A Modernidade Esquecida - Marcelo Sutil

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O Art Déco em Curitiba

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  • 41Revista UFG / Julho 2010 / Ano XII n 8

    dossi ART DCO

    A MODERNIDADE ESqUECIDA:O ARt DCO EM CURItIbAMarcelo Saldanha Sutil1

    Modernidade era a palavra de ordem para aqueles que viveram as dcadas de 20 e 30 do sculo passado. Sozinho, o vocbulo condensava significados que defi-niriam desde as novidades tecnolgicas at os anos ps-guerra. Era a velocidade, o automvel, o gramofone, o rdio e, por que no, at o fogo a gs para a dona de casa. Moderna era a ltima moda vigente. Signo concreto de emancipao e de autonomia, moderno era o vivido e o futuro a caminho. Moderno um dia fora, por que no, o passado. Moderna era a arquitetura que se fazia.

    O adjetivo encampou, de certa maneira, tudo o que ento se construa, e foi comum o termo ser empregado e definido como pertencendo a uma arquitetura cbica, futurista, estilo 1925, Art Moderne, facista, estilo caixa dgua, Paris 25, Jazz Modern Style, La Mode 25 (almada e conde, 2000) e assim por diante, numa srie de denominaes posteriormente agrupadas e definidas simplesmente como art dco, termo derivado do nome da Exposition Internacionale des Arts Dcoratifs et Industriels Modernes de 1925.

    Na poca, diversas tendncias estilsticas possibilitavam uma reinterpretao, por vezes diluda, das correntes artsticas que procuravam reafirmar e dar vazo aos esforos progressistas da civilizao industrial. Em muitos casos, engenheiros e arquitetos, com uma atitude pragmtica, incorporaram sua maneira concei-tos e teorias, criando uma arquitetura autodidata, mas identificada com o novo.

    1 Historiador da Fundao Cultural de Curitiba, doutor em Histria pela UFPR.

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    dossi ART DCO . A MODERNIDADE ESqUECIDA

    Pragmatismo esse que refora o esprito modernizador nas cidades brasileiras do perodo, e amplia a importncia dessas diversas manifestaes.

    Por art dco compreender-se-ia boa parte das novidades da arquitetura (e do design) realizadas entre as dcadas de 1920 e 1940, inclusive as de tendncia racionalista, uma vez que se generalizou uma nica denominao para a produo do perodo. Modernos da ocasio, entretanto, desconheciam a expresso, cunhada em 1966, durante a exposio Les Annes 25, montada no Museu de Artes Decorativas em Paris.

    Foi, entretanto, uma modernidade esquecida e Curitiba um bom exemplo dessa falha da memria da Arquitetura. Como nos demais centros urbanos, o art dco e o racionalismo tambm encamparam o ima-ginrio da cidade como signos do moderno, assumidos pela municipalidade como expresso de progresso e do novo. No obstante a cidade ter passado por um decrscimo no nmero de construes, devido ins-tabilidade econmica do pas nos anos de 1930 e os prenncios da grande guerra, o dco, dentro de toda a amplitude que o termo abrigava, firmou-se como um conceito de modernidade para obras pblicas, residncias e os primeiros grandes edifcios a pontuar na paisagem.

    A esttica disseminou-se ainda por teatros, cinemas, indstrias e pavilhes de exposies. Ao ser adotado em linhas mais simplificadas, tambm conquistou adep-tos e popularizou-se em modestas moradias, boa parte delas construda no alinhamento predial, em respeito legislao em vigor que mantinha resqucios do orde-namento colonial. Demonstrao de que a arquitetura popular se apropria de elementos presentes no coti-diano, transformando-os em signos que permitem uma atualizao com a esttica vigente. De certa maneira, o art dco correspondeu ao apelo popular com uma arquitetura de baixo custo e com formas e elementos simples de reproduzir.

    Como estilo oficial e disseminado entre a populao, teve a sua consagrao reforada pelo seu reiterado uso em grandes exposies transitrias organizadas por todas as esferas do governo (segawa, 1998, p. 62). No incio da dcada de 1940, Curitiba comemorou datas festivas em duas grandes feiras exposies carregadas da esttica. A primeira delas foi inaugurada por Getlio Vargas em 29 de maro de 1942; a segunda, chamada de internacional por conta dos pavilhes do Uruguai, Repblica Dominicana, Polnia e de empresas norte--americanas, foi aberta um ano depois em comemorao ao 250 aniversrio da cidade. A concepo dos pavilhes

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    curitibanos, planejados por Bruno Sercelli, ia ao encontro da arquitetura reali-zada em outras exposies internacionais, como a de Paris (1937) e a de Nova Iorque (1939). Esta influncia se fez mais explcita no pavilho construdo para o Ministrio da Marinha, semelhante ao da marinha americana, concebido para a exposio de Nova Iorque (dudeQue, 2001, p. 108).

    A celebrao cvica e patritica na arquitetura desses eventos, com suas linhas modernas e severas, como afirmava o catlogo da exposio, transferia-se para as ruas da cidade, principalmente nos primeiros edifcios em altura. Uma arquitetura monumental, inspirada em arqutipos clssicos que se constituiriam numa outra simbologia, representando ideologias e governos autoritrios. Dali para frente, seria sempre lembrada como a arquitetura do Estado Novo de Getlio Vargas.

