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A NATUREZA NÃO EXISTE! 1. De Frankenstein aos novos Prometeus Em tempos pré-modernos, a Natureza era significada como criação de Deus. Natureza e Deus eram intercambiáveis e ofereciam um sentido em que a primeira ganhou conteúdo pela sua relação com uma ordem universal considerada transcendental e inamovível. Com a modernidade, essencialmente a partir do século XIX, explodiu uma noção científica de Natureza, em que o entramado Natureza, Ciência e Racionalidade se consolidou graças ao rápido desenvolvimento das ciências naturais e suas aplicações. Ao mesmo tempo, novas cadeias significantes começaram a revestir o sentido da Natureza, como a que surgiu do Romantismo, no qual a Natureza se associou com as origens perdidas e a superioridade moral ante a degradação civilizacional, ou a que surgiu com os primeiros sinais de crise ecológica nas cidades do século XIX submetidas a processos acelerados de urbanização, onde as questões sanitárias e as crescentes disparidades entre cidade e campo abriram um novo espaço real e simbólico para a Natureza. A modernização produziu assim um reboliço de listas metonímicas associadas à Natureza, nenhuma das quais apaziguou os caprichos das diferentes formas que compunham o mundo, que por sua vez proliferaram sob a forma de híbridos socio-naturais (Latour, 2003), como por exemplo a energia nuclear, os elementos transurânidos, a manipulação genética, construções como sistemas hidrológicos, linhas de electricidade, megacidades, entre outros… Consequentemente, os Prometeus 1 da modernidade, com todos os seus avanços científicos e tecnológicos, julgaram-se coexistentes com a criação no momento em que acreditaram ter transcendido a História, ao mesmo tempo que traçavam para si mesmos uma estória semelhante à que arruinou Victor Frankenstein 2 , que por 1 Alusão à Ciência Moderna num paralelismo com Prometeu, titã da Mitologia Grega que rouba o segredo do Fogo, reservado apenas aos deuses, para doá-lo à humanidade. 2 Um estudante de ciências naturais que, movido pela ambição de desvendar os mistérios da criação e erradicar os males humanos, se dedica às suas experiências laboratoriais. Nas suas palavras, ‘I will pioneer a new way (...) and unfold to the world the deepest mysteries of creation, banish disease from the human race and render man invulnerable to any but violent death. A new species would bless me as their creator and source, and many happy and excellent natures would owe their being to me.’ O livro deixa assim claro que o poder da criação é de natureza divina, e critica fortemente o papel do Homem na criação através da ciência e da tecnologia. Mary SHELLEY, Frankenstein, or the Modern Prometheus, Hollywood, Simonandbrown, 2012. (1ª ed. 1831)

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A NAT UR E Z A NÃO E X IS T E !

1 . De Frankenstein aos novos Prometeus Em tempos pré-modernos, a Natureza era significada como criação de Deus. Natureza e Deus eram intercambiáveis e ofereciam um sentido em que a primeira ganhou conteúdo pela sua relação com uma ordem universal considerada transcendental e inamovível. Com a modernidade, essencialmente a partir do século XIX, explodiu uma noção científica de Natureza, em que o entramado Natureza, Ciência e Racionalidade se consolidou graças ao rápido desenvolvimento das ciências naturais e suas aplicações. Ao mesmo tempo, novas cadeias significantes começaram a revestir o sentido da Natureza, como a que surgiu do Romantismo, no qual a Natureza se associou com as origens perdidas e a superioridade moral ante a degradação civilizacional, ou a que surgiu com os primeiros sinais de crise ecológica nas cidades do século XIX submetidas a processos acelerados de urbanização, onde as questões sanitárias e as crescentes disparidades entre cidade e campo abriram um novo espaço real e simbólico para a Natureza. A modernização produziu assim um reboliço de listas metonímicas associadas à Natureza, nenhuma das quais apaziguou os caprichos das diferentes formas que compunham o mundo, que por sua vez proliferaram sob a forma de híbridos socio-naturais (Latour, 2003), como por exemplo a energia nuclear, os elementos transurânidos, a manipulação genética, construções como sistemas hidrológicos, linhas de electricidade, megacidades, entre outros… Consequentemente, os Prometeus1 da modernidade, com todos os seus avanços científicos e tecnológicos, julgaram-se coexistentes com a criação no momento em que acreditaram ter transcendido a História, ao mesmo tempo que traçavam para si mesmos uma estória semelhante à que arruinou Victor Frankenstein2, que por

