I. Introduo..........................................................................................87.
Subseo II. Contratos de execuo continuada ou diferida................................87.
Subseo III. Prestao excessivamente onerosa e extrema vantagem................89.
Subseo IV. Acontecimentos extraordinrios e imprevisveis.........................112.
Subseo V. Resoluo......................................................................................125.
Seo 2
Conservar ao invs de resolver: a oferta do ru de modificao eqitativa..............129. Seo 3
Se NO CONTRATO as obrigaes COUBEREM a apenas uma das partes.........................135.
Seo 4
O valor real da prestao: artigo 317........................................................................143.
Seo 5
Pressupostos negativos................................................................................................150.
Seo 6
Contratos aleatrios....................................................................................................158.
Seo 7
10
Contratos de sinalagma indireto.................................................................................163.
Seo 8
Regras especficas sobre onerosidade excessiva nos tipos contratuais do Cdigo
Civil...................................................................................................................................168.
Seo 9
Pedido direto de reviso..............................................................................................173.
Seo 10
A onerosidade excessiva no Cdigo de Defesa do Consumidor.................................179.
Captulo IX.
Consideraes finais sobre a onerosidade excessiva no direito civil brasileiro..............187.
Referncias bibliogrficas.................................................................................................191.
11
INTRODUO
A onerosidade excessiva significa, em termos simples, o desequilbrio
econmico entre as prestaes de um contrato. Parte-se do pressuposto de que todo
contrato oneroso envolve uma troca econmica ajustada pelas partes numa relao de
equivalncia. Contudo, quando o escambo de prestaes no se d no instante exato do
acordo, quando as relaes contratuais so firmadas para perdurarem no tempo, pode
ocorrer que o equilbrio originrio objetivado pelos contratantes perturbe-se ou at se
rompa, em virtude de fatos supervenientes, de modo a destruir ou frustrar a eqitativa troca
econmica.
Percebe-se assim que a onerosidade excessiva no se colocaria no fossem os
efeitos do decurso do tempo nas relaes contratuais. Ela refere-se, portanto, ao compasso
entre a concluso e o trmino da execuo do contrato, sempre que o cumprimento da
obrigao contratual no se d instantnea e imediatamente aps seu nascimento.
A essa realidade corresponde a distino conceitual entre sinalagma gentico e
funcional. Sinalagma o liame entre obrigaes de determinado contrato. O gentico d-se
na formao do vnculo e refere-se s promessas recprocas. O funcional considera a vida
de relao que se estabelece entre as prestaes nascidas1. A onerosidade excessiva
prpria, portanto, do sinalagma funcional dos contratos.
Se aps a concluso do contrato sobrevierem fatos que tornem a obrigao
impossvel de cumprimento, caracteriza-se a impossibilidade superveniente da prestao,
extinguindo-se a relao contratual, se no houve culpa do devedor. A onerosidade
excessiva s ocorre quando a obrigao mantm-se possvel de ser cumprida, mas
excessivamente onerosa com relao a prestao contrria: o tempo causa somente a perda
da equivalncia entre elas. Nessas circunstncias, o direito pode autorizar a extino da
relao contratual, ou sua adaptao ao novo contexto, dependendo para isso de vrios
pressupostos.
Diante desse quadro, vrias perguntas podem ser feitas: como se identifica o
equilbrio e o superveniente desequilbrio econmico de um contrato? H uma medida para
ele? Pode ser aplicado a todos os tipos contratuais? Quais fatos supervenientes autorizam a
1 A. TRABUCCHI. Istituizioni di Diritto Civile, 43 ed, a cura di G. TRABUCCHI. Padova,
CEDAM, 2007, pp. 702-703.
12
interveno no sinalagma funcional? O que seria um fato imprevisvel? Quais os critrios
para que o juiz determine sua extino ou modificao?
O direito brasileiro resolveu2 algumas dessas questes principalmente com os
artigos 478 a 480 e 3173 do Cdigo Civil vigente, alm de outros subsidiariamente
relacionados.
Estudar tais dispositivos, a fim de compreender os conceitos jurdicos neles
presentes e, assim, ter uma noo clara do contedo da onerosidade excessiva e de seu
carter o objetivo desta dissertao.
A escolha do tema justifica-se principalmente por dois aspectos essenciais. A
impreviso, como comumente conhecida a onerosidade excessiva no Brasil, uma figura
que flexibiliza a fora obrigatria dos contratos e sua intangibilidade. Por meio dela,
autoriza-se ou a liberao do devedor, ou uma interveno heternoma no contrato, feita
seja por um juiz, seja por um rbitro, para modificar seu contedo. S isso j significa
muito para o direito contratual, no qual, como princpio, os pactos existem para serem
cumpridos tal como foram constitudos pela autonomia das partes.
Esse princpio fundamental e paradigmtico consiste em um alicerce no s do
direito das obrigaes, como tambm o transcende e constitui-se numa das principais bases
de todas as relaes sociais. Desse modo, verificar quando um contrato pode deixar de ser
cumprido uma tarefa de interesse tcnico para o jurista e de fundo moral para qualquer
pessoa.
Mas alm disso, a razo que faz com que o devedor libere-se do pacto tem um
contedo de justia material. o equilbrio, a equivalncia, enfim, o justo contratual no
2 Vale lembrar o ensinamento do Professor Antonio Junqueira de Azevedo, costumeiramente
proferido em sala de aula: lei no adota teoria, lei d a soluo. 3 Os artigos do Cdigo que normatizam o tema so os seguintes: Na parte geral dos contratos,
no captulo II, referente extino do contrato, seo IV, Da resoluo por onerosidade excessiva: Art. 478. Nos contratos de execuo continuada ou diferida, se a prestao de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinrios e imprevisveis, poder o devedor pedir a resoluo do contrato. Os efeitos da sentena que a decretar retroagiro data da citao. Art. 479. A resoluo poder ser evitada, oferecendo-se o ru a modificar eqitativamente as condies do contrato. Art. 480. Se no contrato as obrigaes couberem a apenas uma das partes, poder ela pleitear que a sua prestao seja reduzida, ou alterado o modo de execut-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. Na parte geral das obrigaes, captulo I, referente ao pagamento: Art. 317. Quando, por motivos imprevisveis, sobrevier desproporo manifesta entre o valor da prestao devida e o do momento de sua execuo, poder o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possvel, o valor real da prestao. Tambm no regramento dado aos contratos tpicos de locao, empreitada e seguro, existem disposies relativas ao problema: arts. 567, 572, 619, 620, 621, 625, 770.
13
sentido de igualdade entre as trocas que impe a flexibilizao do pacto dentro de certos
pressupostos. Descobrir, portanto, como esse contedo material entendido e tutelado pelo
direito uma atividade norteada pela valorao da justia econmica em casos concretos.
Tal investigao , desse modo, digna de todo interesse.
Apresentadas tais consideraes iniciais, resta explicar a estrutura e o contedo
dos captulos da dissertao.
A primeira coisa a fazer para compreender melhor a onerosidade excessiva
apart-la de outras matrias do direito das obrigaes que com ela fazem fronteira,
identificadamente a questo da impossibilidade superveniente da prestao e a alterao
das circunstncias como um gnero que inclui a onerosidade excessiva.
Feito isso, preciso situar o estudo diante do desenvolvimento histrico do
tema no direito civil brasileiro at ento. Apesar do tratamento legislativo expresso e geral
somente advir com o diploma de 2002, a impreviso est longe de ser uma novidade por
aqui. Tanto a doutrina, como a jurisprudncia, estudaram-no no decorrer do sculo XX,
estabelecendo-lhe pressupostos, conseqncias e fundamento, de forma que chega a ser
possvel identificar certa linha evolutiva no seu desenvolvimento histrico.
Uma vez que no havia texto legal que a consagrasse, muitas teorias foram
utilizadas para fundament-la. As principais teorias utilizadas, quais sejam, a clusula
rebus sic stantibus, as teorias alems da pressuposio, bases do negcio subjetiva e
objetiva, a teoria francesa da impreviso e a soluo italiana da onerosidade excessiva,
sero, ento, objeto de breve estudo.
Tal se justifica, pois foram teorias utilizadas no direito brasileiro para soluo
do problema. Portanto, no se trata de analisar direito estrangeiro. A diviso feita de
acordo com os pases de origem das teorias apenas um modo de expor. Alm disso, no
h dvida que a pesquisa de tais referncias tericas propicia uma compreenso melhor do
problema, de forma a preparar a parte mais importante do estudo, que diz respeito ao
direito civil brasileiro vigente.
Ao debruar-se sobre o direito positivo, mister se faz expor um fundamento
para a figura que oriente a identificao de todos os seus elementos.
14
Vai-se, ento, ao Cdigo Civil brasileiro para tirar dele, principalmente do
artigo 478, o conceito, os pressupostos e as conseqncias da onerosidade excessiva. Nas
sees subseqentes sero analisadas as disposies subsidirias (arts. 479, 480, 317), bem
como outros tpicos indispensveis sua completa caracterizao, como os pressupostos
negativos, os contratos aleatrios, os contratos de sinalagma indireto, as regras especficas
sobre onerosidade excessiva nos tipos contratuais e a possibilidade do pedido direto de
reviso. Por fim, identificam-se as diferenas fundamentais nos pressupostos da
onerosidade excessiva disposta no Cdigo de Defesa do Consumidor.
Depois de todo o caminho percorrido, ser possvel tecer consideraes finais
em que sejam identificados os principais pontos para o entendimento da excessiva
onerosidade no direito civil brasileiro.
15
CAPTULO I
DELIMITAO CONCEITUAL DO PROBLEMA
Esta seo visa enquadrar o tema da dissertao frente a outras matrias do
direito obrigacional que com ele fazem fronteira.
Assim, o problema da onerosidade excessiva coloca-se, primeiramente, em
relao com a impossibilidade superveniente da prestao. Num segundo momento, a
onerosidade excessiva apresenta-se como uma espcie do gnero alterao das
circunstncias.
