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XVI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

10 a 13 de setembro de 2013, Salvador (BA)

GT24 – Saúde e Sociedade

A NOÇÃO DE RISCOS EM SAÚDE E O DISCURSO AMBIVALENTE DA PROMOÇÃO DASAÚDE

Ana Paula Saccol (Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC)

Márcia Grisotti (Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC)

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A Noção de Riscos em Saúde e o Discurso Ambivalente da Promoção da SaúdeAna Paula Saccol

Márcia Grisotti

RESUMO: A Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde (PS), realizada emOttawa, modificou o entendimento sobre os conceitos de saúde e doença possibilitando acriação de novas estratégias individuais e coletivas para o seu cumprimento. Entende-se a

PS como um campo de discursos e práticas, saberes e poderes que perpassam não só pordimensões participativas e emancipatórias, mas também por dimensões regulatórias,disciplinares, mercadológicas e ambivalentes. Os indivíduos passam a serresponsabilizados por suas escolhas que devem levar em conta a racionalidade da gestãodos riscos, sendo culpabilizados caso tenham feito a escolha "errada". No entanto, combase em Elias (1970, 2000 ), Bauman (1990) e Castiel (2003, 2010, 2011, 2012,)problematiza-se essa escolha racional dos riscos quando tal comportamento deixa de ter umcunho "saudável" e passa a incorporar comportamentos patogênicos devido ao excesso decuidados de si, como por exemplo, o caso dos transtornos alimentares. Problematiza-se,também, a noção de riscos em saúde, nos quais os estudos epidemiológicos, válidos noâmbito coletivo são aplicados em correlações válidas apenas no nível individual (clínico). Aproposta deste trabalho, portanto, é debater as ambivalências dos discursos da promoçãode saúde e das noções de risco relacionando-as com os relatos sobre cuidados de si demoradores e profissionais de saúde de um bairro de Florianópolis.Palavras-chaves: Promoção da Saúde; ambivalência; riscos em saúde, interdependência.

Introdução

Este artigo faz parte da tese de doutoramento intitulada "A promoção da saúde

como um discurso ambivalente: disseminadora de estilos de vida saudáveis e

impulsionadora de comportamentos patogênicos", ainda em fase de desenvolvimento. A

preocupação com as práticas promotoras de saúde se iniciou com outra pesquisa referente

à compreensão das representações sociais dos profissionais de saúde em relação à

anorexia nervosa no município de Florianópolis/SC (SACCOL, 2009), no qual foi constatado

que aspectos culturais e sociais podem ser fatores desencadeantes de transtornos

alimentares, alicerçados com discursos como o da promoção da saúde, em que o excesso

de cuidados com a saúde e com o corpo (excesso de preocupação da ingestão de alimentos

ditos ‘saudáveis‘, prática rigorosa de exercícios físicos, controle de agravos através da

realização excessiva de exames de "rotina", preocupação desmedida com índice adequado

de massa corporal, etc.) podem provocar comportamentos que prejudicam a saúde da

população.

Além disso, é possível perceber em conversas nos supermercados, em filas de

banco, encontros entre amigos, etc., a proliferação de declarações como: "uma nova

 pesquisa que apontou que a ingestão de tal nutriente ajuda a diminuir os níveis de

colesterol 1" ou então "uma nova modalidade de exercício físico ou uma nova dieta que

contribui para diminuição rápida do peso", "um novo tipo de exame capaz de avaliar as

chances de desenvolvimento futuro de algum tipo de câncer "; além de reportagens e

programas que se baseiam em sistemas peritos para divulgar informações em saúde. As

1 Esses exemplos de comentários são hipotéticos. 

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pessoas se sentem confusas com esse excesso de informações que são veiculadas na

mídia; nas orientações desencontradas dos diferentes profissionais de saúde e nas próprias

controvérsias científicas.

Ainda nessa configuração podemos elencar as tensões que são produzidas

entre diferentes interesses: as preocupações estatais em melhorar à saúde da população e

o lobby farmacêutico e industrial, que aproveitam as lacunas abertas pelo discurso da

promoção da saúde, passando a impulsionar um verdadeiro e lucrativo mercado vinculando

às questões de estilos de vida saudáveis, prevenção dos riscos em saúde, tratamentos

preventivos e estéticos, entre outros (GRISOTTI, et al., 2013).

Nessa perspectiva a pesquisa foi desenhada para verificar como as práticas e

discursos da promoção da saúde ocorrem na atenção básica em saúde (ABS); como os

profissionais e a população percebem a noção de risco e os cuidados em saúde, além de

entender como ocorrem as práticas interdisciplinares e a integralidade em saúde no

contexto da configuração desse Centro de Saúde, marcado por diferentes elos de

interdependência estabelecidos entre os atores sociais. Nesse sentido, para que possamos

compreender como os diferentes discursos da promoção da saúde são incorporados na

ABS é pertinente a imersão nesse campo apoiando-se nos conceitos de configuração e

interdependência de Elias (1970, 2000, 2001) porque permitem analisar as práticas de PS

no contexto da vida cotidiana do Centro de Saúde, enfocando que as ações institucionais de

PS desenvolvidas no CS estão permeadas de contingências experimentadas pelos

diferentes profissionais da saúde em suas estratégias de cuidado e atendimento.A pesquisa empírica acontece em um dos Centros de Saúde (CS) localizado em

Florianópolis/SC considerado referência no cuidado no âmbito federal. O território do CS

compõe um cenário que abrange realidades distintas: uma parte composta por população de

baixa renda socioeconômica; a presença de muitos emigrantes vindos de vários locais do

país e do estado; a existência de problemas derivados do tráfico de drogas, condomínios

fechados; além de um grande shopping center. O CS se tornou uma grande referência e

ponto de apoio para a população seja devido ao acesso facilitado e as ações inovadoras nos

cuidados em saúde que ali ocorrem, seja pelo empoderamento da população através de umcontrole social forte e atuante.

Diversas fontes são utilizadas para a coleta de dados: observação participante

nos grupos terapêuticos; nas reuniões do Conselho Local de Saúde; nas redes sociais dos

usuários e profissionais de saúde; nos murais e blogs do CS; nas reuniões semanais das

equipes de saúde, nas visitas domiciliares; entrevistas semiestruturadas com os usários e

profissionais. No entanto, o que mais tem possibilitado a pesquisa foi a acolhida e a

receptividade dos sujeitos no campo. Tanto os profissionais de saúde como os usuários se

mostraram extremamente receptivos à pesquisa, dispondo de seu tempo e construindo

vínculos com a pesquisadora.

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Para fins de apresentação, esse artigo foi dividido em dois momentos: 1) análise

do discurso ambivalente da promoção da saúde e das noções de risco em saúde, 2) análise

do material empírico coletado até o momento.

