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Marco Aurélio
M
Pereira
HISTORIADOR
BmuarnC
V ~ R T I E
sociologi e polític
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MEMORI
COLETIV
Marco
llrélio
M Pereira
HISTORI DOR
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MEMÓRI COLETIV
MAURICE HALBWACHS
Traduzido do original francês
LA M ~ M O I R COLLECTIVE (2.
a
ed.)
Presses Universitaires de France
Paris, França, 1968
© 1950. Presses Universitaires de France
Tradução de LAURENT
LÉON
SCHAFFTER
Produção Editorial: fro
Marcondes dos Santos
Produção Gráfica: nyl Xavier de Mendonça
Capa: RT RTE
©
desta edição: 1990
EDIÇÕES VÉRTICE
EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.
Rua Conde do Pinhal,
78
01501 - São Paulo, SP. Brasil
Te . (011) 37-2433 - Caixa Postal 678
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução .lotal ou parcial, por
q u ~ ·
quer melo
ou
processo, especialmente por sistemas gráficos, mlcrofllmlcos, fotográficos,
reprográficos, fonográficos, vldeográflcos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total
ou parcial bem como a Inclusão de qualquer 'parte desta obra em qualquer sistema
de
processamento de dados. Essas proibições apllcam·se também às caractertstlcas gráficas
da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art.
184 e parágrafos, do Código Penal, cf. Lei n. 6.895, de 17.12.80) com pena de prisão
e muIta, conjuntamente com busca e apreensão e Indenizações diversas (arts. 122 121;
124,
126
da Lei n. 5.988, de 14.12.73, Lei dos Direitos Autorais).
Impresso no Brasil 01·1990) - Tiragem: 2.000 exemplares
ISBN 85-7115-038-9
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SUMÁRIO
PRE FÁC iO
9
INTRODUÇÃO
8
ADVERTENCIA - PARA A SEGUNDA EDIÇÃO 24
apítulo I MEMÓRIA COLETIVA E MEMÓRIA
INDIVIDUAL
Confrontações 25
O esquecimento pelo desapego de um grupo . . . . . . . . . . . .
27
Necessidade de uma Comunidade Afetiva 33
A Possibilidade de uma memória estritamente individual 36
A Lembrança Individual como Limite das Interferências
coletivas . . . . . . . . . . . . . . . 47
apítulo
MEMÓRIA COLETIVA E MEMÓRIA
HISTÓRICA
Memória Autobiográfica e Memória Histórica: Sua oposição
aparente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
Sua Real Interpretação A História Contemporânea) 58
A História Vivida a partir da Infância 62
O Liame Vivo das Gerações 65
Lembranças Reconstruídas : 7
Lembranças Simuladas 73
Quadros Longínquos e Meios Próximos 78
Oposição Final Entre a Memória Coletiva e a História . . . 80
A História, Quadro de Acontecimentos. as Memórias Cole-
tivas. Centros de Tradições 85
7
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apftúlo - A MEMÓRIA COLETIVA E O TEMPO
A Divisão Social
do
Tempo
90
A Duração Pura (Individual) e o "Tempo Comum"
Se
gundo Bergson 92
A Crítica do Subjetivismo Bergsoniano
95
A Data, Quadro da Lembrança
100
Tempo Abstrato e Tempo Real 101
O "Tempo Universal" e
os
Tempos Históricos
103
Cronologia Histórica e Tradição Coletiva
107
Multiplicidade e Heterogeneidade das Durações Coletivas
109
Sua Impermeabilidade
115
Lentidão e Rapidez da Transformação Social 118
A Substância Impessoal dos Grupos Duráveis
120
Permanência e Transformação dos Grupos.
As
I pocas das
Famílias
123
Sobrevivência dos Grupos Desaparecidos
126
As
Durações Coletivas:
Bases
Únicas das Memórias Ditas
Individuais
128
apítulo
V
A MEMÓRIA COLETIVA E O ESPAÇO
O Grupo em seu Quadro Espacial. Poder do Meio Material 131
As
Pedras da Cidade
134
Situações e Deslocamentos - Aderência
do
Grupo
ao seu
lugar
137
Agrupamentos aparentemente
sem
bases eespaciais:
Agru
pamentos jurídicos, econômicos, religiosos
139
A Inserção no espaço da memória
coletiva
. . . . . . . . . . . . 143
O Espaço Jurídico e a memória dos direitos . . . . . . . . 144
O Espaço Econômico 149
O Espaço Religioso
154
nexo -
A MEMÓRIA COLETIVA DOS
MÚSICOS 161
NOTAS DE REFER:eNCIA
:
188
8
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PREFÁ IO
Ocorre
com
a sociologia o mesmo que houve com outras disci
plinas: após ter explorado
as
regiões afastadas, aproxima-se da reali
dade concreta da existência. A tentativa que conduz Maurice Halb
wachs de uma análise (hoje clássica) das classes sociais ao estudo
dos quadros sociais da memória , é da mesma ordem que a que leva
Marcel Mauss de L'Esquisse d'une Théorie de l Magie à Téchniques
du
Corps : a segunda geração da Escola francesa
de
Sociologia vai
do longínquo
ao
próximo .l
e
u r p ~ e e n e n t e
como
as
últimas análises de Maurice Halbwachs,
pouco tempo antes de sua deportação e seu assassinato pelos nazistas,
abrem
um
novo caminho para o estudo sociológico da vida quoti
diana; simplesmente é lamentável que as propostas contidas em
Memória Coletiva,
livro póstumo publicado em 1950, não tenham en
tão
fecundado outras pesquisas. e verdade que essa data, assinala na
França o ponto
mai s
alto atingido por esse neopositivismo , do
qual Pitirim Sorokim e Georges Gurvitch, precisaram então, os li
mites
nele demonstrando o caráter ilusório
de
uma análise que toma
seus
termos e
seus
conceitos, em ciências estranhas a seu objeto.
Hoje não há dúvida que o eco deste livro seja mais intenso
Em
sua obra
de
1925, Les Cadres Sociaux de
l
Mémoire, (Os
Quadros Sociais d Memória), Maurice Halbwachs mostra-se
um
cor
reto durkheimiano. Se
ao
falar das classes sociais
e
em seguida,
do
suicídio,
ele
ultrapassa o pensamento
do
mestre da Escola francesa,
sua análise da memória assemelha-se diretamente à inspiração das
formes elementaires de l vie religieuse (formas elementares da vida
religiosa). O autor aí demonstra que é impossível conceber o pro
blema da evocação e da localização das lembranças
se
não tomarmos
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para ponto de aplicação os quadros sociais reais que servem de pon
tos de referência nesta reconstrução que chamamos memória.
Durkheim, em páginas bem conhecidas (que trouxeram uma
imensa contribuição à sociologia do conhecimento) insistia com vi-
gor no fato de que
os
sistemas de classificações sociais e mentais
tomam sempre
por
fundamento meios sociais efervescentes . Essa
idéia não podia, àquela época, assumir toda a sua significação, do
mesmo modo que não podia assumir o seu verdadeiro alcance um
outro conceito durkheimiano, o da anomia.
2
Mais exatamente,
os
contemporâneos conservavam da proposta de Durkheim a idéia su-
mária de uma relação mecânica entre as classificações mentais e as
classificações sociais, quando se tratava na verdade de uma correla
ção dialética entre o dinamismo criador dos grupos humanos - sua
efervescência - e a organização de representações simples refe
rentes ao cosmo ou ao ambiente inerte da sociedade considerada.
Seguramente, os termos de Durkheim prestavaQ1 se à ilusão. Ele
mesmo, durante toda sua vida intelectual, foi vítima de um vocabu
h o que todos seus contemporâneos (mesmo Bergson) falavam. As
,
sinalamos quanto esse obstáculo de linguagem dificultou o fundador
da
sociologia francesa no conhecimento de sua própria pesquisa: a
análise da consciência coletiva - (da qual pressentira que a trama
era imanente às consciências parciais que a compõem e permeáveis
umas às outras) não podia concluir-se em decorrência da
im g e m j
antiquada da consciência de si fechada sobre si mesma, que o
intelectualismo havia legado a essa geração de pensadores.
s
Entretanto, nessa mesma época, Husserl propunha uma defini
ção da intencionalidade que desse sua significação à descoberta de
Durkheim, permitindo-lhe explicar claramente a abertura recíproca
das consciências dos sujeitos e a participação dos elementos que
compõem esta totalidade viva, sem a qual a noção
de
consciência
coletiva fica desprovida de eficácia operatória. Mas o pensamento
de Husserl não penetra na França - nem mesmo
os
elementos
da
reflexão dialética, vista de uma certa tentativá marxista, que pudes
sem conduzir a um resultado comparável.
Que Durkheim, durante toda a sua vida, tenha se debatido
con-
tra uma formulação que ia de encontro a sua iniciativa (isto aparecia
sobretudo em seus estudos reunidos em
Sociologie et Philosophie*
e que, na falta de uma conceptualização nova tivesse sido levado
• Sociologia e Filosofia.
10
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a hipostasiar a consclencia coletiva e a sociedade, é um problema
que pediria uma longa análise. Pelo menos, o mestre lega suas dificul
dades à primeira geração de seus discípulos
Entretanto, quando Maurice Halbwachs começa a publicar seus
livros, uma mudança operou-se. Não somente porque penetram na
França alguns conceitos operatórios novos, mas sobretudo porque a
própria experiência impôs à reflexão temas de análise que iam obri
gar o vocabulário filosófico a uma revisão generalizada. Porque não
é certo que a existência dos problemas confunda-se com a de um
sistema constituído da linguagem, sobretudo no domínio do conheci
mento do homem onde a conceptualização não recobre senão em
parte, e sempre aproximativamente, a riqueza infinita de uma expe
riência nunca dominada completamente.
4
Que toda essa época tenha sido dominada por uma reflexão sa
bre a memória e a lembrança, que o conhecimento científico e· a
criação literária tenham então coincidido na sua preocupação
em
atin
gir às mesmas regiões da experiência coletiva e individual, isso não
é o indício de um avanço da expressão conceptual estabelecida pela
realidade humana?
Se
Proust, Bergson, Henry James, Conrad, Joyce,
Italo Svévo fazem da rememoração e da análise das formas não
reflexivas do espírito um tema fundamental de suas pesquisas, se o
surrealismo cujo
iinpacto na reflexão filosófica foi examinado por
F
Alquié) coloca a contingência, a exploração onírica e memorizante
em primeiro plano de sua ascese, joga com associações cuja aparente
desordem parece sobressair de uma lógica oculta, cuja racionalização
é permitida pela psicanálise - tudo isso concorre para criar um
feixe de interrogações que vão na mesma direção: a elucidação
d
realidade existencial coletiva e individual.
E isto, apesar de que nenhum dos problemas fundamentais da
linguagem filosófica francesa esteja resolvido. Pois Bergson, falando
da memória, sofre, como Durkheim, da inadequação dos termos cien
tíficos à realidade que ele se empenha em apoderar-se. O recurso à
linguagem literária que levava alguns a dizer que o autor de
atiere
et émoire
-
matéria e memória - desconfiava das idéias) não
é
somente uma homenagem prestada à criação artística, que adiantou-se
mais na investigação das regiões desconhecidas da experiência, mas tam
bém um esforço para constituir um vocabulário novo.
i
Essa tentativa
representa, não obstante, o esforço mais coerente para livrar a refle-
11
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xão e uma aparelhagem mental fora de moda e ultrapassada pejas
realidades que emergem de uma experiência que não dominamos mais.
Assim sendo, esta preocupação que dirige a atenção para a
memória e duração, responde, com efeito, a uma ruptura na continui
dade das sociedades européias. Ruptura da guerra de 1914, que afasta
um passado que nunca tinha sido percebido como tal, ruptura entre
nacionalismos hostis que revela a que construção arbitrária se en
trega um grupo ou uma nação quando querem fazer de sua história
uma doutrina , ruptura na vida econômica que acentua a estrati
ficação e a divisão em classes e torna mais sensível a relação entre
a imagem que se faz do homem e do mundo e o lugar limitado que
ocupa essa imagem dentro de um grupo organizado. privilégio
da
consciência universal se dissolve, e a etnologia acentua a contingência
das mentalidades primitivas e científicas (apesar da ingenuidade
desta dicotomia). E a época na qual Lukács postula a existência
de
uma subjetividade de classe, que traz consigo sua própria visão do
mundo e sua própria memória, subjetividade que se torna objetivi
dade absoluta quando se trata de uma classe privilegiada
pe o
Jugar
eminente que o filósofo lhe confere dentro da hierarquia dos grupos
e de uma visão carismática
d
história. Não é também a primeira
vez que vemos regimes políticos pretender carregar consigo uma ima
gem absoluta do homem, cada vez diferente, bem como um sistema
de valores, segundo os quais se recompõem o passado e o futuro? Pouco
a pouco, chega-se ao relativismo impressionista como de KarI Mann
heim, que perde de vista o enraizamento social das ideologias, das
quais mostra justamente o intenso desabrochamento.
Essas preocupações, que correspondem à intenção profundamente
sociológica de nossa época, se manifestam nos temas de pesquisa dos
historiadores sociologiantes, como Marc Bloch ou Lucien Febvre, tan
to como imprimem sua marca na evolução de Maurice Halbwachs.
a Topographie Légendaire des vangiles
en
Terre Sainte· (pu
blicado em 1941) é uma das testemunhas dessa orientação em direção
ao concreto: não se trata de mostrar como varia a localização das
lembranças coletivas confonne os diversos grupos (e suas relações
recíprocas), quando esses últimos se apoderam de uma represen
tação coletiva comum? Sob a superfície externa, que recolhe uma
tradição respeitosa e ingênua, se sobrepõem as camadas de interpre-
A Topografia Lendária dos Evangelhos
na
Terra
Santa
12
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tações diferentes, onde cada uma corresponde
às
perspectivas reais de
tal
ou
tal grupo (tal ou tal seita), definido como correspondendo a
seu lugar num tempo e num espaço. A história, liberta do histori
cismo , junta-se aqui à sociologia despojada do sociologismo
de
suas origens
s textos contidos em A memória coletiva são o outro ponto
resultante desta pesquisa. Sua significação é maior porque nos con-
cemem mais. Isto também porque, sem dúvida a feitura da obra onde
estão reunidos é mais livre do que todos
os
outros textos
de
Maurice
Halbwachs, e porque está carregada
de
intenções literárias, no
me-
lhor sentido desta palavra.
O interesse do livro reside sobretudo no fato
de
que
se
unem,
contrariamente ao postulado positivista, a interpretação compreensiva
e a análise causal, o apanhado dos grupos e a das significações. Mais
profundamente ainda, o que se esconde sob esta análise da memória
é uma definição do tempo. Este não é mais, com efeito, o meio homo-
gêneo e uniforme onde se desenrolam todos
os
fenômenos (segundo
uma
idéia preconcebida dentro de toda a reflexão filosófica), mas o
simples princípio
de
uma coordenação entre elementos que não
de-
pendem
do
pensamento ontológico, porque colocam em causa regiões
da
experiência que lhe são irredutíveis. Contra uma visão platônica
do
tempo que faz do tempo
a
imagem móvel da eternidade ,contra
interpretação de um espiritualismo antiquado que afirma que a ma-
terialidade lança sobre nós o esquecimento , contra uma concepção
hegeliana de um futuro único portador de uma lógica racional,6 a
so-
ciologia francesa com Halbwachs começa a tirar
as
conseqüências da
Revolução einsteiniana. O tempo não é mais o meio privilegiado e
estável onde se desdobram todos os fenômenos humanos, comparável
àquilo que era a luz para
os
físicos de outrora. Podemos falar dele
como
de
uma categoria de um entendimento fixada uma vez por
todas?
Maurice Halbwachs evoca o depoimento que não tem sentido
senão
em relação a um grupo do qual faz parte, pois supõe um acon
tecimento real outrora vivido em comum e, por isso, depende do
quadro de referência no qual evoluem presentemente o grupo e o
indivíduo que o atestam. Isto quer dizer que o eu e sua duração
situam-se no ponto
de
encontro
de
duas séries diferentes e por vezes
divergentes: aquela que se atém aos aspectos vivos e materiais da
lembrança, aquela que reconstrói aquilo que não é mais se não do
3
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passado. Que seria desse eu , senão fizesse parte de uma \ comuni
dade afetiva de um meio efervescente , do qual tenta
se
afastar
no momento em que ele se recorda ?
Certo, a memória individual existe,
mas
ela está enraizada den-
tro dos quadros diversos que a simultaneidade ou a contingência
reaproxima momentaneamente. A tememóração pessoal situa-se na
en-
cruzilhada das malhas
de
solidariedades múltiplas dentro das quais
estamos engajados. Nada escapa à trama sincrônica da existência social
atual
e
é da combinação destes diversos elementos que pode emergir
esta forma que chamamos de lembrança, porque a traduzimos em
uma linguagem.
