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A Mina do Morro das Almas
A Mina doMorro das Almas
________King Rosso, o rei vermelho
(conto verossímil de uma luta)
2008
Adriles Ulhoa Filho
Adriles Ulhoa Filho 1
A Mina do Morro das Almas
Para
Sérgio Ulhoa Dani
Paulo Maurício Serrano Neves
Alessandro Silveira
Cylene Gama
Márcio José dos Santos
Uldicéia Oliveira
Rui Nogueira
Sandro Neiva
baluartes de uma Inconfidência
Paracatuense.
Para
outros “preás” e ”pardais” que aos
milhares se juntam nesta luta.
Adriles Ulhoa Filho2
A Mina do Morro das Almas
1
A mina
Foi o primeiro a perceber que não era
normal a irritante poeira que cobria todos os dias
as folhas das plantas, o telhado, o piso e a
mureta do alpendre de sua casa.
Era poeira pesada, encardida, bem
diferente da fria poeira de piçarra da ladeira do
Lajedo onde brincava na infância. Chegou a
cheirar para certeza de que não se tratava de
algum produto inadvertidamente derramado.
Não! Não era nenhum produto doméstico
derramado, e nem a poeira das suas peraltices
na infância - leve e cheirosa quando caíam as
primeiras chuvas - que, de propósito, levantava
ao arrastar os pés, para desespero das
lavadeiras que retornavam do Córrego Rico com
trouxas de roupas lavadas. Aquela servia até
para estancar, sem risco à saúde, o sangue dos
arranhões, nos jogos de bola no largo sem
grama.
A que o atormentava agora era mal
cheirosa, amarelada e pegajosa, encardia roupas
e secava as folhas das árvores.
Adriles Ulhoa Filho 3
A Mina do Morro das Almas
Estava certo que as freqüentes corizas,
ardor nos olhos e desarranjos sem motivos que
vinha sofrendo era tudo culpa dela e da água
tratada, de gosto ruim, que chegava pelos canos.
Bem diferente da água que apanhava
gratuitamente nas cacimbas feitas nos cascalhos
do córrego. Diziam que aquelas águas davam
papo, mas eram bem mais saborosas que as que
agora bebia. Melhores que as que nos vendem
hoje em garrafões plásticos.
Lembrava sempre com quem conversava
como era a cidade há algumas décadas passadas.
O córrego morreu, secaram suas cacimbas,
seus puxados, morreram piabas, traíras e
timburés. Desapareceu tudo quando vieram as
máquinas que entraram pelo seu leito e moeram
seixos, lajes e barrancos. Só restou lodaçal
fedorento, misturado com esgotos domésticos
sem tratamento, que as poucas chuvas só
conseguem parcialmente afastar. Levar a
poluição para um pouco mais adiante. Para
outros córregos, outros rios, onde deságuam as
águas do poluído Córrego Rico.
Os espinheiros já tomaram conta do que
sobrou das antigas praias e buscam agora o
filete de água que restou. Loteamentos
Adriles Ulhoa Filho4
A Mina do Morro das Almas
clandestinos avançaram pelo seu antigo leito e
casebres são foram construídos.
Aparentemente não há mais o perigo das
enchentes, que eram atração, mas também
receio dos ribeirinhos. A enchente de São José,
ou das goiabas, era a mais esperada no
fechamento do verão. Muita gente se apinhava as
margens do córrego para ver a fúria das águas
derrubando barrancos e engolindo quintais.
Troncos de árvores e animais mortos rolavam
nas fortes corredeiras. Era a anual limpeza do
leito para renascer o córrego. Para abrir aos
garimpeiros novos locais de trabalho nos dias
que se seguiam.
Hoje, não é possível sequer se encantar
com o reflexo de um clarão de lua nas águas dos
puxados, onde garotos brincavam e nadavam,
até nas quentes noites de Verão.
Ficou para a cidade esse pó insuportável,
essa temperatura cada vez mais elevada, essa
verdadeira estufa, que nem capeta agüenta!
Em noites mal dormidas, como a última,
pesadelos povoaram o sono de Pardal. Ele que
raramente sonhava, essa noite sonhou que:
“Aninha Preta Velha, gargalhava ao seu
redor, e que outra, a Maurícia, cuspia fumo
Adriles Ulhoa Filho 5
A Mina do Morro das Almas
mascado aos seus pés, enquanto diversas negras
escravas, semi-nuas, dançavam, piscavam e
sorriam vitoriosas ao seu redor. Tudo ao som de
um batuque ensurdecedor. Uma dança de
candomblé de caboclo, com todas elas
apontando para ele, como se fosse o único
culpado de uma grande tragédia. Vai moleque!
Vai Pardal, levanta de novo a poeira. Mate os
preás agora, seu malvado! Cadê os canarinhos
cabeça de fogo que você aprisionou? As piabas
que engoliu? Cadê? Cadê seu estilingue com
forquilha de goiabeira, moleque? Cadê? Cê agora
que dê jeito!”
Acordou num sobre-salto, ensopado de
suor, na quente madrugada. A boca seca pedia
água e a primeira que encontrou foi da pia do
banheiro. Quente, salobra e com cheiro de
amoníaco. Sorveu alguns goles que fizeram seu
estômago roncar, reclamando da má qualidade
do líquido. Saiu porta fora para o quintal e
sentou debaixo da velha mangueira de dias
contados. Suas folhas estão amareladas, ou já
mesmo secas, e só vem produzindo frutos
brocados. Sua sina parece ser mesmo virar
lenha. Talvez do tronco façam uma gamela.
Adriles Ulhoa Filho6
A Mina do Morro das Almas
Uma brisa quase fresca tapeou por instante
o ar, despertando alguns galos ali por perto e
outros mais ao longe. Cantavam em dueto
anunciando a madrugada de mais um quente dia
Os primeiros pardais, sempre famintos, iniciavam
o irritante e repetitivo piar sem nenhuma beleza
sonora. Parece ser por isso que conseguem
sobreviver e multiplicarem nas mais inóspitas
situações. São insistentes. Piam, piam, piam...
Até obterem comida.
Tá aí! Deve ter sido pela minha reconhecida
intransigência, pela minha insistência para
reclamar até obter o desejado, que minha mãe
me apelidou de Pardal.