Por fim, mas com bem menor nfase, como existem posicionamentos segundo
os quais o enriquecimento sem causa e a boa-f objetiva cobririam tambm as hipteses de
onerosidade excessiva, cumprir apontar pontualmente porqu nesse trabalho no se
procede assim.
A idia a de recortar a figura da onerosidade excessiva desses outros
institutos para melhor compreend-la. o que se passa a fazer.
A oneoridade excessiva aparece quando a obrigao no tenha se tornado
impossvel, mas to somente excessivamente onerosa. Essa delimitao conceitual
importante, pois alguns tpicos que so tratados como onerosidade excessiva na verdade
no possuem essa natureza.
Exemplo disso o aresto julgado pelo Superior Tribunal de Justia, REsp n
42.885-3-SP, 4 Turma, rel. Min. Slvio de Figueiredo Teixeira, j. 21/3/1995, DJ 8/5/1995.
Nele, o problema tratado o de compromissrios-compradores que, em razo do bloqueio
e da indisponibilidade monetria gerada com o advento do chamado Plano Collor, no
puderam utilizar os recursos de poupanas e outras aplicaes financeiras que contavam
para pagar suas dvidas. Na instncia ordinria, os julgadores referiram a teoria da
impreviso para julgar o caso. Entretanto, na corte especial, o Relator fez constar de seu
voto a seguinte explicao:
16
Assim, a apreciao da questo deu-se sob o
enfoque da ocorrncia de fora maior e no luz da teoria da onerosidade
excessiva ou clusula rebus sic stantibus, isso a despeito, repise-se, da
equivocada referncia constante do aresto atacado.
Com efeito, o que ocorreu foi um factum principis,
que, conquanto sem interferir no equilbrio e na comutatividade contratuais,
sem, em outras palavras, colocar uma das partes em situao de vantagem
frente a outra, certamente impossibilitou o cumprimento do contrato nas
condies e prazos avenados, pelo menos para os contratantes e isso se
aplica tambm construtora recorrente que contavam com recursos de
poupana ou de outras aplicaes financeiras para faz-lo.
Ou seja, quando a obrigao torna-se impossibilitada, no se pode falar em
onerosidade excessiva. Esta s ocorre quando o problema concreto o desequilbrio
superveniente entre as prestaes. As hipteses so excludentes: ou se diz que h
impossibilidade, ou que h onerosidade excessiva.
Mister se faz adentrar um pouco mais no tpico da impossibilidade, pois ele
tem ainda outro desdobramento que servir tambm para delimitar conceitualmente o tema
do trabalho.
O trato da impossibilidade da prestao se divide em dois: a impossibilidade
originria que se d no momento de formao do contrato e interessa sua validade e a
impossibilidade superveniente, que pode extinguir a obrigao. Como a onerosidade
excessiva superveniente se refere to somente ao sinalagma funcional do contrato, esta
seo deixar de lado o problema da impossibilidade originria. Da mesma forma, nesta
seo se cogita apenas da impossibilidade superveniente inimputvel ao devedor, pois se se
tratasse da imputvel, adentrar-se-ia no terreno da responsabilidade civil.
preciso distinguir, pois, a impossibilidade objetiva da subjetiva, bem como a
absoluta da relativa4.
A prestao torna-se impossvel quando o comportamento exigvel do devedor,
segundo o contedo da obrigao, torna-se invivel5. Se a inviabilidade diz respeito a
4 Segundo PONTES DE MIRANDA, a matria da impossibilidade da prestao uma das mais
rduas do direito brasileiro das obrigaes, porque o Cdigo Civil s se refere s modalidades de prestaes (artigos 233 a 251 do Cdigo vigente) (F. C. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, t. XXII, 2 ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 1958, p. 69).
17
todos, eis que a conduta devida impossvel para qualquer um, a impossibilidade
objetiva. Se somente o devedor no pode efetuar a prestao, mas outros podem execut-la,
a impossibilidade subjetiva6.
Tal distino extremamente importante. S a impossibilidade objetiva
exonera o devedor7. Mas nas obrigaes infungveis, em que o devedor deve cumprir
pessoalmente a prestao, a impossibilidade subjetiva se equipara objetiva8.
Nesse sentido, A. M. FONSECA:
Sem dvida que, s vezes, quando se trata de
obrigao tendo por objeto um facere infungvel, h impedimentos pessoais do
devedor que se refletem necessariamente sobre a prpria prestao,
impossibilitando-a. Assim, v. g., no exemplo da elaborao de um livro por
determinado intelectual, a doena ou morte do escritor inibindo-o de cumprir a
obrigao assumida. Em tais casos, no nos parece verificar-se impossibilidade
subjetiva ou relativa, mas verdadeira impossibilidade objetiva, como, com
razo, salientou Giovene. No assim se a impossibilidade decorrer de outras
condies pessoais do devedor, sem relao necessria com a prestao, como,
por exemplo, no caso figurado, a falta de dinheiro para comprar obras
indispensveis elaborao do trabalho9.
E tambm PONTES DE MIRANDA:
A impossibilidade objetiva e a impossibilidade
subjetiva (impossibilidade subjetiva do devedor) so inconfundveis: aquela a
impossibilidade por falta do objeto, inclusive a impossibilidade do fazer ou do
no fazer; essa a inaptido do devedor para prestar, impossibilidade que s
diz respeito ao sujeito passivo. (...) No tocante a algumas prestaes, elas
coincidem. Por exemplo, se a prestao s pessoalmente pode ser prestada (cp.
5 J. M. ANTUNES VARELA. Das obrigaes em geral, v. II, 7 ed., 3 reimpr. Coimbra,
Almedina, 2007, p. 67. 6 Idem, ibidem, p. 68. 7 F. C. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, t. XXII, cit., pp. 68-70; A. M.
FONSECA. Caso fortuito e teoria da impreviso, 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro, Forense, 1958, pp. 152-7; J. M. ANTUNES VARELA. Das obrigaes em geral, v. II, cit., p. 72. Em sentido oposto, C. COUTO E SILVA. A obrigao como processo, reimpr. Rio de Janeiro, FGV, 2007, pp. 99-100; R. R. AGUIAR JR. Extino dos contratos por incumprimento do devedor, 2 ed., rev., atual. Rio de Janeiro, AIDE, 2003, p. 99.
8 M. J. ALMEIDA COSTA. Direito das obrigaes, 3 ed., refund. Coimbra, Almedina, 1979, p. 463 e pp. 775-6; R. LOTUFO. Cdigo civil comentado: obrigaes: parte geral (arts. 233 a 420), v. 2. So Paulo, Saraiva, 2003, p. 50; O. GOMES. Obrigaes, 17 ed., 2 tir., rev., atual., e aum., de acordo com o Cdigo Civil de 2002, por E. BRITO. Rio de Janeiro, Forense, 2007, pp. 178-9.
9 A. M. FONSECA. Caso fortuito..., 3 ed. cit., p. 154.
18
Cdigo Civil, art. 880, 2 parte), inaptido do devedor impossibilidade objetiva
tambm 10 11.
Por outro lado, entende-se, tambm, que somente a impossibilidade absoluta12
extingue a obrigao. Com essa expresso pretende-se dar relevncia idia de que a mera
dificuldade, ainda que fora do comum, a difficultas praestandi, no basta para liberar o
devedor13.
No Brasil, contudo, consagrou-se o uso indistinto de impossibilidade absoluta
como impossibilidade objetiva, e impossibilidade relativa como impossibilidade
subjetiva14.
Assim, quando se diz que a impossibilidade relativa suficiente para liberar o
devedor, no se est referindo impossibilidade relativa como sinnimo de mera
dificuldade de prestar, mas como sinnimo de impossibilidade subjetiva.
E aqui se faz necessrio um segundo esclarecimento: o significado de
impossibilidade relativa funcionalizou-se15 e passou a designar tambm, no uma simples
impossibilidade subjetiva em prestao infungvel, mas tambm aqueles casos em que, por
fora do princpio da boa-f, a prestao fungvel, ainda que objetivamente possvel,
deveria ser considerada impossvel16. No se trata, repita-se, de dar importncia mera
10 F. C. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, t. XXIII, 2 ed. Rio de Janeiro,
Borsoi, 1958, pp. 104-5. 11 AGOSTINHO ALVIM traz exemplo bastante esclarecedor evidenciando que a impossibilidade
liberadora sempre a objetiva: Outras vezes a confuso aparece ao se tratar de saber qual , precisamente, a obrigao do devedor. Tambm aqui cumpre distinguir. Suponhamos que Tcio promete entregar a Caio, em tal data, mil sacas de arroz. Na ocasio da entrega, escusa-se, alegando que as irregularidades do tempo lhe impediram a colheita. Supostas essas irregularidades, estar aperfeioada a escusa do art. 1.058, pargrafo nico? Depende. Pode acontecer que o negcio tenha sido feito sem ateno ao fato de Tcio ser plantador de arroz. O credor podia ignorar esta circunstncia, ou, mesmo conhecendo-a, no ter combinado a compra do arroz que Tcio viesse a colher. Neste caso, este ltimo somente se exonerar se provar a inexistncia da mercadoria na ocasio da entrega e, portanto, a impossibilidade de obt-la no mercado. Logo, as inclemncias do tempo que atingiram a sua lavoura no o impediro de cumprir a obrigao que assumira, uma vez que ao credor no interessa saber onde o devedor obter a coisa que prometeu entregar. Mas se as circunstncias do caso denunciarem que o negcio foi entabulado em torno da colheita de Tcio, j ento se escusar ele com o mau tempo que lhe tenha impedido, ou prejudicado, a colheita (Da inexecuo das obrigaes e suas conseqncias, 5. ed. So Paulo, Saraiva, 1980, p. 327).
12 J. M. ANTUNES VARELA pondera que a expresso impossibilidade absoluta consiste em pleonasmo (Das obrigaes em geral, v. II, cit., p. 68).