Ambivalência do discurso de promoção da saúde e os riscos em saúde

O conceito de Promoção da Saúde tem como marco importante as três grandes

conferências internacionais sobre o tema: 1986 em Ottawa; 1988 em Adelaide e 1991 em

Sunsdsval (BUSS, 2003). A PS surgiu tendo como finalidades principais uma reação contra

a medicalização excessiva que ocorria nas sociedades e no interior dos sistemas de saúde

e a diminuição dos gastos públicos em tratamentos e reabilitação de doentes, visando um

novo enfoque em torno do processo saúde-doença-cuidado.

O documento fundador do conceito de PS foi a Carta de Ottawa (1986) que

formulou estratégias de responsabilização múltipla dos diferentes atores envolvidos na

relação saúde-adoecimento:

Promoção da saúde é o nome dado ao processo de capacitação da comunidadepara atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maiorparticipação no controle deste processo. Para atingir um estado de completo bem-estar físico, mental e social os indivíduos e grupos devem saber identificaraspirações, satisfazer necessidades e modificar favoravelmente o meio ambiente. Asaúde deve ser vista como um recurso para a vida, e não como objetivo de viver.Nesse sentido, a saúde é um conceito positivo, que enfatiza os recursos sociais epessoais, bem como as capacidades físicas. Assim, a promoção da saúde não éresponsabilidade exclusiva do setor saúde, e vai para além de um estilo de vidasaudável, na direção de um bem-estar global. (OPAS, 1986)

Algumas estratégias passaram a orientar a PS: ações estatais (políticas públicas

saudáveis); comunidade (controle social); individual (desenvolvimento de habilidades

pessoais); dos sistemas de saúde (reorientação dos sistemas) e parcerias intersetoriais (co-

responsabilização) (OPAS, 1986). Anterior a Carta de Ottawa, a 1ª Conferência

Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde (1978) iniciou a discussão da

necessidade dos governantes em promover saúde para todos os povos, transformando a

saúde em um direito humano fundamental e apontando as desigualdades existentes em

saúde nos diferentes países, traçou como principal meta a “Saúde de todos para o ano

2000” (OPAS, 1978). Com esse movimento, emerge a criação da Atenção Básica em

Saúde2 que foi a construção de um programa voltado à satisfação de algumas necessidades

de grupos populacionais de baixa renda e com riscos sociais graves. Atualmente é

considerado o primeiro nível de atenção em saúde e se caracteriza por um conjunto de

ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da

saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção

da saúde. As ações de ABS foram o pontapé inicial para as estratégias de PS, visto que

trabalham numa lógica preventiva e com uma medicina de baixo custo.

2 Existe uma discussão referente as origens e diferenças conceituais entre os termos “Atenção Básica”, “Atenção Primária”, “Atenção Primária em Saúde”, “Atenção Básica à Saúde”, no Brasil utiliza-se majoritariamente nos documentos oficiais o termo Atenção Básica, no entanto, percebe-se a variação destes termos dentro de um mesmo

documento. Para maiores esclarecimento ver MELLO, G. A.; FONTANELLA, B. J. B.; PIVA, M. M. Atenção Básica e Atenção Primária à Saúde: origens e diferenças

conceituais. Revista APS, v. 2. abril/jun. 2009. p. 204-213

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Com o Estado, trazendo para si a responsabilidade de garantir saúde a todos

como um direito, foi possível a emergência de outras estratégias de ações e financiamento

dos serviços de saúde. Alguns autores apontam que a atenção pública à saúde passou a

ser consolidada de forma mais efetiva pelos Estados após a 2ª Guerra Mundial com o

advento do Welfare State e os sistemas públicos de saúde, originados principalmente na

Europa (PIRES; 1996). De forma geral, esse Estado de Bem Estar Social surgiu como uma

construção institucional na tentativa de amenizar os conflitos – principalmente – entre capital

e trabalho (CORTEZ, 2008).

Em seu trabalho Hochman (1998) articula as diferentes tensões nas políticas

públicas brasileiras durante a Primeira República, apontando para aquela configuração as

relações de interdependência entre as diferentes classes econômicas, políticas e sociais,

em que as condições de carência de um determinado grupo social passaram a interferir

cada vez mais na saúde das elites econômicas e que como a complexidade dessa interação

foi capaz de impulsionar formas coletivas (políticas públicas) no enfrentamento das

carências e exclusões sociais, tendo em vista que, principalmente, as doenças

transmissíveis não conheciam barreiras geográficas ou econômicas.

Essas considerações são importantes porque permitem analisar os fatores extra-

médicos que estão por trás das estratégias de políticas públicas em saúde. Ou seja, é

necessário que nossas reflexões sobre a promoção da saúde consigam ir além dos

conceitos e discursos, e serem capazes de analisar as mais diferentes tensões que

permeiam o seu processo de consolidação.Outra inconsistência em relação à PS é sua própria definição, pois existem

pontos obscuros, e na maioria das vezes, não se distinguem claramente as estratégias de

promoção das práticas preventivas:

O termo prevenir tem o significado de preparar; chegar antes de; dispor de maneiraque evite (dano, mal); impedir que se realize. A prevenção em saúde exige umaação antecipada, baseada no conhecimento da história natural a fim de tornarimprovável o progresso posterior da doença. As ações preventivas definem-se comointervenções orientadas a evitar o surgimento de doenças específicas, reduzindosua incidência e prevalência na população. Promover tem o significado de darimpulso a; fomentar; originar; gerar. Promoção da saúde define-se, tradicionalmente,

de maneira bem mais ampla que prevenção, pois se refere a medidas que não sedirigem a uma determinada doença ou desordem, mas servem para aumentar asaúde e o bem-estar gerais. As estratégias de promoção enfatizam a transformaçãodas condições de vida e de trabalho que conformam a estrutura subjacente aosproblemas de saúde, demandando uma abordagem intersetorial. (CZERESNIA,2003. p. 45)

Além da inconsistência conceitual Ferreira et al. (2012) apontam que essa

ambiguidade também é marcada pela existência de diferentes abordagens em PS: “uma

vertente chamada de comportamentalista ou conservadora, funda-se nos preceitos de fator

de risco fortemente orientada para mudanças comportamentais e de estilo de vida (...) e a

‘Nova Promoção da Saúde’ que tem seu foco dirigido para os condicionantes mais gerais dasaúde.” A primeira vertente tem como foco maior redução dos custos em saúde para o

Estado, chamando os indivíduos para se responsabilizarem pela sua saúde. Este modelo de

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PS tenta “ajudar” as pessoas a mudarem seus estilos de vida na tentativa de alcançarem um

estado ideal de saúde, baseado nos preceitos de fatores de risco produzidos por certas

vertentes da epidemiologia.