Pois agora vou ser mesmo um pardal. Vou
piar. Vou piar noite e dia ao ouvido das
autoridades desta cidade. Vou infernizar a vida
deles e desses ambiciosos produtores de poeira
assassina, até que me ouçam ou que acabem
comigo!
***
Pela manhã, postou-se defronte ao Fórum à
espera do Juiz de Direito. Vai ser o primeiro. Terá
que me ouvir, pois dia a dia a situação se agrava
e poucos parecem perceber. Do jeito que estão
indo as coisas não demora muito para que isto
Adriles Ulhoa Filho 7
A Mina do Morro das Almas
aqui se transforme numa cidade fantasma. Chego
antever:
“vagando por seus becos e ruas, pequenos
grupos de pessoas. Esqueléticas, sonâmbulas,
sobreviventes de um flagelo a procura de sobras.
E outro grupo, com roupas especiais e máscaras,
tal qual astronautas, os “guardiões da mina”
tentando retê-los e enxotá-los.
Pode ser também que chegue um dia, em
que a turba de esfarrapados famintos - como os
mineiros descritos por Zola em Germinal -
avance desesperada, depredando e destruindo
tudo numa revolta sangrenta, sem vencedores,
pois o mal maior já estará consumado. A
natureza local estará destruída”.
- Bom dia doutor!
Adriles Ulhoa Filho8
A Mina do Morro das Almas
2.
A busca pela Justiça
- Bom dia, Pardal.
- Dá licença, doutor?
- Pois não Pardal, que foi agora?
- O pó, doutor! O pó da mina da MKR que
está matando nossa gente e as nossas plantas.
- Mas do quê é que você está falando,
rapaz? Que pó? Você não vê que a cidade hoje
está bem melhor, mais bonita, pois quase toda
asfaltada e...
- E mais quente.
-... menos lamacenta. Já nem precisamos
no período de chuvas calçarmos galochas -
gracejou o Juiz.
- Não estou falando daquele pó e nem
mesmo daquele barro, doutor. Estou falando é do
pó amarelo ou cinzento, sei lá, de agora! Do pó
químico venenoso, com cianeto e arsênico, que
vem por cima trazido pelos ventos lá da mina, ou
arrastado de lá pelas águas das chuvas. Do
veneno que infiltra nos lençóis freáticos da água
que bebemos. Do pó que aspiramos no ar
durante todo tempo, que nos corrói por dentro
Adriles Ulhoa Filho 9
A Mina do Morro das Almas
causando câncer, doenças renais, alérgicas e
outras mais. Veja as estatísticas, doutor!
- Onde você leu isso Pardal? Quem botou
essas minhocas em sua cabeça? Deve ser coisa
de algum comunista! De algum desinformado que
não quer ver a cidade progredir. Você precisava
ver como era este fim de mundo quando aqui
cheguei. Nem água encanada tinha.
- É, mas foi só encanar a água que eles
apareceram! Foi só a cidade dispor de energia
elétrica suficiente, para cuja produção e rede de
transmissão, aliás, não contribuíram, para virem.
Agora, por pagarem alguns poucos impostos,
pois gozam de benefícios, pensam que tudo
podem.
O lucro verdadeiro, com melhoria de vida,
quem vai dele se beneficiar são os
endinheirados, os gringos donos do capital. O
imposto e royalty, pagos à prefeitura e aos
antigos proprietários do morro não são claros à
população e, acredito, nem honestamente
calculados. Pois não existe controle algum de
órgão externo independente, sobre o ouro
produzido. Tudo é calculado sobre planilhas que
a própria mineradora monta. Sequer sabemos
também como são empregados os recursos
arrecadados pela Prefeitura a favor da
Adriles Ulhoa Filho10
A Mina do Morro das Almas
comunidade. A favor dos verdadeiros donos da
riqueza que o município possui. Apenas
migalhas e pequenas doações como patrocínios
de festas públicas e contribuições cala a boca são
transparentes. Cadê a construção de um hospital,
seu aparelhamento e manutenção, ainda que
temporária, para mitigar os danos que
produzem? Cadê a construção de uma escola
técnica para aqui formarem os técnicos que a
empresa necessita, sem precisar trazer essa mão
de obra de fora? Não! Usam sempre a conhecida
tática de dar migalhas em público com enorme
propaganda e levar milhões no escondido. Ainda
são poucos os que percebem que estão levando
quase de graça nossas riquezas, que estão
mudando até a nossa paisagem e só nos
deixando problemas; de saúde e falta de
segurança. É o que já se nota, doutor, uma
transformação para pior. São mais pessoas para
serem atendidas, mais pessoas para serem
alimentadas, educadas e protegidas, sem
correspondente equilíbrio pelo explorador. E
quando o morro acabar? Quando a mina esgotar
e acabarem os interesses internacionais dos
fundos que mantêm a MKR? Se não tivermos
construído uma boa infra-estrutura para
enfrentar os problemas advindos da exploração
Adriles Ulhoa Filho 11
A Mina do Morro das Almas
da mina, que vai adiantar o sofrimento de
tantos? Ficaremos a ver navios, ficaremos com o
buraco e com os...
- Pare, pare, por favor! Você parece estar
emocionalmente abalado.
- Está bem doutor. Vou parar, pois o senhor
deve entender também, e mais, de medicina que
de justiça, pois acaba de diagnosticar que sou
louco. Não vou mais incomodá-lo com minhas
conversas malucas. Sei bem o que vou fazer. O
senhor me parece um dos já contaminados.
-????Olhe lá, Pardal! Não vá se meter em
trapalhadas que podem ser ruins para você.
Tenho muita consideração por você e sempre fui
amigo do seu falecido pai.
– Deixa pra lá, doutor! Já vi que bati em
porta errada.
–
Outra instância
Na ante-sala do Promotor esperam para
serem atendidos, dois advogados seus
conhecidos e algumas outras pessoas. Cidadãos
que procuram aquela autoridade na esperança de
conseguirem orientações ou esclarecimentos
Adriles Ulhoa Filho12
A Mina do Morro das Almas
sobre problemas particulares e coletivos. Para
denunciarem injustiças ou irregularidades
praticadas por pessoas, empresas ou órgãos
públicos. São muitos para serem atendidos, mas
resolve aguardar.
Passam minutos, hora, hora e meia e
finalmente, dez minutos após a saída da última
pessoa, chega a sua vez. Para sua surpresa o
Promotor vem pessoalmente à sala de espera
falar com ele..
