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a obra de arte aberta Haroldo de Campos Para objetivar o que, numa postulação voluntariamente "drástica", no sentido pragmático-utilitário que assume a teorização poundiana, poder-se-ia definir como o campo vetorial da arte poética de nosso tempo, de cuja conjunção de linhas de força resultantes previsíveis e outras imprevistas podem surgir à solicitação do labor criativo, bastaria indicar como eixos radiais as obras de Mallarmé (Un Coup de Dés), Joyce, Pound e Cummings. Sem ingresso em profundidade nos múltiplos problemas que a simples menção conjugada desses nomes suscita ao limiar do experimento poético de nossos dias, será suficiente indicar alguns dos vetores da precipitação culturmorfológica que suas obras acarretam. A concepção de estrutura pluridividida ou capilarizada que caracteriza o poema-constelação mallarmeano, liquidando a noção de desenvolvimento linear seccionado em princípio-meio-fim, em prol de uma organização circular da matéria poética, torna perempta toda relojoaria rítmica que se apóie sobre a rule of thumb do hábito metrificante. Dessa verdadeira rosácea verbal que é Un Coup de Dés emerge, como elemento primordial de organização rítmica, o silêncio, aquele silêncio que é, para Sartre, "um momento da linguagem" e que, "como a pausa, em música, recebe seu sentido dos grupos de notas que o cercam", permitindo-nos dizer da poesia o que Pierre Boulez afirmou da música, em "Homenagem a Webern": "É uma verdade das mais difíceis de pôr em evidência que a música não é somente a arte dos sons; ela se define melhor por um contraponto do som e do silêncio". Também o universo joyciano evoluiu – dentro do quadro da própria obra 1 e ao influxo da concepção bergsoniana da durée – a partir de um desenvolvimento linear no tempo, para o espaço-tempo ou contenção do todo na parte ("allspace in a notshall" – nutshell, casca de noz), adotando como organograma do Finnegans Wake o círculo vico-vicioso. Se ao primeiro corresponde uma noção visual do espaço gráfico, servida pela notação prismática da imaginação poética, em fluxos e refluxos que se deslocam como elementos de um móbile, utilizando o silêncio como Calder o ar, a Joyce se prende a materialização do "fluxo polidimensional e sem fim" – que é a durée réelle, o riverrun – élan-vital –, o que o obriga a uma verdadeira atomização da linguagem, em que cada unidade "verbivocovisual" é ao mesmo tempo continente-conteúdo da obra inteira, myriadminded no instante. Mallarmé pratica a redução fenomenológica do objeto poético. O eidos – "Un Coup de Dés jamais n’abolira le hasard" – é atingido através da elipse dos temas periféricos à "coisa em si" do poema, sucedendo, porém, na estrutura da obra, o que Husserl assinala em relação a seu método: "O colocado entre parênteses não é apagado da tábua fenomenológica, mas colocado simplesmente entre parênteses e afetado por um índice. Porém, com esse, entra no tema capital da investigação"2. Joyce é levado à microscopia pela macroscopia, enfatizando o detalhe – panorama/panaroma – a ponto de conter todo um cosmos metafórico numa só palavra. De onde poder dizer-se do Finnegans que retém a propriedade do círculo, da eqüidistância de todos os pontos em relação ao centro: a obra é porosa à leitura, por qualquer das partes através das quais se procure assediá-la. Para Cummings, a palavra é físsil. O poema cummingsiano tem como elemento fundamental a "letra"; a sílaba já é, para seus propósitos, um material complexo. A "modéstia tática" dessa atitude poética é semelhante à de Webern: interessado na palavra a partir do próprio fonema, orienta-se para uma forma poética aberta, embora a risco de esgotar-se no poema-minuto, frente aos percalços de uma sintaxe ainda experimental. Como anota Fano a propósito das primeiras obras de Webern, essas são: "Organizações curtas materializando um possível e concluindo à eventualidade de novas transformações. Procedimento catalítico pelo qual certos elementos de base determinam as desintegrações e coagulações de um material que se transforma, sem serem eles mesmos 19/02/2011 poesia concreta: texto poesiaconcreta.com/texto_view.php?id… 1/3