Assim, a consciência não está jamais fechada sobre si mesma,
nem vazia, nem solitária. Somos arrastados em múltiplas direções,
co-
mo se a lembrança fosse um ponto de referência que nos permitisse
situar em meio à variação contínua dos quadros sociais e da expe-
riência coletiva histórica. Isto explica talvez por que razão, nos perío
dos
de
calma ou de rigidez momentâneá das estruturas sociais, a
lembrança coletiva tem menos importância do que dentro dos períodos
de tensão ou de crise - e lá, às vezes, ela torna-se mito .
De todas as interferências coletivas que correspondem à vida
dos grupos, a lembrança
é
como a fronteira e o limite: coloca-se na
intersecção de várias correntes do pensamento coletivo . Eis por que
experimentamos tanta dificuldade para nos lembrar dos acontecimen
tos que apenas nos concernem. Vemos então que não
se
trata de
explicitar uma essência ou uma realidade fenomenal, mas de compre
ender uma relação diferencial
Com efeito, MaurÍce Halbwachs ajuda a situar a aventura pessoal
da memória, a sucessão dos eventos individuais, da qual resultam mu-
danças que
se
produzem em nossas relações com
os
grupos
com
os
quais estamos misturados e relações que
se
estabelecem entre esses
grupos. Proust não nos deu uma descrição dessa busca, por vezes lú
cida e angustiante; ele vê se afastarem as lembranças mais íntimas
(a imagem de sua avó, de sua mãe, de Albertine), com tanta inquietude,
que carrega com uma emoção presente a constatação implícita da dis-
tância que o separa daqueles que ele pensa ter perdido?7 Mas seu ser
histórico' contradiz o ser íntimo que ele trai necessariamente socia-
lizando-se.
Lá
situa-se, em Halbwachs, uma notável distinção entre a me
mória histórica , de um lado, que supõe a reconstrução dos dados
fornecidos pelo presente da vida social e projetada no passado rein-
4
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ventado; e a memória coletiva , de outro, aquela que recompõe ma
gicamente o passado. Entre essas duas direções da consciência coletiva
e individual desenvolvem-se as diversas formas de memória, cujas for
mas mudam conforme os objetivos que elas implicam.
Isto não significa, certamente, que os espíritos estejam, entre si,
separados uns dos outros, mas que a combinação dos grupos coletivos
onde estão engajados esses espíritos define múltiplas experiências
do
tempo. Vemos como nasce aqui uma reflexão que conduz
à
análise,
tão importante no pensamento de Georges Gurvitch, da multiplici
dade dos tempos sociais . Concebe-se também, como a memória cole
tiva não se confunde com a história, como este termo de memória
histórica é quase absurdo, uma vez que associa dois conceitos que
se excluetn.
Se
a história não resulta de uma construção cristalizada
por um grupo estabelecido para defender-se contra a erosão perma
nente da mudança, então como a memória postula a mudança das
perspectivas, e seu relativismo recíproco?
Assim sendo, o problema
da
duração e o do tempo não mais se
coloca dentro dos termos do pensamento filosófico tradicional.
Por
mais dificuldades que Maurice Halbwachs tenha
em
admitir a plura
lidade real dos tempos sociais (apesar de
já
prever a sua existência
e apesar de sua educação, que lhe havia ensinado que existia uma
única temporalidade, fosse ela dividida segundo a simples dicotomia
bergsoniana entre duração e espacialidade), sua reflexão desemboca
nesta importante descoberta: "I preciso distinguir , escreve ele um
certo número de tempos coletivos, tanto quanto existem grupos sepa
rados . A morte não lhe permitiu ir além dessa constatação.
Entretanto, se a memória coletiva não deve nada à memória
histórica e tudo à memória coletiva , é porque a primeira situa-se
na intersecção de várias séries aproximadas pelo acaso ou afrontamen
to dos grupos: a memória não pode ser o alicerce da consciência, uma
vez que ela é tão-somente uma de suas direções, uma perspectiva
possível que racionaliza o espírito. Somos então
~ e v d o s
ao estudo dos
acontecimentos humanos mais simples, tais como eles se representam
na vida real, no decurso das múltiplas dramatizações, onde se de·
frontam os papéis reais e imaginários, as projeções utópicas e as cons
truções arbitrárias.
os entrecruzamentos dos tempos sociais onde se situa a lem
brança, respondem os entrecruzamentos do espaço, quer se trate do
espaço endurecido e cristalizado ( em toda uma parte de si mesmo,
15
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os grupos imitiam a passividade da matéria inerte ), quer
se
trate
das
extensões reais nas quais os grupos fixam, provis6ria ou definitiva
mente, os acontecimentos que correspondem as suas relações mútuas
com outros grupos.
Religiões, atitudes políticas, organizações administrativas levam
com elas dimensões temporais ( hist6ricas ) que são igualmente pro-
jeções para o passado ou para o futuro, e que respondem aos dina-
mismos mais ou menos intensos e acentuados
dos
grupos humanos
da reciprocidade dessas construções, os muros das cidades, as casas,
as ruas das cidades ou as paisagens rurais carregam a marca passa-
geira.
Podemos, certamente, duvidar que a dicotomia da mem6ria
em
relação ao espaço e da mem6ria em relação ao tempo seja real-
mente eficaz, porque a distinção entre duração e espaço p e r m ~
nece escolástica, como a física contemporânea a demonstrou. Ao
me-
nos, Halbwachs extrai desta distinção, como daquela que ele estabe
lece entre reconstrução operada pela mem6ria hist6rica e recons
títuição da mem6ria coletiva, um aspecto muito útil que a morte
não
lhe permitiu explorar.
Seu pensamento avançava por uma via, por onde a sociologia não
tinha ainda penetrado.
Este livro póstumo traz consigo um acento que ultrapassa a
socio-
logia clássica , porque nele encontramos os elementos
de
uma socio-
logia da vida quotidiana ou, mais precisamente, as pressuposições que
permitiriam à análise sociol6gica examinar
as
situações concretas nas
quais se acha implicado o homem de cada dia na trama da vida
coletiva.
8
Essas situações não são simples recortes dentro da experiência:
elas colocam em causa os papéis sociais e reativam o dinamismo par
cial dos meios efervescentes . Retirando do tempo (e da mem6ria)
seu privilégio de dado imediato da consciênCia, despojando-o de sua
essência platônica, a sociologia pode engajar-se na análise dos fatos
humanos até aqui abandonados à literatura. Ap6s ter, durante longo
tempo, reduzido o heterogêneo ao homogêneo, lhe permitido
exa-
minar o fenômeno existencial na sua especificidade, tal como ele
é
tomado na rede das múltiplas significações que ora recortam as clas-
sificações estabelecidas, ora correspondem às mutações profundas que
desordenam, abertamente ou não,
as
sociedades modernas. Uma tal
16
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sociologia veria abrir-se diante de si um campo imenso, o mesmo que
a literatura do século passado explorava ao acaso. Ela não saberia
contentar-se com problemas abstratos, mas deveria responder às
perguntas reais
do
homem vivo, tal
como ele
é, e não refletido atra
vés
de
doutrinas ou ideologias. E assim, talvez, a sociologia encontre
uma nova vocação, não mais tentando reduzir o individual ao coleti
vo mas tentando saber por que, no meio da trama coletiva da exis-
tência, surge e se impõe a individuação
JEAN
DUVIGN UD
Professor da Faculdade das Letras
e Ciências Humanas d'Orléans-Tours.
17
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INTRO UÇÃO
Maurice Halbwachs 1877 - 1945)
De família universitária, criança inteligente e compenetrada que
lia Julio Verne com um atlas,
foi
estudante
de
liceu sem problemas
até o dia em que, no colégio Henrique-IV,
t o " n o u ~ s e
aluno
de
Bergson.
Maravilhado pelo homem, exaltado pela revelação da filosofia, des-
cobre-se portador de uma vocação. A partir de então, - desde
seus vinte anos - sob as aparências discretas de cortesia e de silêncio,
encarnou, de sua parte, esta espécie humana cada vez mais respeitada
·e
contestada, o filósofo, isto é, aquele para quem o cuidado no pen
sar é fundamental. Seus amigos, e ele mesmo, riam
de
suas freqüentes
distrações: é porque ele sempre estava ocupado em alguma pesquisa
exclusiva e até tirânica. Não porque fosse fechado sobre
si
mesmo,
nem voltado para seu interior, ele que tão resolutamente negou
a possibilidade de qualquer pensamento puramente individual.
Ao
contrário, sempre conciliou a meditação com uma curiosidade quase
universal; desde o liceu, a escola, trabalhou sobre Stendhal, sobre
Rembrant e mais assiduamente sobre Leibniz; entrou no conflito social
e político, com Péguy, depois com Lucien Herr e Jaures.
Esse
tra
balhador infatigável, no decorrer de sua vida inteira, soube encontrar
tempo para tudo, para sua família, para grandes viagens, para a arte
e a política, às vezes até para o mundo e também para
os
encargos
sociais que lhe impuseram, nos últimos anos de sua vida, o peso
de
sua obra e a amplitude
de
sua atividade, mais que sua ambição.
1
Mas
por mais eficaz que fosse a sua participação, e preciosa sua presença
benevolente, sentia-se que se prestava unicamente
às
coisas temporais,
que a perseguição à reflexão permanecia o essencial e que ele punha
todas as coisas e todas
as
pessoas à distância de observação desinte
ressada e
de
julgamento.
Se sempre reconheceu o que devia a Bergson, levantou-se tam-
bém contra ele por um movimento vivo de defesa.
Ele se
quis
cien
18
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hipóteses. Sabemos que logo
se
tornou um mestre
em
estatística, e que
dela permaneceu até o fim um prático convicto, dela determinando,
discutindo e aprofundando
as
leis. Citemos,
em
1913,
La Théorie
de
L Homme Moyen,· Essai sur Quetelet et
la
statistique
morale,
em
1924 (em colaboração com
M
Fréchet) o
Calcul des probabilités
la
I? ortée
de Tous; Cálculo de Probabilidades
ao
Alcance
de
Todos;
em 1923, sua contribuição
ao
tomo VII da
Encyclopédie (Enciclo-
pédia) Francesa: A espécie humana, o ponto de vista do número, etc
Mas seria necessário demonstrar sobretudo como a estatística,
desde cedo, não foi para ele, e cada vez mais, senão o meio de pôr
em ordem, através dos números, uma matéria social para a reflexão;
matéria como traço. direto e imediatamente quantificado dos aconte
cimentos sociais, mas que não diz nada, não mais
do
que a natureza.
Desde 1913, em suas duas teses de doutorado em letras - que
com-
pôs inteiramente, ensinando nos liceus
de
Reims e
de
Tours -
assegura que o fato social, ainda que mensurável para uma parte,
não é exterior
ao
cientista, não é exterior
aos
homens que o
vivem
Desde então, é o problema mesmo da consciência social, isto é, da
consciência que dominou, orientou e unificou todas
as
suas pesquisas.
Em 1938, no seu pequeno tratado de
Morphologie
Sociale· (Colín),
escreveu: compreendamos bem que as formas materiais da sociedade
agem sobre ela, não tanto
em
virtude de um constrangimento físico,
como um corpo agiria sobre um outro corpo,
mas
pela consciência
que dela tomamos, tanto como membros de um grupo que percebem
seu volume, sua estrutura física, seus movimentos no espaço. Aí existe
um gênero de pensamento ou de percepção coletiva que poderíamos
chamar de um dado imediato
da
consciência social, que sobressai
so-
bre todos
os
outros e que não foi percebido suficientemente pelos
próprios sociólogos . Dados imediatos que certamente não
se
rela
cionam com a intuição bergsoniana nem
com
nenhuma psicologia, e
que não podemos mais rejeitar dentro
do
inconsciente; a tarefa
do
sociólogo, através
de
uma exposição que poderíamos muito
bem cha-
mar de uma fenomenologia,
é
fazê-los passar ao estado de noções
claras e distintas. Maurice Halbwachs conseguiu, no final das contas,
dominar ou neglige,nciar
os
falsos problemas ontológicos que opunham
indivíduo e sociedade, como
os
verdadeiros fenomenólogos souberam
20
• A Teoria do Homem Médio .
Ensaio sobre Quetelet e a Estatística Moral .
Morfologia Social.
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separar os falsos problemas do realismo e do idealismo. A sociologia,
para ele
é
a análise da consciência enquanto ela se descobre na e
pela sociedade, e
é
a descrição desta sociedade concreta, isto
é,
das
condições. mesmas - linguagem, ordem, instituições, presenças e tra
dições
humanas - que tornam possível a consciência de cada um.
Não podemos pensar nada, não podemos pensar em nós mesmos,
senão
pelos outros e para
os
outros, e sob a condição desse acordo
substancial que, através do coletivo, persegue o universal e distingue,
como Halbwachs tanto insistiu, o sonho da realidade, a loucura indi
vidual da razão comum. Durkheim traz
à
tona a razão da sociedade,
Halbwachs mostra que a razão resulta dessa forma humana, a única
que realiza e anima permanentemente a existência social.
Assim ainda que a sociedade dependa estreitamente de condi
ções
naturais, ela é essencialmente consciência; as causas e os fins
nela
se
misturam e
se
embaraçam. Ele soube dar nas suas análises o
sentimento da opacidade e do. poder envolvente do tecido social, tal
como Comte e mais ainda Balzac, que ele sempre leu com caloroso
entusiasmo, nos levam a prová-lo. E isto porque empenhou-se sempre
mais
em cOl;nbinar o método objetivo do homem
de
ciência e o mé
todo reflexivo do filósofo.
Desde 1913,
em
sua grande tese:
a classe ouvriere et les niveaux
de
vie · partindo de uma pesquisa sobre os orçamentos operários,
ele
achou-se diante
do
problema das classes sociais, e foi refletindo
sobre sua própria experiência vivida e analisando a diversidade dos
comportamentos, das tendências,
dos
sentimentos através dos quais
nós nos classificamos, nós mesmos e
os
outros, na famosa escala
social, que formou a idéia, sem dúvida magistral, de que o homem
se caracteriza essencialmente por seu grau de integração no tecido
das relações sociais.
Uma
idéia é para o cientista como para o fil6-
sofo, o caminho indispensável da descoberta. Ele no-lo diz expressa
mente: A maioria das idéias que atravessam nosso espírito não se
limitam ao sentimento mais ou menos preciso, de que nós poderíamos,
se quiséssemos, analisar o conteúdo?
Mas
vamos raramente até o fim
de tais análises .2 O livro inteiro é um exemplo de análise obstina
damente continuada e deixada em aberto., Ele nos faz ver
os
operários
isolados em face da matéria e por este motivo como que desintegrados
da
sociedade: A sociedade, expulsandd
de
si toda uma classe
de
homens encarregados do trabalho material, soube fabricar tnstrumen-
• A
lasse
Trabalhadora e
s
Nlveis de Vida.
21
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tos para manejar instrumentos .
Se
o ideal pode
se
definir a vida
social mais intensa , a expressão de classes superiores tem todo o
seu
sentido. O problema é, para os operários, ascender, dentro
da
esfera social do consumo, a uma vida social bastante complicada e
intensa ; participar
de
todas
as
necessidades nascidas dentro
dos
gmpos ; criar relações originais com outros membros de pequenas
sociedades ,
de
tal forma que não possam
se
despojar de
t9-
da a sua personalidade assim que cheguem aos locais de trabalho .
Assim, quanto mais seguimos
de
perto a realidade, melhor
vemos
que
a sociedade, longe de uniformizar os indivíduos. diferencia-os: na
medida que os homens multiplicam suas relações.
. .
cada
um
deles
toma cada vez mais consciência de sua individualidade .
Após
a ruptura de
1914-19Hs
- durante a guerra, Halbwachs
havia ensinado no liceu de Nancy até a evacuação da cidade
bom
bardeada, depois trabalhado junto de seu grande amigo Albert Thomas
na reorganização da indústria
de
guerra - ele entra para o ensino
superior. Na Faculdade de Caen, depois na de Strasbourg, de 1919 ~
1935, enfim na Sorbonne, ele pôde, segundo o voto de sua juventude,
reunir quase inteiramente seu ensino e suas pesquisas pessoais.
Du
rante vinte e cinco anos através
de
suas múltiplas e incessantes ativi
dades - entre as quaiS
em
1930, um curso ministrado na Univer
sidade de Chicago - vêmo-lo perseguir o mesmo problema da cons
ciência· social, ampliando-a por todas as suas pesquisas anexas e
aprofundando essa idéia.
Se
o social se confunde com o consciente,
deve confundir-se também com a rememoração
sob
todas as suas for
mas.