- Olá Pardal, tudo bem? Conversam ali
mesmo na ante-sala. Que está havendo? O Juiz
acaba de me ligar dizendo que você esteve com
ele reclamando um monte de coisas? Se eu não
conhecesse bem o doutor, diria até que ele está
pensando que você está doido. Louco varrido!
- Ah, é! Quer dizer que ele já ligou para
falar do nosso improdutivo encontro?
- Hum, hum!
- Que foi que ele disse? Posso saber? Ou é
segredo de Justiça?
- Você sempre bem humorado, hein! Não,
não há segredo algum que eu não possa lhe
dizer. O doutor Juiz disse apenas que você
esteve com ele pedindo ajuda para expulsar a
MKR da cidade, o que ele acha que só mesmo
estando louco para querer reclamar de uma
Adriles Ulhoa Filho 13
A Mina do Morro das Almas
empresa como esta que só trouxe progresso e
bem estar para a cidade. Parecia estar mesmo
muito preocupado com você.
- Ah, é! Preocupado comigo, ou com a MKR?
E o senhor o que acha? Estou mesmo maluco? Ele
já lhe contou o que fui comentar, não é?
- Bem...
- Acha então o Juiz que é tudo invencionice
da minha louca cabeça. Que está tudo bem e que
a MKR não está envenenando nossas águas e
destruindo até nossa identidade ao destruir o
Morro das Almas, cartão postal da cidade há mais
de dois séculos.
- Não, não foi bem isso que ele disse. Falou
mesmo foi do ruim para a cidade o fechamento
da mina. Da perda de muitos empregos...
- Ah, ele está preocupado é com o
desemprego!
- Lógico! Todos nós temos interesse no
progresso e desenvolvimento da cidade e o
desemprego é um dos maiores dos males.
- Sem dúvida doutor, mas quem falou em
fechamento da mina? Eu também acho que a
essa altura não há como falar em fechamento da
mina. O que precisa haver é uma compensação
para mitigar os estragos que a exploração dela
produz.
Adriles Ulhoa Filho14
A Mina do Morro das Almas
- É, mas temos que agir com calma, com
prudência. Sei que a MKR tem feito doações a
entidades públicas e ONGs que ajudam no social,
além de colaborar com a prefeitura na
construção e manutenção de praças e jardins.
- Isso mesmo, doutor! Pracinhas, canteiros,
bonés e lanches no carnaval temporão e nos
campeonatos de futebol de veteranos. É o pão e
o circo para iludir as pessoas.
- Mas ela tem ajudado também na
construção de prédios para o Poder Público,
como este onde estamos.
- E deviam fazer isto? Desculpe doutor, mas
isso me parece uma forma de prender rabos?
- Calma, calma Pardal. Não é bem assim.
- Por que não constroem e doam à cidade
um hospital, uma escola técnica, se os seus
interesses em explorar nosso ouro ainda vão
longe? Por muitos anos! Por que não divulgam
com transparência o montante exato de ouro
extraído e quanto dele vai para fora do município
e do país? Quanto de ouro aqui permanece para
ser trabalhado pelos nossos ourives artesão?
Sem matéria prima eles estão desaparecendo,
pois os garimpeiros de bateia que os abasteciam
já não podem extrair nem o ouro de aluvião.
Adriles Ulhoa Filho 15
A Mina do Morro das Almas
- Não é bem assim. Há regras e leis que
precisam ser observadas, Pardal. Trata-se de
empresa internacional com muito capital
estrangeiro, que precisa dar bom lucro, senão
não investem. Você sabe que a MKR é constituída
por fundos de investimentos? Você sabe o que é
isso?
- Fundos? Sei sim doutor. Como sei dos
nossos fundilhos que estão chutando.
- Ah, não sei como vou poder ajudar!
- Será apenas mais um, doutor. Mas há de
aparecer uma solução. A propósito, o senhor
sabe quantos e como andam os processos
trabalhistas contra a MKR na Justiça aqui na
cidade?
- Os processos são públicos, meu amigo,
mas não sei quantos são atualmente nem a
situação deles.
- Está bem doutor. Agradeço a sua atenção,
mas acho que só mesmo os preás para dar jeito
nesta situação.
- Preás?
- Um dia o senhor ouvirá sobre eles.
Adriles Ulhoa Filho16
A Mina do Morro das Almas
Com o prefeito – Uma última tentativa
- O prefeito não vai poder atendê-lo Pardal.
Está em reunião com diretores de uma grande
empresa interessada em estabelecer na cidade.
O vice-prefeito também não está, pois viajou
para a Capital com diretores da MKR.
- Não tem problema senhora secretária,
apesar de estar a duas semanas esperando a
oportunidade de falar com ele, posso esperar
mais um pouco.
- Ah, ele disse que se você quiser pode ser
atendido pelo Secretário de Meio Ambiente.
- Então já sabe que o assunto que me traz
até ele é de meio ambiente? Ótimo, falo então
com o secretário.
- Espere um momento, por favor..
- Tudo bem.
A secretária foi ao fundo do corredor e,
minutos depois, voltando, pediu que Pardal a
acompanhasse até a sala do secretário.
Deu um toc, toc na porta que ela mesma
entreabriu e anunciou a visita. De dentro da sala
escapou ar frio do condicionador ligado e
também um forte cheiro de tabaco. Entrou depois
de autorizado pela secretária, mas permaneceu
de pé.
Adriles Ulhoa Filho 17
A Mina do Morro das Almas
Por trás de uma enorme mesa de jacarandá
roxo estava sentado recostado em cadeira
giratória de encosto alto o senhor secretário.
Sobre a mesa, um cinzeiro de cristal com vários
tocos de cigarros e, desordenados, alguns papéis
empilhados pareciam aguardar despachos ou
providências. Sem desligar o telefone em que
falava, o secretário fez um gesto para que o
visitante sentasse. Ainda ficaram alguns minutos
a conversar ao telefone, ora sussurrando com a
mão esquerda protegendo o fone, ora com
disfarçados olhares para o visitante. Alguns
sorrisos e uma gargalhada final antes do “Deixa
comigo! Até mais tarde! Eu ligo informando”.
- Então Pardal, o senhor anda preocupado
com a poeirinha que cai sobre suas plantas?
Muito bem, uma bela preocupação com o meio
ambiente! Gracejou.
- Não, senhor secretário. O que me traz
aqui não é apenas esta diminuta preocupação.