                                                                                                               1 Alusão à Ciência Moderna num paralelismo com Prometeu, titã da Mitologia Grega que rouba o segredo do Fogo, reservado apenas aos deuses, para doá-lo à humanidade. 2 Um estudante de ciências naturais que, movido pela ambição de desvendar os mistérios da criação e erradicar os males humanos, se dedica às suas experiências laboratoriais. Nas suas palavras, ‘I will pioneer a new way (...) and unfold to the world the deepest mysteries of creation, banish disease from the human race and render man invulnerable to any but violent death. A new species would bless me as their creator and source, and many happy and excellent natures would owe their being to me.’ O livro deixa assim claro que o poder da criação é de natureza divina, e critica fortemente o papel do Homem na criação através da ciência e da tecnologia. Mary SHELLEY, Frankenstein, or the Modern Prometheus, Hollywood, Simonandbrown, 2012. (1ª ed. 1831)

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03. O reencontro do criador com a criatura, no filme Frankenstein de James Wahle. (1931)

04. O encontro do criador, Ian Willmut, com a criatura, a ovelha Dolly.

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sua vez traduz o espírito moderno por excelência. Se o romance ameaçava ser polémico no contexto Romântico da Revolução Industrial, a verdade é que o seu conteúdo nunca foi tão actual, e a ambição de modernizar o planeta através do conhecimento e manipulação dos factos da Natureza3 faz com que hoje, tal como sucedeu a Victor, as imagens utópicas de um mundo cada vez mais propício à realização dos desejos humanos sejam inesperadamente abafadas pelas visões distópicas de monstruosidade que se constroem, apesar de tudo, exactamente a partir do mesmo material cultural. A questão que coloca na mesma balança o corpo humano e as tecnologias reprodutivas é o expoente simbólico desse mesmo paradigma tecno-científico. O corpo humano funciona frequentemente como um modelo conceptual para a colectividade social (Douglas, 1966), mas a partir de finais do século XX, a sua imagem nas culturas ocidentais tem sido modificada pelo encontro ambivalente com as tecnologias reprodutivas, e conceitos como o clone humano ou o designer baby reflectem as formas como ele se tem vindo a tornar o campo de batalha de uma revolução tecnológica. Visões de benefícios vindouros, desde remédios para a infertilidade à erradicação de doenças, vêm juntos com a ansiedade acerca da nossa incapacidade em controlar o ritmo e a direcção dos avanços tecnológicos, e o prometido poder de reconstituir seres vivos aumenta o espectro das preocupações com os valores humanos.4 Como um prenúncio da criatura monstruosa, a ideia do clone humano surge como o paradigma de uma anomalia que salta qualquer categorização social ou natural, numa sociedade em que a ficção científica deixou de ser ficcional e a Natureza deixou de ser natural, e as noções de transgressão e contaminação ilustram o cenário de anomalia mas, acima de tudo, o medo da perversão das posições morais e sociais estabelecidas. Como fantasia de auto-criação, o clone humano é apenas um símbolo desta era de insegurança ontológica, na qual corpos artificiais representam a abertura de novas possibilidades, mas ao mesmo tempo geram ansiedade, desorientação e revulsão (Mulkay, cit. por Bloomfield, 2006). No entanto, ao mesmo tempo que se fala na imoralidade subentendida nestes processos de manipulação biotecnológica, a própria modernidade, na

                                                                                                               3 Bruno, LATOUR, Politics of Nature, USA, Harvard Press, 2004. (ver matters of fact, p.65) 4 Um ponto de referência foi a clonagem de Dolly, que levantou especulação sobre a clonagem humana, e reacções políticas, científicas e morais à escala mundial, demonstrando a ocorrência de algo maior que uma experiência, ainda que complexa, meramente biológica (Bloomfield, 2006)

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05. A barragem de Hoover, no Arizona, um híbrido socio-natural.