Em relação à Nova Promoção da Saúde (NPS) que surgiu com a proposta de

avançar nos direcionamentos da antiga abordagem, embora também se fundamente nas

noções de riscos epidemiológicos, a perspectiva era contribuir em avanços para mudanças

sociais e na relação com a sociedade civil e os governos, promovendo políticas públicas e

ações multissetoriais, questionando estratégias que culpabilizavam os indivíduos (CASTIEL,

2012), mas resta saber se mesmo a NPS será capaz de resolver os impasses, em função do

caráter utópico do ideal de saúde preconizado nos documentos oficiais e se conseguirá

romper com o status quo do antigo pensamento.

Perspectivas de análises mais críticas em relação a PS comparam, inclusive, a

ideia da Promoção de Saúde como uma prática religiosa (CASTIEL et all, 2011). Para

Castiel preceitos religiosos são encontrados no discurso da PS: “a busca de evidências para

orientar nossos comportamentos, a necessidade de regramento e moderação a fim de evitar

excessos de prazeres da comida, bebida e sexo que podem nos levar a destruição, a

necessidade de firmeza e persistência para nos manter dentro das restrições às tentações

 perigosas à nossa vida” (Idem, 2011. p. 131). Então, assim como na Idade Média os sujeitos

que não seguissem os ensinamentos divinos eram castigados por Deus através das

doenças, hoje os indivíduos que não seguirem de maneira disciplinar os preceitos da

medicina, também sofrerão o castigo do adoecimento3

.No entanto, a adoção de individual de comportamentos saudáveis não é a única

estratégia vista pela PS. Outros elementos necessitam entrar na pauta das ações e

estratégias governamentais com o enfoque de promover saúde, tais como: redução das

desigualdades sociais; modificações estruturais na formação dos profissionais da saúde;

intersetorialidade; melhor comunicação entre os distintos níveis de complexidade em saúde,

como sugerido em Ottawa que ao se compreender que saúde não é apenas a ausência de

doenças, mas também mudanças das ações sanitária. (OPAS, 1986).

A maior ênfase do discurso promotor em saúde é o de estimular a saúdepositiva, o não deixar adoecer, focando muito mais as ações de prevenção das doenças do

que o tratamento. Uma das estratégias para repassar esses conhecimentos à população é a

utilização da mídia para “colocar no mercado” esses comportamentos e atitudes saudáveis

(estilos de vida) que as pessoas podem e devem adotar (CASTIEL, 2004). Nessa lógica a

mídia funciona como um canal direto de repasse de informações “fundamentais” para a

3 “A doença-punição, que especialmente nos interessa, ocorreria como resultado de ações provocadas pelo indivíduo ao transgredir regras e

normas desejáveis (religiosas/médicas) de comportamento, seja por omissão, seja por excesso. A doença resultaria dessa transgressão, enfim,do pecado tanto coletivo como individual. (...) Assim, o saber médico se estabelece como moral e se institui como matriz comportamental, para além dos domínios biológicos, determinando modos de se levar a vida. É capaz de instalar medo através de sansões punitivas, como a perda das benesses da vitalidade longeva para aqueles que não se pautam por condutas preventivas preconizadas como sadias. E, desta forma,o saber médico se coloca como religião ao ocupar domínios cada vez maiores no dia a dia da vida. (CASTIEL, 2011. p. 132)

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racionalização das ações individuais em prol da qualidade de vida, longevidade, boa saúde,

prevenção de doenças, mas claro, tudo isso a partir das escolhas individuais.

Nesse discurso a PS é embasada pelos conceitos de prevenção e risco, ou

ainda de prevenção de riscos. Prevenir doenças é pensar em todas as possibilidades de

riscos que podem ser evitáveis para então permanecer numa condição de boa saúde. Risco

envolve uma projeção futura de probabilidades mediante cálculos, com base nos

conhecimentos disponíveis sobre as relações exposição/agravos4. Essa busca incessante

por ações racionais que direcionam para responsabilizações pessoais sobre o risco é a

grande preocupação da PS, sendo seu foco a intervenção e a prevenção aos riscos.

As taxas de riscos absolutos e relativos possibilitam um panorama geral sobre o

que ocorre no nível populacional, mas torna-se problemático quando essas taxas são

convertidas, sem adequações, à casos individuais. Sachs (1996) discute a utilização de

dados epidemiológicos sobre os níveis de colesterol no contexto das doenças

cardiovasculares em casos individuais, demonstrando que a correlação entre níveis

elevados de colesterol no sangue e infarto do miocárdio, só são válidos no nível

populacional. No nível individual, clínico, a atenção recai sobre as especificidades

biológicas, sociais e psicológicas dos pacientes, o que implica uma diferença essencial na

transposição da explicação populacional (que trabalha com médias) para a individual (níveis

de complexidade diferentes) (Grisotti, 2010, ÁVILA-PIRES, 2013).

Castiel (2010) problematiza o sentido daquilo que ele vem denominar de

hiperprevenção (prevenção + precaução + proteção) que seria um estado no qual o caráterobjetivo e o subjetivo se encontram, misturando os aspectos racionais e os não racionais,

construindo uma meta inalcançável, produzindo aversão aos muitos riscos que nos cercam,

gerando ansiedades pela falta de perspectiva de êxito em alcançar tal objetivo. E ainda

assim “os riscos são incertos e as incertezas seguras” (CASTIEL, 2011. p. 38) sendo que

esse paradoxo da incerteza se refere às adoções de medidas preventivas, apesar da

insuficiência, muitas vezes, de evidências científicas confirmadas sobre as mesmas. No

mundo de “ incerteza artificial”   no qual vivemos, não temos condições de prever todos os

riscos e todas as conseqüências dos impactos socioambientais sobre a saúde humana,principalmente porque cada substância potencialmente tóxica é, de modo geral, examinada

separadamente e em condições de laboratório, e não de campo (Giddens, 1996).

A noção de risco pode prever um conjunto de possibilidades para o

desenvolvimento de uma doença, mas não é capaz de garantir o não desenvolvimento da

doença. Por exemplo, indivíduos que “praticam” todos os protocolos que são estabelecidos

pelas lógicas preventivas e mesmo assim desenvolvem a doença que estavam prevenindo.

A PS não é exatamente essa noção de prevenção dos riscos? Não é a intervenção para

4  Trata do risco por meio de sua quantificação. Foi a incorporação do conceito de risco pela epidemiologia em meados de 1950 que possibilitou a essa disciplina o estudo de doenças não transmissíveis, o que resultou uma enorme ampliação do seu objeto de estudo(CASTIEL et al, 2010).