Primeiro, converso com o senhor porque o
prefeito não pôde me atender. Mas parece que a
comunicação entre o poder executivo, o
judiciário, bem como com o ministério público da
cidade está em boa sintonia, não é? Acho que
nem vou precisar repetir minhas preocupações.
Adriles Ulhoa Filho18
A Mina do Morro das Almas
Fico, pois, esperando a sua opinião sobre o que
conversei com o Juiz e com o Promotor.
- Bom, não é bem assim! Você sabe que em
cidade pequena os assuntos, os boatos, correm
rápidos de boca em boca, e...
- E sempre são deturpados ao gosto de
interesses.
- Mas o que eu queria lhe dizer é que em
nossa gestão todo apoio temos dado a iniciativas
e a todos àqueles que de uma forma ou outra
lutam para que nosso município seja exemplo de
preservação do meio ambiente. Cuidamos para
que desmatamentos desnecessários,
assoreamentos de córregos e rios e
envenenamento por garimpeiros das nossas
águas aconteçam. Estamos, para isso, recebendo
efetivo apoio da MKR e estreita colaboração da
Polícia Militar através dos quatro policiais da
Guarda Florestal.
- Quatro valentes policiais e um velho Jeep,
para fiscalizarem os mais de oito mil quilômetros
quadrados do município...
- É o que temos!
- E quem fiscaliza a segurança das
barragens de dejetos, a poluição das águas de
rios, ribeirões e córregos que são bombeadas
para tratamento e distribuição à população?
Adriles Ulhoa Filho 19
A Mina do Morro das Almas
Quem fiscaliza o desaparecimento das águas que
outrora perenizavam pequenos córregos no
entorno de onde está hoje a mina? Quem
fiscaliza quem as roubam sem nenhum
pagamento? Ou simplesmente sumiram estas
águas? Evaporaram. Escafederam-se? Quem vai
fiscalizar, a fim de se evitar a invasão, das
poucas e pequenas áreas de preservação que a
enorme custo foram criadas? E a biota?
- Biota? Quem é biota?
- Ah! Quem é biota! Deixa pra lá senhor
Secretário do Meio Ambiente. Boa sorte para
vossa secretaria e boa tarde! Com licença.
-????
Adriles Ulhoa Filho20
A Mina do Morro das Almas
3
A família de Pardal e a premonição da Negra Maria .
A visão do Morro das Almas posto rés da
praia.
Noite mais fresca nesse início do outono,
com uma linda lua cheia no céu que propicia
momento de reflexão. É quando a lembrança dos
pais e de amigos que já se foram vêm à mente de
Pardal. Recordações. Pensou nos pais e também
como conheceu Negra Maria, moradora do sopé
do Morro das Almas, e como construíram uma
sincera amizade.
Sua mãe era ainda moçoila quando veio da
roça para trabalhar sem paga na cidade, como
ama de crianças de famílias abastadas. Mais
tarde, trabalhou sem registro e sem horário
como empregada doméstica. Estudou apenas até
o terceiro ano no Grupo Escolar, pois não
dispunha de tempo para prosseguir estudos. Por
ter nascida e sido criada na religião católica, por
nada perdia uma missa aos domingos. Conduziu
Pardal, enquanto pôde, nessa mesma religião,
mas ele assistia por assistir as missas, já que
Adriles Ulhoa Filho 21
A Mina do Morro das Almas
não entendia nada do latinório rezado pelos
padres e repetido parcialmente pelos fiéis. Seu
pai era carpinteiro muito procurado na cidade,
hábil com formão e enxó, especialista em montar
telhados. Diferentemente da esposa ele era
protestante, mas pouco participava da igreja.
Rigoroso era mesmo para com o filho e esforçou
bastante para que aprendesse ofício e estudasse.
Conseguiu apenas tirar o Ginásio, mas não
aprendeu o ofício do pai. Parou com os estudos
por não ter como sair da cidade para continuar
os estudos fora. Àquela época a cidade não
dispunha nem de Ensino Médio completo. Ficou-
lhe, no entanto, o bom gosto pelos estudos e
pela leitura, e assim muito aprendeu sozinho.
Mas... Por que pensava em tudo isso agora?
Talvez pelo cheiro que sentiu de leite que havia
deixado fervendo e que derramou no fogão e o
fez recordar a mãe. Lembrou dela e de um doce
que fazia para aproveitar leite bispado. Leite
bispado! Não posso desperdiçar este leite, só
porque entrou fumaça da lenha molhada no
fogão, pareceu ouvi-la dizer. Sorriu.
Negra Maria ele conheceu quando ainda era
criança, e caminhava pelas praias do Córrego
Rico.
Adriles Ulhoa Filho22
A Mina do Morro das Almas
“Foi numa manhã de domingo. Cabulei a
missa e fui beirar praia, subindo desde o Lajedo
até a Praia dos Macacos. Armado de um bom
estilingue, forquilha de goiabeira, um bornal
médio para as pedras da atiradeira e guarda de
possível caça, lá fui eu. Descalço como gostava
de andar subi córrego acima cumprindo o ritual
pré-estabelecido. Ora n’água, ora nos barrancos
vistoriando tocas e ninhos de garrinchas, tico-
ticos e das pombas mato-virgem. Umas baitas!
Percorria nos barrancos as trilhas de preás.
Sabia dos seus hábitos noturnos, mas sempre
havia a possibilidade de encontrar alguma não
entocada que pudesse tornar alvo fácil para as
pedras do meu estilingue. Sempre fui bom no
manejo dessa atiradeira. As águas frescas do
córrego convidam a um mergulho nessa manhã
de Verão. Frescas, fartas e limpas, só turvavam
rapidamente quando alguma pequena traíra
assustada com a nossa presença se escondia em
um monturo de garranchos ou na fresta de
alguma pedra. Aquele dia, ser domingo, não
tinha garimpeiro algum nos puxados, só os
galhos de espinheiros demarcam os locais que
não devíamos nadar. Todos respeitavam. Quase
todos!
Adriles Ulhoa Filho 23
A Mina do Morro das Almas
No barranco do Matinho cedi ao convite da
água. Tirei toda a minha roupa e me atirei pelado
para um mergulho. Estava tão fundo o poço que
não conseguia tomar-pé. Nadei, mergulhei e até
bebi daquela gostosa água. Vesti ainda molhado
a velha camisa branca encardida de três botões –
que nem abotoei – e a calça curta de suspensório
de pano. Prossegui o passeio pelo barranco até
chegar ao Vigário. Já estavam por ali alguns
garotos para o futebol no macio gramado
encharcado pelas águas das chuvas dessa época
do ano.