06. O rato Vacanti, com uma cartilagem de orelha no dorso, um híbrido socio-natural.

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tentativa de simplificar e catalogar as ciências, as culturas, as nações, os factos, as pessoas, as artes, os animais, ou as indústrias, criou a máquina mais formidável de mobilizar cada vez mais entidades, multiplicando híbridos que delineiam tramas de Natureza, Ciência, Política, Economia, Direito, Religião, Técnica, ou Ficção, e se a leitura do jornal diário é a reza do homem moderno, quão estranho é 0 homem que hoje reza lendo estes assuntos confusos, onde toda a Cultura e toda a Natureza são diariamente reviradas de forma aparentemente catalogada, um paradigma que Bruno Latour retrata de forma absolutamente exemplar: ‘Duma leitura sobre as campanhas contra o degelo glaciar, o buraco na camada de ozono ou os químicos que lidam com a atmosfera, passamos subtilmente para executivos de corporações químicas e biotecnológicas, que começam a modificar as linhas de produção para substituir os clorofluorcarbonetos, controversamente acusados de crime contra a ecosfera. Em páginas dedicadas exclusivamente à política pura, chefes de Estado de países industrializados falam também de química, refrigeradores e aerossóis, mas em colunas distintas, os meteorologistas já não concordam com os químicos, falam de variações cíclicas, e subitamente os industriais deixam de saber 0 que fazer. Reacções químicas e reacções políticas também se misturam em artigos envolvendo países do terceiro mundo, movimentos ecologistas, tratados internacionais e direitos das gerações futuras, tecendo um mesmo fio subtil que conecta a mais esotérica das ciências e a mais baixa das políticas, 0 céu mais longínquo e a mais pequena fábrica de subúrbio, 0 perigo mais global e as próximas eleições locais. As proporções, as questões, as durações, os actores, não sendo comparáveis, estão todos implicados, e cabeças coroadas, químicos, biólogos, pacientes e industriais encontram-se envolvidos numa mesma e estranha história. As páginas de Economia, Politica, Ciências, Livros, Cultura, Religião e Generalidades dividem 0 layout como se nada acontecesse, e apesar do menor vírus da SIDA nos fazer passar do sexo ao inconsciente, à África, às culturas de células, ao ADN, e a São Francisco, os analistas, pensadores, jornalistas e todos os que tomam decisões irão cortar a fina rede desenhada pelo vírus em pequenos compartimentos específicos, onde encontraremos apenas ciência, apenas economia, apenas representações sociais, apenas generalidades, apenas piedade, e apenas sexo. Se um mesmo fio associa 0 mais inocente dos aerossóis ao degelo glaciar, à Universidade da California, às linhas de montagem e à quimica dos gases nobres, ele será cortado em tantos segmentos quantas forem as disciplinas puras, de forma a não misturar 0 conhecimento e 0 interesse, a justiça e 0 poder, 0 céu e a terra, 0 global e 0 local,

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07. A Alegoria da Caverna de Platão, segundo Jan Saenredam. Sob a luz, os Homens do Conhecimento, Iluminados; na escuridão, os homens ignorantes e acorrentados, vendo apenas sombras; lá fora, o mundo Real. (1604)

08. A capa de Leviathan, de Thomas Hobbes, por Abraham Bosse. O Soberano coroado, cujo tronco é composto por trezentos cidadãos, segura uma espada e um báculo episcopal, símbolos do poder civil e religioso. (1651)

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0 humano e 0 inumano, rompendo o nó gordo com uma espada afiada que deixa, de um lado, o conhecimento das coisas, e de outro, o interesse, o poder, e a política dos homens.’ 5 2. A Constituição M oderna Latour apresenta assim a modernidade como uma separação entre a Natureza e a Sociedade (poderíamos dizer Cultura), e ao texto comum que define este acordo dá o nome de Constituição M oderna. Com fé na razão, esta Constituição teve o seu apogeu no século XIX, quando o domínio técnico e científico trouxe consigo as grandes utopias tecnológicas, mas as suas bases, iniciadas com o antropocentrismo renascentista, assentam fundamentalmente no Iluminismo dos séculos XVII e XVIII, de onde destacamos o trabalho antagónico de dois pensadores que, com o mesmo intuito (diríamos, trazer a paz civil ao matar Deus6 e a trancendência), acabaram contudo por vincar a fronteira que nos afasta da Natureza, e por isso nos ajudarão a entender a Constituição Moderna. Por um lado, Thomas Hobbes (1588-1679) criou os recursos de que dispomos para falar de Sociedade (representação, soberania, contrato, propriedade, cidadãos), enquanto que Robert Boyle (1627-1691) elaborou um dos repertórios mais importantes que existem para falar de Natureza (experiência, facto, e testemunho), antecipando a modernidade na qual a representação das coisas através do laboratório se encontra perpetuamente dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social. Segundo Hobbes, apenas pode haver Um Conhecimento de forma a evitar a crença em corpos imateriais aos quais apelar contra os julgamentos do Poder Civil, e a matéria inerte e mecânica é assim tão essencial à paz civil quanto uma interpretação puramente simbólica da Bíblia, pelo que o Leviatã nos conduz em ambos os casos a evitar a possibilidade de invocar uma entidade superior – Natureza ou Deus – que o Soberano não controle por completo, For the laws of Nature of themselves, without the terror of some Power, to cause them to be observed, are contrary to our natural passions, that carry us to partiality, pride,

                                                                                                               5 Bruno LATOUR, Jamais Fomos Modernos, Rio de Janeiro, Editora 34, pp.7-8, 1991 6 Deus está morto. E nós matámo-lo. Friedrich NIETSZCHE, Die fröhliche Wissenschaft, 1882

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09. A Grande Batalha da Constituição Moderna.