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uma menor exposição individual e coletiva aos riscos? Com facilidade conseguimos apontar

alguns exemplos de tais práticas de promoção de saúde difundidas na atenção básica:

controle da obesidade; controle da pressão arterial; controle do colesterol; controle da

diabetes; alimentação saudável; prática de exercícios físicos, etc. Porém muitos indivíduos

que se antecipam em tais ações, procurando controlar as exposições aos riscos que

poderiam predispor o desenvolvimento de doenças, mesmo assim, eles ainda adoecem, o

que acarreta, muitas vezes, processos de ansiedade. A previsão e antecipação individual

aos riscos não significa necessariamente o sucesso desse objetivo. Em pesquisa realizada

anteriormente, questões relacionadas com à alimentação e o surgimento de doenças

crônicas foi destacado por alguns sujeito, que reportaram que nem sempre a relação estava

correta e que isso causava ansiedades e angústias em relação as suas próprias atitudes e

no que acreditar: 

- Eu também tenho um irmão mais velho que eu, ele só come comida gorda, bota

uma panela de carne com banha de porco que ele devora tudo, e também não temdiabetes, não tem colesterol, não tem nada;- Eu como ovo frito todos os dias e não tenho nada, a minha esposa que come tudodireitinho, come tudo integral e teve AVC.- Eu trabalhei a minha vida toda com médicos, no Ministério da Saúde, eu trabalhavanuma salinha, sem querer eu escutava a conversa deles...então nós somos cobaiasnas mãos dos médicos. E fiquei chocada. Até hoje médico pra mim é lá longe, euvejo eles de igual pra igual, escuto eles, converso, mas metade das coisas eu nãoaceito, levo para casa, eu testo, eu me analiso e eu vejo. Como ela falou “você não pode comer isso, e isso, e isso” “sim senhor” eu chego em casa e vejo “vou comerisso”, “isso aqui que eu não posso comer, há mas eu to com vontade de comer,então eu vou comer, se eu me sentir bem”. Gente não digam amém para osmédicos, eu penso assim. Remédio a mesma coisa, eu vejo gente morrendo,morrendo, passando mal “ai eu passo mal com o remédio” “então suspende” “o

médico mandou, o médico mandou”. Médico é deus pra muita gente. (GRISOTTI, etall, 2009) 

O caráter ambivalente da PS é notório quando percebemos discursos distintos

sobre a mesma questão: uma primeira vertente que reafirma o caráter progressista das

estratégias de PS, que considera esse projeto “uma estratégia promissora para enfrentar os

múltiplos problemas de saúde que afetam as populações humanas e seus entornos, estando

associada a valores como qualidade de vida, saúde, solidariedade, eqüidade, democracia,

cidadania, desenvolvimento, participação e parceria, entre outros” (BUSS, 2000); e outra

vertente que aponta que “os discursos da promoção da saúde e da evitação de riscos parecem implicitamente refletir a ótica das formações neoliberais, individualistas, que gera

grupos de indivíduos entregues a si próprios; e à preocupação com o desempenho baseado

em condições individuais que sustentem uma identidade frágil, povoada cada vez mais por

um imaginário composto por elementos vinculados a questões de saúde” (CASTIEL, 2003).

Para Bauman (1999. p. 9) ambivalência é a possibilidade “de conferir a um

objeto uma ou mais categorias”, se constituindo como uma desordem na função nomeadora

da linguagem e, ao mesmo tempo, um aspecto normal da própria prática lingüística. Devido

ao caráter humano em ordenar o mundo a principal utilização da linguagem é a de suprimircom o acaso e com as contingências, prevenindo a ambivalência, sendo que é justamente a

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inviabilidade de tal projeto que torna a ambivalência inevitável. A perspectiva da

modernidade nasceu a partir da necessidade de um mundo ordenado, tornando obsoleto o

mundo antes desse que apenas existia, sem refletir sobre a sua própria existência.

“(...) uma consciência incitada e movida pela premonição da inadequação e, mais,pela inviabilidade do projeto ordenador de eliminação da ambivalência, pelapremonição da causalidade do mundo e a contingência de identidades que o

constituem. A consciência é moderna na medida em que revela sempre novascamadas de caos sob a tampa da ordem assistida pelo poder” (Idem, 1999. p. 16).

A própria prática da modernidade em eliminar a ambivalência acaba produzindo

mais ambivalências. A solução de um problema cria e reproduz outros problemas, como por

exemplo, a promoção da saúde que ao evitar ao máximo a exposição dos indivíduos ao

risco, acaba por gerar outros riscos: os riscos de uma prática extremamente saudável incitar

o desenvolvimento de comportamentos patogênicos, como é o caso dos transtornos

alimentares. A racionalidade moderna se deparou com o múltiplo, com o ambivalente,

vivemos num mundo de múltiplas opções e que segundo Bauman (1999) devemos deixar desofrer com essa questão e aprender a conviver com ela, pois nem mesmo a ciência é capaz

de eliminar essa característica da modernidade.

Nessa linha de raciocínio o discurso da promoção da saúde é entendido como

um campo de discursos e práticas; saberes e poderes, capaz de disciplinar e culpabilizar, ao

mesmo tempo em que se propõe a gerar dimensões participativas e emancipatórias. O

discurso da Promoção da Saúde carrega em si ambivalências que não estão sendo

discutidas e refletidas. Enquanto política pública em saúde a sua finalidade é

promover uma melhor qualidade de vida; corresponsabilizar os sujeitos pelo seu

processo de saúde/doença; fortalecer o controle social; propiciar comunidades

saudáveis e auxiliar a saúde pública na contenção de gastos. Mas também torna-se

um discurso normativo que vigia e pune os indivíduos que não seguem os seus

preceitos ou aqueles que por inúmeros fatores não conseguem por em prática tais

orientações. Essa estratégia não considera outros estilos de vida, como também não

considera a incompatibilidade de adoção desse modelo entre os diferentes níveis

sócio-econômicos. Essa discussão tem sentido quando se analisa qual é a prática

de promoção da saúde que acontece lá na ponta, na Atenção Básica em Saúde.

A Promoção da Saúde na Atenção Básica: um estudo de caso5 

Como já descrito no início, a pesquisa empírica está sendo realizada num Centro

de Saúde de Florianópolis, integrante da rede docente assistencial e considerado uma

referência em cuidados de saúde na região sul do Brasil. A parte empírica da pesquisa foi

dividida em 4 momentos: o primeiro momento ocorreu através da observação participante,

5  Como a pesquisa ainda não foi concluída, não foi possível utilizar e validar as informações referentes às narrativas dosusuários do CS, mas alguns apontamentos já são problematizados em virtude de conversas informais e observaçãoparticipante.

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onde passei a frequentar o CS todos os dias da semana durante o seu horário de

funcionamento, conversando com os profissionais de saúde, com os usuários, participando

dos grupos terapêuticos, reuniões de área, reuniões do conselho local de saúde, reuniões

mensais e colegiadas, visitas domiciliares, entre outras atividades. A segunda parte é conta

com entrevistas semi-estruturadas, realizadas com os profissionais mais antigos e mais

recentes de cada categoria e todos os profissionais do NASF (ao todo foram realizadas 20

entrevistas) a respeito do seu processo de trabalho, das práticas interdisciplinares em saúde

e o significado que o CS tem para a comunidade. A terceira etapa, que está em andamento,

é composta por entrevistas semi-estruturadas com os demais profissionais que trabalham no

CS e que não participaram da segunda etapa da pesquisa, focalizando a problemática do

discurso e da prática da promoção da saúde (serão aproximadamente 30 entrevistas). E a

quarta e última parte serão as entrevistas abertas com os usuários que frequentam o CS a

respeito de seus cuidados em saúde (em torno de 30 entrevistas).