Matéria e sociedade se opõem; sociedade e consciência, e
perso
nalidade se implicam; por conseguinte,
a fortiori,
sociedade e
memó
ria. Retomando os termos de Leibniz,
Materia est mens momentanea
ele havia compreendido que o operário é o espírito aprisionado na
matéria, imobilizado dentro do . presente perpétuo do gesto simplifi
cado e mon6tono do trabalho mecanizado, ou, por antífrase. raciona
lizado. Os
Cadres sociaux de la mémoire Quadros Sociais da e-
mória),
surgidos em 1925, estão no centro de sua obra e lhe consti
tuem sem dúvida a parte mais durável. Em nenhum lugar
ele
se
o s t r ~ u
tão fiel observador da vida social concreta e quotidiana;
em
nenhum lugar, analista mais penetrante, por vezes mesmo até a
suti
leza; releiamos o que escreveu sobre a nobreza, a propriedade,
sobre
a relação das gerações, a função dos velhos guardiões do passado, o
papel dos prenomes dentro da linguagem e
as
relações humanas.
Nin-
22
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guém
melhor compreendeu e fez compreender a continuidade social
a
idéia diretora, segundo Comte), isto é, aquele encadeamento
tem
poral, próprio da consciência comum que, sob a forma de tradição,
de
culto
ao
passado,
de
previsões e projetos, condiciona e suscita,
em cada sociedade, a ordem e 0 progresso humanos. ApesarJ:le algum
equívoco de expressão, ele nos faz compreender profundamente que
não é o indivíduo
em si
nem nenhuma entidade social que se recorda;
mas que ninguém pode lembrar-se efetivamente, senão da socieda
de, pela presença ou a evocação e, portanto, pela assistência dos
outros ou de suas obras; nossas primeiras lembranças e, por conse
guinte, a trama de todas as outras, não são trazidas e conservadas
pela família? Um homem que
se
lembra sozinho daquilo que
os
outros não
se
lembram assemelha-se a alguém que vê o que os outros
não
vêem (p. 228).
O texto que aparece aqui, e que foi tirado dos papéis deixados
por Halbwachs nos traz os fragmentos da grande obra que ele pro
jetava sobre o tempo. O que confirma que as relações da mémória e
da sociedade haviam se tornado o centro e o termo de seu pensa
mento.
Esta obra foi continuada através da tormenta da última guerra,
que feriu os seus de modo tão repetido e tão cruel. Em julho de
1944, alquebrou-se pela brutal tragédia que conhecemos: o encar
ceramento pela Gestapo, no dia seguinte à prisão de um de seus
filhos: e em março de
1945,
a morte
no
campo de Buchenwald.
Evocando a lembrança de Frederico Rauth,5 que havia sido seu
mes-
. tre por alguns meses e do qual havia se tornado amigo, dizia que
a mais alta virtude do filósofo é talvez a intrepidez intelectual ;
esta virtude implicou, para Maurice Halbwachs, no desprezo das habi
lidades e na indiferença às astúcias da vida social. e a parte socrá
tica que há sem dúvida em todos
os
verdadeiros servidores do espírito..
Poderá parecer simbólico que um dos homens mais interessados em
definir a noção de homem enquanto pessoa distinta das coisas, que
plovoca a condenação radical do instrumento humano, do material hu
mano, tenha suportado o inferno dos campos de concentração, onde
a sociedade e o indivíduo são juntamente renegados e aniqu:lados.
T.-MICHEL ALEXANDRE
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ADVER11;NCIA
-
PARA
A
SEGUNDA EDIÇÃO
A primeira edição de 1950 continha exclusivamente quatro ca
pítulos manuscritos, encontrados
nos
papéis de Maurice Halbwachs,
sob o título: a mémoire collective. Salvo algumas passagens por
demais inacabadas, - especificava a advertência - e cujo corte
está assinalado por pontos de reticências), o manuscrito foi integral
mente reproduzido. Os títulos dos capítulos foram escolhidos pelo
autor; somente os subtítulos foram acrescentados pelos editores .
Em
1949,
há perto
de
vinte anos, não acreditávamos dever in
troduzir no livro um artigo publicado
em
vida por Maurice Halbwachs
na
Revue Philosophique
( Revista Filosófica ), (1939),
n.0
8
3-4):
La
Mémoire Collective chez les Musiciens ,' ainda que fosse considera
do, como uma simples possibilidade, fazer desse artigo o primeiro
capítulo da obra. Jean Duvignaud estima hoje que esta análise
da
memória musical parece confirmar
as
opiniões que
ele
próprio
for
mulou, em seu Prefácio, sobre a evolução do pensamento
de
Maurice
Halbwachs e sua orientação
em
direção ao concreto . Foi então de
cidido juntar o artigo ao livro; porém, a fim
de
não modificar a
es
trutura deste, colocá-lo em anexo.
Um
outro acréscimo
foi
feito: o
da introdução biográfica, escrita em
1948
por J -Michel Alexandre,
e que não havia aparecido senão em L'Année Sociologique
3.
a
série,
1940-1948),
onde a obra havia sido publicada com prioridade, pelos
c u ~ d d o s de
G. Gurvitch, sob o título: Mémoire et société (Memória
e Sociedade).
J
MICHEL
ALEXANDRE
.. A Memória Coletiva nos Músicos .
24
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Capítulo I
MEMÓRIA COLETIVA E MEMÓRIA INDIVIDUAL
Confrontações
azemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas
também para completar, o que sabemos
de
um evento do qual já
estamos informados de alguma forma, embora muitas circunstâncias
nos
permaneçam obscuras. Ora, a primeira testemunha, à qual
p
demos sempre apelar, é a nós próprios. Quando uma pessoa diz: ~ u
não creio em meus olhos ,
e l
sente que há nela dois seres: um, o
ser sensível, é como uma testemunha que vem depor sobre aquilo que
viu, diante do eu que não viu atualmente, mas que talvez tenha
visto
no
passado e, talvez, tenha feito uma opinião apoiando-se nos
depoimentos dos outros. Assim, quando retornamos a uma cidade onde
estivemos anteriormente, aquilo que percebemos nos ajuda a rescons
tituir
um
quadro em que muitas partes estavam esquecidas. Se o que
vemos
hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lem
branças antigas, inversamente essas lembranças
se
adaptariam
ao con-
junto de nossas percepções atuais. Tudo
se
passa como
se
confrontás
semos vários depoimentos. e porque concordam no essencial, apesar
de
algumas divergências, que podemos reconstruir um conjunto
de
lembranças
de
modo a reconhecê-Io.
Certamente, se nossa impressão pode apoiar-se não somente
so-
bre nossa lembrança, mas também sobre a dos outros, nossa confiança
na exatidão de nossa evocação será maior, como
se
uma mesma ex-
periência fosse recomeçada, não somente pela mesma pessoa, mas por
várias. Quando encontramos um amigo do qual a vida nos separou
te-
mos
alguma dificuldade, primeiramente, em retomar contato com ele.
Mas logo, quando evocamos juntos diversas circunstâncias, de que
cada
um de nós se
lembra, e que não são mais as mesmas, ainda que
elas se relacionem aos mesmos eventos; não conseguimos nos pôr a
pensar e a lembrár em comum, e os fatos passados não têm mais o
mesmo relevo, não acreditamos revivê-los com mais i n t e n s i d a d ~ por-
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que não estamos mais s6s para representá-los, como os vemos agora.
como os vimos outrora, quando os olhávamos ao mesmo tempo com
nossos olhos e os de um outro?
Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lem
bradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais
s6 n6s estivemos envolvidos, e com objetos que s6 nós vimos. E por
que, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros
homens estejam lá, que se distingam materialmente de n6s: porque
temos sempre conosco e em n6s uma quantidade
de
pessoas que não
se confundem. Chego pela primeira vez a Londres, e passeio com vá
rias pessoas, ora com um ora com outro companheiro. Tanto pode ser
um arquiteto que atrai minha atenção para os edifícios, suas, propor
ções, sua disposição, como pode ser um historiador: aprendo que tal
rua foi traçada em tal época, que aquela casa viu nascer um homem
conhecido, que ocorreram, áqui ou lá, incidentes notáveis. Com um
pintor, sou sensível à tonalidade dos parques, à linha dos palácios,
das igrejas, aos jogos de luz e sombras nas paredes e as
fachadas de
Westminster, do Templo, sobre o Tâmisa. Um comerciante, um homem
de negócios, me arrasta pelos caminhos populosos da cidade; detenho
me
diante das lojas, das livrarias, dos grandes estabelecimentos comer
ciais. Mas mesmo que eu não tivesse caminhado ao lado de alguém,
bastaria que tivesse lido descrições da cidade, compostas de todos esses
diversos pontos de vista; que me tivessem aconselhado a examinar
tais de seus aspectos ou, simplesmente, que dela tenha estudado a
planta. Suponhamos que eu pa >seie s6. Diremos que desse passeio eu
não possa guardar senão lembranças individuais, que não sejam senão
minhas? Não obstante, passeei só somente na aparência. Passando por
Westminster, pensei no que me havia sido dito por um amigo histo
riador (ou, o que á no mesmo, no que havia lido sobre ela em uma
história). Atravessando uma ponte, considerei o efeito de perspectiva
que meu amigo pintor havia assinalado (ou que me havia surpreendi
do num quadro, numa gravura). Eu me dirigi, orientado pelo pensa
mento de meu plano. A primeira vez que fui a Londres, diante de
Saint-Paul
ou
Mansion-House, sobre o Strand, nos arredores dos
Court s of Law, muitas impressões lembravam-me os romances de
Dickens lidos em minha infância: eu passeava então com Dickens.
Em todos esses momentos, em todas essas circunstâncias, não posso
dizer que estava s6, que refletia sozinho, já que em pensamento eu
me deslocava de um tal grupo para outro, aquele que eu compunha
com esse arquiteto, além deste, com aqueles, dos quais ele era o
in-
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térprete junto a mim, ou aquele pintor
(e
seu grupo , com o geôme
tra que havia desenhado
esse
plano, ou com um romancista. Outros
homens
tiveram essas lembranças em comum comigo. Muito mais,
eles
me
ajudam a lembrá-las: para melhor
me
recordar, eu
me
volto
para eles, adoto momentaneamente seu ponto de vista, entro em seu
grupo,
do
qual continuo a fazer parte, pois sofro ainda seu impulso
e encontro em mim muito das idéias e modos de pensar a que não
teria chegado sozinho, e através dos quais permaneço em contato
com eles.
o
esquecimento pelo desapego de um rupo
Assim,
para confirmar ou recordar uma lembrança, as testemu
nhas, no sentido comum do termo, isto é, indivíduos presentes sob
uma forma material e sensível, não são necessárias.
Elas não seriam, todavia, suficientes. Acontece, com efeito, que
uma
ou varias pessoas, reunindo suas lembranças, possam descrever
muito exatamente os fatos ou os objetos que vimos ao mesmo tempo
que elas, e
mesmo
reconstituir toda a seqüência de nossos atos e de
nossas
palavras dentro das circunstâncias definidas, sem que nos
lembrássemos de tudo aquilo.
~
por exemplo, um fato cuja .reali
dade não
é
discutível. Trazem-nos algumas provas exatas de que
tal acontecimento produziu-se, que ali estivemos presentes, que dele
participamos ativamente. Entretanto essa cena nos permanece estra
nha, como
Se outra pessoa estivesse em nosso lugar. Para retomar
um
exemplo que nos foi objetado, houve em nossa vida um certo nú
mero
de
incidentes marcantes que não puderam deixar de acontecer.
~ certo que houve um dia em que estive pela primeira vez no
liceu,
um dia em que entrei pela primeira vez numa classe no
quarto ano, no terceiro ano, etc. Todavia, ainda que esse fato possa
ser localizado no tempo e no espaço, mesmo que parentes ou amigos
disso me fizessem uma descrição exata, acho-me em presença de um
dado abstrato, para o qual
me
é impossível fazer corresponder qual
quer recordação viva: não lembro de nada. E não reconheceria mais
tal lugar pelo qual passei certamente uma ou várias vezes, nem tal
pessoa que certamente encontrei. Contudó, as testemunhas estão lá.
Seria então como se o seu papel fosse inteiramente acessório e com
plementar, que elas me servissem sem dúvida para precisar e com
pletar minhas lembranças. mas na condição que essas reapareçam pri
meiramente, isto
é,
que se tenham conservado em meu espírito? Mas
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aí não há nada que nos deva admira .. Não basta que eu tenha
assistido ou participado de uma cena onde outros homens eram
espec
tadores ou atores para que, mais tarde, quando eles a evocarem diante
de mim, quando reconstituírem peça por peça a sua imagem
em
meu espírito, subitamente essa construção artificial
se
anime e tome
aparência
de
coisa viva, e a imagem se transforme em lembrança.
Freqüentemente, é verdade, tais imagens, que nos são impostas pelo
nosso meio, modüicam a impressão que possamos ter guardado de
um fato antigo, de uma pessoa outrora conhecida. Pode ser que essas
imagens reproduzam m io passado, e que o elemento ou a parcela
de lembrança que
se
achava primeiramente
em
nosso espírito, seja
sua expressão mais exata: para algumas lembranças reais junta-se
assim uma massa compacta de lembranças fictícias. Inversamente,
pode acontecer -que os depoimentos de outros sejam os únicos exatos,
e que eles corrijam e reorientem nossa lembrança,
ao mesmo
tempo
que incorporem-se a ela. Num e noutro caso,
se
as imagens
se fun
dem tão intimamente com as lembranças, e se elas parecem emprestar
a estas sua substância, é que nossa memória não é uma tábula rasa,
e que nos sentimos capazes, por nossas próprias forças,
de
perceber,
como num espelho turvo, alguns traços e alguns contornos talvez ilu
sórios) que nos devolveriam a imagem do passado. Da mesma
ma
neira que é preciso introduzir um germe num meio saturado para que
ele cristalize, da mesma forma, dentro desse conjunto de depoimentos
exteriores a nós, é preciso trazer como que uma semente de
reme
moração, para que ele se transforme em uma massa consistente
de
lembranças.
Se,
ao contrário, essa cena parece não ter deixado,
como
se diz, nenhum traço em nossa memória, isto é, se na ausência dessas
testemunhas nós nos sentimos inteiramente incapazes de lhe
recons
truir uma parte qualquer; aqueles que nô-Ia descrevem poderão fazer
nos um quadro vivo dela, mas isso não será jamais uma lembrança.
Quando dizemos que um depoimento não- nos lembrará nada
se
não permanecer em nosso espírito algum traço do acontecimento pas
sado que se trata de evocar, não queremos dizer todavia que a lem
brança ou que uma de suas partes devesse subsistir tal e qual
em
nós,
mas somente que, desde o momento em que nós e as testemunhas
fazíamos parte
de
um mesmo grupo e pensávamos em cotnum
sob
alguns aspectos, permanecemos em contato com esse grupo, e con
tinuamos capazes de nos identificar com ele e de confundir
nosso
passado com o seu. Poderíamos dizer, também: é preciso que desde
esse momento não tenhamos perdido o hábito nem o poder
de
pensar
28
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e
de
nos lembrar como membro do grupo do qual essa testemunha
e nós mesmos fazíamos parte isto
é
colocando-se no seu ponto de
vista e usando todas
as
noções que são comuns a seus membros.
Vejam um professor que ensinou durante dez ou quinze anos em um
liceu. Ele encontra um
de
seus antigos alunos e m io reconhece.
Este fala de seus colegas de outrora. Ele recorda os lugares que
ocupavam nos diversos bancos da sala de aula. Evoca muitos
dos
acontecimentos de ordem escolar que se produziram nessa sala de
aula durante
esse
ano
os
sucessos de uns ou outros
as
extravagân
cias e
as
travessuras de outros tais partes do curso tais explicações
que impressionaram particularmente os alunos ou lhes interessaram.
Ora é bem possível que
de
tudo isso o professor não tenha guar
dado nenhuma lembrança. Entretanto seu aluno não
se
engana.
e
indubitável aliás que naquele ano durante todos
os
dias do ano
o professor teve presente no espírito o quadro que lhe representava
o conjunto dos alunos bem como a fisionomia de cada um deles e
todos esses acontecimentos ou incidentes que modificam aceleram
rompem ou tornam mais lento o ritmo de vida da aula e fazem com
que esta tenha uma história.
Como
esqueceu tudo isso? E como acon
tece que salvo um pequeno número de reminiscências muito vagas
as
palavras
de
seu antigo aluno não despertem
em
sua memória ne-
nhum eco de outrora?
e
porque o grupo que constitui uma classe
é essencialmente efêmero pelo menos se considerarmos que a classe
compreende o mestre ao mesmo tempo que os alunos e não é mais
) mesmo quando
os
alunos
os
mesmos talvez passam
de
uma classe
para outra e se acham
em
outros bancos. O ano acabado os alunos
se
dispersam e essa classe definida e particular não se reorganiza
nunca mais.
e
preciso não obstante distinguir. Para os alunos ela
viverá por algum tempo ainda; pelo menos a ocasião freqüentemente
se lhes oferecerá para nela pensar e dela lembrar-se. Como eles têm
quase a mesma idade talvez pertençam
aos
mesmos meios sociais não
esquecerão que estiveram próximos sob os cuidados do mesmo mes-
tre.