10. A luta do Homem, munido de tecnologia, contra uma Natureza fantasiada e perigosa. Esta imagem do filme Avatar atesta para a história do filme, no qual a civilização humana tenta subjugar uma Natureza estrangeira a qualquer custo, desrespeitando as populações nativas, com o objectivo de extrair um minério precioso. Não deixa de ser curioso, no entanto, que um filme com uma mensagem ambientalista tão forte tenha sido também o mais dispendioso, lucrativo e poluente da história do cinema, segundo os dados oficiais da produtora. (2009)

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revenge and the like.7 Boyle, ao invés de basear o seu trabalho em matemática, lógica ou retórica, deteve-se numa metáfora parajurídica: testemunhas credíveis em torno duma experiência podem, segundo ele, atestar a existência de um facto, ainda que não conheçam a sua verdadeira natureza. ‘Boyle did not seek these gentlemen’s opinion, but rather their observation of a phenomenom produced artificially, in a closed and protected space of a laboratory’.8 Assim, apesar de apenas Deus conhecer estes factos da Natureza produzidos em laboratório, nós conhecemos a natureza dos factos, porque os experienciamos nessas circunstâncias (Latour, 1991). Desta feita, a Alegoria da Caverna9 ajuda-nos a dramatizar as virtudes que a Constituição Moderna espera da Ciência, opondo a vida social, pública e política ao Conhecimento. O Filósofo da Caverna, ao qual faremos corresponder o Cientista, tem que, ao contrário do Cidadão do Leviatã, libertar-se da tirania do mundo social, da vida pública e política, sentimentos subjectivos e agitação popular – em suma, da Caverna escura – se quiser aceder à verdade, ilustrando uma visão da Ciência e Conhecimento e de um subsequente mundo social que serve como uma frustração para os mesmos, mas propondo também uma segunda mudança: o Cientista, uma vez equipado com as leis naturais que ele apenas conseguiu contemplar ao libertar-se da prisão social, pode voltar à caverna para trazer ordem com descobertas incontestáveis (Latour, 2003). Tal é a dupla ruptura que a Alegoria mantém, tão radical quanto sempre, induzindo-nos ainda hoje a pensar que a Ciência pura apenas consegue sobreviver enquanto se distanciar em absoluto entre as coisas como são, e as representações que os humanos delas fazem, impuras, manipuladas e ideológicas. 3 . As quatro garantias

                                                                                                               7 Thomas HOBBES, Leviathan, 2008, Forgotten Books, pp. 116.. (1ª ed. 1651) 8 Steven Shapin, citado por Bruno LATOUR, Jamais Fomos Modernos, Rio de Janeiro, Editora 34, pp.18, 1991. 9 Figura-te agora o estado da natureza humana em relação à Ciência e à ignorância sob a forma alegórica que passo a fazer: imagina os homens encerrados em morada cavernosa. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os prisioneiros imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os malabaristas põem entre si e os espectadores, para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem. Platão, A República, Editora Atena, pp.287, 1956.

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1 1 . Calvin e Hobbes sobre a luta da Ciência contra a Ideologia, segundo Bill Watterson. (1991)

12 . Nature vs Culture, por Sadi3-g. (2009)