13 J. M. ANTUNES VARELA. Das obrigaes em geral, v. II, cit., p. 68; F. C. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, t. XXIII, cit., p. 105; A. ALVIM. Da inexecuo..., cit., p. 328; A. M. FONSECA. Caso fortuito..., 3 ed. cit., pp. 154-6; O. GOMES. Obrigaes, cit., p. 176.
14 A. M. FONSECA. Caso fortuito..., 3 ed. cit., p. 153; O. GOMES. Obrigaes, cit., p. 44; C. COUTO E SILVA. A obrigao..., cit., pp, 98-9; R. R. AGUIAR JR. Extino dos contratos..., cit., p. 97. No mesmo sentido, o texto legal do art. 106 do Cdigo Civil.
15 O. GOMES. Obrigaes, cit., pp. 176-7. 16 A. ALVIM. Da inexecuo..., cit., pp. 328-9; F. C. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito
Privado, t. XXIII, cit., pp. 105-6.
19
dificuldade: impossibilidade relativa no dificuldade17. Trata-se, na verdade, de avaliar a
impossibilidade de acordo com circunstncias especiais de cada caso18.
AGOSTINHO ALVIM traz o seguinte exemplo:
Suponha-se que algum, obrigado a despachar grande
quantidade de mercadorias, v-se diante de uma greve de ferrovirios. Se lhe for
possvel enviar as mercadorias por estrada de rodagem, a isso est obrigado, ainda que
o nus seja maior, ou muito maior. Todavia, se no houver servio regular por estrada
de rodagem, no est ele obrigado a adquirir caminhes, ou a fret-los de particulares,
a qualquer preo19.
O. GOMES, por sua vez, exemplifica:
O exemplo clssico de impossibilidade, segundo sua
conceituao jurdica, o da obrigao de transportar mercadorias atravs de
rio que gelou; logicamente, a prestao pode ser satisfeita, por isso que o
devedor teria o recurso de usar um quebra-gelo, mas, juridicamente, tornou-se
impossvel, porque o obrigaria a gastos vultosos, exigindo esforo excedente
dos limites razoveis20.
E tambm PONTES DE MIRANDA:
O transportador prometeu levar montanha o
material de construo; a ponte sobre o rio caiu; para lev-lo at o lugar que
se designou seria preciso dar a volta montanha e entrar por outro caminho, o
que custaria muitssimo mais do que o preo dos transportes (...). Se A promete
construir a casa no terreno de B, mas, ao comear as obras, descobre que a
fonte que se conhecia na parte inferior do terreno passa por baixo do lugar em
que teria de construir, exigindo pilastras ou estacas alicerciais de dez metros
ou mais, a impossibilidade est caracterizada, porque essa no era a prestao
em que A e B acordaram ao concluir o contrato de empreitada21.
Esses interessantes exemplos foram listados, pois provvel que no direito
vigente fossem alguns deles mais corretamente subsumidos hiptese de onerosidade
excessiva, sem descuidar, claro, dos outros requisitos a ela necessrios. Na realidade,
quando a prestao no se torna impossvel, mas apenas mais custosa (transportes mais
17R. R. AGUIAR JR. Extino dos contratos..., cit., p. 99. 18 C. M. S. PEREIRA. Instituies de direito civil, v. II, Teoria geral de obrigaes, 12 ed. Rio
de Janeiro, Forense, 1993, p. 246. 19 A. ALVIM. Da inexecuo..., cit., p. 328. 20 O. GOMES. Obrigaes, cit., pp. 176-7. 21 F. C. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, t. XXIII, cit., pp. 105-6.
20
caros, construo mais complexa) e, conseqentemente, deixa de ser remunerada
equivalentemente pela contraprestao, o problema o da onerosidade excessiva. H
impossibilidade relativa quando, por circunstncias especiais, a impossibilidade subjetiva,
em prestao fungvel, deve tambm liberar o devedor.
O aresto acima citado22 um exemplo concreto disso. No caso, a prestao era
de pagamento de certo preo. Tal prestao no objetivamente impossvel. Contudo, o ,
subjetivamente, para o devedor que est com seu dinheiro bloqueado. Nesse caso, tal
impossibilidade relativa foi considerada suficiente para liber-lo da obrigao.
Tal peculiaridade constou inclusive do voto do Min. Ruy Rosado de Aguiar
que assim exps:
Gostaria de registrar que, no nosso sistema, a
impossibilidade que se admite para escusar o devedor de cumprimento da sua
obrigao a impossibilidade absoluta, no caso, inocorrente. Depois do plano
Collor, as obrigaes continuaram sendo cumpridas, porque no se aplicou o
princpio da impossibilidade absoluta, que no existiu. Por isso, parece-me
mais conveniente examinar, caso a caso, a impossibilidade relativa do devedor,
nas circunstncias objetivas do negcio e de acordo com as suas condies
pessoais, de acordo com a teoria objetiva da alterao da base do negcio.
Na mesma toada, no configuram ainda onerosidade excessiva outros casos
tambm lembrados em exemplos doutrinrios de impossibilidade subjetiva ou relativa. W.
B. MONTEIRO entende que prestaes infungveis que impliquem risco para a sade ou vida
do devedor excedente ao risco normal inerente sua atividade, se reputam impossveis23.
O. GOMES trata como prestao impossvel a inexigibilidade psquica, correspondente
quela que obrigue o devedor a suportar intolervel constrangimento moral. O exemplo
dado o do ator que entre em cena enquanto sua esposa est moribunda24. M. J. ALMEIDA
COSTA pondera que se enquadrariam no regime da alterao das circunstncias positivado
em Portugal, no apenas os casos de onerosidade excessiva econmica da prestao, mas
aqueles que envolvessem grandes riscos pessoais ou excessivos sacrifcios de natureza no
22 STJ, REsp n 42.882-3-SP, 4 Turma, rel. Min. Slvio de Figueiredo Teixeira, j. 21/3/1995,
DJ 8/5/1995. 23 W. B. MONTEIRO. Curso de direito civil: direito das obrigaes, 1 vol. So Paulo, Saraiva,
1960, p. 100. 24 O. GOMES. Obrigaes, cit., p. 178.
21
patrimonial ao devedor25. Neste grupo de casos tambm se encontraria o exemplo trazido
por A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO: o do jornalista que escreve para peridico de linha
editorial catlica, o qual vendido e modifica sua linha editorial para atia e contrria
Igreja. Tal jornalista teria de arcar com sacrifcio insuportvel.
Em nenhum desses casos o problema de ordem patrimonial. Todos esses
exemplos conferem uma flexibilizao do conceito de impossibilidade, relativizando-o em
torno de uma impossibilidade que pode ser denominada moral26 e assim devem ser
resolvidos. Nenhum deles aproxima-se da hiptese da onerosidade excessiva do direito
brasileiro, que como visto inicialmente e que ser aprofundado, refere-se ao desequilbrio
econmico, objetivo, entre prestaes.
Por outro lado, no se enquadra como onerosidade excessiva, (e como visto,
nem como impossibilidade relativa), a doutrina alem, muito divulgada e acolhida naquele
pas aps a primeira guerra mundial, da impossibilidade econmica, como nos casos de
aumentos imprevistos de preos, de tal modo que a prestao resulte insuportvel para o
devedor do ponto de vista econmico27. Em virtude da impreciso de seus critrios
valorativos, foi ainda defendida a teoria do limite do sacrifcio, com o intento de
fundament-la.
De todo modo, cumpre esclarecer que no se trata nesse trabalho de estudar
impossibilidade econmica ou limite do sacrifcio. O tema da runa do devedor no faz
parte desse trabalho. Ele s ter relevncia aqui, indireta e eventualmente, na medida em
que ocorra o seguinte: a prestao que leva o devedor runa perdeu sua relao de
equivalncia com a contraprestao. Nesses termos, o problema se enquadra na
onerosidade excessiva e dever ser examinado de acordo com seus pressupostos prprios28.
25 M. J. ALMEIDA COSTA. Direito das obrigaes, cit., p. 251. 26 A. MENEZES CORDEIRO. Da modernizao do direito civil v. I (aspectos gerais). Coimbra,
Almedina, 2004, p. 111. 27 K. LARENZ. Derecho de obligaciones, t. I., version espanla y notas de J. S. BRIZ. Madrid,
Revista de Derecho Privado, 1958 , pp. 310-31. 28 Vale aqui a colao do seguinte trecho de C. C. COUTO E SILVA. A obrigao..., cit., p. 108:
preciso salientar que no obsta o exerccio da pretenso a possibilidade de ser o devedor levado runa. Aqui, no se cuida de saber se a pretenso poderia ser obstaculizada em virtude de resultar de seu exerccio a morte econmica do devedor. Essas objees, de nenhum modo, podem impedir o exerccio de uma pretenso. Os motivos que a poderiam ocorrer seriam metajurdicos, ditados, talvez, em razo de um sentimento de piedade, e de nenhuma influncia. A, poder-se-ia falar de um aequitas bursalis. O princpio o de que o devedor responde com o bem determinado (proecise agere) ou com seu patrimnio, e, por esse motivo, existe o concurso de credores.
22
Por outro lado, a onerosidade excessiva (=desequilbrio econmico) pode ocorrer ainda
quando o devedor no tenha nenhuma dificuldade em adimplir sua prestao.
Distinto de tudo quanto foi tratado at aqui, ainda o caso da jurisprudncia
alem de direito constitucional, trazido por C.W. CANARIS, referente responsabilidade de
familiares de um devedor por fianas prestadas, de valor altssimo. Aqui, o problema era o
de que o fiador, por no ter quase nenhum patrimnio, se via numa dificuldade financeira
sem perspectiva de sada. O Tribunal Constitucional Federal viu nisso, em detrimento da
liberdade de contratar, violao do direito ao livre desenvolvimento da personalidade,
efeito irradiador dos direitos fundamentais, por meio do princpio da boa-f, positivado no
Cdigo Civil29.