Olha lá! Avistei uma folha de piteira
cortada. Não resisti. Sentado nela escorreguei lá
do mais alto barranco. Subi e desci várias vezes.
O futebol ainda ia demorar, pois ainda eram
poucos os garotos. Por isso, continuei minha
caminhada pelo leito do córrego. Observei na
barra do Córrego do Espalha com o Rico, que as
águas daquele eram bem mais frias. Por aquele
córrego não era fácil caminhar, pois as matas às
suas margens eram densas e o seu leito
profundo. Segui caminho e passei sob o
pontilhão que levava à Estrada de Goiás.
Observei grandes lagartixas negras tomando sol
nas madeiras da ponte. De vez em quando
moviam as cabeças como que assuntando o
Adriles Ulhoa Filho24
A Mina do Morro das Almas
perigo. Arrisquei uma pedrada numa grandona,
mas felizmente, digo hoje, errei. Fugiram todas
para o outro lado da viga e eu continuei zerado
nas minhas maldades naquele domingo. Nem um
passarinho, um preá ou mesmo um ovinho de
beija-flor.
O sol já ia alto quando alcancei o lugar
onde se encontram os Córregos de São Gonçalo e
dos Macacos. Lugar lindo. Lá no sopé do morro,
num pequeno achatado que existia no barranco
do São Gonçalo, morava a Negra Maria,
apelidada Tortuga, carregando seus muitos anos.
Alguns garotos tinham medo até de se
aproximarem da casinha. Comentavam que os
pais diziam que ela era uma bruxa. Ela mesma
deve ter espalhado a lenda para não ser
perturbada pela molecada invasora de quintais.
Fiquei seu amigo num desses meus
passeios. Certo dia, com muita fome e grande
dose de coragem, resolvi pedi a ela uma bonita
manga Sabina madurinha, que vi dependurada
num galho quase sobre a cerca de varas do seu
quintal. Olhou-me de modo fixo, séria – quase
corri – mas abriu em seguida um sorriso
bondoso em seu rosto me autorizando apanhar a
manga. Enquanto eu devorava a fruta ela puxou
conversa. Perguntou aquelas coisas que os
Adriles Ulhoa Filho 25
A Mina do Morro das Almas
adultos sempre perguntam às crianças que
encontram pela primeira vez: “quem é seu pai,
sua mãe, onde você mora e o que faz por aqui”.
Achei que estava era mesmo com vontade de
conversar e comecei também a indagar.
- A senhora mora aqui sozinha? Tem
marido não? Filhos meninos?
- Não, não meu amigo!
Verdade. Ela me chamou de amigo.
- Não mais tenho marido e nem filho. Meu
marido morreu há muito tempo e o único filho
que eu tive sumiu aí no morro.
- Sumiu?
- É, sumiu.
- Por que a chamam de Tartaruga?
Ela sorriu.
- Não, não é Tartaruga, meu filho! É
Tortuga, mas acho até que é a mesma coisa.
Nome inventado por um espanhol, meu amigo,
que morou numa outra casa que existia ali mais
em cima no São Gonçalo. Foi meu único vizinho
por muitos anos. Tinha mulher e duas filhas, mas
como enviuvou cedo criou sozinho as meninas.
Estas, assim que ficaram mocinhas foram
embora. Deixa pra lá que isto não é assunto que
interessa a uma criança. Como ia dizendo, era
ele que me chamava de Tortuga. Dizia que eu era
Adriles Ulhoa Filho26
A Mina do Morro das Almas
tão vagarosa no caminhar que até parecia uma
tortuga. Aí ficou! Não me incomodo de me
chamarem assim, apesar do meu nome ser Maria
de Jesus da Silva. Não conheci meu pai e minha
mãe era escrava. Ela chamava Aparecida.
Aparecida de Jesus, ou Cida do Morro como
todos a chamavam. Mas vai embora que já está
ficando tarde e sua mãe vai ficar incomodada
com sua demora.
- Até outro dia, dona Tarta... Tartaruga...
- Tortuga, meu amigo.
Foi assim que conheci Negra Maria.
Agora, já passado alguns anos, eu a visito
sempre - como hoje - e desfruto de sua
confiança. Ando por seu pequeno quintal e
conheço toda sua posse. Uma fresca casinha num
achatado no sopé do morro, aonde o sol sempre
chega mais tarde. Paredes de adobes crus, sem
reboco, telhado sem forro - em quatro águas -
coberto de velhas telhas coloniais, pesadas e
patinadas pelo tempo. Uma sala, um quarto, uma
cozinha e pequeno despejo. Tudo em chão
batido, mas em boa ordem. No quintal, algumas
outras árvores frutíferas além do pé de manga
Sabina Um de romã, um sabugueiro e algumas
Adriles Ulhoa Filho 27
A Mina do Morro das Almas
laranjeiras. Laranja da terra, da China e da Ásia.
Moitas de bananas, ouro e prata e capim cidreira
para o chá. Duas roseiras, uma branca,
medicinal, e outra vermelha. Três ou quatro
canteiros elevados, para plantio de verduras e
pequeno forno de lenha debaixo da mangueira. E
uma latrina de fossa a uns quinze passos da
casa.
O terreno é coberto de terra preta
misturada em pedregulho, um pouco esconso,
mas bastante fértil. Basta adubar com um pouco
de esterco de cavalo, queimado, misturado com
cinzas do fogão de lenha, para produzir lindas
cabeças de alface, couve e cebolinha de grossas
folhas. O esterco é batido e sapecado antes de
utilizar nos canteiros, a fim de evitar pragas e
também para não ‘queimar’ as plantas.
Certo dia Dona Maria me contou o que
aconteceu com o seu único filho.
“Ele se chamava Francisco, mas era mais
conhecido por Chico, - como todo Francisco.
Chiquinho Preá. O apelido veio por ser pardinho
miúdo de corpo, dentes superiores da frente
salientes e olhos muito pequenos e espertos.