Nos primeiros dias fiquei acompanhando a coordenadora do CS que me

apresentou aos demais profissionais. Todos foram extremamente receptivos, acolhedores e

compreensivos explicando como funcionavam as atividades no CS; o que era cada coisa;

suas rotinas; a população, etc. No primeiro contato que tive com a coordenação a mesma se

mostrou á disposição do que fosse preciso para a pesquisa, mas demandou que, como

contrapartida, eu deveria "participar" das atividades do posto, e não ficar como mera

observadora. Acredito que essa demanda foi fundamental para o desenvolvimento da

pesquisa, pois além de conhecer e compreender as atividades dos profissionais, muitasvezes eu estava ali, "pegando junto", ajudando nos grupos terapêuticos, sanando dúvidas

dos usuários, ajudando na recepção, participando de consultas e visitas domiciliares.

Pelo fato do CS receber alunos de graduação para atividades curriculares a

presença de pessoas "estranhas", ou outsiders, na acepção de Elias (2000), é bem normal e

rotineira. De maneira geral, para os profissionais de saúde, os alunos são bem vindos,

cooperam na reflexão de suas práticas profissionais, ajudam nas atividades do posto, e

também os profissionais sentem que contribuem na formação dos alunos, no entanto,

alguns apontamentos são feitos pelos profissionais em relação a grande quantidade dealunos que vem estagiar, a falta de consideração com os usuários e a não devolução dos

dados para a comunidade:

"Isso é uma coisa que me incomoda assim, mas o teu caso é diferente porque você veio fazer pesquisa, masé que é muito residente, muita gente num único lugar, isso eu acho que é chato. Cada mês muda e são pessoas diferentes ai, por exemplo, tu vai tomar café ai tem um monte de gente tomando café, ou tu vai sairno corredor e tem um monte de gente, então assim, já é um posto que tem uma demanda grande, já são 70 e poucos profissionais, mais os residentes, nossa! Então está sempre cheio, sabe?" (E01)

"Depende de aluno para aluno, eu já vi aluno aqui que dava vergonha... então alguns cumprimentam, algunsalunos diziam "bom dia" antes para o morador, se apresentavam, outros não... já chegam perguntando,fazendo a pergunta como se a pessoa não fosse nada. Então em alguns casos desses a gente fica sem

graça em ter levado na casa, mas a maioria é sempre bem gentil com o paciente." (E02)"Eu acho que só é ruim quando os alunos se inserem nas atividades somente para observar, quando eles sóobservam eu acho ruim porque constrange os participantes, num dia tem 4 alunos, no outro dia tem mais 4

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alunos, né? Eu acho que é positivo quando eles participam e contribuem ai eu acho positivo, só achonegativo quando eles ficam só para observação das atividades." (E06)

O ano passado a gente acompanhou uma equipe de medicina, mas o médico era bem chegado daí a gentechegou a ir lá assistir a apresentação deles na universidade, mas eu acho que foi a única porque a maiorianão dá um retorno. Mas a maioria só sai dizendo "obrigada, ajudou bastante". (E04)

Uma época, quando eu cheguei aqui tinha um aluno eu perguntei "quem é você?" "ah eu sou um aluno"caminhando na área assim, sabe? Ai a coordenadora me olhou, pegou ele pelo braço "vem cá" "ah eu sou"

"eu sei o que tu é, mas não é assim que funciona, tu vai ter que se adequar junto da gente, tem que entrar junto na rotina". Mas as vezes não dá certo, as vezes pega professor substituto "ah, vai lá pega os alunos evai para o Centro de Saúde", entendeu? (E05)

Em relação a área de cobertura o CS possui 06 micro-áreas de abrangência

muito distintas entre si. Segundo os dados da Secretaria Municipal de Saúde de

Florianópolis sua população conta com quase 14 mil habitantes (BRASIL, 2012), mas pelo

levantamento/cadastramento dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) acreditam que

esse número deve extrapolar 17 mil habitantes. Destas micro-áreas 02 são de interesse

social e 01 comporta um Shopping. Ainda na área de abrangência do CS podem ser

encontradas casas de médio a alto padrão; conjuntos habitacionais construídos pelogoverno destinados à população de baixa renda; tráfico de drogas; emigração, empresas;

associações do bairro; lojas, entre outros. Esse contexto, para alguns profissionais de

saúde, complexificam o trabalho em saúde, bem como se tornam um desafio:

"agora que eu já acabei o tratamento da minha filha eu vou voltar para a minha cidade". Veio para cá parafazer o tratamento, entende? Ai fica, conhece alguém, pega o comprovante de residência e fica. Como éaceitado muita coisa aqui o pessoal acaba vindo todo para cá." (E01)

"Nunca mexeram comigo e o pessoal vê que eu to indo lá, né? Dar uma mão para quem precise. Eu nuncative problemas e olha que eu já trabalhei lá no Sol, lá eu fui em becos que hoje em dia o pessoal não sobe eeu cheguei a subir na época, não só eu como a enfermeira há nove anos atrás, a gente chegou a subir lá e

hoje em dia é proibida a passagem." (E02)"Porque negativo é a pressão, é muito movimento, muito trabalho, muita coisa a se fazer.. as vezes até eufico, porque eu sou muito ansiosa e tem várias coisas para se fazer, mas a pressão é muito grande, você temque fazer tentando resolver tudo..." (E04)

"Ninguém quer ficar, todo mundo cansa. Os que mais ficam são os médicos e enfermeiros, mas os técnicosque tem que correr o dia inteiro e por a mão na massa não fica, não fica porque cansa muito. É uma rotinamuito estressante todo dia de manhã você saber que vai ter aquela fila, todo dia de manhã vai ter fila e tusabe que se não tiver senha eles vão brigar contigo, sabe?" (E01)

A maioria dos Centro de Saúde de Florianópolis são menores, possuem em

torno de 3 equipes de SF; a clientela é menor, já em comparação com o CS pesquisado que

possui um atendimento ampliado e acesso facilitado, me parece que estas características

acabam aumentando ainda mais a demanda da população e do posto. O CS funciona das

8h às 12h e das 13h às 22h. As marcações de consulta, por exemplo, podem ser feitas por

telefone ou e-mail (cada área possui um celular e um e-mail) e também pessoalmente em

determinados horários (cada equipe é autônoma e decide a melhor forma de atendimento).