Tal caso, apesar de envolver uma obrigao extremamente gravosa para uma
das partes, no configura a onerosidade excessiva, tampouco impossibilidade
superveniente. O entendimento de sua soluo tal como formulada depende da relao
entre o princpio constitucional da dignidade da pessoa humana e sua incidncia no direito
privado, por via de conceitos jurdicos indeterminados e clusulas gerais dispostos no
Cdigo Civil30. Essa temtica no , por sua vez, objeto do presente estudo.
Por fim, no se trata de onerosidade excessiva a matria relatada em alguns
casos jurisprudenciais nacionais envolvendo compromisso de compra e venda31. Tratava-se
de contratos de longa durao para aquisio de unidades habitacionais, nos quais os
compromissrios compradores alegavam insuportabilidade das prestaes, reajustadas por
ndices superiores aos adotados para a atualizao dos salrios. Observe-se to somente
que o problema no era de desequilbrio entre as prestaes. Elas permaneciam
29 C.W. CANARIS. A influncia dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha,
in Constituio, Direitos Fundamentais e Direito Privado/I. W. SARLET (Org.). Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003, pp. 223-243, pp. 228-9.
30 V. A. SILVA. A constitucionalizao do direito: os direitos fundamentais nas relaes entre particulares, 1 ed., 2 tir. So Paulo, Malheiros, 2008, p. 147.
31 Como exemplo: TJ/SP, Ap. Cv. n 226.264-2, 13 Cm. civ., rel. Des. Marrey Neto, j. 12/4/1994, JTJ 159/34; TJ/SP, Ap. cv. n 256.637-2, 12 Cm. civ., rel. Des. Carlos Ortiz, j. 30/5/1995, JTJ 178/47; STJ, REsp n 200.019-SP, 3 Turma, rel. Min. Waldemar Zveiter, rel. p/ acrdo Min. Ari Parglender, j. 17/5/2001, DJ 27/8/2001; STJ, REsp n 132.903-SP, 4 Turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 16/9/1997, DJ 19/12/1997; STJ, REsp n 109.960-RS, 4 Turma, rel Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 24/2/1997, DJ 24/3/1997. Tais casos tiveram uma pluralidade de fundamentos para justificar a possibilidade de resoluo pelo devedor que no podia mais cumprir o pactuado, como por exemplo, a base do negcio, o art. 53 do Cdigo de Defesa do Consumidor, a alternatividade da clusula resolutria, circunstncias do caso concreto, a inimputabilidade do inadimplemento.
23
equivalentes. O problema ocorria to somente na esfera de um dos devedores que, por
fora da correo monetria, se via vinculado a uma prestao muito gravosa e que no iria
conseguir cumprir. R. R. AGUIAR JR. apresenta tais exemplos dentre os casos especiais de
resoluo do contrato pelo devedor, utilizando-se para tanto, da teoria da perda da base
objetiva do negcio, no seu aspecto de frustrao da finalidade contratual32. Essa
possibilidade de resolver no se d, portanto, pela onerosidade excessiva e assim, no ser
examinada em pormenores neste trabalho.
Dadas esses primeiras coordenadas relacionadas delimitao da onerosidade
excessiva frente impossibilidade superveniente, cumpre agora delimit-la dentro do
conjunto maior de casos de alterao das circunstncias33.
Como j dito, a onerosidade excessiva configura-se pelo desequilbrio
contratual superveniente. Esse tipo de caso uma espcie de alterao das circunstncias.
H outros grupos de casos em que no ocorre desequilbrio superveniente, mas so
apresentados como exemplos de alterao das circunstncias34.
A idia que une esse grupo de casos a da perda do sentido do contrato.
Alguns exemplos so recorrentes na doutrina para ilustr-los. So eles o do
aluno, a quem o professor dava aulas de canto, que ensurdece por completo35; ou o
exemplo de K. LARENZ, da encomenda de uma porta para uma igreja que resta destruda
pela guerra36; tambm os coronation cases, em que pelo cancelamento da coroao do Rei
Eduardo III perderam sua finalidade uma srie de contratos de locao pactuados
justamente para que os interessados pudessem apreci-la de algumas sacadas que estavam
no itinerrio do cortejo37.
Alm destes, h o caso em que a finalidade do contrato se cumpre por outra via
que no a prestao, tornando-a intil, como no caso do barco de resgate que deveria
32 R. R. AGUIAR JR. Extino dos contratos..., cit., p. 165. Mais a frente, nesta seo, esse ponto ser retomado.
33 A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Relatrio brasileiro sobre reviso contratual apresentado para as Jornadas Brasileiras da Associao Henri Capitant, in Novos estudos e pareceres de direito privado/A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. So Paulo, Saraiva, 2009, pp. 182-198, p. 184.
34 C. L. B. Godoy. Funo social do contrato. So Paulo, Saraiva, 2004, p. 61. 35 J. M. ANTUNES VARELA. Das obrigaes em geral, v. II, cit., p. 75. 36 K. LARENZ. Base del negocio jurdico y cumplimiento de los contratos. Madrid, Revista de
Derecho Privado, 1956, p. 168. 37 A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negcio jurdico e declarao negocial (noes gerais e
formao da declarao negocial), tese para o concurso de professor titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, 1986, p. 219.
24
rebocar um navio encalhado, que acaba por desencalhar por fora da mar38. A prestao
o reboque ainda possvel, mas perdeu seu sentido diante do navio desencalhado.
Em todos esses casos no h, evidentemente, desequilbrio entre as prestaes
de um contrato. O fato superveniente gera uma perturbao mais central, que da perda da
finalidade, da utilidade do contrato.
Vale at lembrar que R. R. AGUIAR JR. refere os casos acima citados dos
compromissrios compradores que alegavam insuportabilidade das prestaes pelos
reajustes inflacionrios como exemplos de perda da finalidade contratual, utilizando-se da
teoria da base objetiva do negcio para justific-la39.
Para A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, tais casos hoje tm soluo legislativa no
direito brasileiro, pois podem ser resolvidos pela perda da funo social contrato,
positivada no art. 421 do Cdigo Civil40. Inseridos sob o comando normativo da funo
social ainda estariam outros grupos de casos em que a alterao das circunstncias, sem
causar desequilbrio, violasse a dignidade da pessoa humana, privando-a de itens
necessrios a sua subsistncia41.
Alguns exemplos que sero mencionados nas sees seguintes, principalmente
no tocante a referncias histricas da clusula rebus sic stantibus, sero melhor entendidos
se compreendidos nesse campo maior que o da alterao das circunstncias, e no
propriamente no campo mais delimitado da onerosidade excessiva.
Ante tais consideraes, portanto, resta delimitar que o objeto desse estudo no
abrange todo o contedo da alterao das circunstncias. Ele limita-se onerosidade
excessiva entendida como desequilbrio econmico superveniente.
Para R. R. AGUIAR JR., o Cdigo Civil tratou de maneira muito limitada a
onerosidade excessiva e, ao contrrio, tratou de forma superior a boa-f objetiva, alm do
enriquecimento sem causa e da funo social. Nesse sentido, prope o autor que o art. 478
38 K. LARENZ. Derecho de obligaciones, t. I, cit., p. 322. 39 R. R. AGUIAR JR. Extino dos contratos..., cit., p. 165. 40 A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Relatrio..., cit., p. 184. 41 Idem, ibidem, p. 184. Os exemplos acima trazidos de impossibilidade subjetiva ou relativa a
respeito de prestaes que acarretem riscos pessoais aos devedores so trazidos por A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO como casos de onerosidade excessiva psicolgica.
25
seja utilizado de forma subsidiria a esses comandos normativos, somente naquilo que a
elas no for ajustado42.
Diante de tal posicionamento, imperioso advertir que a delimitao do mbito
desse trabalho feita da forma oposta. Os casos de desequilbrio econmico superveniente
devem ser subsumidos hiptese legal de onerosidade excessiva que, por sua vez, possui
natureza e pressupostos prprios, cujo contedo o objeto da dissertao. Justamente por
isso, j se delimitou aqui a incidncia da funo social aos outros casos de alterao das
circunstncias que no configuram onerosidade excessiva.
Com relao boa-f objetiva, J. O. ASCENSO explica que ela foi na verdade
um expediente utilizado para dar relevncia alterao anormal de circunstncias na
ausncia de fundamentao legal para tal. Quando o Cdigo Civil brasileiro deixa de
utilizar a boa-f e consagra dispositivo legal prprio, procede de maneira mais
desenvolvida. E isso positivamente justificvel: a boa-f se traduz em regras de conduta,
enquanto na onerosidade excessiva tem-se uma valorao do prprio contedo do negcio,
tomado por si 43.
Outros julgados, quando no havia legislao especfica a respeito, norteavam
a aplicao da impreviso pelo princpio que veda o enriquecimento sem causa44. A
peculiaridade que aqui deve ser ressaltada, apenas para evitar qualquer tipo de confuso,
que o aspecto do enriquecimento sem causa que incidiria na onerosidade excessiva seria
to s o de princpio, como pano de fundo e no o de fonte obrigacional45. A onerosidade
excessiva tem natureza prpria que no se confunde com o enriquecimento sem causa.
A idia justamente essa: o foco no a onerosidade excessiva vista sob o
prisma do enriquecimento sem causa ou da boa-f, mas a onerosidade excessiva vista por
si s. Assim, passa-se a proceder uma breve aproximao histrico-conceitual de seu
contedo.
42 R. R. AGUIAR JR. Extino dos contratos..., cit., p. 148. 43 J. O. ASCENSO. Alterao das circunstncias e justia contratual no novo Cdigo Civil, in
Revista trimestral de direito civil, v. 25, ano 7, jan./mar. 2006, p. 93-118, p. 111: A nosso ver, continuar a recorrer boa-f havendo preceito legal, anacrnico. Mantm como explicao atual o que foi um mero expediente. No se regula a conduta. Valora-se diretamente o contedo, e em decorrncia da valorao negativa deste que se cria a impugnabilidade da relao, no sentido da resoluo ou modificao desta.