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O aspecto tentador em assumir esta ruptura como duas esferas exclusivas, distinguindo a Natureza (o Conhecimento) e a Sociedade (os Valores), subsiste na sua aparente modéstia: os cientistas definem apenas factos, e deixam para os moralistas a tarefa de definir valores, e para os políticos a tarefa de tomar decisões. A noção de facto omite contudo o trabalho por trás da sua elaboração, e a noção de valor tem a fraqueza de depender da definição de facto em primeiro lugar, pelo que as escalas não estão equil ibradas entre quem pode def inir a real idade daquilo que é , e a real idade daquilo que deve ser (Latour, 2004).10 Por exemplo, uma vez que clonar ovelhas e ratos se tornou um facto da Natureza, podemos levantar a questão ética sobre se os mamíferos, incluindo os humanos, deveriam ser clonados, cabendo aos políticos a tarefa da decisão, mas embora pareça impossível passar sem a dicotomia que protege simultaneamente a autonomia da Ciência e a independência dos juízos morais, separar a Natureza da Sociedade é a única forma de garantir o poder da primeira sobre a segunda, numa Constituição que apazigua o espírito ao oferecer quatro garantias capita is : - A existência da Natureza (que permite que os objectos mudos falem, com o auxílio de porta vozes científicos) oferece uma primeira garantia capital, a de que não são os homens que fazem a Natureza, ela existe desde sempre, e tudo o que fazemos é descobri-La aos poucos. - A existência da Sociedade oferece uma segunda garantia capital, a de que são os homens e os homens apenas que A constroem e decidem livremente acerca do Seu destino. - Mas os sucessores modernos de Boyle jamais cessarão de construir a Natureza no laboratório, reivindicando apenas descobri-la, enquanto os sucessorers modernos de Hobbes jamais cessarão de construir o Leviatã pelo cálculo e força social, mas cada vez recrutando mais factos para o sustentar. Ao fazê-lo, acrescentam uma terceira garantia , que separa completamente a Natureza da Sociedade. - A quarta garantia é a que resolve a questão de Deus, afastando-O para sempre desta dupla construção, pelo que os sucessores de Hobbes esvaziaram a

                                                                                                               10 Os moralistas, vendo a humildade dos cientistas, julgam ter ficado para si a parte mais importante, difícil, e desejável, e em comunhão, cientistas e moralistas concordam que a ciência propõe, e a moralidade dispõe, os primeiros com falsa modéstia, e os últimos com falso orgulho.

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13 . Deus está morto? Capa da revista Time de 8 de Abril de 1966. Um artigo da mesma revista do ano anterior revelou uma tendência entre os teólogos da época em estudar e escrever sobre Deus fora do campo da teologia. Neste artigo de 1966, essa questão foi explorada com maior profundidade, na tentativa de analisar como a ciência moderna eliminou a necessidade religiosa para explicar o mundo natural, e como Deus foi saindo do quotidiano das pessoas. Foi a primeira vez na história da revista que o título não se fez acompanhar por qualquer texto, chegando a ser considerada uma das dez capas mais mediáticas de sempre. (1966)

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Natureza da Sua presença, e os de Boyle a Sociedade da Sua origem.11 Três vezes a transcendência e três vezes a imanência numa Constituição que fecha todas as possibilidades: Nós não cr iámos a Natureza, cr iámos a Sociedade/Nós cr iámos a Natureza, não cr iámos a Sociedade/Nós não cr iámos nem uma nem outra , Deus cr iou tudo/Deus não cr iou nada, nós cr iámos tudo. 12 Usando três vezes seguidas a mesma alternância entre transcendência e imanência, é possível mobilizar a Natureza, coisificar o natural, sentir a presença espiritual de Deus, defendendo ferrenhamente que a Natureza nos escapa, que a Sociedade é nossa obra, e que Deus não interfere mais. 4 . O mito da Natureza Como consequência, a Natureza transformou-se talvez na palavra mais complexa da linguagem (Williams, cit. por Swyngedow, 2010), percorrida não só por todo o tipo de histórias e geografias, mas também sentidos, fantasias, sonhos e imagens de desejo, e tornou-se, ao mesmo tempo, uma das metáforas mais potentes e performativas da língua, tanto a nível social como político.13 Em Ecology without Nature, Timothy Morton (cit. por Swyngedow, 2010) refere-se à Natureza como um termo transcendental, com uma máscara material, que se esconde detrás de uma infinidade de outros termos que se fundem em seu nome. Ele

                                                                                                               11 Ao reinterpretar os antigos temas teológicos cristãos, e colocar em jogo a transcendência e a imanência de Deus, o homem moderno podia ser simultaneamente ateu e religioso, laico e piedoso, invadir livremente o mundo natural e recriar livremente o mundo social, numa espiritualidade reinventada que permitiria criticar tanto a dominação da Ciência quanto a da Sociedade, sem obrigar Deus a intervir nem numa nem noutra (Latour, 1991). 12 As duas primeiras garantias permitem alternar as fontes de poder ao passar sem dificuldades da pura força natural à pura força política, e vice-versa. A terceira impede qualquer contaminação entre aquilo que pertence à Natureza e aquilo que pertence à política, ao mesmo tempo em que as duas primeiras garantias permitem a alternância entre uma e outra. A contradição seria visível entre a terceira, que separa, e as duas primeiras, que alternam, apenas se a quarta garantia não estabelecesse como árbitro um Deus distante, ao mesmo tempo impotente e juíz soberano (Latour, 1991). 13 Se há um desafio conceptual que precisa de ser explorado no plano da teoria e da prática da arquitectura, assim como de qualquer tipo de intervenção, a Natureza deve indubitavelmente ocupar um lugar de relevo, e esta tarefa é tão mais urgente quanto mais tivermos em conta as condições sócio-ecológicas, ou, por assim dizer, os estados de Natureza, que se encontram actualmente debaixo de uma séria tensão.