Algumas equipes possuem agendas semanais e outras a marcação é de um dia para o

outro. É interessante este aspecto (que gera uma ambivalência), pois ao mesmo tempo em

que se amplia o acesso, se aumenta a demanda em virtude da dependência que cria em

relação aos cuidados com a saúde. Outro elemento ambivalente são os horários de

acolhimento (que muitas vezes os próprios profissionais chamam de "emergência"), que se

tem uma demanda livre das 8h às 9h e das 13h às 14h e que muitas vezes esse tipo de

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funcionamento acaba fugindo do que é preconizado pela estratégia da saúde da família,

transformando o posto numa "mini UPA" (Unidade de Pronto Atendimento), apesar de todos

os banners e comunicados espalhados pelo CS orientando a população do significado de

cada coisa (o que é acolhimento, escuta qualificada, diferenças entre UPAs e CSs, etc.).

Percebe-se aqui uma falha nas definições das políticas em saúde, como também do próprio

sistema de atendimento em saúde, pois apesar do que é preconizado em relação à

promoção da saúde e prevenção de doenças na atenção básica, as consultas precisam

existir para atender a demanda espontânea, bem como a ampliação dos números de

consulta que é exigido pela população:

"O CS é organizado principalmente pelo fato de serem 6 equipes, né? Então cada equipe tem umaorganização própria. Então eles tem uma organização no todo e organização própria e ao mesmo tempo euvejo isso como negativo porque trabalham isoladamente. Tem unidades de duas equipes que tu nem percebeque tem duas equipes porque tudo é uma coisa só, dois médicos, dois técnicos, dois enfermeiros..." (E06)

"Essa demanda, claro que é diferente, a forma de ser sempre demanda livre 50% do tempo, então acabagerando uma demanda maior, por exemplo, aqui de manhã cedo a fila é 50, 60 pessoas todo dia! Não existeum posto que atenda isso, sabe? Desgasta demais os trabalhadores, eu sou bem... nossa, não sei. Nãoconcordo, eu acho que é uma forma de acesso, eu acho que isso sim, realmente, eu acho que o melhor lugar para ti procurar atendimento é aqui só que o desgaste dos profissionais, eu não sei..." (E01)

"Sim porque falta o empoderamento. Então... então vem o pessoal lá "vamos usar as novas ferramentas,vamos usar a internet para os usuários poder usar o empoderamento" piora! Isso gera mais dependência quenão sei o quê." (E05)

"Que enfermeiro não sai da unidade, a gente faz PSF, mas a gente não consegue fazer a promoção, a prevenção que a gente deve fazer. A gente está sempre movido pela demanda." (E04)

"O médico não pode sair do posto por que? Porque se ele sair vocês lincham, porque ele tem que tá láatendendo todo mundo na hora que vocês querem e quanto mais melhor, quando a gente vai para a rua agente vê em que condições as pessoas moram, de que maneira elas estavam vivendo e passamos isso paraos médicos, se eles não souberem isso como é que eles vão tratar vocês? Como é que eles vão conhecer

vocês?"(E03) O CS possui 06 equipes de saúde da família; 01 Núcleo de Apoio à Saúde da

Família (NASF); 01 equipe que atua no período noturno, mas que não participa da lógica da

ESF; além disso são prestados os seguintes serviços: clínica geral, básico de enfermagem;

odontologia, programa Capital Criança; vacinação; teste do pezinho; pediatra; preventivo do

câncer; ginecologia; psicólogo; assistente social; educador físico; fisioterapeuta;

nutricionista; psiquiatra; e grupos terapêuticos.

Os grupos terapêuticos oferecidos pelo CS são: Floripa Ativa (grupo de atividade

física destinado aos idosos); G. de Autogestão de medicamentos; G. de Apoio Psicológico;G. de Tabagismo; G. de Tabagismo Manutenção; G. de Saúde Bucal (voltado para crianças

de 0 a 9 anos, 11 meses e 29 dias); G. de Terapia Corporal (destinado à pessoas com dores

crônicas); G. de Mulheres Maravilhosas (foca principalmente mulheres, que através do

artesanatos se busca construir um espaço de diálogos e companheirismo); G. de

Previdência Social; G. de emagrecimento; G. de Planejamento Familiar; G. de Fisioterapia

(ombro e joelho) e o G. de Relaxamento (destinado para jovens, adultos e idosos).

Comparados com outros CSs é fácil perceber a quantidade de atividades

diferenciadas que são promovidas aqui, percebemos também que são nos gruposterapêuticos que ocorre de maneira mais nítida as práticas de promoção da saúde, mas algo

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que tem sido fundamental para a nossa análise é a percepção de que tudo depende do

profissional, de seu perfil, da maneira como se comunica e do contato e vínculo que

estabelece com os usuários. As vezes o mesmo grupo é realizado por profissionais

diferentes e parece que todo o entusiasmo e vontade do grupo muda, assim como

acontecem nas conversas e nos atendimentos individuais (consultas). O posto é central

nessa comunidade e muitas pessoas passam por lá diariamente, algumas pessoas

frequentam mais de um grupo, passando uma boa parte de seu tempo lá dentro, criando

toda uma rede complexa de socialibilidade conforme apontado por algumas falas:

"Eu acho que a estrutura é boa. Para grupos tem dois auditórios, uma coisa que tem dois auditórios e ai podem ter grupos simultâneos." (E01)

"Eu sou de Curitiba, a pessoa vem aqui, porque na verdade eles não vem só para procurar o médico e issoque é legal. Lá em Curitiba eu nem sei onde fica o posto de saúde, sabe? E aqui todo mundo conhece, senão vem aqui pegar remédio vem fofocar, tem gente que só vem aqui fofocar, mas é uma distração. Vemconversar, vem fazer ginástica, vem fazer artesanato, tem umas que as vezes nem precisam passar aqui,mas passa para tomar água e já conversa, já pára para conversar com alguém. Eu acho esse posto muitoimportante aqui para a população. Aprende bastante coisas é bem legal. As vezes vem uns que só vem aqui para gritar, eles dão uns gritos aqui dentro ai saem bem aliviados. É no posto passa aqui tudo que tuimaginar, as vezes até os cachorros mais carentes as vezes param aqui para ver se alguém dá bola. Eu achoque todo mundo é acolhido, né? (risadas)" (E02).