44 Como exemplo, TJ/SP, Ap. cv. n 86.569-4/0, 4 Cm. dir. priv., rel. Fonseca Tavares, j. 12/8/1999. Mesmo depois do advento do Cdigo civil de 2002, h julgados que continuam embasando a questo no enriquecimento sem causa: TJ/SP, Ap. n 992.06.003851-8, 25 Cm. dir. priv., rel. Des. Marcondes DAngelo, j. 22/10/12009.
45 G. E. NANNI. Enriquecimento sem causa. So Paulo, Saraiva, 2004, p. 374.
26
CAPTULO II
SNTESE DO DESENVOLVIMENTO HISTRICO DA
ONEROSIDADE EXCESSIVA NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
Para cumprir a funo de situao, essa linha evolutiva ser traada com base
apenas nos estudos doutrinrios, por trs razes. A primeira a de que, entendido o direito
como sistema de segunda ordem46, doutrina e jurisprudncia se alimentam uma a outra, de
tal modo que os resultados encontrados em uma delas no seriam divergentes em essncia,
daqueles encontrados na outra.
A segunda a de que, especificamente no tema da onerosidade excessiva, a
maioria dos estudos doutrinrios sempre trouxe, por causa da ausncia de lei, ao lado do
aprofundamento terico, apoio jurisprudencial. Quando, ao final do sculo XX, foi
possvel doutrina concluir quais os requisitos para a reviso ou resoluo de um contrato
por fato superveniente, o fez pautando-se em grande parte nas decises judiciais47.
Por fim, a escolha pelo exame da doutrina para essa funo introdutria se d
porque parece ser o modo como se evidencia melhor e mais sinteticamente a linha
evolutiva do direito brasileiro. Os julgados sero citados neste trabalho no decorrer do
texto nas sees seguintes, principalmente para ilustrar entendimentos acerca do direito
vigente.
46 A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. (parecer) O direito como sistema complexo e de 2a ordem; sua
autonomia. Ato nulo e ato ilcito. Diferena de esprito entre responsabilidade civil e penal. Necessidade de prejuzo para haver direito de indenizao na responsabilidade civil, in Estudos e pareceres de direito privado/A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. So Paulo, Saraiva, 2004, pp. 25-37, pp. 26-27. Sistema de 2 ordem significa que o direito, em primeiro lugar, est diretamente relacionado realidade social. Ele no existe independentemente dela, mas s a partir dela. Os mundos jurdico e social no esto separados. Alm disso, no sistema de direito, entre seus elementos componentes, como a norma, as instituies, os operadores e a jurisprudncia, h um mecanismo de feed-back, pelo qual cada parte integrante retro-alimenta uma a outra, de tal modo que, por exemplo, uma conquista da jurisprudncia revelada pela doutrina, da qual um juiz toma conhecimento e a re-aplica em nova deciso.
47 Exemplar nesse sentido o estudo de RENATO JOS DE MORAES. Clusula rebus sic stantibus. So Paulo, Saraiva, 2001.
27
Desta forma, possvel comear afirmando que o sentido da investigao sobre
o superveniente desequilbrio contratual no direito brasileiro fundou-se inicialmente na
autonomia da vontade das partes, no incio do sculo XX, e teve depois outras formas de
fundamentao, por volta ainda da metade do sculo passado, em torno da noo de
equilbrio contratual. O tema nasceu sendo tratado mais comumente como clusula rebus
sic stantibus, ou Teoria da Impreviso.
Embora nas Ordenaes Filipinas possam ser encontrados dispositivos que
remetam a idia de alterao das circunstncias48, o trato da clusula rebus s iniciou
mesmo posteriormente. O Cdigo civil de 1916, por sua vez, dela no tratou
expressamente, e por isso, saber se ele lhe dava ou negava acolhida sempre foi motivo de
debate. Nesse contexto, tem-se como o primeiro trabalho de um jurista brasileiro sobre a
clusula, o parecer de CASTRO MAGALHES, publicado em 192049, que negou a
possibilidade de sua invocao perante o direito brasileiro, em nome da certeza do contrato
como lei entre as partes. Mas logo em 1923, foi publicado o artigo em que JAIR LINS
defendia a adoo da clusula pelo direito brasileiro, baseado no art. 85 do Cdigo Civil e
no argumento de que ocorrendo profundas alteraes de circunstncias, o prprio
consentimento e em decorrncia, o contrato deixaria de existir. tido, por isso, como o
primeiro adepto da teoria no pas50.
Em seqncia foram publicados, j na dcada de 30, artigos e livros em defesa
e em oposio invocao da clusula ou da teoria no direito brasileiro51. O debate se dava
48 P. C. MAIA. Da clusula rebus sic stantibus. Monografia para concurso Ctedra de Direito
Civil da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo. So Paulo, 1959, pp. 53-54: o autor traz o seguinte dispositivo das Ordenaes Filipinas (que tiveram vigncia no Reino de Portugal a partir de 11 de janeiro de 1603 e que vigeram no Imprio do Brasil pelo art. 1, da Lei de 20.10.1823), livro IV, ttulo XXI, sob a intitulao em que moedas se faro os pagamentos do que se compra, ou deve: Posto que alguns compradores e vendedores, e outros contrahentes se concertem, que se haja de pagar certa moeda de ouro, ou de prata, ser o vendedor obrigado a receber qualquer moeda corrente lavrada de nosso cunho, ou dos Reis, que ante Ns foro, na valia, que lhe per Ns for posta. Tambm, do mesmo livro, os ttulos XXIV, XXVII, LXV. O autor assinalou tambm, em outra oportunidade, e atribuindo a causa ao individualismo, o fato de que Teixeira de Freitas no tratara do tema: P. C. MAIA. Clusula rebus sic stantibus, in Enciclopdia Saraiva do Direito/R. L. FRANA (Coord.), v. 15. So Paulo, Saraiva, 1977, p. 144.
49 J. C. MAGALHES. (parecer) A clusula rebus sic stantibus, in Revista Forense, v. XXXIII, jan./jun. 1920, pp. 45-46. R. J. MORAES. Clusula..., cit., p. 89.
50 J. LINS. A clusula rebus sic stantibus, in Revista Forense, v. XL, 1923, p. 512-516. R. J. MORAES, Clusula, cit., p. 91.
51 Como ilustrao do perodo, os seguintes importantes artigos: O. NONATO. Aspectos do modernismo jurdico e o elemento moral na culpa objetiva, in Revista Forense, v. LVI, jan./jun. 1931, pp. 5-26, no qual o autor ponderava que para resolver a tenso entre direito e justia, juristas vinham utilizando a teoria da impreviso; J. AMERICANO. Clusula Rebus Sic Stantibus, in Revista da Faculdade de Direito de So Paulo, v. XXIX, 1933, pp.345-351; C. BEVILQUA. Evoluo da teoria dos contratos em nossos dias, in Revista de Crtica Judiciria, ano XVI, v. XXVIII, n III, Set. 1938, pp. 137-143, em que o autor apontava para a socializao do direito e para que o conflito entre pacta sunt servanda e rebus sic stantibus fosse
28
em torno de quais artigos do Cdigo Civil serviriam como bases para defesa52. Pode-se
observar como tanto os que se opunham clusula, como os que a defendiam, nessa poca,
utilizavam argumentos fundados, preponderantemente, no critrio ltimo da autonomia da
vontade53, e entendiam o contrato como simples acordo de vontades.
Nas dcadas de 40 e 50 deu-se o estabelecimento da clusula rebus sic
stantibus na doutrina brasileira54, principalmente por duas importantes obras: A segunda
edio do livro de ARNOLDO MEDEIROS DA FONSECA, no qual o autor mudou de
posicionamento na primeira edio de seu livro negara a aplicabilidade da figura, em
nome do pacta sunt servanda55 e o estudo de PAULO CARNEIRO MAIA56.
Quanto obra de A. M. FONSECA, a mudana de posicionamento deu-se por
motivos interessantes de observar: dado que do Cdigo Civil no se deduzia a aplicao da
teoria da impreviso (como havia defendido na primeira edio do trabalho), o fundamento
para sua utilizao se deu pelo advento da legislao da Revoluo de 30, como a Lei da
Usura, a Lei de Locaes e a prpria Lei de Introduo ao Cdigo Civil, que davam novas
resolvido pela boa-f e moral; e o livro de A. ROCHA. Da interveno do estado nos contratos concludos. Rio de Janeiro, Irmos Porgetti, 1932. Tambm os seguintes livros, porm em sentido de negao da clusula: A. M. FONSECA. Caso fortuito e teoria da impreviso. Rio de Janeiro, Tip. Jornal do Commercio, 1932; J. M. CARVALHO SANTOS. Cdigo Civil brasileiro interpretado, v. XV, 2 ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1938, pp. 212-234. J. X. CARVALHO DE MENDONA. Tratado de direito commercial brasileiro, v. VI, 1 parte, 3 ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1938, pp. 61-64.
52 Alguns artigos do Cdigo Civil de 1916 citados como base legal para aplicao da clusula: Art. 85. Nas declaraes de vontade se atender mais sua inteno que ao sentido literal da linguagem; Art. 762. A dvida considera-se vencida: I Se, deteriorando-se, ou depreciando-se a coisa dada em segurana, desfalcar a garantia, e o devedor, intimado, a no reforar; Art. 1.059. Salvo as excees previstas neste Cdigo, de modo expresso, as perdas e danos devidos ao credor abrangem, alm do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar; Art. 1092, alnea. Se, depois de concludo o contrato sobrevier a uma das partes contratantes diminuio em seu patrimnio, capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestao pela qual se obrigou, pode a parte, a quem incumbe fazer a prestao em primeiro lugar, recusar-lhe a esta, at que a outra satisfaa a que lhe compete ou d garantia bastante de satisfaz-la.