    Nessa poca, Curitiba, como outras capitais, ampliava o nmero de edifcios. Em boa parte das principais cidades brasileiras, a dcada de 1940 significou um predomnio da verticalizao das paisagens sob o domnio do art dco ou de suas variaes de contedos racionalistas. So Paulo, j no final dos anos 20, abrigaria o edifcio Martinelli, ainda com ares eclticos; o Rio de Janeiro veria surgir o edifcio A Noite, onde os conceitos perretianos de uma arqui-tetura em concreto integrada estrutura foram seguidos esttica dco. Sem esquecermos o edifcio Oceania, em Salvador, cidade que tambm abrigaria na sua paisagem tradicional outra espetacular obra dco, o Elevador Lacerda (segawa, 1998, p. 64-65).

    Em Curitiba, entre os modernssimos edifcios do perodo, encontrava-se o Nossa Senhora da Luz, na Praa Tiradentes. Com trs fachadas, uma delas competindo com toda uma lateral da neogtica da igreja Matriz, foi o primeiro a romper com a paisagem do casario ecltico de um dos mais antigos stios de ocupao da cidade.

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    dossi ART DCO . A MODERNIDADE ESqUECIDASua arquitetura de linhas retas, exceto pelo aprovei-tamento da curvatura de duas esquinas, simples se comparada de outras obras de porte de So Paulo e Rio de Janeiro, mas seus volumes simplificados, ao mesmo tempo em que se purgavam excessos de deco-rativismos, acabaram sendo um referencial tambm seguido em outros prdios do mesmo perodo, como o Pizzato, na Rua Carlos Cavalcanti, e o Marumby, na Praa Santos Andrade.

    A publicidade dos edifcios era grande e a associa-o com o progresso da cidade, inevitvel. Dez anos passados, e Curitiba oferece ao visitante um aspecto novo, acentuada mostra de desenvolvimento, diz um artigo sobre a capital publicado na revista Vida Prin-cesina em 1946. Comparando a cidade de ento com a da dcada anterior, conclua-se que os habitantes no mudaram, continuavam os mesmos cordiais de sempre, mas a cidade alterara seu aspecto e, nessa transformao, em muito contriburam os edifcios.

    Considerados como a modernidade elevada s suas ltimas instncias por uma populao acostu-mada s construes baixas, em muitos casos os edifcios de um dco, ainda que simplificado, repre-sentam a modernidade de fato. Por esse motivo, em Curitiba as vertentes agrupadas sob essa denomi-nao concorreram, muitas vezes, simultaneamente com o modernismo difundido no Rio de Janeiro e So Paulo, sendo mais uma opo do que propria-mente um desconhecimento de outras arquiteturas. Ainda que sem orientao claramente definida, o pragmatismo de muitos profissionais envolvidos colaborou para franquear populao as inovaes e os avanos da cidade em constante modernizao (Bianco e campos neto).

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    Referncias bibliogrficas

    ALMADA, Mauro; Conde, Luiz Paulo Fernandez. Guia da arquitetura art-dco no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Se-cretaria Municipal de Urbanismo/Casa da Palavra, 2000.

    BIANCO, Giovanni; Campos Neto, Cndido Malta. Redescobrindo o art-dco e o racionalismo clssico na arquitetura belenense. In: Arquitextos peridico mensal de textos de arquitetura. Texto Especial n 187. Localizado em http// www.Vitruvius.com.Br. Acesso em 22.abr.2003

    DUDEQUE, Ir. Espirais de madeira: uma histria da ar-quitetura de Curitiba. So Paulo: Studio Nobel, 2001.

    MORI, Victor Hugo (org.). Patrimnio: atualizando o de-bate. So Paulo: Iphan, 2006.

    SEGAwA, Hugo. Arquitetura no Brasil. So Paulo: Edusp, 1998.

    SUTIL, Marcelo Saldanha. Beirais e platibandas: a arqui-tetura de Curitiba na primeira metade do sculo 20. Curi-tiba, UFPR. Tese [Doutorado], 2003.

    Entretanto, no obstante a intensa produo que deixou marcas por toda a cidade, nem sempre ela adequadamente protegida. H um vazio temporal quando se trata de preservao de bens edificados do perodo. A modernidade que se quer guardar em Curitiba, por exemplo, pulou esses anos e caiu diretamente na dcada de 1950, quando a arquitetura moderna, influenciada pelas escolas carioca e paulista, de fato, chegou. Resultado: pouco se fala, pouco se pesquisa e os olhos se fecham para toda uma produo hoje descaracterizada. Quar-teires inteiros de conjuntos de sobrados e residncias isoladas so varridos dos olhares; edifcios so alterados sem constrangimento.

    A mesma legislao que protege o ecltico e o moderno deixa o dco e suas variantes desaparecer. A culpa, se que podemos usar essa palavra, pode derivar do prprio desconhecimento. No se preserva aquilo que no se tem memria, e para existir memria necessrio, primeiramente, conhecer para ento se apropriar. Para se apropriar preciso ter identificao, enfim... o crculo prossegue. Nesse caso, fundamental a conscincia de que uma cidade que guarda testemunhos de momentos histricos variados uma cidade que se afirma como espao urbano, cria uma imagem e valoriza uma paisagem.

    Entretanto, uma questo se apresenta: como preser-var uma cidade sem engess-la, ou pior, sem museific--la? A dinmica prpria do meio urbano no pode ser interrompida, pois antes de ser um bem cultural, cidades so artefatos cotidianamente trabalhados. Nesse sentido, faz-se necessrio todo um trabalho de identificao, de inventrio e de pesquisa. Faz-se necessrio construir uma memria, pois o passado s nos dado a conhecer por meio de representaes. E preservar, de certa maneira, trazer o passado aos nossos dias.