As
informações que este lhes comunicou levam sua marca; fre
qüentemente quando nelas repensarem através e além desta noção
perceberão o mestre que lhes revelou e seus companheiros de classe
que
as
receberam ao mesmo tempo que eles. Para o mestre será
completamente diferente. Quando estava em sua sala de aula exer
cia sua função: ora o aspecto técnico de sua atividade não tem uma
relação maior com uma classe do que com outra. Com efeito en
quanto um professor repete de um ano para outro a mesma aula.
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cada um de seus anos de ensino não
se
opõe tão nitidamente a todos
os demais do mesmo modo que para os alunos cada um de seus
anos de liceu. Novos para os alunos seu ensino suas exortações
suas reprimendas até seus depoimentos de simpatia para um dentre
eles seus gestos sua voz mesmo seus gracejos não representam tal
vez para ele senão uma série de atos e maneiras de ser habituais
e que resultam de sua profissão. Nada disso pode alicerçar um
on-
junto de lembranças que se reportariam a tal classe mais do que a
outra. Não existe nenhum grupo permanente· do qual o professor
continue a fazer parte no qual tenha a ocasião de repensar e para
o ponto de vista do qual possa se recolocar para recordar-se com
ele do passado.
Mas não é assim para todos os casos em que os outros recons
troem para nós os acontecimentos que vivemos juntos sem que nós
possamos recriar em nós o sentimento do já visto. Entre esses acon
tecimentos aqueles que estavam ligados a eles e nós mesmos há com
efeito descontinuidade não somente porque o grupo no seio do qual
os víamos não mais existe materialmente mas porque nele não pen
samos mais e porque não temos nenhum meio de reconstruir sua
imagem. Cada um dos membros dessa sociedade era definido a nos-
sos olhos por seu lugar ocupado dentro do conjunto dos demais e
não por suas relações que ignorávamos com outros ambientes. Todas
as lembranças que podiam nascer no interior da classe se apoiavam
uma sobre a outra e não em recordações exteriores. A duração
de
uma tal memória era então limitada pela força das coisas na dura
ção do grupo. Se subsistem todavia testemunhas se por exemplo anti
gos alunos se lembram e podem tentar lembrar a seu professor o que
este não se recorda mais é porque no interior da classe com alguns
colegas ou fora da classe com seus pais eles formavam pequenas
comunidades mais reduzidas e por isso mais duráveis; e
os
aconte
cimentos da classe interessavam também a estas sociedades menores
ali tinham sua repercussão ali deixavam traços. Mas o professor
delas estava excluído. ou pelo menos se os membros dessas socieda
des o incluíssem ele mesmo não o cabia.
Quantas vezes não acontece em efeito que nas sociedades
de
toda natureza que os homens formam entre si um deles não faça
uma idéia correta do lugar que ocupa no pensamento dos demais e
quantos mal-entendidos e desilusões não têm a sua fonte numa tal
diversidade de pontos de vista? Na ordem das relações afetivas onde
a imaginação desempenha importante papel um ser humano que é
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muito amado, e que ama moderadamente, não é muitas vezes pre·
venido senão tardiamente, ou talvez não se dá jamais conta da impor
tância que
se
atribuiu a seus menores expedientes, a suas palavras
mais
insignificantes. Aquele que amou mais lembrará mais tarde,
de-
clarações, promessas do outro das quais este não conservou nenhuma
recordação. Isto não é sempre efeito de inconstância, da i n f i d e l i d d e ~
da imprudência. Mas ele estava muito menos engajado do que o
outro nessa sociedade que repousava num sentimento desigualmente
dividido. Assim, um homem muito piedoso, cuja vida foi simples
mente edificante, e que foi santificado após sua morte,
se
espantaria
muito, se retornasse à vida, e pudesse ler sua legenda: esta foi com-
posta, entretanto, com a ajuda de recordações preciosamente conser
vadas, e redigidas com fé, por aqueles com quem passou parte de
sua vida. Nesse caso, é provável que muito dos acontecimentos reco·
lhidos, e que o santo não reconheceria, não tivessem acontecido; mas
alguns deles, que talvez não o tivessem impressionado porque con
centrava sua atenção na imagem interior de Deus, impressionaram
àqueles que o rodeavam, porque a atenção deles
se
fixava sobretudo
nele.
Mas
podemos também, no momento, estar interessados tanto
quanto
os
outros, e mesmo mais do que eles, em tal fato e não con
servar dele, apesar disso, nenhuma lembrança, a ponto de não o re-
conhecermos quando nô-lo descrevem, porque, desde o momento em
que
ele
se
deu, saímos do grupo pelo qual foi notado e a ele não
retornamos mais. Há pessoas de quem dizemos que estão sempre no
presente, isto é, que eles não
se
interessam senão pelas pessoas e pelas
coisas no meio das quais elas se encontram no momento, e que estão
em
relação com o objeto atual de sua atividade, ocupação ou distra
ção
Um negócio liquidado, uma viagem acabada, não pensam mais
naqueles que foram seus sócios ou seus companheiros. Logo são
absorvidas por outros interesses, engajadas em outros grupos. Uma
espécie de
instinto vital lhes ordena desviar seu pensamento de tudo
aquilo que poderia distraí-las do que as preocupa atualmente. Algu
mas
vezes,
as
circunstâncias são tais que essas pessoas giram de
algum
modo num mesmo círculo e são reconduzidas de um grupo
para outro, como nessas velhas figuras de dança onde mudando sem-
pre de
dançarino reencontramos o mesmo, porém, com intervalos bem
próximos. Então, não as perdemos senão para reencontrá-las e, como
a
mesma
faculdade de esquecimento
se
exerce alternativamente
em
detrimento e em vantagem de cada um dos grupos que elas atraves·
3J
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sam podemos dizer que as tornamos a achar inteiramente. Mas acon
tece também que elas seguem de hoje em diante um caminho que
não se cruza mais com aqueles que elas deixaram e que deles
se
afas
taram cada vez mais. Assim se encontrarmos mais tarde membros
de uma sociedade que se tornou para nós a tal ponto estranha por
mais que nos encontremos no meio deles não conseguimos reconsti
tuir com eles o grupo antigo. e como se abordássemos um caminho
que percorremos outrora más de viés como se o encarássemos de
um ponto de onde nunca o vimos. Recolocamos os diversos detalhes
dentro de um outro conjunto constituído por nossas representações
do momento. Parece que c h e g m o ~ num novo caminho. Os detalhes
não tomariam com efeito seu antigo sentido senão em relação a todo
um outro conjunto que nosso pensamento não abrange mais. Pode
remos recordar todos os detalhes e sua respectiva ordem. e do con
junto que seria necessário partir. Ora isso não nos é mais possível
porque há muito tempo estamos afastados dele e seria necessário
voltar longe demais.
Tudo se passa aqui como no caso dessas amnésias patológicas
que ·se referem a um conjunto bem definido e limitado de lembranças.
Constatou-se que algumas vezes após um choque cerebral
esqu.: ce
cemos o que
se
passou em todo um período em geral antes do
cho
que remontando até uma certa data enquanto nos lembrarmos de
todo o resto. Ou esquecemos toda uma categoria de lembranças da
mesma ordem qualquer que seja a época em que as adquirimos: pO\
exemplo tudo o que sabemos de uma língua estrangeira e dela
so
mente. Do ponto de vista fisiológico isto parece explicar-se não pelo
fato de que as lembranças de um mesmo período ou de uma mesma
espécie estariam localizadas em tal parte do cérebro que seria a úni
ca lesada; mas a função cerebral da lembrança deve ser atingida em
seu conjunto. O cérebro cessa então de executar algumas operações
e aquelas somente da mesma forma que um organismo debilitado
não é mais capaz durante algum tempo quer de caminhar quer de
falar que de assimilar os alimentos apesar de todas as outras funções
subsistirem. Mas poderemos dizer assim que o que está afetado é
a .faculdade em geral de entrar em relação com os grupos de que se
compõe a sociedade. Então separam-nos de um ou de alguns dentre
eles e deles unicamente. Todo o conjunto das lembranças que
te
mos em comum com eles bruscamente desaparecem. Esquecer um
período de sua vida é perder contato com aqueles que então nos ro
deavam. Esquecer uma língua estrangeira
é
não estar mais em
con-
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dições de compreender aqueles que se dirigiam a nós nessa língua,
ainda que fossem pessoas vivas e presentes, ou autores cujas obras
líamos. Quando nos dirigíamos a eles, adotávamos uma atitude defi-
nida, da mesma forma que em presença de qualquer conjunto hu-
mano. Não depende mais de nós adotar essa atitude e nos voltar
para esse grupo. Agora poderemos encontrar alguém que nos garan-
tirá que não aprendemos bem essa língua e, folheando nossos livros
e nossos cadernos, encontrar em cada página provas concretas de
que traduzimos este texto, que sabíamos aplicar essas regras. Nada
disso bastará para restabelecer o contato interrompido entre nós e
todos aqueles que
se
exprimem ou que escreveram nessa língua. l
porque não temos mais atenção para permanecer ao mesmo tempo em
relação com esse grupo e com outros com os quais, sem dúvida,
te-
mos uma relação estreita e mais atual. Não há motivo, aliás, para
se
espantar caso essas lembranças se diluam todas ao mesmo tempo e
se anulem. l porque formam um sistema independente, pelo fato de
serem as lembranças de um mesmo grupo, ligadas uma a outra e
apoiadas de certo modo uma sobre a outra; e que esse grupo é niti-
damente distinto de todos os outros, de modo que podemos. ao mes-
mo tempo, estar dentro de todos estes, e fora daquele. De um modo
talvez menos brusco e brutal, na ausência de perturbações patológicas
quaisquer, pouco a pouco nos distanciamos e nos isolamos de certos
meios que não nos esquecem, mas de que conservamos apenas uma
lembrança vaga. Podemos definir ainda em termos gerais os grupos
com
os
quais nos relacionamos. Mas não nos interessam mais. porque
no
presente tudo nos afasta deles.
Necessidade de uma comunidade afetiva
Suponhamos agora que tenhamos feito uma viagem com um gru-
po de companheiros que não revimos mais. Nosso pensamento estava
ao mesmo tempo mais perto e mais distante deles. Conversávamos
com eles. Com eles, nós nos interessávamos pelos detalhes do cami-
nho e
os
diversos incidentes da viagem. Mas, ao mesmo tempo, nos-
sas reflexões seguiam um curso que lhes escapava. Trazíamos c
nosco, com efeito, sentimentos e idéias que tinham sua origem em
outros grupos, reais ou imaginários: é com outras pessoas que nos
entretínhamos interiormente, percorrendo esse p aís nós o povoáva-
mos em pensamentos, com outros seres: tal lugar, tal circunstância
tomavam então a nossos olhos um valor que não podiam ter para
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aqueles que nos acompanhavam. Mais tarde talvez nós reencontra
remos um deles e ele fará alusão a particularidades dessa viagem da
qual se recorda e da qual deveríamos nos lembrar se tivéssemos
per-
manecido em relação com aqueles que a fizeram conosco e que
entre eles dela falaram muitas vezes depois. Mas nós esquecemos
tudo o que ele evoca e que
se
esforça em vão para
nos
fazer lembrar.
Em compensação nós nos lembraremos daquilo que experimentáva
mos então com o desconhecimento dos demais como se essa espécie
de
lembranças houvesse marcado mais profundamente sua impressão
em
nossa memória porque não tinha relação senão conosco.
Assim,
nesse caso de um lado os depoimentos dos outros serão impotentes
para reconstituir nossa lembrança apagada: de outro nós nos
lem-
braremos em aparência sem o apoio dos demais de impressões que
não comunicamos a ninguém.
Resulta disso que a memória individual enquanto se opõe à me-
mória coletiva é uma condição necessária e suficiente
do
ato de
lembrar e do reconhecimento das lembranças? De modo algum. Por-
que se essa primeira lembrança foi suprimida se não
nos
é mais
possível encontrá-la é porque desde muito tempo não fazíamos
mais parte do grupo em cuja memória ela se conservava. Para que
nossa memória
se
auxilie com a dos outros não basta que eles
nos
tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha ces-
sado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de
contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam
possa ser reconstruída sobre um fundamento comum. Não é suficiente
reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado
para
se
obter uma lembrança. e necessário que esta reconstrução
se
opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto
no nosso espírito como no dos outros porque elas passam incessan
temente desses para aquele e reciprocamente o que só é possível se
fizeram e continuam a fazer parte
de
uma mesma sociedade. Somente
assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mes-
mo tempo reconhecida e reconstruída. Que
me
importa que os outros
ainda estejam dominados por um sentimento que
eu
experimentava
com eles outrora e que não experimento hoje mais? Não posso mais
despertá-lo em mim porque há muito tempo não há mais nada em
comum entre meus antigos companheiros e eu. Não é culpa
nem
da
minha memória nem da deles. Porém uma memória coletiva mais
ampla que compreendia ao mesmo tempo a minha e a deles desapa
receu. Da mesma maneira
às
vezes homens que
se
aproximaram
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pelas necessidades de uma obra comum seu devotamento para um
dentre eles o ascendente de alguém uma preocupação artística etc.
separam-se em seguida em vários grupos: cada um destes é muito
limitado para guardar tudo o que ocupou o pensamento do grupo
do
cenáculo literário da assembléia religiosa que outrora envolvia a
todos. Por isso apegam-se a um aspecto desse pensamento e não
guardam a lembrança senão de uma parte dessa atividade de onde
vários quadros do passado comum não coincidem e dos quais nenhum
é verdadeiramente correto.
Com
efeito desde que mantiveram-se afas
tados nenhum deles pode reproduzir todo o conteúdo do antigo pen
samento.
Se
agora dois desses grupos entram em contato o que lhes
falta precisamente para se compreenderem se entenderem e confir
marem
mutuamente as lembranças. desse passado de vida comum é
a faculdade de esquecer
as
barreiras que os separam no presente. Um
m a l ~ e n t e n d i d o pesa sobre eles como sobre dois homens que se reen
contram e que como dizemos não falam mais a mesma língua. Quan
to ao fato de que guardamos a lembrança de impressões que nenhum
de nossos
companheiros naquela época pôde conhecer não constitui
uma prova de que nossa memória pode bastar-se· e não ter sempre
necessidade de apoiar-se na dos demais. Suponhamos que no
mo-
mento em que partimos em viagem com uma sociedade de
a m i g o ~
nós nos achemos tomados de uma viva preocupação que eles igno-
ravam: absorvidos por uma idéia ou· por um sentimento tudo o que
ferisse
nossos
olhos ou ouvidos a isto se relacionava: alimentávamos
nosso pensamento secreto de tudo aquilo que no campo da nossa
percepção a isto pudesse relacionar-se. Tudo se passava então como
se não tivéssemos deixado o grupo de seres humanos mais ou menos
afastados a que ligávamos nossas reflexões: nós lhe incorporaríamos
todos
oS elementos
do
meio novo que pudessem se assimilar a ele;
neste meio considerado nele mesmo e do ponto de vista de nossos
companheiros
nós
o conservaríamos entretanto pela parte mais frá
gil de nós mesmos Se pensarmos mais tarde nessa viagem não se
pode dizer que
nos
colocaremos
do
ponto de vista daqueles que
fize-
ram conosco. Eles próprios nós não os recordaremos senão na me-
dida
em
que suas pessoas estiverem éompreendidas dentro do CLuadro
de nossas preocupações. e. assim que quando se entra pela primeira
vez
em
um quarto na boca da noite quando vemos as paredes
mó-
veis
e todos
os
objetos mergulhados dentro de uma semi-obscuridade
essas
formas fantásticas ou misteriosas permanecem na nossa memó-
ria como
>
qUlldro apenas real
do
sentimento de inquietude
de
sur-
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presa ou de tdsteza que nos acompanhava no momento em que elas
feriam nossos olhares. Não seria suficiente rever o quarto
em
pleno
dia para recordá.las: seria necessário que imaginássemos ao mesmo
tempo a nossa tristeza, nossa surpresa ou nossa inquietude. Era então
nossa reação pessoal
em
presença dessas coisas que as transfigurava
para n6s até esse ponto? Sim,
se
o quisermos,
mas com
a condição
de não esquecer que nossos sentimentos e nossos pensamentos mais
pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circunstâncias sociais defi
nidas; e que o efeito de contraste provinha sobretudo daquilo que
procurávamos nesses objetos, não do que ali viam aqueles para quem
eram familiares, mas o que
se ligava
às
preocupações
de
outros ho
mens, cujo pensamento
se
aplicava pela primeira
vez
a
esse
quarto
conosco.
a possibUidade de uma
memória
estritamente
individual
Se esta análise estiver correta, o resultado para onde nos conduz
permitiria talvez responder à objeção mais séria
e,
aliás, a mais natu
ral a que nos expomos quando pretendemos que
s6
temos capacidade
de nos lembrar quando nos colocamos no ponto de vista de um ou
mais grupos e de nos situar novamente
em
uma
ou mais
correntes
do pensamento coletivo.