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14. A Natureza de Heidi e Pedro, harmoniosa, bondosa e previsível.

15 . A Natureza de Alice, no País das Maravilhas, fantasiada, perversa, errática e imprevisível.

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distingue pelo menos três grandes lugares ou sentidos da Natureza no nosso universo simbólico: Em primeiro lugar, como significante oscilante, o conteúdo da Natureza expressa-se através de uma variedade de termos diversos que, em conjunto, se fundem em seu nome. Tais listas metonímicas oferecem assim um certo, ainda que instável, sentido, mas são intrinsecamente escorregadias, e mostram bem a obsessão em fixar um sentido duradouro para o termo, ou proporcionar-lhe uma mínima consistência. Em segundo lugar , a Natureza tem força de lei, e é uma regra contra a qual se mede a marginalidade. O poder normativo inscrito na Natureza é invocado como um princípio de organização transcendental e universal, que lê a Natureza como algo dado, com uma sólida base fundacional, a partir da qual actuamos, e que pode ser invocada para apoiar juízos éticos ou funcionais sobre práticas e procedimentos ecológicos, sociais, culturais, políticos ou económicos. Considérese por ejemplo cuantos de los recientes esfuerzos de planificacíon sostenible legitimizan sus actividades invocando cierta visión de una Naturaleza que se ha desajustado y requiere ser re-equilibrada, un procedimiento que re-equilibaría, a su vez, el orden social.’14 Em terceiro lugar , a Natureza acolhe uma pluralidade de fantasias e desejos, como o sonho de uma Natureza sustentável, ou o medo da sua vingança se não reduzirmos, por exemplo, as emissões de dióxido de carbono. A Natureza é vista aqui como o substituto de outros desejos e paixões, reprimidos ou invisíveis, em torno dos quais conformamos as nossas motivações, e que ocultam a carência de um solo firme no qual sustentar a nossa subjectividade (Zizek, 1999). Aqui, la Naturaleza es invocada como terreno externo que ofrece la promessa, si sabemos atanderla, de encontrar o producir una vida realmente feliz y armoniosa.’15 Em suma, os próprios usos que damos à Natureza implicam, simultaneamente, uma tentativa de fixar o seu instável sentido e, ao mesmo tempo, de apresentá-la como uma externalidade, normalmente fantasiada. O conceito advém ideologia, e por isso extingue o pensamento e ignora as suas multiplicidades, inconsistências e

                                                                                                               14 Erik SWYNGEDOUW, La Naturaleza No Existe!, revista Urbanistica, pp.44, 2010 15 Erik SWYNGEDOUW, La Naturaleza No Existe!, revista Urbanistica, pp.45, 2010

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incoerências. É neste sentido que Zizek defende que a Natureza não existe 16, o que existe é uma diferença entre uma série de significantes comuns e o elemento central, que há-de sempre permanecer vazio, e que constitui o termo Natureza. De forma semelhante, Bruno Latour defende que o conjunto de coisas que povoam o mundo, humanas e não humanas, é formado por híbridos de Natureza e Cultura (realidades naturais e sociais) que se multiplicam incessantemente, as socio-naturezas que definem, coreografam e sustêm a vida e as práticas quotidianas, o que é fácil constatar quando pensamos numa ovelha clonada, uma barragem hidráulica ou uma rede de saneamento, onde reconhecemos uma mistura de realidades sociais/culturais e ao mesmo tempo físicas/naturais.