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Conceito de obra aberta de Haroldo de Campos (artigo original 1955) http://www.poesiaconcreta.com/texto_view.php?id=2 http://www.poesiaconcreta.com/texto.php?ordem=asc#

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a obra de arte aberta

Haroldo de Campos

Para objetivar o que, numa postulação voluntariamente "drástica", no sentido pragmático-utilitárioque assume a teorização poundiana, poder-se-ia definir como o campo vetorial da arte poética denosso tempo, de cuja conjunção de linhas de força resultantes previsíveis e outras imprevistaspodem surgir à solicitação do labor criativo, bastaria indicar como eixos radiais as obras deMallarmé (Un Coup de Dés), Joyce, Pound e Cummings.

Sem ingresso em profundidade nos múltiplos problemas que a simples menção conjugada dessesnomes suscita ao limiar do experimento poético de nossos dias, será suficiente indicar alguns dosvetores da precipitação culturmorfológica que suas obras acarretam.

A concepção de estrutura pluridividida ou capilarizada que caracteriza o poema-constelaçãomallarmeano, liquidando a noção de desenvolvimento linear seccionado em princípio-meio-fim, emprol de uma organização circular da matéria poética, torna perempta toda relojoaria rítmica que seapóie sobre a rule of thumb do hábito metrificante. Dessa verdadeira rosácea verbal que é Un Coup

de Dés emerge, como elemento primordial de organização rítmica, o silêncio, aquele silêncio queé, para Sartre, "um momento da linguagem" e que, "como a pausa, em música, recebe seusentido dos grupos de notas que o cercam", permitindo-nos dizer da poesia o que Pierre Boulezafirmou da música, em "Homenagem a Webern": "É uma verdade das mais difíceis de pôr emevidência que a música não é somente a arte dos sons; ela se define melhor por um contrapontodo som e do silêncio".

Também o universo joyciano evoluiu – dentro do quadro da própria obra1 e ao influxo da concepção

bergsoniana da durée – a partir de um desenvolvimento linear no tempo, para o espaço-tempo oucontenção do todo na parte ("allspace in a notshall" – nutshell, casca de noz), adotando comoorganograma do Finnegans Wake o círculo vico-vicioso.

Se ao primeiro corresponde uma noção visual do espaço gráfico, servida pela notação prismáticada imaginação poética, em fluxos e refluxos que se deslocam como elementos de um móbile,utilizando o silêncio como Calder o ar, a Joyce se prende a materialização do "fluxopolidimensional e sem fim" – que é a durée réelle, o riverrun – élan-vital –, o que o obriga a umaverdadeira atomização da linguagem, em que cada unidade "verbivocovisual" é ao mesmo tempocontinente-conteúdo da obra inteira, myriadminded no instante.

Mallarmé pratica a redução fenomenológica do objeto poético. O eidos – "Un Coup de Dés jamais

n’abolira le hasard" – é atingido através da elipse dos temas periféricos à "coisa em si" do poema,sucedendo, porém, na estrutura da obra, o que Husserl assinala em relação a seu método: "Ocolocado entre parênteses não é apagado da tábua fenomenológica, mas colocado simplesmenteentre parênteses e afetado por um índice. Porém, com esse, entra no tema capital dainvestigação"2.

Joyce é levado à microscopia pela macroscopia, enfatizando o detalhe – panorama/panaroma – aponto de conter todo um cosmos metafórico numa só palavra. De onde poder dizer-se doFinnegans que retém a propriedade do círculo, da eqüidistância de todos os pontos em relação aocentro: a obra é porosa à leitura, por qualquer das partes através das quais se procure assediá-la.