Conceder-nos-ão, talvez, que um grande número de lembranças
reaparecem porque nos são recordadas por outros homens; conce
der·nos·ão mesmo que, quando esses homens não estão materialmente
presentes,
se
possa falar de mem6ria coletiva quando evocamos um
acontecimento que teve lugar na vida de nosso grupo e que consi
derávamos; e que consideramos ainda agora,
no
momento
em
que
nos lembramos, do ponto de vista desse grupo. Temos o direito de
perguntar quem nos concede esse segundo ponto, posto que uma tal
atitude mental não é possível senão junto a um homem que
faz
ou
fez parte de uma sociedade e porque, à distância pelo menos, sofre
ainda seu impulso. Basta que não possamos pensar
em
tal objeto
para que nos comportemos como membro de um grupo, para que
a condição desse pensamento seja evidentemente a existência do
gru
po. por isto que, quando um homem entra em sua casa
sem
estar
acompanhado de alguém, sem dúvida durante algum tempo esteve
s6 , segundo a linguagem comum. Mas lá não esteve s6 senão na
aparência, posto que, mesmo nesse intervalo, seus pensamentos e
seus atos
se
explicam
pela
sua natureza de ser social. e que
em ne-
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nhum instante deixou de estar confinado dentro de alguma sociedade.
Aí não está a dificuldade.
Mas será que não existem lembranças que reaparecem sem que,
de alguma maneira, seja possível relacioná-las com um grupo, porque
o evento que reproduzem foi percebido por nós enquanto estávamos
sós, não em aparência, mas realmente sós, cuja imagem não se des
loca no pensamento de nenhum grupo de homens, e que nós recorda
remos deslocando-nos para um ponto de vista que não pode ser senão
o nosso? Mesmo que fatos desse gênero fossem bastante raros, e mes
mo
excepcionais, bastaria que pudéssemos atestar alguns deles para
mostrar que a memória coletiva não explica todas as nossas lembran
ças e, talvez, que ela não explica por si mesma a evocação de qual
quer lembrança. Apesar de tudo, nada prova que todas as noções e
imagens tomadas dos meios sociais de que fazemos parte, e que ÍÍile,
vêem na memória, não cubram, como uma tela de cinema, uma lem
brança individual, mesmo no caso em que não a percebemos. A
questão toda é saber se uma tal lembrança pode existir, se é concebí
vel. O fato que ela seja produzida, mesmo uma única vez, bastaria
para demonstrar que nada
se
opõe a que intervenha em todos os
casos. Haveria então, na base de toda a lembránça, o chamado a
um estado
de
consciência puramente individual que - para distin
guí-Io das percepções onde entram tantos elementos do pensamento
social - admitiremos que
se
chame
intuição sensivel.
Experimentamos alguma inquietude, dizia Charles Blondel; em
ver eliminar, ou quase, da lembrança qualquer reflexo dessa intuição
sensivel
que não
é,
sem dúvida, toda a percepção; mas que, assim
mesmo, é evidentemente preâmbulo indispensável e a condição
sine
qua non. . .
Para que não cott(undamos a r e o n s t i t u ~ ç ã o de nosso
~
prio passado com aquela que possamos fazer de nosso vizinho; para
que esse passado empírica, lógica e socialmente possível nos pareça
se indentificar com nosso passado real, é preciso que em alguJnas des
tas
partes, pelo menos, haja algo mais do que uma reconstituição
feita com materiais emprestados
Revue philosophique Revista Filo-
sófica , 1926, p. 296). Oésiré Roustan, por sua vez, nos escrevia:
Se você
se
limitar a dizer: quando alguém acredita evocar o passado
há 99 de construção e
1
de evocação verdadeira; esse resíduo
de 1 , que resistiria a sua explicação, bastaria para recolocar em
questão todo o problema de conservação da lembrança. Ora, você
poderia evitar esse resíduo? .
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1 °
Lembranças da infância
difícil encontrar lembranças que nos levem a um momento
em que nossas sensações fossem apenas o reflexo dos objetos exte
riores, no qual não misturávamos nenhuma das imagens, nenhum dos
pensamentos que nos prendiam aos homens e aos grupos que nos
ro-
deavam. Se não nos recordamos de nossa primeira infância, é, com
efeito, porque nossas impressões não se podem relacionar com esteio
nenhum, enquanto não somos ainda um ente social. Minha primeira
lembrança, diz Stendhal, é de
ter
mordido a bochecha e a testa de
Mme. Pison-Dugalland, minha prima, mulher de vinte e cinco anos
que era muito barriguda e vermelha Vejo a
c e n ~
mas sem dúvida
porque
na
hora me chamaram de criminoso, diziam que eu cometera
um
crime .
o
mesmo modo ele se lembra de um dia em que ele
espetou um burro que o derrubou. Pouco faltou para que morresse,
dizia meu avô. Revejo o acontecimento, mas provavelmente não
se
trata de uma lembrança direta, não é mais que a lembrança da ima
gem que f o r m ~ i da coisa muito antigamente, à época das primeiras
narrativas que me fizeram dela .
Vie
e
Henri Brulard Vida
e
Henri Brulard,
pp. 31 e 58). O mesmo que se diz das lembranças de
infância. A primeira que acreditei durante muito tempo poder resta
belecer foi nossa chegada a Paris. Eu tinha então dois anos e meio.
Subíamos a escada à noite (o apartamento era no quarto andar), e
nós, crianças, falávamos em voz alta que em Paris morava-se no sotão.
Ora, que um de nós tenha feito essa observação, é possível. Mas era
natural que nossos pais, que se divertiam, as tenham guardado e nos
contado depois. Vejo ainda nossa escada clara: mas eu a vi muitas
vezes depois.
Agora vejam
um
acontecimento de sua infância contado por
Ben-
venuto Cellini no início de suas
Mémoires Memórias):
não é certo
que se trate de uma recordação. Se no entanto a reproduzimos, é
porque nos ajudará a compreender
melhoro
interesse do exemplo
que seguirá, e sobre o qual insistiremos.
Tinha
três anos de idade
aproximadamente, quando minha avó Andréa Cellini vivia ainda e
já havia passado os cem. Um dia, tínhamos trocado um tubo de uma
pia, e do qual saira
um
enorme escorpião sem que tívessemos perce
bido. Ele desceu no chão e escondeu-se debaixo de um banco. Eu o
vi, corri para ele, apoderei-me dele. Era tão grande, que minha mão
deixava passar seu rabo de
um
lado e suas pinças do outro. Conta
ram-me que, todo feliz, eu corri para meu avô, dizendo-Ihe: 'Veja vovô,
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minha bela lagostinha'. Ele reconheceu de imediato que se tratava
de
um escorpião, e no seu amor por mim quase caiu morto de pavor.
le mo pediu com muito carinho; mas eu o apertava cada vez mais
estreitamente, chorando, porque não queria dá-lo a ninguém. Meu
pai, que estava ainda em casa, acorreu aos gritos. Em sua estupefa
ção, ele não sabia como proceder para que esse animal venenoso não
me ferisse a ponto de morrer, quando um par de tesouras chamou
sua vista. Ele delas se armou e, me agradando muito, cortou o rabo
e
os
ferrões do escorpião. Desde o momento que ele me salvou desse
perigo, considerou esse evento como um bom augúrio . Essa cena,
movimentada e dramática, desenrola-se inteiramente no interior da
família. Quando a criança apoderou-se do escorpião, não tinha a
idéia, por um instante sequer, de que se tratava de animal perigoso:
era uma pequena lagostinha, como aquela que seus pais lhe mostra
ram, que a fizeram tocar, como um brinquedo. Em realidade, um ele
mento estranho, vindo de fora, penetrou em sua casa, e seu avô e seu
pai reagiam cada um a sua maneira: choros de criança, súplicas e cari
nhos dos pais, sua angústia, seu terror, e a explosão de alegria que
se segue: tantas reações familiares que definem o sentido do aconte
cimento. Admitamos que a criança
se
lembre: é no quadro da famí
lia que a imagem se situa, porque desde o início ela estava ali inse
rida e dela jamais saiu.
Escutemos agora Charles BlondeI. Eu me lembro, diz ele, que
quando criança aconteceu-me uma vez, explorando uma casa abando
nada, de me enfiar bruscamente até meio corpo no meio de uma peça
obscura, num buraco no fundo do qual havia água; e eu reconheço
mais ou menos facilmente onde e quando a coisa se passou, mas aqui
meu saber é inteiramente secundário à minha lembrança . Entenda
mos que a lembrança apresentou-se como uma imagem que não
es-
tava localizada. Não é então pensando primeiramente na casa, quer
dizer, colocando-se do ponto de vista da família que ali morava, que
podemos lembrá-lo; além do que, disse-nos Blondel, ele jamais contou
esse acidente a nenhum de seus pais, e está certo de não ter pen
sado nele novamente. Nesse caso, acrescenta, tenho muita necessi
dade de reconstruir o ambiente de minha lembrança, não tenho ne-
nhuma necessidade de reconstituí-Ia, a ela mesma. Parece verdade que,
nas lembranças desse gênero, tenhamos um contato direto com o pas
sado, que lhe precede e condiciona a reconstituição histórica (loc.
cit., p. 297). Essa narração se distingue nitidamente da precedente
da que Benvenuto Cellini nos mostra. primeiramente, em que época
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e em que lugar se coloca a cena que recorda, o que ignorava inteira
mente Blondel quando evocou sua queda dentro
de
um buraco cheio
de água até a metade. E mesmo nisso que insiste.
Mas
talvez não
seja a diferença essencial entre um e outro. O grupo do qual a crian
ça fazia parte mais intimamente, naquela época, e que nã· cessa de
envolvê-lo é a família. Ora, desta vez, a criança afastou-se dele.
Não somente não viu mais seus pais. mas lhe pode parecer que eles
não são mais presentes em seu espírito. Em todo o caso. eles não
intervêem em nada na hist6ria. já que dela não foram informados,
ou porque não deram muita importância para conservar sua lem-
brança e contá-la mais tarde àquele que foi o her6i. Mas isso basta
para que possamos dizer que ele realmente estava s6? E verdade que
a novidade e a vivacidade da impressão, impressão penosa
de
aban
dono, impressão estranha de surpresa
em
presença do inesperado e
do jamais visto ou jamais experimentado, explicam que seu pensa
mento tenha abandonado seus pais? Não será, pelo contrário, porque
era uma criança. quer dizer, um ser mais intimamente pr6ximo do
adulto
no
conjunto
dos
sentimentos e pensamentos domésticos, que
se
achou subitamente em angústia? Porém pensava nos seus e estava
s6 apenas na aparência. Pouco importa, então, que não se lembre
em que época precisa e em que lugar determinado
se
achava e que
não possa se
apoiar num quadro local e temporal. E o pensamento da
família ausente que fornece o auadro, e a criança não
tem
aecessi
dade. como diz Blondel. de recunstituir o ambiente
de
sua lembran
ça , posto que a lembrança se apresenta dentro desta circunscrição.
Que a criança dela não
se
tenha apercebido, que sua atenção não
tenha, neste momento, se fixado neste aspecto de seu pensamento;
que mais tarde. quando o homem
se
recorda desta lembrança
de
infância, não o nota também, não há nada de que possa admirar-se.
Uma corrente
de
pensamento social é ordinariamente tão invisível
como a atmosfera que respiramos.
S6
reconhecemos sua existência.
na vida normal, quando a ela resistimos; mas uma criança que chama
os
seus, e que tem necessidade de sua ajuda, não lhes resiste.
Blondel poderia nos objetar, muito corretamente, que existe no
fato de que ele se lembra um conjunto de particularidades sem ne-
nhuma relação com um aspecto qualquer de sua família. Explorando
uma peça obscura, ele caiu dentro
de
um buraco cheio até a metade
de água. Admitamos que ao mesmo tempo estivesse apavorado por
se sentir longe dos seus. O essencial do fato, atrás do qual todo o
resto parece se apagar, é aquela imagem que. em si mesma. se apre-
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senta
como
inteiramente destacada do meio doméstico. Ora, é ela, é a
conservação dessa imagem, que ele precisaria explicar. Como tal, com
efeito, ela
se
distingue de todas as outras circunstâncias onde eu
me
encontrava quando
me
apercebia que estava longe dos meus; onde
eu
me
voltava para o mesmo meio, para ali encontrar ajuda, e para
o
mesmo
'ambiente'. Em outras palavras, não vemos como um qua
dro tão geral como a família pudesse reproduzir um fato a tal ponto
particular A essas formas que são os quadros coletivos impostos
pela sociedade, diz ainda Blondel, é preciso uma matéria. Por que
não admitir simplesmente que esta matéria existe realmente, e não é
outra senão a que, precisamente, na lembrança, está sem relação com
o quadro, quer dizer, as sensações e intuições sensíveis que renasce
riam dentro desse quadro? Quando o Pequeno Polegar foi abandona
do por seus pais na floresta, certamente ele pensou em seus pais:
mas
muitos outros objetos
se
ofereceram a ele: seguiu uma e várias
sendas, subiu numa árvore, percebeu uma luz, aproximou-se de uma
casa isolada etc.
Como
resumir isso na simples observação: ele per
deu-se
e não tornou a encontrar seus pais? Se ele seguisse
um
outro
caminho. fizesse outros encontros, o sentimento de abandono teria
sido o mesmo e todavia. ele teria guardado outras lembranças.
Ao que responderemos que, quando uma criança se perde em uma
floresta ou em uma casa, tudo se passa como se, arrastada até então
na
corrente dos pensamentos e sentimentos que a ligam aos seus, ela
se
achava presa
ao
mesmo tempo
em
uma outra corrente, que deles
a distanciava. Do Pequeno Polegar podemos dizer que permanece
dentro do grupo familiar, posto que tem nele seus irmãos. Mas
os
toma sob
seu comando, toma-os todos sob sua guarda; ele
os
dirige,
isto
é, do lugar de criança passa ao de pai, entra no grupo dos adul
tos
mas nem
por isso deixa de ser criança. Mas isso
se
aplica tam
bém àquela lembrança que evoca Blondel, que é ao mesmo tempo
uma lembrança de criança e uma lembrança de adulto, pois a criança
se encontrou pela primeira vez numa situação de adulto. Criança,
todos
os seus pensamentos estavam
à
medida de uma criança. Habi
tuado a julgar objetos exteriores por meio de noções que devia a
seus
pais, seu assombro e seu medo vinham da dificuldade que ex
perimentava para reintegrar o que via agora em seu pequeno mundo.
Adulto, vinha a
sê-lo no
sentido que não estando
os
seus mais ao
seu alcance, encontrava-se diante
de
objetos que lhe eram novos e
inquietantes,
mas
que não eram, pelo menos na mesma intensidade,
para
uma pessoa adulta. Ele pode ter permanecido muito pouco
tem-
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po no fundo desse corredor obscuro. Nem por isso deixou
de
tomar
contato com um mundo que tornará a encontrar mais tarde, quando
estiver mais entregue a si mesmo. á aliás, através de toda a infância,
muitos momentos em que encaramos assim o que não é mais da fa-
mília; ou porque nos chocamos, ou porque nos ferimos ao contato
dos objetos, ou porque devamos nos submeter e vergar à força das
coisas, ainda que passemos inelutavelmente por uma série de peque
nas experiências que são como que uma preparação para a vida adul
ta: é a sombra que projeta sobre infância a sociedade dos adultos, e
mesmo mais do que uma sombra, uma vez que a criança pode ser
chamada a tomar sua parte em cuidados e responsabilidades cujo
peso recai de ordinário sobre ombros mais fortes que os seus; e que
ela é, pelo menos temporariamente e por uma parte de si mesma,
colocada dentro do grupo daqueles que são mais velhos do que ela.
e por isso que dizemos algumas vezes de alguns homens que eles
não tiveram infância, porque a necessidade de ganhar seu pão, impon
do-se a eles muito cedo, forçou-os a entrar nos domínios da sociedade
onde os homens lutam pela vida, enquanto que a maioria das crianças
nem sabem que essas regiões existem; ou porque em conseqüência
de uma morte conheceram uma espécie de sofrimento de ordinário
reservado aos adultos, e tiveram que enfrentá-lo no mesmo plano que
eles.
O conteúdo original de tais lembranças, que as destaca de todas
as outras, se explicaria então pelo fato de que elas se encontram
no ponto de cruzamento de duas ou várias séries de pensamentos,
pelas quais elas se relacionam a tantos grupos diferentes. Não bas
taria dizer: no ponto de cruzamento de uma série de pensamentos
que nos relaciona a um grupo (aqui a família), e
de
um outro que
abrange somente
as
sensações que nos chegam das coisas: tudo seria
de novo colocado em questão, já que, essa imagem das coisas não
existindo senão para nós, uma parte de nossa lembrança não se adap
taria a nenhuma memória coletiva. Mas uma criança tem medo na
escuridão, ou quando se perde num lugar desérto, porque povoa esse
lugar de inimigos imaginários, porque nessa noite receia esbarrar em
não sabe que seres perigosos. Rousseau conta-nos que numa noite de
outono muito escura, Lambercier deu-lhe a chave do templo e disse
lhe para ir procurar no púlpito a Bíblia que ali haviam deixado.