De uma perspectiva diferente, numerosos investigadores começam também a insurgir-se contra algumas ideias impostas pela ecologia profunda. Lewis e Lewontin (cit. por Swyngedow, 2010), ecologistas e biólogos de Harvard, estão de acordo em como a Natureza foi moldada pelos cientistas como ums miscelânea de sentidos universalizantes que, em última instância, a despolitizam. Para eles, a biologia moderna não ignora as transformações radicais que afectam o nosso meio ambiente, mas essas alterações são vistas como exterioridades. Se a primeira destas perspectivas insiste numa força de estabilização inata à Natureza, interrompida por acções humanas externas, a segunda reduz os complexos dados da alteração ambiental ao resultado imprevisível de forças imanentes nas simples condições de origem. Ambas as perspectivas negam assim que o mundo biológico está intrínseca e relacionalmente constituído de modos infinitamente variados, contingentes e historicamente produzidos, nos quais cada parte, humana ou não humana, está conectada de forma indissociável com as relações mais amplas que constituem o todo. É ainda nestes termos que Stephen Jay Gould (cit. por Swyngedow, 2010) enfatiza que ‘No hay seguridad alguna en la Naturaleza – la Naturaleza es imprevisible, errática, se mueve de forma ciega e espasmódica. (…) Para decirlo sin rodeos, reducir (o no hacerlo, como es el caso) las emisiones de CO2 afecta el clima global e conforma patrones socio-ecológicos de diferentes modos (…), pero tal processo no produciría en sí mismo una sociedad buena en un ambiente bueno.17

                                                                                                               16 ‘Maybe paradoxically, we should accept that Nature doesn’t exist! Not in any crazy subjectivist way, (…) but in the sense that the image of Nature that we spontaneously accept, Nature as a balanced, harmonized circulation which is then destroyed through excessive human acency, that Nature doesn’t exist.’ Slavoj ZIZEK, http://www.youtube.com/watch?v=DIGeDAZ6-q4, 5/2012. 17 Stephen Gould, citado por Erik SWYNGEDOUW, La Naturaleza No Existe!, pp.49, 2010

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Segundo Erik Swingedow, ‘este vaciado de un sentido fijo de la Naturaleza ha sido un aspecto sistemático de la modernidad tardía, en particular conforme las cadenas significantes de lo que la Naturaleza realmente es se multiplicaron en paralelo a la proliferación de diferenciaciones sociopolíticas, culturales, o de otro tipo.18 As naturezas que vemos e com que trabalhamos são necessariamente imaginadas e carregadas simbolicamente como A Natureza, inscrições sempre inadequadas que deixam um vazio e mantêm grande distância em relação ao Real da multiplicidade de naturezas existentes, complexas e caóticas, imprevisíveis, contingentes, histórica e geograficamente variáveis, e configuradas de infinitas formas (Zizek, cit. por Swyngedow, 2010). Por outras palavras, ‘(…) no hay ninguna Naturaleza ahí fuera que precise o requiera la salvación en nombre de la propria Naturaleza o de una Humanidad genérica. No hay nada fundacional en la Naturaleza que requiera, exija, o precise ser sostenido. El debate y las controversias sobre la Naturaleza y sobre qué hacer con ella señalan por el contrario nuestra incapacidad política para embarcarnos en una discusión directamente política y social que permita adoptar estrategias de replantamiento de las coordenadas socio-ecologicas de la vida cotidiana, la producción de nuevas configuraciones socio-naturales y el cuestionamiento de la organización socio-metabólica que habitamos (…).’ 19 5 . Ecologias do M edo Apesar de não existir acordo sobre o significado de Natureza, há ainda assim um consenso em sermos sustentáveis se desejamos evitar uma catástrofe, e os poucos eco-cépticos que resistem são desterrados à margem da respeitabilidade. Neste ajuste consensual, os problemas ambientais manifestam-se como ameaças universais à sobrevivência, anunciando o final prematuro da civilização tal como a conhecemos, um argumento sustentado pelo que Mike Davis chama de Ecologias do Medo (Davis, cit. por Swyngedow, 2010). O sentido contemporâneo da condição ambiental reveste-se sistematicamente de invocações contínuas ao medo e ao perigo, ao espectro da aniquilação ecológica ou, no menor dos cenários, a condições socio-ecológicas seriamente alteradas para muitas pessoas num futuro muito próximo. O medo é o ponto crucial através do qual se constrói a maior

                                                                                                               18 Erik SWYNGEDOUW, La Naturaleza No Existe!, Magazine, pp.53, 2010 19 Slavoj ZIZEK, citado por Erik SWYNGEDOUW, La Naturaleza No Existe!, pp.49, 2010

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16. Um aviso global. (2006)