"O pessoal gosta muito de vir para cá e é bom vir fazer grupo, ginástica, você viu que tá sempre lotada, né?Eu não sei se é porque o professor é bonito (risadas)" (E02) 

"A pessoa vem aqui mais para ter informação das coisas, eu vi gente aqui vindo para telefonar porque estavasem crédito e tinha que ligar urgente então ele achou que o único lugar que pudesse ajudar era o posto desaúde, ai fez a ligação. Eu já vi também... várias coisas, gente colocando anúncio aqui eu já vi. As vezes naconversa já conseguia um emprego, ficava sabendo de algum curso. Acho que o posto também ajudabastante a comunidade, eu já vi pessoas que vieram e deixaram roupas para doar aqui comigo, depois agente vê quem tá precisando e dá. A Maria6  as vezes vem só usar banheiro. A Maria ela era casada com umcara, bebiam muito, ai agora ela diz que parou, diminui, o esposo faleceu, e é bem engraçado porque ela vemsó usar o banheiro porque o banheiro dela tá com problema ai ela vem aqui, já vi ela tomando banho aqui, ela já pediu para a coordenadora se podia tomar banho, as vezes ela vem usar o banheiro, lavar o rosto. E nãosó ela eu já vi outros moradores de rua vir usar o banheiro aqui, eles vem... (E07)

Então quando a gente tem que explicar para as pessoas que o posto de saúde não é só para tratar doenças,mas para evitar que você fique doente, então você de vez em quando... por exemplo, a questão seria umaauto observação "bom eu não estou mais doente, não estou mais trabalhando, passei de tal idade, não façonada, não isso, não aquilo", "ah, vamos procurar alguma coisa para fazer" "não tenho dinheiro para fazerginástica, não tenho dinheiro para fazer aquilo, eu ganho o mínimo de aposentadoria" "já perguntou se temalguma outra coisa para você fazer fora de casa? Sabia que no posto tem isso, tem aquilo?" então quando agente começa a enumerar outras alternativas como grupo de ginástica, teve uma época que até ioga "ah temtudo isso? Eu nunca vi" "pois é" porque o pessoal só vai no posto se está sentindo alguma coisa. Tanto queuma das perguntas que faziam para a gente e ainda fazem "para que serve o serviço de vocês?", né? Agente sempre ouve isso. "para que serve o agente de saúde? Se vocês não podem trazer remédio, não

 podem fazer isso, não podem fazer aquilo" "não, eu não posso, mas posso te explicar como é que funciona oSUS, eu posso mostrar como é que tá a comunidade". (E03)

"Porque para mim era uma outra realidade, um outro mundo, onde as pessoas passavam fome, não tinhambanheiro... e ai eu sofria muito. Eu vinha e chorava muito nas reuniões de área e a gente começou a teracompanhamento psicológico, porque assim, a gente trazia esse sofrimento, ai a enfermeira dizia assim paramim "você não vai poder resolver o problema do mundo, a gente pode ir até onde a gente consegue, mas agente vai tentar fazer alguma coisa". (E04)

"Eu sou muito briguenta, eu sou mandona, eu detesto quando as pessoas sabem que tem problema, vieramaté o posto procurando uma resolução para o problema, o médico fala, o dentista, o especialista fala, nósfalamos e eles não dão bola e continuam fazendo errado e depois continuam vindo aqui reclamar porque nãoresolve, pelo menos no quesito saúde, né? E no caso do SUS não é só saúde, tem a parte social, né? E isso

ai me frustra, porque eu vou, eu insisto daí volto na casa da pessoa e a pessoa continua na mesma, continuafazendo a mesma coisa, eu vejo a pessoa voltar aqui, vejo toda a reclamação da pessoa, e na maioria das

6 O nome verdadeiro foi alterado para um fictício.

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vezes eles metem o pau não naquilo que eles estão fazendo de errado e sim nos profissionais que o estãoatendendo, eles julgam isso como incompetência, né? Então isso me irrita profundamente e eu sou bemchata. (E03)

Os relatos acima expressam apenas uma parte da realidade que acontece

diariamente no CS. O movimento é intenso, a maiorias das pessoas se conhecem (pelo

menos as "nativas" ou aquelas que fazem grupos terapêuticos juntos), os usuários chegam,

vão abrindo as portas dos consultórios, abraçam os profissionais de saúde que os

reconhecem pelos nomes, falam as situação de saúde de fulano e de ciclano, falam mal de

algum profissional que não fez o que pediram, armam "barracos"7, discutem, gritam, enfim, é

todo um processo de sociabilidade complexo que ocorre ali dentro.

Apesar de muitos profissionais terem uma fala, por vezes, policialesca e

autoritária, se percebe que as relações que montam essa configuração são,

contraditoriamente, harmoniosas e tensas. Muitas vezes os usuários aceitam o "puxão de

orelhas" porque sabem que depois vem o "assopro", mas também se percebe que entre eles

ocorrem combinações e "esquemas" para conseguirem o que querem (seja um atestado de

saúde, uma medicação específica ou mesmo alguém para escutar suas queixas), sendo que

essas informações são trocadas entre os usuários, que as utilizam para reclamar e as vezes

até se utilizarem de chantagens "ah, mas na outra área os agentes de saúde fazem isso"; "o

médico que trabalhava aqui antes de você era mais simpático", etc. Existe uma organização

oficial (as diretrizes e normativas do SUS, bem como os mais diferentes protocolos), mas

também ocorrem acordos e arranjos internos que são pactuados entre os atores sociais,

negociações como também tensões e jogos de poder, ora mais flexíveis, ora maisautoritários.

Apesar de ocorrerem relações de interdependência entre as profissões e de

existirem ações e práticas de cuidado inovadoras nesse CS, percebe-se que existe uma

centralidade dos médicos e dos enfermeiros em comparação com as atividades dos demais

profissionais, sendo que essas duas categorias ainda têm como principal função o

atendimento em consultório e isso pode ser percebido através da ausência de médicos e

enfermeiros nos grupos terapêuticos. Isso também reflete na pesquisa, pois são poucos os

momentos que consigo conversar com os médicos ou enfermeiros, e normalmente asentrevistas são realizadas fora do horário de trabalho (depois do turno) ou quando abre uma

brecha na agenda porque algum paciente faltou a consulta, dessa maneira, as vozes dos

demais profissionais que atuam no posto acabam se sobressaindo na pesquisa.

Em relação a promoção da saúde na atenção básica alguns apontamentos já

podem ser elucidados, entre eles, a questão de que os cuidados em saúde na ABS ainda

giram em torno de consultas programadas e emergências visando o tratamento e a

reabilitação de pessoas com agravos em saúde. Nessa perspectiva pouco se tem percebido

7 O termo "barraco" é muito utilizado no CS e expressa a situação de quando um usuário não consegue o que quer e começaabrigar e a gritar com os profissionais que se encontram naquele momento. No dicionário barro é definido como causardiscussão ou espalhafato.

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de práticas de promoção da saúde organizadas e pontuadas como tais, visto que a

demanda mais urgente e a qual a população mais procura no CS e exige dos profissionais

de saúde é a "cura" de suas doenças, o reestabelicimento de sua saúde e a receita

medicamentosa.

Outro elemento que se destaca em relação as práticas de PS no contexto desse

CS é que ela ocorre de maneira sutil, "natural": na sociabilidade e no fortalecimento das

amizades durante os grupos terapêuticos, no estreitamento dos vínculos entre profissionais

e usuários; na localização geográfica-central que o posto ocupa naquele bairro propiciando

um ponto de encontro para a população; nas conversas paralelas nas salas de espera, e

que somente um olhar que está focalizado em perceber essas ações consegue destacá-las

e desnaturalizá-las para as rotular como "práticas de promoção da saúde".