53 Em sentido de negar aplicao teoria da impreviso, J. M. CARVALHO SANTOS, Cdigo..., cit., p. 230: A lei no exige o consentimento seno para a formao do contrato. O ato de vontade, que se faz preciso para a sua execuo, j no cabe no campo do direito. Em sentido de defesa da clusula, A. ROCHA. A interveno..., cit., pp. 48-49: Seja qual foi o conceito deste ou daquelle escriptor entre os muitos que expem idas e dedues, a base de systemas e theorias sempre a mesma psychologia da vontade contractual, e de qualquer modo se conclue que a doutrina italiana inteiramente baseada na lei natural do consenso, segundo a qual todo negcio jurdico condicionado por um pressuposto econmico de limite ordinrio; e em consequencia o Estado, responsvel pela ordem jurdica ou tutela dos negcios alienados de senso bilateral, tem de levar em conta a impotncia da vontade para realizar um acordo preventivo de todos os riscos; de modo que a sua assistncia no attinge a autoridade dos contractos e antes obedece ao princpio de autonomia da vontade. Em outros termos, a incompatibilidade do regimem do contracto com a supervenincia uma presumpo juris et de jure, limitando a questo ao reconhecimento do meio externo, - originrio a posterior -, para estabelecer a differena entre os dois e por esta graduar as obrigaes. A vontade, no demais repetir, foi estabelecida pelo meio exterior, porque ella no tinha outro meio de concepo, e a questo s de prova ou identidade de coisas.
54 R. J. MORAES. Clusula...., cit., p. 98.. 55 A. M. FONSECA. Caso fortuito..., cit., p. 187-188. R. J. MORAES. Clusula..., cit., p. 89. 56 P. C. MAIA. Da clusula..., cit.
29
luzes para o entendimento da intangibilidade do contrato57. O legislador determinava,
ento, que se atentasse s exigncias de fins sociais e de bem comum. Na concluso da
obra foi trazida uma espcie de sntese dos requisitos para a aplicao da teoria, com
recurso analgico de precises aritmticas58. Tal obra exerceu forte influncia sobre as
futuras geraes de juristas brasileiros, chegando a significar um marco na doutrina
nacional59.
Nesse perodo h tambm uma primeira tentativa de trato legislativo geral para
o problema com o Anteprojeto da Parte Geral do Cdigo das Obrigaes de 1941, que
contemplava a possibilidade de reviso contratual em termos prximos ao que vinha sendo
discutido at ento no seu art. 32260. Complementam essa fase estudos de vrios autores,
nos quais se fundamenta a soluo do problema, principalmente, na socializao do direito
frente ao individualismo ou solidarismo61, na relativa equivalncia de prestaes62 ou ainda
pela associao figura da leso subjetiva63. O que ressoa mais forte, contudo, a
tendncia a no se utilizar mais argumentos focados exclusivamente na vontade das
partes64.
Durante as dcadas de 60 e 70, todos os grandes tratadistas do direito civil
brasileiro se manifestaram sobre a impreviso e a clusula rebus, admitindo sua aplicao
57A. M. FONSECA. Caso fortuito e teoria da impreviso, 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro,
Forense, 1958, pp. 329-330. 58 A. M. FONSECA. Caso fortuito..., 3 ed. cit., pp. 345-346: (...) a supervenincia de
acontecimentos imprevistos e imprevisveis, alterando profundamente o ambiente objetivo existente ao tempo da formao do contrato e acarretando para um dos contratantes uma onerosidade excessiva e no compensada por outras vantagens auferidas anteriormente, ou ainda esperveis, diante dos termos do ajuste, pode dar lugar interveno judicial para resolver o vnculo contratual. Para isso, porm, exige-se que, s duas primeiras condies, acima fixadas, se alie uma terceira: o lucro inesperado e injusto do credor, excedente a um quinto do valor normal da prestao a que teria direito, limite esse estabelecido em disposies anlogas de nosso direito positivo.
59 R. J. MORAES. Clusula..., cit., p. 103. 60 Tal Anteprojeto foi uma iniciativa do governo Vargas de empreender a reforma do Cdigo
Civil, unificando as obrigaes civis com as comerciais, em subordinao aos interesses da ordem social, mitigados os excessos do individualismo. O art. 322 assim dispunha: Quando por fora de acontecimentos excepcionais e imprevistos ao tempo da concluso do ato, ope ao cumprimento exato deste dificuldade extrema, com prejuzo exorbitante para uma das partes, pode o Juiz, a requerimento do interessado e considerando com equanimidade a situao dos contraentes, modificar o cumprimento da obrigao, prorrogando-lhe o termo, ou reduzindo-lhe a importncia. C. ZANETTI, Direito contratual contemporneo: a liberdade contratual e sua fragmentao. So Paulo, Mtodo, 2008, pp.145-148.
61 F. C. SANTIAGO DANTAS. Evoluo contempornea do direito contratual, in Problemas de direito positivo. Rio de Janeiro, Forense, 1953, pp. 13-33; C. M. SILVA PEREIRA. Clusula rebus sic stantibus, in Revista Forense, v. 92, out. 1942, pp. 797-800.
62 E. ESPNOLA. A clusula rebus sic stantibus no direito contemporneo, in Revista Forense, v. 137, Set. 1951, pp. 281-292.
63 P. C. MAIA. Da clusula..., cit., p. 210. 64 R. J. MORAES. Clusula..., cit., p. 114.
30
no direito brasileiro, mas sempre com rigor65. Houve questionamentos sobre qual teoria
fundamentaria melhor a figura, com aprofundamento nas teorias alems66. As aluses s
noes de equivalncia de prestaes como base dos contratos comutativos foram
intensificadas nessa poca67. Tambm o problema da inflao mereceu ateno especial no
que tange ao tema68, enquanto nova tentativa de legislar a matria restou infrutfera mais
uma vez69.
Novas vises do contrato, que integravam tanto o aspecto de instrumento
econmico como a noo de equivalncia elementar aos contratos comutativos, foram
manifestadas, chegando-se a afirmao do equilbrio econmico como fonte de sentido do
contrato70. Outros estudos, sintetizando concluses, sempre com apoio na jurisprudncia,
ou trazendo novas contribuies ao tema foram publicados71. E foi at possvel proceder a
uma diviso classificatria de teorias que a fundamentam: as com base na vontade, como a
da impreviso, a da pressuposio, a da vontade marginal, a da base do negcio, a do erro,
a da situao extraordinria, a do dever de esforo; as fundamentadas na prestao, como a
do estado de necessidade e do equilbrio das prestaes; e as extrnsecas ao contrato, como
65 M. M. SERPA LOPES. Curso de direito civil, v. III, (Fontes das obrigaes:contratos), 4 ed.
rev. e aum. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1962, pp. 109-117; S. RODRIGUES. Direito civil, v. 3 dos contratos e das declaraes unilaterais da vontade, 26 ed. rev. So Paulo, Saraiva, 1999, pp. 20-24; W. B. MONTEIRO. Curso de direito civil, v. 5, Direito das obrigaes, 2 parte, Contratos, 31 ed. rev. e atual. So Paulo, Saraiva, 1999, pp. 10-11. C. M. SILVA PEREIRA. Instituies de direito civil, v. 3, Fontes de obrigaes, 7 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984, pp. 108-113. D. BESSONE. Do contrato: teoria geral, 4 ed. So Paulo, Saraiva, 2007, pp. 213-224. O. GOMES. Contratos, 10 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984, pp. 38-42 e pp.199-202. F. C. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, t. XXV, 2 ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 1959, pp. 215-265.
66 F. C. PONTES DE MIRANDA. Tratado..., cit., pp. 215-231. O. GOMES. Introduo ao problema da reviso dos contratos, in Transformaes gerais do direito das obrigaes. So Paulo, Revista dos Tribunais, 1967, pp. 45-64.
67 D. BESSONE. Do contrato..., cit., p. 223. 68O. GOMES. Influncia da inflao nos contratos, in Transformaes..., cit., pp. 125-140. 69 O Anteprojeto de Cdigo de Obrigaes de 1965 fazia parte de mais um plano de reforma do
Cdigo civil. Na seo IV Resoluo por onerosidade excessiva constava: Art. 346. Nos contratos de execuo deferida ou sucessiva, quando, por fora de acontecimento excepcional e imprevisvel ao tempo de sua celebrao, a prestao de uma das partes venha a tornar-se excessivamente onerosa, capaz de lhe ocasionar grande prejuzo e para a outra parte lucro desmedido, pode o juiz, a requerimento do interessado, declarar a resoluo do contrato. Pargrafo nico. Os efeitos da sentena, ento proferida, retroagem data da citao da outra parte. Art. 347. A resoluo do contrato poder ser evitada, oferecendo-se o ru, dentro do prazo da contestao, a modificar razoavelmente o cumprimento do contrato. Art. 348. Aos contratos aleatrios no se aplica a resoluo por onerosidade excessiva. Art. 349. No se resolver por onerosidade excessiva o contrato em que uma s das partes haja assumido obrigaes, limitando-se o juiz, neste caso, a reduzir-lhe a prestao. Sobre o Anteprojeto, C. ZANETTI, Direito contratual... cit., pp.149-152.
70 M. REALE. (parecer) Compra e venda Equilbrio econmico do contrato, in Revista Forense, v. 231, jul./ago./set. 1970, pp. 54-60.
71 Como exemplo: J. M. O. SIDOU. A Reviso judicial dos contratos e outras figuras jurdicas, 2 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984. F. Q. B. CAVALCANTI. A teoria da impreviso, in Revista Forense, v. 260, out./nov./dez. 1977, pp. 109-116.
31
a do fundamento na moral, na boa-f, na extensibilidade do fortuito, na socializao do
direito, na eqidade e na justia72.