Para Cummings, a palavra é físsil. O poema cummingsiano tem como elemento fundamental a"letra"; a sílaba já é, para seus propósitos, um material complexo. A "modéstia tática" dessaatitude poética é semelhante à de Webern: interessado na palavra a partir do próprio fonema,orienta-se para uma forma poética aberta, embora a risco de esgotar-se no poema-minuto, frenteaos percalços de uma sintaxe ainda experimental. Como anota Fano a propósito das primeirasobras de Webern, essas são:

"Organizações curtas materializando um possível e concluindo à eventualidade de novastransformações. Procedimento catalítico pelo qual certos elementos de base determinam asdesintegrações e coagulações de um material que se transforma, sem serem eles mesmos

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Estrutura aberta oferecem também os Cantos de Ezra Pound, em particular os "Pisanos", que,organizados pelo método ideogrâmico, permitem uma perpétua interação de blocos de idéias quese criticam reciprocamente, produzindo uma soma poética cujo princípio de composição égestaltiano, como já observou James Blish, em "Rituais em Torno de Ezra Pound"4.

Tendo a sua disposição um léxico que se enriqueceu com conquistas desde os simbolistas até ossurrealistas, e sua recíproca, a "definição precisa" de Pound, o verbo poético compreendido à luzde uma arte de "essências e medulas"; tendo a sua frente uma sintaxe estrutural cujasperspectivas revolucionárias foram palidamente aqui evocadas, o poeta contemporâneo não podesentir-se envolvido por melancolias bizantinas de constantinoplas caídas, nem polipizar-se àmargem do processo culturmorfológico que o convida à aventura criativa.

Pierre Boulez, em conversa com Décio Pignatari, manifestou seu desinteresse pela obra de arte"perfeita", "clássica", do "tipo diamante", e enunciou sua concepção da obra de arte aberta, comoum "barroco moderno".

Talvez esse neobarroco, que poderá corresponder intrinsecamente às necessidadesculturmorfológicas da expressão artística contemporânea, atemorize, por sua simples evocação,os espíritos remansosos, que amam a fixidez das soluções convencionadas.

Mas essa não é uma razão "cultural" para que nos recusemos à tripulação de Argos. É, antes, umestímulo no sentido oposto.

1 Ou, para nos servirmos das expressões de Adelheid Obradovic, em Die Behandlung der Räumlichkeit im

spaeteren Werk des James Joyce, Marburg, 1934, p. 11: a) "Nacheinander ohne Durchdringung" – "uma parte após

a outra sem interpenetração" (estrutura do Portrait of the Artist as a Young Man); b) "Nebeneinander ohne

Durchdringung" – "uma parte justaposta à outra, sem interpenetração" (Ulysses); c) "Durchdringung" –

"interpenetração" orgânica (Ulysses, desde o monólogo silencioso de Molly Bloom e Finnegans Wake).

2 HUSSERL. Ideas Relativas a una Fenomenología Pura y una Filosofía Fenomenológica. México, Fondo de Cultura

Económica, p. 169.

3 FANO, Michel. "Pouvoirs Transmis", in La Musique et ses Problèmes Contemporains. Cahier de la Compagnie

Madeleine Renaud-Jean Louis Barrault, Julliard, 1954, p. 40.

4 The Sewanee Review, volume LVIII, número 2, Spring, 1950, p. 196.

Publicado originalmente no Diário de S. Paulo, em 3 de julho de 1955; republicado no Correio da Manhã, Rio de

Janeiro, em 28 de abril de 1956. Uma primeira versão da tradução, por Augusto de Campos, do poema "r-p-o-p-h-e-s-

s-a-g-r", apareceu no livro 10 Poemas, de E.E. Cummings, Rio de Janeiro, Serviço de Documentação, MEC, 1960. A

segunda versão do texto, definitiva, veio a ser incluída nesse livro em 1965. Revista graficamente na última edição, é

agora re-revista pelo autor, para melhor ajustar-se às rigorosas prescrições da "tortografia" cummingsiana.< /span>

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