A problematização da PS como uma mercadoria a ser vendida e que tem tido

grande destaque no lobby farmacêutico e industrial nos parece, até este momento, não ser

aplicável para o contexto de pessoas de camadas populares, isso não quer dizer que essa

ação mercadológica não acontece, pode ser que ela ocorra de maneira diferenciada e que

somente a partir da aplicação da quarta etapa da pesquisa será possível inferir com mais

certeza sobre essa hipótese. A luta pela sobrevivência, contra o tráfico de drogas, contra a

pobreza e o desemprego são situações que preocupam muito mais essa população do que

a inquietaçã com os seus hábitos alimentares ou com as prática de exercícios físicos, por

exemplo, mas não queremos com isso generalizar essa situação, tendo em vista que muitos

são os perfis de famílias e sujeitos que ali se encontram.Portanto duas hipóteses estão fortemente surgindo em relação a PS na ATB: o

cunho mercadológico não ocorre tão fortemente nessa realidade porque existem outras

prioridades maiores do que fazer PS na ATB; e também a possibilidade de que as

demandas e necessidades das classes populares não se encaixam naquele discurso de PS

que se fortemente nas ações de níveis individuais (mudanças comportamentais) e pouco

aos aspectos mais gerais da saúde (construção de políticas públicas saudáveis e de

ambiente favoráveis à saúde; fortalecimento de ações comunitárias).

Algumas articulações analíticas iniciais

O presente trabalho visa iniciar uma discussão referente às ambivalências contidas

nas práticas e nos discursos de promoção da saúde, tendo como campo privilegiado de

observação às práticas de saúde desenvolvidas no âmbito da Atenção Primária em Saúde.

Para que tal objetivo consiga ser alcançado a utilização dos conceitos de configuração e

interdependência do intelectual Norbert Elias estão iluminando o caminho. Elias (1970, p.

26) propõe à sociologia “[...] promover a evolução de um pensamento e de uma imaginação

social relativamente à percepção das interconexões e configurações elaboradas pelas

pessoas”. Para o autor, a função da sociologia é estudar as dinâmicas das interconexões

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sociais. O pensamento de Elias fornece pistas para acomodar o impasse entre estrutura e

sujeito (agencia), um debate já clássico na sociologia. De acordo com ele, os indivíduos são

constituintes da sociedade e, segundo disposições e inclinações, são direcionados uns para

os outros, criando campos de interdependência, bem como arranjos sociais, como a família,

a escola e o Estado (ELIAS, 1970).

A realidade de um Centro de Saúde pode ser ilustrada com o seguinte exemplo: “Se

quatro pessoas se sentarem a volta de uma mesa e jogarem cartas, formam uma

configuração. As suas ações são interdependentes. Neste caso ainda é possível falarmos

do jogo como se esse tivesse uma existência própria, mas o decurso tomado pelo jogo será

obviamente o resultado das ações de um grupo de indivíduos interdependentes” (Idem,

1970. p. 142). A interdependência dos jogadores é uma condição prévia para que se forme

uma configuração, e por configuração podemos compreender que é o padrão mutável criado

pelo conjunto dos jogadores. No CS os jogos de poderes seja entre as diferentes categorias

profissionais, quanto as relações entre os profissionais e os usuários vão tecendo àquela

configuração, num emaranhado de negociações, imposições, arranjos e coligações, regras e

acordos internos compondo as mais diferentes interdependências.

Nesse cenário passamos a entender a mutação do conceito de poder como uma

substância para um conceito de relação, pois é no seio das configurações mutáveis dentro

do CS que se estabelece um equilíbrio flutuante e elástico de poder. Para que estas

configurações existam, é necessário que se coloque em questão as relações de

interdependência, ou seja, “o que faz com que as pessoas se liguem umas as outras esejam dependentes umas das outras naquele contexto, daquela maneira?” Percebemos que

essas ligações de interdependência no CS diversificam conforme cada individuo, cada

categoria profissional, cada equipe, cada microarea, cada usuário assim como Elias (2001)

demonstrou ao analisar “A Sociedade de Corte” (2001), ao procurar expressar como que a

compreensão que os atores tinham de si mesmos e dos outros, a partir do conhecimento e

domínio dos costumes e das regras, da identificação de situações privilegiadas e das mais

variadas estratagemas os atores sociais construíam ações de interdependência que melhor

pudessem lhes favorecer.Nesse sentido percebemos as ações em saúde, sejam elas de promoção,

prevenção ou reabilitação que são destinadas aos usuários que procuram atendimento no

Centro de Saúde só podem ser compreendidos enquanto ligados entre si naquela

configuração específica. O cenário que está sendo colocado para analisar a promoção da

saúde na atenção básica compõem necessariamente o que Elias aponta como uma

configuração: indivíduos ligados entre si, considerando aspectos subjetivos e objetivos,

carregando consigo crenças, estabelecendo formas de poder através de relações

conflituosas, utilizando-se de artimanhas para "jogar o jogo".

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Se existe uma centralidade das ações vinculadas aos médicos e enfermeiros é

porque assim vão sendo pactuadas as relações, mas também dependem do prestígio e do

status que esses sujeitos ocupam no CS. Essa relação de prestígio pode ser percebida nas

relações entre os profissionais de saúde e nos usuários de acordo com o seu status social e

o valor social de sua função. A partir desta ótica percebemos que ao adentrar no Centro de

Saúde passamos a compreender a maneira como os atores sociais que lá trabalham, lá

permanecem e lá realizam sua terapêutica, por uma perspectiva eliasiana, podem contribuir

na identificação de novas interpretações em relação aos discursos e práticas da Promoção

de Saúde na Atenção Básica.

Apontamentos da PS como uma mercadoria; as questões de ambivalência que

surgem para cada ação ou proposta em saúde (por exemplo, se aumenta o acesso a

demanda também aumenta); quais seriam as verdadeiras prioridades em saúde para as

classes populares; a percepção de perfis e o quanto isso influencia nos cuidados em saúde;

os diferentes discursos apresentados pelos sujeitos e a verificação de suas realidades; ou

seja, a diversidade de reflexões sobre as configurações que se formam nesse ambiente.

As relações profissional-profissionais-usuários e usuário-usuários-profissionais

constituem uma trama de relações que se formam no contexto ambulatorial a partir dele e a

ele modificando. Sendo assim a Promoção da Saúde no que iremos chamar de sua

"aplicabilidade" no contexto da atenção básica em saúde dentro de um centro de saúde não

é a réplica dos discursos teóricos estabelecidos, talvez por ainda ser um algo abstrato,

confuso, ambivalente, utópico ou por não condizer com as necessidades daquela realidade.

.

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