A linha evolutiva prossegue passando s dcadas de 80 e 90, que constituem o
ltimo estgio do desenvolvimento do tema at ento, no direito brasileiro. A dcada de 80
marcada pelo cenrio de grave crise econmica, que acarretou a desvalorizao da moeda
e fortes intervenes estatais na economia. Esse contexto repercutiu no estudo do tema,
principalmente pelo enfoque dado na relao entre ele e a correo monetria, dvidas de
valor, clusulas de escala mvel, chegando-se a afirmar que em todo contrato h um direito
subjetivo do contratante ao equilbrio econmico73.
Aps a Constituio de 1988, outras contribuies foram dadas ao tema. Em
nome da denominada corrente do direito civil-constitucional, foram revistos
posicionamentos a respeito da inflao, quando esta, a despeito de previsvel, se mostrava
em ndices fora de qualquer cogitao74. Deu-se enfoque profundo tanto relao entre o
contrato e o mundo exterior a ele75, quanto relao entre temporalidade, segurana,
proporcionalidade e equivalncia76. A teoria da base do negcio foi bastante utilizada para
justificar tais posicionamentos77. E a jurisprudncia acompanhava e influenciava tal
desenvolvimento78.
Com o advento do Cdigo de Defesa do Consumidor, tambm houve novas
idias lanadas sobre o tema. O Cdigo tratava expressamente da reviso por onerosidade
72 A. J. OLIVEIRA. A Clusula Rebus sic Stantibus atravs dos tempos. Belo Horizonte, 1968,
pp. 87-133. 73 A. WALD. Reviso de valores no contrato: a correo monetria, a teoria da impreviso e o
direito adquirido, in Revista dos Tribunais, v. 647, set. 1989, pp. 23-34. Tambm sobre essas relaes, M. KLANG. A teoria da impreviso e a reviso dos contratos, 2 ed., rev. e ampl. So Paulo, RT, 1991. Julgados desta fase foram colacionados no Captulo VIII, Seo 1, Subseo IV.
74 G. TEPEDINO. Efeitos da crise econmica na execuo dos contratos, in Temas de Direito Civil/G. TEPEDINO. Rio de Janeiro, Renovar, 1999, pp. 73-111, pp. 77-8.
75 J. B. VILLELA. O Plano Collor e a teoria da base negocial, in Repertrio IOB de Jurisprudncia, n 19/90, So Paulo, p. 382.
76 J. MARTINS-COSTA. A teoria da impreviso e a incidncia dos planos econmicos governamentais na relao contratual, in Revista dos Tribunais, v. 670, ago. 1990, p. 41-42.
77 C. COUTO E SILVA. A teoria da base do negcio jurdico no direito brasileiro, in Revista dos Tribunais, v. 655, mai. 1990, pp. 7-11.
78 A.V.AZEVEDO. Teoria da impreviso e reviso judicial nos contratos, in Revista dos Tribunais, v. 733, nov. 1996, pp. 109-119. Um julgado bastante citado que data desse contexto o seguinte: TJ/RS Ap. n 586053548, 6 Cam., rel. Des. Adroaldo Furtado Fabrcio, j. 24/3/1987, RT 630/176.
32
excessiva em termos objetivos, e abriu portas para a via revisionista do contrato, como
mostram importantes monografias do perodo79.
Terminando o perodo at o advento do Cdigo Civil de 2002, foi possvel
enunciar-se o princpio do equilbrio econmico do contrato levando admisso da figura
da onerosidade excessiva80. Nesse contexto, o estudo de RENATO JOS DE MORAES, alm
de servir de seguro guia para traar essa evoluo histrica, trouxe tambm os requisitos
exigidos para reviso dos contratos, os quais eram o decurso temporal, a imprevisibilidade
do fato modificante, o desequilbrio acentuado causado e a ausncia de culpa da parte
prejudicada. O fundamento dado para a figura, por sua vez, foi a justia comutativa81.
At aqui possvel notar como alm da diversidade de fundamentos que
propicia aprofundamento terico e alm de toda gama de recursos utilizados pelos juristas
brasileiros para resolver casos concretos, tais como o solidarismo da legislao
extravagante, as interpretaes extensivas de dispositivos legais, a utilizao das mais
diversas teorias em profundidade, o apelo eqidade, o princpio do equilbrio econmico,
o direito civil brasileiro enfrentou diversos problemas prticos e pde, ento, construir um
conhecimento sobre eles. Assim o problema da inflao, da correo monetria, das
relaes de consumo.
Com o Cdigo Civil de 2002, vrios artigos e estudos monogrficos j foram
apresentados sobre o tema82, cujo objetivo preponderante foi o de estudar os dispositivos
79 L. R. F. SILVA. Reviso dos contratos: do Cdigo Civil ao Cdigo do Consumidor. Rio de
Janeiro, Forense, 1999. R. F. DONNINI. A reviso dos contratos no cdigo civil e no cdigo de defesa do consumidor. So Paulo, Saraiva, 1999.
80 A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. (parecer) Os princpios do atual direito contratual e a desregulamentao do mercado. Direito de exclusividade nas relaes contratuais de fornecimento. Funo social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual, in Estudos e pareceres de direito privado/A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. So Paulo, Saraiva, 2004, p. 141.
81 R. J. MORAES. Clusula..., cit., p. 273. 82 Como exemplo: J. B. ALMEIDA. Resoluo e reviso dos contratos, in Cdigo de Defesa do
Consumidor e o Cdigo Civil de 2002: convergncias e assimetrias, R. A. C. Pfeiffer e A. Pasqualotto (Coord.), p. 232-246. So Paulo, Revista dos Tribunais, 2005. J. O. ASCENSO. Alterao das circunstncias e justia contratual no novo Cdigo Civil, in Revista trimestral de direito civil, v. 25, ano 7, jan./mar. 2006, p. 93-118. Rio de Janeiro, Padma, 2004. A. V. AZEVEDO. O Novo Cdigo Civil Brasileiro: Tramitao; Funo Social do Contrato; Boa-f Objetiva; Teoria da Impreviso e, em Especial, Onerosidade Excessiva (laesio Enormis), in Questes Controvertidas no novo Cdigo Civil,v. 2, M. L. Delgado e J. F. Alvez (Coord.). p. 9-29. So Paulo, Mtodo, 2004. N. BORGES. Aspectos positivos e negativos da reviso contratual no novo Cdigo Civil, in Revista dos Tribunais, n 849, jul. 2006, 95 ano, p. 80-110. So Paulo, Revista dos Tribunais, 2006. J. A. DAZ. A teoria da impreviso no novo Cdigo Civil brasileiro, in Revista de direito privado, n 20, ano 5, out./dez., 2004, p. 197-216. So Paulo, Revista dos Tribunais, 2004. R. F. DONNINI. Reviso de contratos bancrios, in Revista de direito bancrio e do mercado de capitais, n 26, ano 7, out./dez. 2004, p. 41-54. So Paulo, Revista dos Tribunais, 2004. L. C. FRANTZ. Bases dogmticas para
33
legais vigentes. Esse trabalho tambm se insere nessa fase de estudo dos textos legais
vigentes. Antes disso, ser necessrio proceder a um breve panorama das teorias
estrangeiras at ento utilizadas no direito brasileiro para resolver o problema da
onerosidade excessiva. Tal exame tem a finalidade de contextualizar os temas envolvendo
a figura, compreender o porqu de seu aspecto s vezes problemtico, investigar os
fundamentos trazidos para sua soluo e, se possvel, evitar alguns equvocos no
entendimento dos textos legais vigentes.
interpretao dos artigos 317 e 478 do novo Cdigo Civil brasileiro, in Questes Controvertidas no direito das obrigaes e dos contratos, M . L. Delgado e J. F. Alvez (Coord.), p. 157/217. So Paulo, Mtodo, 2005. J. HORA NETO. A resoluo por onerosidade excessiva no novo Cdigo Civil: uma quimera jurdica, in Revista de direito privado, n 16, ano 4, out./dez., 2003, p. 148-160. So Paulo, Revista dos Tribunais, 2003. A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Relatrio brasileiro sobre reviso contratual apresentado para as Jornadas Brasileiras da Associao Henri Capitant, in Novos estudos e pareceres de direito privado/A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO. So Paulo, Saraiva, 2009, pp. 182-198. J. MARTINS-COSTA. A reviso dos contratos no cdigo civil brasileiro, in Roma e Amrica. Diritto Romano Comune, v. 16, Mucchi, 2003, pp. 135-172. A. P. MONTEIRO. Erro e teoria da impreviso, in Revista trimestral de direito civil, v. 15, ano 4, jul./set., 2003, p. 3-20. Rio de Janeiro, Padma, 2003. A. C. F. PUGLIESE. Teoria da impreviso e o novo Cdigo Civil, in Revista dos Tribunais, n 830, dez. 2004, 93 ano, p. 11-26. So Paulo, Revista dos Tribunais, 2004. O. L. RODRIGUES JR. Reviso judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da impreviso. So Paulo, Atlas, 2002. J. SADDI. Teoria da impreviso no contrato bancrio sob a gide do novo Cdigo Civil, in Revista de direito bancrio e do mercado de capitais, n 21, ano 6, jul./set. 2003, p. 184-210. So Paulo, Revista dos Tribunais, 2003. F. TARTUCE. A reviso do contrato pelo novo Cdigo Civil. Crtica e proposta de alterao do art. 317 da Lei 10.406/02, in Questes Controvertidas no novo Cdigo Civil, M. L. Delgado e J. F. Alvez (Coord.), p. 125-148. So Paulo, Mtodo, 2003.
34
CAPTULO III
A CLUSULA REBUS SIC STANTIBUS
INTRODUO
H dois sentidos principais para o uso da expresso rebus sic stantibus.