Abrindo a porta, disse ele, ouvi na abóbada uma certa ressonância
que acreditei assemelhar-se a vozes e que começou a abalar minha
coragem romana. Aberta a porta, eu queria entrar; dei alguns passos
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apenas, e parei. Olhando a escuridão profunda que reinava nesse vas-
to lugar, fui acometido de um terror que me fez arrepiar os cabelos.
Eu
me embaraçava entre os bancos, não sabia mais onde estava e,
não podendo mais encontrar nem o púlpito, nem a porta, caí numa
confusão inexprimível .
Se
o templo estivesse claro, ele teria visto
que ali não
se
achava ninguém, não teria tremido. O mundo, para a
criança, não é jamais vazio de
humanos, de influências benfazejas
ou malignas. Nos pontos onde essas influências
se
encontram e
se
cruzam, corresponderão talvez, no quadro de seu passado, as imagens
mais
distintas, porque um objeto que iluminamos nas duas faces e
com duas luzes nos revela mais detalhes e se impõe mais à nossa
atenção.
2.
0
Lembranças
de
Adulto
Não insistamos mais sobre as lembranças da
i1 fância.
Podería
mos
invocar um grande número de lembranças de adultos tão origi
nais e que
se
apresentam com um tal caráter de unidade, que pare
cem resistir muito a toda decomposição. Mas, para esses exemplos,
sempre nos seria possível denunciar a mesma ilusão. Que um tal
membro de um grupo venha a fazer parte também de um outro gru
po; que os pensamentos que tenha de um e de outro
se
encontrem
de repente em seu espírito; por hipótese, só ele percebe esse contras
te.
Como então julgaria que não
se
produz em si uma impressão sem
medida comum
com
o que podem experimentar os outros membros
desses
dois
grupos,
se
estes não têm outro ponto de contato a não
ser ele? Essa lembrança está compreendida por sua vez dentro de
dois quadros;
mas
um desses quadros o impede de ver o outro, e
inversamente: ele fixa sua atenção no ponto onde eles se encontram,
e não a tem mais o suficiente para percebê-los. e assim que, quando
se procura encontrar no céu duas estrelas que fazem parte de cons
telações diferentes, satisfeito em ter traçado uma linha imaginária
de
uma a outra, imaginamos de bom grado que o único fato de ali
nhá-las assim confere a seu conjunto uma espécie de unidade; entre
tanto, cada uma delas não é senão um elemento compreendido dentro
de um grupo e, se pudemos encontrá-las, é porque nenhuma das cons
telações estava nesse momento escondida por uma nuvem. Do mesmo
modo, pelo fato de que dois pensamentos, uma vez reaproximados, e
porque contrastam entre si, parecem se reforçar mutuamente, nós
acreditamos que formem um todo que existe por si mesmo, indepen-
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denteinente dos grupos de onde são tirados e não percebemos que
na realidade consideramos ao
mesmo
tempo os dois grupos porém
cada um do ponto de vista do outro.
Retomemos agora a suposição que desenvolvemos precedente
mente. Fiz uma viagem com pessoas conhecidas há pouco tempo e
que estava destinado a rever após longos intervalos. Viajávamos para
nosso prazer. Mas eu falava pouco não escutava quase nada. Eu ti-
nha o espírito tomado de pensamentos e de imagens que não podiam
interessar aos outros que os ignoravam porque eles se prendiam a
meus pais a meus amigos de quem estava momentaneamente
afas-
tado. Assim pessoas que eu amava que tinham os mesmos interesses
que eu; toda uma comunidade que me estava estreitamente ligada
se
achava introduzida sem o saber num meio envolvida
em
aconteci
mentos associada a paisagens que lhe eram inteiramente estranhas
ou indiferentes. Consideremos então nossa impressão. Ela se explica
sem dúvida por aquilo que estava no centro de nossa vida afetiva ou
intelectual. Não obstante ela se desenrolou dentro de um quadro tem-
poral e espacial e
em
meio a circunstâncias sobre as quais nossas
preocupações de então projetavam sua sombra
mas
que de
seu
lado
dela modificavam o curso e o aspecto: como as casas construídas ao
pé
de
um monumento antigo e que não tem a mesma idade.
Logo
que nos lembramos dessa viagem não nos colocamos bem entendido
no mesmo ponto de vista de nossos companheiros posto que ele
se
resume a nossos olhos numa seqüência
de
impressões conhecidas uni-
camente por nós. Mas não podemos dizer também que nos colocamos
unicamente do ponto de vista
de
nossos amigos
de
nossos parentes
de nossos autores preferidos cuja lembrança nos acompanhava. En-
quanto caminhávamos num caminho na montanha
ao
lado
de pes-
soas de tal aspecto físico de tal caráter; quando nós distraidamente
tomávamos parte em suas conversas e nosso pensamento permanecia
dentro de nosso antigo meio; as impressões que
se
sucediam
em
nós
eram como outros tantos modos particulares originais novos de
considerar as pessoas que nos eram caras e os liames que nos uniam
a elas. Porém em outro sentido essas impressões precisamente por-·
que são novas e porque contêm muitos elementos estranhos ao
curso
anterior e ao que existe
de
mais íntimo no curso atual
de
nossos pen-
samentos são também estranhas
aos
grupos que
nos
ligam
mais es-
treitamente. Elas os exprimem mas ao mesmo tempo não os expri
mem dessa maneira senão na condição de que não estejam mais
ma-
terialmente lá; pois todos os objetos que vemos todas as pessoas que
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ouvimos talvez não nos impressionem senão na medida em que nos
fazem
sentir a ausência dos primeiros. Este ponto
de
vista que não
é nem aquele de nossos companheiros atuais nem plenamente e sem
mistura aquele
de
nossos amigos
de
ontem e de amanhã como não
o destacaríamos
de
uns e de outros para atribuí-lo a . nós mesmos?
Não
será verdade que o que nos comove quando evocamos essa
impressão é o que nela não se explica por nossas relações com tal
ou qual grupo o que sobressai em seu pensamento e sua experiência?
Eu sei que ela não podia ser repartida nem mesmo adivinhada por
meus companheiros. Sei também que sob essa forma e dentro desse
quadro ela não poderia me ser sugerida pelos amigos os parentes
em que eu pensava no momento para onde me reporto agora pela
memória. Não será isto como que um resíduo de impressão que
es
capa tanto ao pensamento e à memória de uns e de outros e que
não existe senão para mim?
No
primeiro plano da memória
de
um grupo
se
destacam
as
lembranças dos acontecimentos e das experiências que concernem ao
maior número de seus membros e que resultam quer de sua própria
vida quer de suas relações com
os
grupos mais próximos mais fre
qüentemente
em
contato com ele. Quando àquelas que concernem a
um pequeno número e algumas vezes a um só de seus membros
embora estejam compreendidas em sua memória - já que ao
me
nos por uma parte elas se produzem dentro
de
seus limites - pas
sam
para último plano. Dois seres podem se sentir estreitamente li
gados um ao outro e ter em comum todos
os
seus pensamentos. Se
em
certos momentos sua vida transcorre
em
meios diferentes ainda
que eles possam através de cartas descrições através de suas nar
rações quando se aproximam fazer conhecer em detalhes as circuns
tâncias em que se encontravam quando não estavam em contato;
seria necessário que se identificassem um ao outro para que tudo o
que de suas experiências era estranho a um
oU
outro se achasse
assimilado em seu pensamento comum. Quando MIle de Lespinasse
escreve
ao
conde
de
Guibert ela pode lhe fazer compreender aproxi
madamente o que ela sente longe dele porém nas sociedades e nos
meios
mundanos que ele conhece porque ele se identifica também
a eles. Ele pode considerar sua amante como ela própria pode con
siderar-se também colocando-se no ponto de vista destes homens e
destas mulheres que ignoram tudo de sua vida romanesca; e ele pode
também considerá-la como ela própria se considera do ponto de
vis-
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ta do grupo oculto e fechado que eles constituem para eles dois.
Contudo, ele está longe, e pode acontecer, sem que ele o saiba, na
sociedade que ela freqüenta, muitas mudanças que suas cartas não
lhe dão uma idéia suficiente, de modo que várias de suas disposições
em presença desses meios mundanos lhe escapam e escaparão
sem-
pre: não basta. que ele a ame, como a ama, para que as adivinhe.
Um
grupo entra geralmente em relação com outros grupos. Há
muitos acontecimentos que resultam de contatos semelhantes, bem
como informações que não têm outra origem. Por vezes, essas rela
ções ou esses contatos são permanentes ou então, em todo caso,
se
repetem muito freqüentemente, se prolongam durante uma duração
bastante longa. Por exemplo, quando uma família viveu durante mui-
to tempo numa mesma cidade, ou na proximidade dos mesmos
ami-
gos; cidade e família, amigos e família constituem como que socieda
des complexas. Então nascem as lembranças, compreendidas em
dois
quadros de pensamentos que são comuns aos membros dos dois gru
pos. Para reconhecer uma lembrança desse gênero, é preciso fazer
parte ao mesmo tempo de um e de outro. 1 uma condição que é
preenchida, durante algum tempo, por uma parte dos habitantes da
cidade, por uma parte dos membros da família. Não obstante, ela
o é desigualmente nos diversos momentos, conforme o interesse
des-
tes se refira à cidade ou à sua família. E basta, aliás, que alguns dos
membros da família deixem esta cidade, tenham que viver em uma
outra, para que eles tenham uma menor facilidade para lembrar-se
daquilo que eles não guardavam senão porque estavam submersos
ao mesmo tempo em duas correntes de pensamentos coletivos conver
gentes; enquanto que no presente experimentam quase que exclusiva
mente a ação de um deles. No mais, ainda que somente uma parte
, dos membros de um desses grupos estivesse compreendida no outro,
e reciprocamente, cada uma dessas duas influências coletivas
é
mais
fraca do que se exercesse s6. Com efeito, não é o grupo inteiro; a
família, por exemplo, não é mais do que umá fração, que pode aju
dar um dos seus a se lembrar dessa ordem de . lembranças. 1 preciso
que nos encontremos ou que estejamos em condições que permitam
a essas duas influências combinar melhor sua ação, para que a
lem-
brança reapareça e seja reconhecida. Disso resulta que pareça menos
familiar, que nos apercebamos mesmo claramente os fatores coletivos
que a determinam, e que tenhamos a ilusão de que ela é
menos do
que as outras sob o poder de nossa vontade
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lembrança individual como limite das interferências coletivas
Acontece com muita freqüência que nos atribuímos a nós mes-
mos como
se
elas não tivessem sua origem
em
parte alguma senão
em
nós, idéias e reflexões, ou sentimentos e paixões, que nos foram
inspirados por nosso grupo. Estamos então tão bem afinados com
aqueles que nos cercam, que vibramos em uníssono, e não sabemos
mais
onde está o ponto
de
partida das vibrações, em nós ou nos
ou-
tros. Quantas vezes exprimimos então, com uma convicção que pare
ce toda pessoal, reflexões tomadas de um jornal, de um livro, ou de
uma conversa. Elas correspondem tão bem a nossa maneira de ver
que nos espantaríamos descobrindo qual é o autor, e que não somos
nós. Já tínhamos pensado nisso : nós não percebemos que não
somos senão
um
eco. Toda a arte do orador consiste talvez em dar
àqueles que o ouvem a ilusão de que
as
convicções e
os
sentimentos
que ele desperta neles não lhes foram sugeridos de fora, que eles
nasceram deles mesmos, que ele somente adivinhou o que se elabo
rava no segredo de suas consciências e não lhes emprestou mais que
sua voz.
De
uma maneira ou de outra, cada grupo social empenha-se
em manter uma semelhante persuasão junto a seus membros. Quan
tos
homens têm bastante espírito crítico para discernir, naquilo que
pensam, a parte dos outros, e confessar a si mesmos que, no mais
das
vezes, nada acrescentam de seu? Algumas vezes alargamos o cír
culo de suas amizades e de suas leituras, reconhecemos o mérito de
seu ecletismo que nos permite ver e conciliar os diferentes aspectos
das questões e das coisas; acontece mesmo freqüentemente que a do-
sagem
de nossas opiniões, a complexidade de nossos sentimentos e
de nossas preferências não são mais que a expressão dos acasos que
nos colocaram
em
relação com grupos diversos ou opostos, e que a
parte que representamos em cada modo
de
ver está determinada pela
intensidade desigual das influências que estes têm, separadamente,
exercido sobre nós. De qualquer maneira, na medida que cedemos
sem resistência a uma sugestão de fora, acreditamos pensar e sentir
livremente.
e
assim que a maioria das influências sociais que
o e d e ~
cemos
com mais freqüência nos passam desapercebidas. Da mesma
maneira, e talvez
com
mais razão ainda, quando no ponto
de
encon
tro de várias correntes de pensamento coletivo que se cruzam em
nós
se
produz um desses estados complexos, onde queremos ver um
acontecimento único, que não existirá a não ser para nós.
e
um
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homem em viagem que. repentinamente.
se
sente tomado por influên
cias que emanam de um meio estranho a seus companheiros.
e uma
criança que
se
encontra, pelo concurso inesperado de circunstâncias.
numa situação que não é
de sua idade, e cujo pensamento
se
abre
para sentimentos e preocupações de adultos. e uma mudança de lu
gar,
de
profissão,
de
família, que não rompe ainda inteiramente
os
liames que nos amarram a nossos antigos grupos. Ora, acontece que
em caso semelhante as influências sociais se fazem mais complexas,
porque mais numerosas, mais entrecruzadas. uma razão para que
as
desenredemos menos, e que
as
distingamos mais confusamente.
Percebemos cada meio
à
luz do outro ou dos outros, ao mesmo tem
po que a sua; e temos a impressão de lhe resistir. Sem dúvida, deste
conflito ou desta combinação de influências, cada uma delas deveria
sobressair mais nitidamente. Mas porque esses meios se afrontam, te
mos a impressão que não estamos engajados nem em um, nem em
outro. Sobretudo, o que se passa no primeiro plano é a estranheza
da situação em que nos encontramos, que basta para absorver o pen
samento individual. Esse acontecimento se interpõe
como
uma tela,
entre ele· e os pensamentos sociais cuja conjugação o elaborou. Não
pode ser plenamente compreendido por nenhum dos membros
desses
meios, a não ser por mim. Nesse sentido, ele
me
pertence e já
no
momento em que ele se produz, eu serei tentado a explicá-lo por
mim
mesmo e só para mim. Admitiria quando muito que as circuns
tâncias, isto é o reencontro desses meios, serviram de ocasião; que
elas permitiram a produção de um acontecimento incluído desde
longa data em meu destino individual, a aparição de um sentimento
que estava
em
potência em minha alma pessoal. Já que os outros
o ignoravam, e não tiveram (pelo menos, eu o imagino) nenhuma
parte em sua produção, mais tarde, logo que ele reaparecer em
minha memória, não terei mais que um meio de me explicar seu
retomo: é que, de uma maneira ou de outra, conservara-se tal e
qual em meu espírito. Mas não há nada disso. Essas lembranças que
nos parecem puramente pessoais, e tais como nós sozinhos
as re
conhecemos e somos capazes
de
reencontrá-las, distinguem-se das
outras pela maior complexidade das condições necessárias para que
sejam lembradas; mas isto é apenas uma diferença de grau.
Algumas vezes limitamo-nos a observar que nosso passado com
preende duas espécies de elementos: aqueles que nos é possível evo-
• O pensamento individual.
.
48
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car quando queremos: e aqueles que. ao contrário. não atendem ao
nosso apelo, se bem que. logo que os procuramos no passado. pa
rece que nossa vontade tropeça num obstáculo. Na realidade. dos
primeiros podemos dizer que estão dentro do domínio comum. no
sentido em que o que nos é assim familiar. ou facilmente acessível.
o é igualmente aos outros. A idéia que representamos mais facilmen
te, composta de
elementos tão pessoais e particulares quanto o qui
sermos. é a idéia que os outros fazem de n6s; e os acontecimentos
de nossa vida que estão sempre mais presentes são também
os
mais
gravados na mem6ria dos grupos mais chegados a n6s. Assim. os
fatos e
as
noções que temos mais facilidade em lembrar são do
domínio comum, pelo menos para um ou alguns meios. Essas lem
branças estão para todo o mundo dentro desta medida, e é por
podermos nos apoiar na mem6ria dos outros que somos capazes, a
qualquer momento, e quando quisermos, de lembrá-los. Dos segun
dos, daqueles que não podemos nos lembrar à vontade, diremos vo-
luntariamente que eles não pertencem aos outros, mas a n6s, por
que ninguém além de n6s pode conhecê-los. Por mais estranho e
paradoxal que isto possa parecer. as lembranças que nos são mais
difíceis de evocar são aquelas que não concemem a não ser a n6s.
que constituem nosso bem mais exclusivo, como se elas não pudes
sem escapar aos outros senão na condição de escapar também a nós
pr6prios.