Acho até que parecia mesmo um preá! Disse
sorrindo. Ele gostava muito dos bichinhos e vivia
Adriles Ulhoa Filho28
A Mina do Morro das Almas
os protegendo das caçadas dos outros meninos e
dos gaviões predadores aí do morro. Quando os
viam se aproximarem do morro, fazia o maior
barulho prevenindo os amiguinhos. Com ele os
preás eram mansos e até o deixava tocá-los.
Acho que conversava com eles. Pois bem,
viveram essa amizade por algum tempo, mas
certo dia apareceu por aqui um pessoal de fora,
dizendo ter comprado as terras e que iam
explorar o ouro do Morro das Almas. Até esse
terreno aqui onde moro diziam ser deles. Deles!
Como deles? Se desde o tempo de minha avó,
escrava alforriada, e depois minha mãe, escrava
liberta pela Princesa, vivemos aqui?
“A senhora é quem sabe. Vamos ver se
agüentará as explosões, o barulho das máquinas
e a poeira por muito tempo! Até sua cisterna vai
secar. Melhor aceitar a indenização e procurar
outro lugar para morar”.
Desaforo! Chiquinho ficou muito assustado
e passava os dias no morro com os animais seus
amigos. Voltava para casa só depois que
escurecia e acordava quase todas as noites aos
gritos ordenando que corressem. “Não, não...
Fujam! Vão embora!” gritava sem parar.
E um dia eles vieram mesmo para as
primeiras escavações. Enorme máquina raspou o
Adriles Ulhoa Filho 29
A Mina do Morro das Almas
terreno, bem aqui acima onde existia uma
baixada. Lugar mais fresco onde minava água e o
capim era sempre verde. Ali morava a maioria
dos roedores. Arrasaram as suas tocas,
esmagando muitos, adultos e filhotes e
aprisionaram outros tantos. Diziam os
maquinistas, que dariam um ótimo “tira-gosto”.
Judiação!
***
Meses depois numa de minhas visitas
encontrei Negra Maria muito triste! Parecia
muito doente e dizia coisas confusas. Muito
pálida e com o olhar sempre parado.
- Algum problema dona Maria? Era assim
que habituei chamá-la.
- São eles! Estão chegando para destruir
tudo.
- Destruir o quê?
- O Morro das Almas, meu filho!
Fiquei observando as rugas no rosto da
minha amiga. Pareciam formar letras Achei um
“m” de medo, um “a” de aflição e um “t” de
temor, sobre os olhos.
- Você, meu amigo, já é um rapazinho e
precisa saber tudo o que está para acontecer e
Adriles Ulhoa Filho30
A Mina do Morro das Almas
tentar amenizar o sofrimento de muitos. É
terrível! Esta noite eu ouvi minha gente;
conversei com ela!
- Que gente dona Maria? A senhora sempre
me disse que não tem mais ninguém no mundo!
- Tenho sim Pardal! Muitos! Muita gente,
muitas almas sofridas que perambulam aí pelo
morro, com os pés acorrentados, cavando sem
razão aqui e acolá há mais de um século. O
morro está cheio delas. Estão agitadas e falam
em destruição. Disseram que uma verdadeira
guerra vai ser travada. Virão enormes e
estranhas máquinas explodir e moer o morro,
afugentar os bichos, transformar tudo a pó. O
Morro das Almas vai se transformar num inferno,
exalando gases de enormes buracos, um lago
negro vai se formar e, por fim, um deserto. O pó
que vai do morro soprar cobrirá toda a cidade e
não vingará nem um pé de fruta, uma
mangueira, ou qualquer outra árvore. Você já
ouviu falar de uma cidade de um distante país
que foi totalmente destruída, soterrada pelas
larvas de um vulcão?
- Sim, já estudei sobre isso no ginásio,
respondi. Foi Pompéia, cidade italiana, que no
ano 79 da Era de Cristo, foi totalmente destruída
pelas larvas da erupção do Vesúvio. Mas o que
Adriles Ulhoa Filho 31
A Mina do Morro das Almas
tem a ver essa história, se em nosso país nem
tem vulcões e apenas alguns pequenos montes?
Quem, por que e para que fará isso, dona Maria?
- Pelo ouro, meu filho, pelo ouro! O Morro
das Almas tem ainda muito ouro, meu filho e não
produz apenas mangabas e serve de abrigo para
preás, lobos guará, pássaros e para fornecer as
águas que vazam das pedras e abastecem os
córregos lá embaixo.
- E vão destruir isto, dona Maria? Não
compreendo. Deve ter sido apenas um sonho, um
pesadelo que a senhora teve.
- Não, meu filho, elas estavam inquietas
esta noite, e eu até senti que o morro tremia.
Tive uma visão desses estranhos que estão
chegando. Vão ser recebidos com muitas festas.
Virá um que chamam de “rei vermelho”, alegre,
sorridente, folgadão, fazendo enormes
promessas. Chegará pelos ares como um pássaro
e será recebido com muita pompa pelo povo e
autoridades. Distribuirá durante algum tempo
presentes e fará pequenas doações “em
benefício do povo da cidade”, discursará. Muitos
acreditarão em sua palavra dizendo que trará
empregos, que virá progresso e bem estar para
os habitantes da cidade.
- Mas, isto não será bom, dona Maria?
Adriles Ulhoa Filho32
A Mina do Morro das Almas
- Seria, meu filho, seria se a ambição não
fosse maior que o morro. Quando o ouro acabar,
vão embora à procura de outra reserva e
ficaremos somente com os problemas de saúde
que a extração vai deixar. Com pouca água boa
para consumo pelo homem e pelos animai a
cidade vai aos poucos desaparecer. Do céu vai
chover ácido, Pardal!
- Que horror, dona Maria!
- Mas ainda há uma esperança! Os preás
vão reagir à destruição de sua casa. A princípio
poucos, mas vão se multiplicar enormemente e
logo virão até de outros mundos. Virão de todos
os lados, mil, milhares, milhões de preás
grunhindo tal qual javalis, roendo tudo que
encontrarem pela frente, exigindo reparos,
exigindo respeito. Não sei o que vai resultar.
Quem vencerá, quem se salvará dessa guerra, se
os preás ou o “rei vermelho”. Agora vá embora,
pois estou bastante cansada.
Foi minha última conversa com a Nega
Maria. Dois dias depois a encontraram morta.
Foi se juntar aos seus no Morro das Almas.
Adriles Ulhoa Filho 33
A Mina do Morro das Almas
King Rosso, o rei vermelho .
Como a mineradora tomou conta da cidade.