17. Depois do aviso global.

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parte da actual narrativa ambiental, e que continua a alimentar a preocupação pela sustentabilidade, articulado em torno da promessa da iminente desintegração socio-ecológica, e alimentado por furiosos debates acerca da altura exacta da sua chegada. Este culto das Ecologias do Medo (Katz, cit. por Swyngedow, 2010), por sua vez, sustém-se por um particular jogo de imaginações fantasmagóricas, de tal forma que a nossa sina ecológica está suturada com medos milenares sustentados por uma retórica apocalíptica e tácticas de representação mitificadas, que ameaçam minar as coordenadas da nossa rotina e tudo aquilo que temos por assegurado. O imaginário apocalíptico de um mundo sem água ou no mínimo com escassez de água potável, devastado por furacões cuja intensidade é amplificada pela alteração climática, imagens de territórios ressecados à medida que o aquecimento global modifica o regime geo-pluvial e a variabilidade espacial de secas e inundações, icebergs que se desintegram em redor dos pólos conforme o gelo se derrete no oceano, reduções alarmantes da biodiversidade à medida que as espécies desaparecem ou são ameaçadas de extinção, imagens pós-apocalíticas de terras estéreis abandonadas que recordam as ecologias silenciosas em torno de Chernobyl, a ameaça de um pico de petróleo que, sem uma gestão apropriada e uma previsão tecnologicamente inovadora devolveria à civilização uma existência própria da Idade da Pedra, devastações produzidas por fogos incontroláveis, tsunamis, doenças proliferantes, e todos os imaginários possíveis de uma Natureza descincronizada, desestabilizada, ameaçante e fora do controlo, encontram paralelo nas imagens igualmente perturbadoras de uma sociedade urbana que continua a acumular desejos e a bombear dióxido de carbono para a atmosfera, desflorestando os pulmões da Terra. Esta conjuntura leva Alain Badiou a insistir que a ecologia se converteu numa nova forma de ópio para as massas (Badiou, cit. por Swyngedow, 2010), substituindo a religião como eixo em redor do qual se passou a articular o nosso medo pela desintegração social e ecológica, mas também a partir do qual se pode chegar à redenção, se escutarmos com atenção os avisos que a Natureza nos oferece. Escudando-se na retórica da necessidade de uma mudança radical que nos salve do colapso iminente, defendem-se toda uma panóplia de medidas técnicas, gerenciais, sociais, físicas, e afins, para assegurar que tudo continua igual, que nada realmente muda, e que a vida pode continuar como antes. É esta, de facto, a

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mensagem de Uma Verdade Inconveniente,20 seguramente uma das provas mais evidentes em como os assuntos ecológicos se elevaram ao nível da causa humanitária global, um paradigma que Frederic Jameson ilustra bem ao afirmar que ‘ I t ’ s eas ier to imagine the end of the world, than to imagine the end of capita l ism’ (Jameson, 2004). Constrói-se assim um guião em torno da sustentabilidade entendida simplesmente como uma série de dispositivos técnicos e directivos, radicais ou inovadores, que devem assegurar a permanência da civilização tal como ela está, e Uma Verdade Inconveniente transforma-se então numa outra bastante conveniente, para aqueles que desejam que um determinado sistema socio-económico se mantenha inalterado, em nome da sustentabilidade de uma Natureza puramente mitificada. Os hinos à sustentabilidade passam a garantir que o tema da Natureza é levado a sério, e que o mundo está em boas mãos, alimentando a fantasia da Natureza bondosa e sustentável, que evita subrrepticiamente a formulação da pergunta, essa sim, sensível e vital, acerca do tipo de naturezas que queremos e devemos, em consciência, habitar. Neste sentido, sustentaremos que a única forma de contrariar este fenómeno de despolitização, é através de um outro de re-politização. Se a despolitização que o termo Natureza introduziu como instância absoluta de legitimação para medidas supostamente relacionadas com o ambiente (seja a preservação da biodiversidade ou a diminuição do CO2), a re-politização é a forma de pensar que percebe o uso da Natureza como arma de arremesso na arena política e social, um fenómeno que é importante reverter. Em arquitectura, por exemplo, torna-se óbvio que a questão não é, ao contrário do que parece ser regra, qual A Arquitectura a praticar para salvar A Natureza, mas sim quais as arquitecturas que nos interessam para priveligiar as naturezas que desejamos fomentar, sendo que é esta a questão fundamental a explorar nos próximos capítulos.

                                                                                                               20 Al GORE, Un Inconvenient Truth, Paramount Pictures, 2006. Tanto este documentário, como muita da acção que tem vindo a ser levada a cabo pelo Intergovernmental Panel on Climate Change das Nações Unidas, através de narrativas diferentes, urgem mudanças radicais na gestão técnico-administrativa dos entornos socio-naturais a fim de assegurar que o Mundo, tal como o conhecemos, permanece imutável.