Diremos que nos acontece a mesma coisa que a qualquer um
que fechasse seu tesouro dentro de um cofre-forte cuja fechadura é
tão complicada que não consegue mais abri-lo, que não encontra
mais o segredo de ferrolho, e que deve lançar-se ao acaso para fa z;ê-
la reaparecer? Mas há uma explicação por sua vez mais natural e
mais simples. Entre as lembranças que evocamos à vontade e aque
las que nos fogem, encontraríamos na realidade todos os graus.
As
condições necessárias para que umas e outras reapareçam não dife
rem a não ser pelo grau de complexidade. As primeiras estão sem
pre ao nosso alcance, porque se conservam em grupos nos quais so-
mos livres para penetrar quando quisermos, nos pensamentos cole
tivos com que permanecemos sempre em relações estreitas; tanto que
todos
os
seus elementos, todas
as
ligações entre esses elementos e
as passagens mais diretas
de
uns aos outros nos são familiares. As
segundas nos são menos e mais raramente acessíveis, porque os gru
pos que
as
trariam a n6s estão mais distantes; não estamos em con
tato com eles senão de modo intermitente. Há grupos que se associam.
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ou que se reencontram freqüentemente, ainda que possamos passar
de um ao outro, ou estar ao mesmo tempo
em
um e outro; entre
outros, as relações são tão reduzidas, tão pouco visíveis, que não
temos nem a ocasião nem a idéia
de
seguir
os
apagados caminhos
pelos quais se comunicam. Ora, é sobre tais caminhos, sobre tais
sendas ocultas, que reencontraríamos
as
lembranças que
nos
dizem
respeito, da mesma maneira como um viajante pode considerar ca-
mo sua propriedade um manancial, um grupo
de
rochedos, uma pai-
sagem que não atingiríamos senão com a condição de sairmos do
caminho,
de
alcançarmos uma outr a por um caminho mal traçado
e não freqüentado. Os atrativos destes atalhos pertencem
aos
dois
caminhos e os conhecemos: mas é preciso alguma atenção, e talvez
algum acaso, para que tornemos a encontrá-los; e podemos percor
rer um grande número de vezes um e outro
sem
ter a idéia
de
procurá-los, sobretudo quando não podemos contar, para
nos
sina-
lizar, com os passantes que seguem algum desses caminhos, porque
eles não se preocupam em ir a onde conduziriam os outros.
Não tenhamos receio em voltar ainda aos exemplos que demos
Veremos que os atrativos ou os elementos dessas lembranças pessoais,
que parecem não pertencer a ninguém senão a nós, podem bem se
encontrar em
meios
sociais definidos e ali
se
conservar; e que
os
membros desses grupos de que não cessamos de fazer parte) sabe-
riam ali descobri-los e
nos
mostrá-los, se os interrogássemos
como
seria necessário. Nossos companheiros
de
viagem não conheciam
os
parentes, os amigos que havíamos deixado atrás
de
nós. Mas p u e ~
ram notar que não nos envolvíamos inteiramente com eles. Sentiram
em alguns momentos que estávamos em seu grupo
como
um elemen
to estranho. Se os reencontrarmos mais tarde, poderão nos lembrar
que em tal parte da viagem estávamos distraídos, ou que tínhamos
feito uma reflexão, pronunciado palavras que indicavam que
nosso
pensamento não estava inteiramente com eles. A criança que se per-
deu na floresta, ou que se viu diante
de um
perigo que despertou
nela sentimentos de adulto, não falou nada disso a seus pais. Mas
estes puderam observar que, após isso, ela não era mais tão descui-
dada como de costume, como
se
uma sombra houvesse passado sa-
bre ela, e que testemunhava uma alegria
de
revê-los que não era
mais
a
de
uma criança.
Se
passei
de
uma cidade para uma outra,
os
ha-
bitantes desta não sabiam de onde eu vinha, mas antes que eu es-
teja adaptado a meu novo meio, meus espantos, minhas curiosida
des, minhas ignorâncias certamente não escaparam a toda
uma
parte
50
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de seu grupo. Sem dúvida esses traços, apenas visíveis de aconteci
mentos sem grande importância para o meio em si mesmo, não re
tiveram por longo tempo sua atenção. Uma parte de seus membros
os
encontraria todavia, ou saberia pelo menos onde procurá-los. se
lhes recontasse o acontecimento que pode deixá-los.
No
mais, se a memória coletiva tira sua força e sua duração do
fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles
são indivíduos que
se
lembram, enquanto membros do grupo. Dessa
massa de lembranças comuns, e que se apóiam uma sobre a outra,
não são as mesmas que. aparecerão com mais intensidade para cada
um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é
um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista
muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo
muda segundo
as
relações que mantenho com outros meios. Não é
de admirar que, do instrumento comum, nem todos aproveitam do
mesmo modo. Todavia quando tentamos explicar essa d i v e r s i d a d ~
voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas,
de natureza social.
Dessas combinações, algumas são extremamente complexas.
por isso que não depende de nós fazê-las reaparecer. preciso con
fiar no acaso, aguardar que muitos sistemas de ondas, nos meios so-
ciais onde nos deslocamos materialmente ou em pensamento, se cru
zem de novo e façam vibrar da mesma maneira que outrora o apa
relho registrador que é nossa consciência individual. Mas a espécie
de causalidade é a mesma aqui, e não poderia ser diferente de ou
trora. A sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pes
soais, explica-se sempre pelas mudanças que
se
produzem em nossas
relações com
os
diversos meios coletivos, isto
é
em definitivo. pelas
transformações desses meios. cada um tomado à parte. e em seu
conjunto.
Diremos que é estranho que estados que apresentam um cará
ter tão surpreendente de unidade irredutível, que nossas lembranças
mais pessoais resultem da fusão de tantos elementos diversos e se-
parados. Primeiramente, ao refletir, esta unidade
se
converte numa
multiplicidade. Dissemos algumas vezes que, num estado de cons
ciência verdadeiramente pessoal, reencontramos, aprofundando-o, todo
o conteúdu do espírito visto de um certo ponto de vista. Mas por
conteúdo do espírito é preciso entender todos os elementos que as-
sinalam suas relações com os diversos meios. Um estado pessoal re-
vela assim a complexidade da combinação de onde saiu, Quanto a
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sua unidade a p a r e n t ~ ela se explica por uma ilusão bastante natural.
Os filósofos mostraram que o sentimento da liberdade se explicaria
pela multiplicidade das séries causais que
se
combinam para produ
zir uma ação.
Para cada uma dessas influências. concebemos que uma outra
possa
se
opor; acreditamos então que nosso ato é independente
de
todas essas influências ainda que não esteja sob a dependência ex-
clusiva
de
alguma dentre elas e não
nos
apercebemos que resulta na
realidade de seu conjunto e que está sempre dominado pela lei da
causalidade. Aqui do mesmo modo como a lembrança aparece pelo
efeito de várias séries de pensamentos coletivos em emaranhadas e que
não pOdemos atribUÍ-la exclusivamente a nenhuma dentre elas.
nós
supomos que ela seja independente e opomos sua unidade a sua
multiplicidade. Como supor que um objeto pesado. suspenso no ar
por uma quantidade de fios tênues e entrecruzados. permaneça sus-
penso no vácuo. onde se sustenta por si mesmo
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Capítulo II
MEMÓRIA COLETIV A E MEMÓRIA HISTÓRICA
Memória autobiográfica· e memória histórica: Sua oposição aparente
Não
estamos ainda habituados a falar da memória de um grupo.
mesmo
por metáfora. Parece que uma tal faculdade não possa existir
e durar a não ser na medida em que está ligada a um corpo ou a
um
cérebro individual. Admitamos todavia que haja para as lem
branças. duas maneiras de se organizar e que possam ora
se
agrupar
em
torno de uma pessoa definida que
as
considere de seu ponto de
vista. ora distribuir-se
no
interior de uma sociedade grande ou pe
quena de que elas são outras tantas imagens parciais. Haveria en·
tão memórias individuais e
se
o quisermos memórias coletivas.
Em
outros termos o indivíduo participaria de duas espécies de memó
rias. Mas conforme participe de uma ou de outra adotaria duas
atitudes muito diferentes e mesmo contrárias. De um lado é no
quadro de sua personalidade ou de sua vida pessoal que viriam to-
mar lugar suas lembranças: aquelas que lhe são comuns com outras
não
seriam consideradas por ele a não ser sob o aspecto que lhe
interessa na medida em que ele
se
distingue delas. De outra parte
ele seria capaz em alguns momentos de
se
comportar simplesmente
como membro de um grupo que contribui para evocar e manter as
lembranças impessoais na medida em que estas interessam ao grupo.
Se
essas duas memórias
se
penetram freqüentemente; em particular
se
a memória individual pode para confirmar algumas de suas lem
branças para precisá-las e mesmo para cobrir algumas de suas la
cunas apoiar-se sobre a memória coletiva deslocar-se nela confun
dir-se momentaneamente com ela; nem por isso deixa de seguir seu
próprio caminho e todo esse aporte exterior é assimilado e incorpo
rado progressivamente a sua substância./A memória coletiva por ou
tro envolve
as
memórias individuais mas não se confunde com elas.
Ela evolui segundo suas leis. e
se
algumas lembranças individuais
pe
53
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netramalgumas vezes nela mudam de figura assim que sejam recolo-
cadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal.
. Consideremos agora a memória individual. Ela não está inteira
mente isolada e fechada. Um homem para evocar seu próprio pas-
sado tem freqüentemente necessidade
de
fazer apelo
às
lembranças
dos
outros. Ele
se
reporta a pontos de referência que existem fora
de-
le e que são fixados pela sociedade. Mais ainda o funcionamento
da memória individual não é possível
sem esses
instrumentos que
são as palavras e as idéias que o indivíduo não inventou e que em-
prestou de seu meio. Não é menos verdade que não
nos
len bramos
senão do que vimos fizemos sentimos pensamos num momento do
tempo isto é que nossa memória não se confunde com a dos outros.
Ela é limitada muito estreitamente no espaço e no tempo. A
memó-
ria coletiva o é também: mas
esses
limites não são
os mesmos. Eles
podem ser mais restritos bem mais remotos também. Durante o
curso de minha vida o grupo nacional de que eu fazia parte foi o
te tróde um certo número
de
acontecimentos dos quais
digo
que
me lembro mas que não conheci
não
ser pelos jornais ou pelos
depoimentos daqueles que deles participaram diretamente.
Eles
ocupam um lugar na memória da nação. Potém eu
mesmo
não
os
assisti. Quando eu os evoco sou obrigado a confiar inteiramente na
memória
dos
outros que não vem aqui completar ou fortalecer a
minha mas que é a única fonte daquilo que eu quero repetir. Mui-
tas vezes não os conheço melhor nem de outro modo do que os
acontecimentos antigos que ocorreram antes de meu nascimento.
Car-
rego comigo uma bagagem de lembranças históricas que posso ampliar
pela conversação ou pela leitura. Mas é uma memória emprestada e
que não é minha.
No
pensamento nacional esses acontecimentos
deixaram um traço profundo não somente porque as instituições fo-
ram modificadas mas porque a tradição nelas subsiste muito viva em
tal ou qual região
do
grupo partido político província classe p r o ~
fissional ou mesmo em tal ou qual família; e em certos homens que
delas conheceram pessoalmente as testemunhas. Para mim
são
no-
ções símbolos; eles
se
a{lresentam a mim sob uma forma
mais
ou
menos popular; posso imaginá-los;
~ m e
quase impossível lembrá-los.
Por uma parte de minha personalidade estou engajado
no
grupo de
modo que nada do que nele ocorre enquanto dele faço parte nada
daquilo que o preocupou
e transformou
anJes
de que nele entrasse
me é completamente estranho. Mas se eu quiser reconstituir em sua
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integridade a lembrança de um tal acontecimento, seria necessário
que eu juntasse todas as reproduções deformadas e parciais de que
é o objeto entre todos
os
membros
do
grupo. Pelo contrário, minhas
lembranças pessoais são inteiramente minhas, estão inteiramente em
mim
Seria o caso, então, de distinguir duas memórias, que chama
ríamos, se o quisermos, a uma interior ou interna, a outra exterior;
ou então a uma memória pessoal, a outra memória social. Diríamos
mais
exatamente ainda: memória autobiográfica e memória histórica.
A primeira
se
apoiaria· na segunda, pois toda história de nossa vida
faz parte da história
em
geral. Mas a segunda seria, naturalmente,
bem mais ampla
do
que a primeira. Por outra parte, ela não
nos
re-
presentaria o passado senão
sob
uma forma resumida e esquemática,
enquanto que a memória de nossa vida nos
p r e s ~ n t r i
um quadro
bem mais
contínuo e mais denso.
Se
entendermos que conhecemos nossa memória pessoal somente
do interior, e a memória coletiva do exterior, haverá com efeito entre
uma e outra um vivo contraste. Eu me lembro de Reims porque ali
vivi todo um ano. Lembro-me também que Joana D Arc foi a Reims
e que ali sagrou Carlos VII, porque ouvi dizer ou porque
li
Joana
D Arc foi representada tantas vezes no teatro, no cinema etc., que
não tenho deveras nenhuma dificuldade em imaginar Joana D Arc em
Reims Ao
mesmo tempo, sei bem que não
me
foi possível ser teste
munha do próprio acontecimento; atenho-me aqui às palavras que
ouvi ou li, sinais reproduzidos através do tempo, que são tudo o que
me chega desse passado.
1
o
mesmo
com todos
os
fatos históricos que
conhecemos.
Nomes
próprios, datas, fórmulas que resumem uma
longa seqüência de detalhes, algumas
vezes
uma anedota ou uma
citação: é o epitáfio dos acontecimentos de outrora, tão curto, geral
e pobre de sentido como a maioria das inscrições que lemos sobre os
túmulos.
1
que a história, com efeito, assemelha-se a um cemitério
onde o espaço é medido e onde é preciso, a cada instante, achar
lugar para novas sepulturas.
Se
o meio social passado não sobrevivesse para nós a não ser
em
tais anotações históricas, se a memória coletiva, mais geralmente,
não contivesse senão datas e definições ou lembranças arbitrárias de
acontecimentos, ela nos ficaria bem exterior.
Em
nossas sociedades
nacionais tão vastas, muitas das existências se desenrolam sem con-
tato com
os
interesses comuns
do
maior número daqueles que lêem
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os
jornais e prestam alguma atenção nos negócios públicos. Nesse
caso, mesmo que não nos isolemos a tal ponto, quantos períodos
em
que absorvidos pela sucessão dos dias, não sabemos mais o que
se
passa . Mais tarde, pensaremos, talvez, acerca de tal parte de nossa
vida, em reagrupar os acontecimentos públicos contemporâneos mais
notáveis. O que aconteceu no mundo e no meu país, em 1877. quan
do
nasci?
e
o ano do
6
de maio, quando a situação política
se
transformava de uma semana para outra, quando nascia verdadeira
mente a República. O ministério de Broglie estava no poder. Gam
betta declarava:
:e
preciso
se
submeter ou
se
demitir. O pintor
Courbet morre nesse momento. Também nesse momento, Victor Hugo
publica o segundo volume de
Légende es Siec[es· Em Paris, ter
minam o bulevar Saint-Germain, e começam a abrir a Avenue
de
la
République. Na Europa, toda a atenção
se
concentra na guerra da
Rússia contra a Turquia. Osman Paxá, depois
de
uma longa e herói
ca defesa, deve entregar Plevna. Assim, reconstituo um quadro,
mas
que é bem mais amplo, e onde me sinto singularmente perdido. Desde
esse momento fui arrastado sem dúvida pela corrente da vida nacio
nal, mas apenas senti-me arrebatado. Estava como um viajante sobre
um barco.
As
duas margens passam sob seus olhos; o trajeto
se
enquadra bem nessa paisagem, mas suponhamos que ele esteja absor
vido por alguma reflexão, ou distraído por seus companheiros
de
viagem: não
se
ocupará com aquilo que
se
passa sobre a margem
senão de tempo em tempo; poderá mais tarde lembrar-se
do
trajeto
sem muito pensar nos detalhes da paisagem, ou então poderá seguir
o seu traçado sobre um mapa; assim, encontrará talvez algumas lem-
branças esquecidas, precisará outras. Porém, entre o país percorrido
e o viajante não terá havido realmente contato.