Grande aparato foi armado para receber o
presidente, Mister Scott – o rei vermelho – que
veio finalmente conhecer a mina adquirida por
sua empresa. A cidadezinha ficou agitada pelo
acontecimento. Escolares foram desde muito
cedo colocados alinhados ao sol junto à pequena
banda musical convocada para a recepção no
pequeno aeroporto. Sol inclemente, calor
insuportável, amenizado apenas pelo uso dos
bonés amarelo-vermelho com emblema da MKR-
Mineração King Rosso distribuídos às crianças, e
mais uma garrafinha plástica com suco vermelho
gelado. . Meia hora antes do horário previsto
para a chegada já se encontram no local, além
dos escolares e dos componentes da banda, o
prefeito, o padre, o tenente, chefe do
policiamento na cidade, três pastores
evangélicos e quatro vereadores do partido
situacionista. A diretora do grupo escolar e mais
duas professoras ficam também ao sol cuidando
das barulhentas crianças que em algazarra
acham tudo muito divertido. Um pouco afastados
das autoridades municipais e do gerente-chefe
da mina, alguns funcionários menos graduados
Adriles Ulhoa Filho34
A Mina do Morro das Almas
da MKR marcam presença engrossando o público
para a recepção. Foram convocados pela chefia e
dispensados do trabalho por algumas horas.
Tudo perfeito! O gerente-chefe sorri para todos e
confere todo momento um ponto no horizonte
aéreo por onde deve chegar o helicóptero do rei.
Dois luxuosos automóveis haviam chegado a
cidade no dia anterior, trazendo da capital alguns
membros menos graduados da diretoria e alguns
seguranças.
Já é de quarenta minutos o atraso da
chegada prevista para as dez e trinta. Mesmo as
autoridades protegidas do sol sob o teto de zinco
do pequeno hangar transformado em saguão de
recepção, suam sufocadas nos seus ternos com
cheiro de naftalina e gravatas escuras. Olhe lá,
estão chegando! Por fim, sobre a pequena serra
que emoldura a cidade aparece o pássaro de
ferro, raro por aquelas bandas, trazendo em seu
bojo a importante visita. Alguns fogos espocam e
o romper de um dobrado de boas vindas
executado pela banda euterpe saúdam os
visitantes. Os colegiais agitam as bandeirolas
coloridas; alguns se assustam com o barulho, o
vento e a poeira que levanta da pista sem asfalto
pelo possante helicóptero. Olhos arregalados e
brilhantes de crianças curiosas. Adiantam-se
Adriles Ulhoa Filho 35
A Mina do Morro das Almas
autoridades para cumprimentos e apresentações,
curvaturas de dorsos e até beija-mão da esposa
do rei, Miss Scott, que sorridente não entende
nada do que falam os nativos. Responde sempre
prauzer e muuto obrigadô! Simpática e
perfumada, a jovem esposa do magnata até
parece ser sua filha. Sorri o tempo todo.
A caravana se forma com o Fiat 147 do
chefe de policiamento de batedor, dirigindo
devagar e com muito cuidado para não levantar
poeira. Seguem os carros do prefeito com os
ilustres visitantes, os diretores da empresa com
as bagagens e os seguranças. Quatro outros
carros com as autoridades civis, militares e
eclesiásticas e, por último, o velho ônibus escolar
amarelo doado pelo governo canadense, como se
lê em uma de suas laterais, levando os
estudantes em grande algazarra. A banda
euterpe ficou por ali mesmo no campo de
aviação. Depois de entoar mais alguns dobrados
se dispersou, carregando cada músico o seu
instrumento para casa.
Adriles Ulhoa Filho36
A Mina do Morro das Almas
A festa
À noite, no Social Clube, aconteceu o jantar
e baile oferecido pela cidade aos ilustres
visitantes. Seletos membros da sociedade e
autoridades tiveram direito de participar e
degustar os saborosos pratos da culinária
mineira e goiana às custa do erário público
municipal. Vinhos portugueses de boa qualidade,
discretas cervejas e água mineral. Os visitantes
não tomam da água da cidade, temerosos da sua
qualidade. Bebem somente águas minerais de
Caxambu ou São Lourenço, cujas garrafas são
abertas somente na hora de servir.
Fazem enorme sucesso o goiano peixe na
telha e as sobremesas de doces de mamão
lascado, manga verde e de laranja da terra.
Mister Scott e sua jovem esposa sorriem o tempo
todo.
Na visita que fez à tarde a mina,
acompanhado do prefeito e de outras
autoridades, mister Law foi informado dos
detalhes da mina, sobre a história da cidade e
das reservas minerais da região. O que conversa
em inglês com o gerente-chefe, quando
interessa, é traduzido às autoridades. Para a
compreensão de Mister Scott foi traduzida as
Adriles Ulhoa Filho 37
A Mina do Morro das Almas
palavras escritas em português nas faixas de
saudação pela cidade. Música suave de aparelho
eletrônico durante o jantar e, mais tarde, música
dançante executada por um conjunto local. No
final da noite o vermelho e suado rei se mistura à
plebe e dança de modo desajeitado com a sua
rainha e com algumas alegres damas da
sociedade. Arrisca até remexer as cadeiras
dançando um forró executado pelo conjunto com
uma bela morena a ele oferecida para a dança.
Uma galhofa!
No dia seguinte a Praça da Matriz ainda
está no silêncio de uma manhã de domingo. O
barulho que se ouve é de um garoto com um
cestinho enfiado no braço a apregoar de porta
em porta o bolo de domingo, e o repicar do sino
da Matriz convocando fieis à missa.
Pardal, após mais uma noite mal dormida
pelo calor e pelo barulho do Social, comenta com
seu amigo Zé Pindoba:
- Zé, pra onde estamos indo, Zé! A farra
aqui no Social foi grande, pois até uma meia hora
atrás tinha gente saindo cambaleando daqui.
Muitos, só pela boca-livre e para puxar-saco de
um grupo de gringos que aqui vêm nos explorar.
Adriles Ulhoa Filho38
A Mina do Morro das Almas
E tudo, tudo pago com o nosso rico dinheirinho,
Zé!
- Quem é gringo, Pardal? Quem deu
dinheiro? Você deu? A mim não pediram dinheiro
algum para esse jantar!
- Você não sabe mesmo é de nada, hein
cara! Um alienado é o que você é. Santa
ignorância essa sua! Você deu sim, seu burro. Ou
por acaso não paga impostos?