O primeiro e mais amplo utilizado para designar que todos os atos jurdicos
tm sua eficcia subordinada a certa permanncia do estado das coisas no momento em que
foram formados. Essa concepo no est preocupada em afirmar requisitos, em
especificar remdios, ou delimitar o mbito de abrangncia da figura. Ela colocada mais
no mbito das idias jurdicas, do que propriamente como uma figura jurdica de traos
definidos83. Perceba-se que nem mesmo atrelada ao instituto do contrato ela est. Se
aplicada ao campo contratual, estaria mais prxima de uma noo geral de alterao das
circunstncias do que da onerosidade excessiva.
O segundo e mais estrito sentido da expresso tem cabimento para designar a
seguinte situao: a clusula rebus sic stantibus aquela pela qual os contratos de durao,
ou de execuo diferida, podem ser revisados ou resolvidos, devido ocorrncia de fato
superveniente, com algum grau de imprevisibilidade, que desequilibra a relao contratual
de maneira grave84. Esse o sentido que, j adstrito ao campo contratual, tambm se
aproxima da onerosidade excesiva.
O processo que vai do nascimento da utilizao da expresso nas fontes
jurdicas, nos sculos XI e XII, at sua delimitao, nos sculos XV e XVI, pode ser
compreendido como o movimento da concepo ampla da expresso rebus sic stantibus
delimitao conceitual da clusula rebus sic stantibus.
Como j mencionado, a razo primordial de se estudar aqui a clusula rebus sic
stantibus reside na evidncia de que ela foi e ainda citada tanto em obras especficas
83 R. J. MORAES. Clusula..., cit., p. 29. 84 Idem, ibidem, p. 30.
35
como pela prpria jurisprudncia85, como uma figura capaz de conduzir reviso ou
resoluo do contrato por desequilbrio superveniente. Dado esse motivo, poderia se
objetar o porqu de se mencionar esse sentido amplo da expresso rebus sic stantibus, que
ultrapassa o prprio campo contratual, e no se limitar to somente ao seu sentido estrito.
Tal empreitada se justifica, em primeiro lugar, pela busca de preciso conceitual. Em
segundo, mas no menos importante, porque tambm pretende-se compreender
intrinsecamente o carter da onerosidade excessiva. E quanto a esse ltimo, a retomada das
idias originrias pode muito contribuir.
Cabe aqui tambm uma justificativa do estudo do sistema contratual romano,
conduzido intencionalmente de forma bastante horizontal, a partir do perodo clssico. Seu
objetivo primordial o de identificar uma caracterstica essencial que o diferencia do
direito contratual moderno e que est diretamente relacionada com a questo da clusula
rebus sic stantibus: a distino entre contratos e pactos. Como tal aspecto apenas se mostra
claramente a partir do perodo clssico, bem como as referncias a textos germes da futura
clusula rebus datam apenas da em diante, o perodo pr-clssico no constou da
exposio. Alm disso, o sistema contratual romano clssico foi fielmente reconstitudo
pelos ps-glosadores, os mesmos que tambm se ocupariam de forjar a aplicao da
clusula rebus sic stantibus. Da o interesse numa viso panormica dele.
Os elementos novos que se agregaram com o passar de pocas noo de
contrato herdada dos romanos fizeram com que a clusula rebus s nascesse
definitivamente entre os medievais e logo se transformasse no alvorecer da modernidade.
A compreenso de tal processo ir favorecer o entendimento dos pressupostos para
configurao da onerosidade excessiva, como por exemplo, a imprevisibilidade do fato
superveniente.
85 Apenas para dar um exemplo de como a aluso clusula rebus sic stantibus recorrente,
um julgado recente que examinou profundamente a questo do desequilbrio econmico superveniente em contrato de leasing no TJ/SP, inicia sua fundamentao com meno clusula rebus: TJ/SP, Embgos Infring. c/rev., 29 Cam., rel. Des. Pereira Calas, j. 25/10/2006.
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SEO 1
ANTIGIDADE CLSSICA
comum trazer como fonte da clusula rebus sic stantibus as noes esticas
trazidas nos pensamentos de CCERO (106-43 a.C.) e SNECA (4a.C. 65), nos seguintes
trechos, muitas vezes citados86.
De CCERO, na obra De Officiis, livro III: Portanto,
nem sempre bom cumprir as promessas ou devolver depsitos. Se algum te
confiou a espada quando so pedi-la quando insano, entreg-la seria
insensatez e ret-la, um dever. Se aquele que te confiou o dinheiro fizer guerra
contra a ptria, devolvers o depsito? No, penso eu, pois assim agirias
contra a repblica, que deve constituir a principal afeio. Assim, muitas
coisas que parecem honestas por natureza tornam-se, conforme as
circunstncias, desonestas. Cumprir as promessas, aferrar-se aos acordos e
devolver os depsitos deixam de ser aes honestas quando j no so teis87.
De SNECA, na obra De Beneficiis, Livro IV: A
menor mudana deixa-me inteiramente livre para modificar minha
determinao, desobrigando-me da promessa. Prometi-vos minha assistncia
de advogado: porm, verifiquei que sua pretendida ao era contra meu pai.
Prometi-vos acompanhar em viagem: certifiquei-me, ao depois, que ladres
infestavam a estrada; prometi-vos patrocnio: no entanto meu filho adoeceu ou
minha mulher acometida de dores de parto. Todas essas coisas devem estar
na mesma situao que a do momento em que vos prometi, para que possais
reclamar essa promessa como obrigatria. Ora, que maior mudana pode advir
do que a certeza adquirida por mim desde que vos tornastes um homem
maldoso e ingrato? O que vos prometi como a uma pessoa que o merecesse,
86 O. L. RODRIGUES JR. Reviso..., cit., pp. 49-50; L. C. FRANTZ. Bases dogmticas..., cit., pp.
158-159. G. OSTI mostra a ligao entre o pensamento dos filsofos e a glosa cannica. La cos detta clausola..., cit., pp. 185-186. A. M. R. MENEZES CORDEIRO os traz como autores da idia de que as circunstncias devem ser levadas em conta para a exigibilidade de um acordo, mas ainda em campo filosfico ou de oratria, no jurdico. Da boa-f no direito civil, II. Coimbra, Almedina, 1984, pp. 938-939.
87 Traduo de O. L. RODRIGUES JR. Reviso..., cit., p. 50. Consultado tambm em CICERN. Sobre los deberes, Libro III, n. 95, trad. esp. J. GUILLN. Madrid, Alianza, 2008, p. 240.
37
recusar-vos-ei por indigno, e ainda poderei me lastimar de ter sido
enganado88.
As citaes acima, contudo, no so as nicas antecedentes do tema. Ele foi
objeto da observao de outros filsofos e pensadores no ligados ao estoicismo. Assim,
MENEZES CORDEIRO traz o seguinte fragmento de POLYBIOS (203-120 a.C.), transcrito de
discurso:
Se a situao agora ainda fosse a mesma do que
antes, na altura em que vocs concluram a aliana com os Aetlios, ento
vocs deveriam decidir-se a manter firme o vosso convnio pois a isso vos
tereis obrigado; caso ela esteja, contudo totalmente modificada, ento ser-vos-
justificado retomar, sem quaisquer dvidas, a questo...89.
M. VILLEY, ao trazer o pensamento de PLATO (428-347 a.C.), informa que
para o filsofo, em direito privado, seria injusto estabelecer que o depsito deve ser sempre
restitudo, uma vez que pode se tratar do depsito de uma arma entregue a um louco. Esse
exemplo, tornado clssico, ser retomado por ARISTTELES (384-322 a.C.) e por SANTO
TOMS DE AQUINO (1225-1274)90. No dilogo A Repblica, Livro I, consta como fala de
SCRATES:
As tuas palavras esto cheias de beleza, Cfalo
admiti. Mas essa virtude, a justia, afirmaremos simplesmente que consiste
em dizer a verdade e restituir o que se recebeu de algum ou que agir deste
modo umas vezes justo e outras injusto? Eu explico-o assim: toda a gente
concorda que, quando se recebem armas de um amigo so de esprito que,
tendo enlouquecido, as reclama, no se lhas devem restituir e quem lhes
restitusse no seria justo, como no o seria quem quisesse dizer toda a verdade
a um homem nesse estado91.
Destarte, importa fazer como MENEZES CORDEIRO, referindo-se aos trechos de
CCERO e SNECA, e t-los como textos de natureza filosfica e oratria, no textos
estritamente jurdicos92, com o que a afirmao de fonte da clusula rebus deve ser
88 Traduo de O. L. RODRIGUES JR. Reviso..., cit., pp. 50-51. Consultado tambm em
SENECA. Moral essays, v. III. On benefits, Book IV, n. 35, trad. ing. J. W. BASORE. Cambridge, Harvard University, 2006, pp. 277-79.
89 A. M. R. MENEZES CORDEIRO. Da boa-f..., cit., p. 938. 90 M. VILLEY. A formao do pensamento jurdico moderno. So Paulo, Martins Fontes, 2005,
p. 34. 91 PLATO. A Repblica. Dilogos I. Livro I. Publicaes Europa-Amrica, s.d., pp. 9-10. 92 A. M. R. MENEZES CORDEIRO. Da boa-f..., cit., p. 939.
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entendida tendo em vista esse distanciamento. J os outros exemplos, o de POLYBIOS e o de
PLATO, este ltimo retomado por ARISTTELES, no permitem, por sua vez, afirmar uma
exclusividade do estoicismo no trato original com o problema.
No mais, tais exemplos no configuram ilustraes de desequilbrio contratual
superveniente, mas de alterao das circunstncias num sentido bem largo, e at de
impossibilidade relativa. O que se pode deles depreender que, de acordo com certas
circunstncias, uma modificao ou um no cumprimento de uma promessa tambm pode
ser um ato de moralidade. O que no pouco.
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DIREITO ROMANO
O direito romano o conjunto de normas que regeram a sociedade romana,
desde a sua fundao, lendria, em 754 a. C., at a morte de JUSTINIANO, Imperador do
Imprio