- Ih! Você já amanhece azedo. Vá rezar ali
na igreja pra essa sua santa. Essa sua Santa
Ignó, vai!
- Ah! Deixa pra lá! Você é mais um daqueles
que custa compreender as coisas. Daqueles que
acham bonito uma pracinha singela com várias
placas informando: esta praça foi restaurada
pela MKR em parceria com a Prefeitura
Municipal. Acha mais importante o patrocínio de
um carnaval temporão, de um show sertanejo
que enche praças de bêbados inconseqüentes, de
depredadores eventuais, do que de uma escola.
Grande dádiva! Esses gringos são sim uns
grandes filhos da pauta, Zé! Como pagam alguns
impostos e distribuírem migalhas, iludem
pessoas e acham que podem tudo. E nós, bestas,
concordamos.
Adriles Ulhoa Filho 39
A Mina do Morro das Almas
- Ô louco! Onde você tomou dessa, Pardal?
Acordou com a macaca?
- Ah! Você ainda não percebeu. Vai demorar
entender o que vai sobrar depois da festa!
- Mas a festa não foi de ontem pra hoje? Já
não acabou?
- Desisto. Vou dar uma caminhada
enquanto posso; até logo!
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A Mina do Morro das Almas
5
A revolta dos preás e pardais
O triste fim de Pardal.
Pardal passou dias horríveis depois das
frustradas tentativas de conseguir apoio de
autoridades e pessoas para as suas reclamações
contra a MKR.
Com quase todos que conversava pareciam
contentes e satisfeitos com a grande empresa
que a cidade abrigava. Ela dá emprego a muita
gente!
Não percebiam que a maioria dos técnicos e
engenheiros veio de outras cidades. Daqui,
apenas uns poucos operários sem formação
especializada.
Será que mais ninguém vai entender a fria
que estamos entrando? Pensava em sua solidão,
nos seus delírios quixotescos. Será que nem as
almas penadas, que a Negra Maria dizia vagarem
pelo morro, não vão se levantar? Ou estarão
planejando vingança maior aos ambiciosos
forasteiros e àqueles que se vendem e os
seguem por vinte dinheiros?
Adriles Ulhoa Filho 41
A Mina do Morro das Almas
Sentia cansado pelas noites mal dormidas e
pela dificuldade que vinha ultimamente
encontrando para respirar. Uma espécie de
asma, da qual só sentia alívio pelo uso de uma
bombinha com um produto para aspergir na
garganta, que passou a carregar consigo por
recomendação de um farmacêutico seu amigo.
Poucos colegas do armazém onde
trabalhava ainda davam atenção à sua conversa.
Pensou estar chateando os colegas e por isso, se
trancou. Noites e noites sozinho, já que não
tinha irmãos e os únicos parentes que lhe
restavam eram os dois tios que moravam e
trabalhavam como bóias-frias em fazendas da
região.
Em mais uma noite quente, febril e com a
respiração ofegante, Pardal sonhou:
De cima de alta pedra que restou, qual um
totem, no centro do morro destruído, Pardal e
Chiquinho Preá comandam o ataque. Pássaros e
preás aparecem de todos os lados e devoram
tudo. Dezenas, centenas, milhares, bilhões de
preás e pardais fazem tremer o que resta do
antigo morro.
Os primeiros invasores foram dois preás,
que mesmo perseguidos por dois vigilantes de
Adriles Ulhoa Filho42
A Mina do Morro das Almas
fardas vermelho-amarelo que tentaram abatê-los
para mais um tira-gosto, se evadiram. Depois, os
vigilantes começaram a sorrir ao verem a
enorme quantidade deles e de pardais
sobrevoando a mina pousando nos arredores.
Roedores começaram então a varar cercas e
portões.
Assustados, ligaram para o escritório do
gerente da mina.
- Preás? Pardais? Mas que história é essa?
Presta atenção, vocês não estão aí para
brincadeira, certo? Pleck.
- Ele desligou.
- Acho melhor darmos uns tiros para o alto
e cairmos fora...
E cada vez era maior o número dos
invasores roendo tudo que não fosse pedra.
Máquinas, caminhões, esteiras, canais, dutos e
bombas d’água, tudo sendo devorado como se
fossem migalhas. As migalhas distribuídas, as
mentes e consciências compradas pela MKR,
tudo sendo consumido numa voracidade jamais
vista.
Sede, muita sede de esqueléticas figuras,
que a água borbulhante e negra não sacia. E as
negras rindo!
Adriles Ulhoa Filho 43
A Mina do Morro das Almas
Togados, engravatados, rezadores e
políticos correm sem direção. E os negros rindo!
Vento forte arrasta por fim tudo para a
escuridão. Pessoas, aves e animais e um
tremendo estrondo se ouve. Um big-bang que
fará renascer de novo o morro.
Chiquinho gargalhava de cima da pedra.
Anh!
Acordou mais uma vez ensopado pelo suor
da febre bastante alta e dirigiu-se ao chuveiro.
Na madrugada, tremendo e batendo queixo
após o frio banho, se armou de velha bacia que
dizia a si mesmo ser uma bateia, atravessou a
cidade em direção a mina. Pela portaria principal
não poderia entrar, por isso contornou a fralda
do que restava do morro, e atravessando
quintais vazios já pertencentes à MKR, alcançou
a área de dejetos onde numa valeta profunda
escorria em direção ao lago negro um líquido
grosso semi-coberto por fumaça amarela que
exalava forte cheiro ácido.
- Pare! Advertiu um vigilante armado de
uma escopeta.
Continuou andando e depois correndo com
a velha bacia às mãos.
Adriles Ulhoa Filho44
A Mina do Morro das Almas
- Pare! Repetiu o vigilante, quando ele já
alcançava o final da valeta que terminava em um
sumidouro que levava ao lago.
Um tiro, e o seu corpo rolou pelas margens
da valeta desaparecendo no sumidouro.
Mais uma alma foi se juntar no morro às
almas penadas de muitos escravos, de muitos
sonhadores e também as de Chiquinho Preá e a
de dona Maria Tortuga, na esperança de um dia
poderem renascer em um mundo mais justo e
fraterno.
Fim
Adriles Ulhoa Filho 45
A Mina do Morro das Almas
Publicado por
INSTITUTO SERRANO NEVES
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Edição
Adriles Ulhoa Filho46