Mais de um psicólogo gostaria talvez
de
imaginar que, como
auxiliares de nossa memória, os acontecimentos históricos não
de-
sempenham um outro papel senão as divisões do tempo assinaladas
em
u
relógio, ou determinadas pelo calendário. Nossa vida
se
escoa
em um movimento contínuo. Mas logo que nos voltamos para aquilo
que já
se
desenrolou, sempre nos é possível distribuir as suas diversas
partes entre os pontos de divisão
do
tempo coletivo que encontramos
fora de nós, e que se impõem de fora a todas as memórias individuais,
precisamente porque eles não têm sua origem em nenhuma delas. O
Lenda os Séculos
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tempo social assim definido seria inteiramente exterior às durações
vividas pelas consciências. e. evidente quando se trata de um relógio
que
mede
o tempo astronômico. Mas não é a mesma coisa com datas
assinaladas no quadrante da história, que correspondem
aos
aconte
cimentos
mais
notáveis da vida nacional, que ignoramos algumas ve-
zes
quando se produzem, ou dos quais reconhecemos a importância
só mais tarde. Nossas vidas estariam colocadas na superfície dos cor
pos sociais, elas os seguiriam dentro de suas revoluções, experimen
tariam a repercussões de seus abalos.
Mas
um acontecimento não
toma lugar na série dos fatos históricos senão algum tempo depois
que se produziu. e. então mais tarde que podemos relacionar aos
acontecimentos nacionais
as
diversas fases de nossa vida. Nada pro
varia melhor a que ponto é artificial e exterior a operação que con
siste
em
nos relacionar, como a pontos de referência, às divisões da
vida coletiva. Nada mostraria mais claramente que nós estudamos
na realidade
dois
objetos distintos quando fixamos nossa atenção ou
sobre a memória individual, ou sobre a memória coletiva. Os acon
tecimentos e as datas que constituem a substância mesma da vida
do grupo não podem ser para o indivíduo senão sinais exteriores,
aos quais ele não
se
relaciona a não ser com a condição de afastar
se de si
Por certo,
se
a memória coletiva não tivesse outra matéria senão
séries de datas ou listas de fatos históricos, ela não desempenharia
senão um papel bem secundário na fixação de nossas lembranças.
Mas isto é uma concepção singularmente estreita, e que não corres
ponde à realidade. Foi-nos difícil, por essa razão, apresentá-la sob
essa forma. Entretanto, era necessário porque está bem de acordo
com uma tese geralmente aceita. Freqüentemente, cõnsideramos a
memória como uma faculdade propriamente individual, isto é, que
aparece numa consciência reduzida a seus próprios recursos, isolada
tios outros, e capaz de evocar, q u r ~ p o r vontade, quer por oportuni
dade,
os
estados pelos quais ela passou antes.
Como
não é possível
todavia contestar que reintegramos freqüentemente nossas lembranças
em um espaço e em um tempo sobre cujas divisões nos entendemos
com
os
outros), que nós
as
situamos também entre
as
datas que não
têm sentido senão
em
relação aos grupos de que fazemos parte, admi
timos que é assim. Porém é uma espécie de concessão mínima, que
não poderia atingir, no espírito daqueles que a consentem, a especi
ficidade da memória individual.
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I
Sua real interpenetração
A história contemporânea)
Escrevendo minha vida em 1835, observava Stendhal, nela
fiz
muitas descobertas. Ao lado de pedaços de afrescos conservados,
não há datas; é preciso que eu vá à caça
das
datas A partir
de
minha chegada a Paris em 1799, como minha vida está envolvida
com os acontecimentos da gazeta, todas as datas são seguras.
Em
1835, descubro a fisionomia e o por quê dos acontecimentos.
Vie
de Henri Brulard)*.
As datas e os acontecimentos históricos ou na
cionais que elas representam (porque é bem nesse sentido que
os
entende Stendhal) podem ser inteiramente exteriores, em aparência
pelo menos,
às
circunstâncias
de
nossa vida; mas, mais tarde, quando
a refletimos, fazemos muitas descobertas , d e s c o b r i m o ~ o por quê
de muitos acontecimentos . Isto pode entender-se
em
vários sentidos.
Quando folheio uma Àistória contemporânea e quando passo
em
re
vista
os
diversos acontecimentos franceses ou europeus que
se
suce
dem desde a data de seu nascimento, durant:
os
oito ou dez primeiros
anos de minha vida, tenho com efeito a impressão de um quadro
exterior
do
qual ignorava a existência,· e aprendo a recolocar minha
infância dentro da história de meu tempo. Porém,
se
esclareço assim
essa primeira fase de minha vida externamente, minha memória, no
que ela tem de pessoal, não fica muito enriquecida, e
no
meu passa
do de criança não vejo brilhar em novas luzes e novos objetos surgi
rem e
se
revelarem.
:e
sem dúvida porque então não lia ainda os
jornais e porque não participava gas conversas
dos
adultos. No pre
sente, posso fazer uma idéia, mas uma idéia necessariamente arbitrá
ria, das circunstâncias públicas e nacionais pelas quais
meus
pais
se
interessavam:· desses fatos, não mais
do
que as reações que eles
de
terminaram junto aos meus, não tenho nenhuma lembrança direta.
Parece-me que o primeiro acontecimento nacional que penetrou na
trama de minhas impressões de criança foi. aquele do enterro de
Victor Hugo (então eu já tinha oito anos). Eu me vejo
ao
lado de meu
pai, dirigindo-me na véspera para o Arco
do
Triunfo de :etoile, onde
estava colocado o catafalco e, no dia seguinte, assistindo de um bal
cão na esquina da rua Soufflot e da rua Gay-Lussac. Até essa data,
do grupo nacional no qual estava encerrado até mim e o círculo es
treito de minhas preocupações, nenhuma comoção
se
prolongou? To-
Vida de Renri Brulard.
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davia, eu estava
em
contato com meus pais: eles mesmos eram abertos
a muitas influências; eles eram em parte o que eram porque viviam
em tal época, em tal país, em tais circunstâncias políticas e nacio
nais.
Em
seu aspecto habitual, na tonalidade geral de seus senti
mentos, eu não encontrava talvez o traço de acontecimentos histó
ricos determinados.
Mas
havia certamente na França, durante o
período de dez, quinze e vinte anos que se seguiu à guerra de 1870-
1871, uma atmosfera psicológica e social única, e que não seria
en-
contrada em nenhuma outra época. Meus pais eram franceses dessa
época;
foi
então que assimilaram alguns hábitos e assumiram alguns
traços que não cessaram de fazer parte das suas personalidades e
que
se
impuseram cedo a minha atenção. Não é mais questão de
datas e
de
fatos. Certamente a história, mesmo contemporânea, re-
duz se
com muita freqüência a uma série de noções muito abstratas.
Mas
eu posso
completá-las, posso substituir as idéias das imagens e
das impressões logo que olho os quadros, os retratos, as gravuras
desse
tempo, que eu sonho
com os
livros que apareciam,
com as
peças
que se representavam, no estilo da época, com .os gracejos e com o
gênero de espírito cômico então apreciados. Não imaginemos agora
que.
esse
quadro
de
um mundo desaparecido há -pouco, assim recriado
por meios artificiais, vai tomar-se o fundo um pouco fictício sobre o
qual projetaremos
os
perfis de nossos pais, e que existe lá
como
que
um meio onde mergulharemos nosso passado para o revelar . Muito
ao contrário, se o mundo de minha infância, tal
como
o encontro
quando me recordo, coloca se assim naturalmente no quadro que o
estudo histórico desse passado próximo me permite reconstituir, é
porque já levava a sua marca. Isto que descubro, é porque com um
esforço suficiente
de
atenção eu poderia,
em
minhas lembranças
deste pequeno mundo, reencontrar a imagem
do
meio onde estava
compreendido. Muitos detalhes dispersos, talvez familiares demais
para que eu sonhasse em relacioná-los uns com outros e tentasse pro
curar sua significação, destacam-se agora e se reúnem. Aprendo a
distinguir, na fisionomia
de
meus pais, e no aspecto desse período,
aquilo que se explica não mais pela natureza pessoal dos seres, pelas
circunstâncias tais em que elas teriam podido
se
reproduzir em qual
quer outro tempo, mas pelo meio nacional contemporâneo. Meus
pais, como todos os homens, eram de seu tempo, e da mesma ma-
neira
seus
amigos, e todos os adultos com os quais eu estava em
contato nessa época. Quando eu quero imaginar como vivíamos, ce-
mo pensávamos nesse período, é para eles que
se
volta minha refle-
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xão. isso o que faz com que a história contemporânea
me
interesse
de uma ou de outra maneira como a história dos séculos precedentes.
Certamente não posso dizer que
me
l e m b r ~ dos detalhes dos aconte-
cimentos, pois não os conhecia senão pelos livros. Mas, à diferença
das outras épocas, esta vive em minha memória, já que nela fui mer-
gulhado, e que toda uma parte
de
minhas lembranças
de
então não
é dela senão um reflexo.
Assim, mesmo quando
se
trata de lembranças de nossa infância -
vale mais não distinguir uma memória pessoal, que reproduziria tal
como nossas impressões de outrora, que não nos faria sair do círculo
estreito de nossa família, da escola e de nossos amigos; e uma outra
memória que chamaríamos histórica, onde não estariam compreendi-
dos senão
os
acontecimentos nacionais que não pudemos conhecer
então; tão bem que por uma penetraríamos num meio no qual nossa
vida já
se
desenrolava, sem disso nos apercebermos, enquanto que a
outra nos colocaria em contato
com
nós mesmos ou
com um
eu alar-
gado realmente até os limites do grupo que comporta o mundo da
criança. Não é na história aprendida, é na história vivida que
se
apóia nossa memória. Por história é preciso entender então não uma
sucessão cronológica de acontecimentos e de datas, mas tudo aquilo
que faz com que um período
se
distinga dos outros, e cujos livros e
narrativas não nos apresentam em geral senão um quadro bem esque-
mático e incompleto.
Recriminarão se nós despojarmos esta forma da memória coleti-
va que seria a história deste caráter impessoal, desta precisão abstrata
e desta relativa simplicidade que dela fazem precisamente um
quadro
sobre o qual nossa memória individual poderia
se
apoiar. Se nos
ativermos às impressões que fizeram sobre nós tais acontecimentos,
quer a atitude de nossos pais em face dos acontecimentos que terão
mais tarde uma significação histórica, quer
os
costumes somente,
os
modos de falar e de agir de uma época,
em
que
se
distinguem elas
de
tudo aquilo que ocupa nossa vida de criança, e que a memória
nacional não reterá? Como a criança seria capaz de atribuir valores
diferentes
às partes sucessivas do quadro que a vida desenrola diante
dela, e por que ficaria sobretudo admirada dos fatos ou dos episódios
que mantêm a atenção dos adultos por que estes dispõem, no tempo
e no espaço, de muitos termos de comparação? Uma guerra, um
mo-
tim, uma cerimônia nacional, uma festa popular, um novo
meio
de
locomoção, os trabalhos que transformam as ruas de uma cidade
po-
dem ser considerados com efeito de dois pontos de vista. São fatos
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únicos em seu gênero pelos quais a existência de um grupo é modi
ficada. Mas eles se resolvem de outro lado em uma série de ima
gens que atravessam
as
consciências individuais.
Se
você não retiver
senão essas imagens elas poderão sobressair-se das outras no espírito
de
uma criança por sua singularidade seu brilho intenso sua inten
sidade; mas acontece a mesma coisa para muitas imagens que não
correspondem a acontecimentos de semelhante porte. Uma criança
chega à noite numa gare cheia de soldados. Que estes retornem das
trincheiras ou para ali estejam voltando
u
que estejam simples
mente em manobras eles não a impressionarão nem mais nem me-
nos. Como estava longe o canhão da batalha de Waterloo era apenas
um ribombar confuso de trovão? Um ser tal como uma criancinha
reduzida a suas percepções não guardará de tais espetáculos senão
uma lembrança frágil de pouca duração. Para que atrás da imagem
ele atinja a realidade histórica será preciso que saia de si mesmo
que se coloque do ponto de vista do grupo que possa ver como tal
fato marca uma data porque penetrou num círculo das preocupa
ções dos interesses e das paixões nacionais. Mas nesse momento o
fato cessa
de
se confundir com uma impressão pessoal. Retomamos
contato com o esquema da história. então diremos sobre a memó
ria histórica que é preciso se apoiar. através dela que esse fato
ex-
terior a minha vida de criança vem assim mesmo assinalar cóm
sua impressão tal dia tal hora e que a vista dessa impressão me
lembrará a hora ou o dia; mas a impressão por si mesma é uma
impressão superficial feita de fora sem relação com minha memória
pessoal e minhas impressões de criança.
Na base de uma tal descrição há ainda a idéia que os espíritos
estão separados uns dos outros tão nitidamente com os organismos
que deles seriam o suporte material. E cada um de nós é primeira
mente e permanece o mais das vezes encerrado em si mesmo. Como
explicar então que comunique com os outros e harmonize seus pen
samentos com
os
demais? Admitiremos então que ele cria para si
uma espécie de meio artificial exterior a todos esses pensamentos
pessoais mas que os envolve um tempo e um espaço coletivos e
uma história coletiva. dentro de tais quadros que os pensamentos
dos indivíduos se reuniriam o que supõe que cada um de nós ces-
saria momentaneamente de ser ele mesmo. Ele retornaria a si logo
introduzindo em sua memória pontos de referência e divisões que
ele traz já prontos do exterior. Aqui prenderemos nossas lembranças
mas entre essas lembranças e esses pontos de apoio não existirá ne-
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nhuma relação íntima nenhuma comunidade de substância.
e
por
isso que essas noções hist6ricas e gerais não representariam aqui
senão num papel muito secundário: elas supõem a existência preli
minar e autônoma da mem6ria pessoal.
As
lembranças coletivas
vi-
riam aplicar-se sobre
as
lembranças individuais e nos dariam
assim
sobre elas uma tomada mais cômoda e mais segura; mas será pre-
ciso então que
as
lembranças individuais estejam lá primeiramente
senão nossa mem6ria funcionaria sem causa. e assim que houve
cer-
tamente um dia quando pela primeira vez encontrei tal colega ou
como diz Blondel um primeiro dia quando estive no liceu. Isto é
uma noçãQ hist6rica; mas se não guardei interiormente uma
lem-
brança pessoal deste primeiro encontro ou desse primeiro dia essa
noção permanecerá no ar esse quadro ficará vazio e eu não
me
lembrarei de nada. Tanto pode parecer evidente que existe em
todo o ato de mem6ria um elemento específico que é a existência
mesma de uma consciência individual capaz de
se
bastar.
história vivida a partir da infância
Mas pode-se distinguir realmente
de
um lado uma memória
sem
quadros ou que não disporia para classificar suas lembranças senão
palavras da linguagem e de algumas noções emprestadas da vida
prática e de outro lado um quadro hist6rico ou coletivo sem
me-
m6ria isto é que não seria construído reconstruído e conservado
dentro das mem6rias individuais? Não cremos. Desde que a criança
ultrapasse a etapa da vida puramente sensitiva desde que ela
se
in-
teressa pela significação das imagens e dos quadros que percebe
podemos dizer que ela pensa
em
comum com
os
outros e que seu
pensamento se divide entre o conjunto das impressões todas pessoais
e diversas correntes de pensamento coletivo. Ela não mais está
fe-
chada em si mesma pois que seu pensamento comanda agora perspec
tivas inteiramente novas e onde ela sabe múito
bem
que não está
s6 a vaguear seus olhares; entretanto ela não saiu de si e para
abrir-se a essas séries de pensamentos que são comuns
aos
membros
de seu grupo não está obrigada a fazer o vácuo em seu espírito
porque por alguma forma e
sob alguma relação essas novas preocu
pações vindas de fora interessam sempre o que chamamos aqui o
homem interior quer dizer que não são inteiramente estranhas a nossa
vida pessoal.
62
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Stendhal criança assistiu, da galeria da casa onde morava seu
avô, a uma rebelião popular que explodiu no começo da Revolução,
em
Grenoble: o dia das telhas. A imagem, disse, não pode ser mais
nítida para mim. Há cerca de 43 anos talvez. Um operário chapeleiro
ferido nas costas por um golpe de baioneta marchava com muita
dificuldade, sustentado por dois homens, sobre os ombros dos quais
havia passado os braços. Estava sem roupa, sua camisa e suas calças
de algodão branco estavam cheias de sangue. Eu o vejo ainda. O
ferimento de onde o sangue saía abundantemente era na altura dos
rins, quase trespassando o umbigo. Eu revi esse infeliz em todos
os
andares da escada da casa Périer (ele foi levado ao 6.
0
andar).
Esta lembrança, como é natural, é a mais nítida que me ficou da
quele tempo.
Vie
de
Henri
Brulard,
p. 64). com efeito, uma ima
gem, mas que está no centro de um quadro, de uma cena popular
e revolucionária da qual Stendhal foi espectador: ele deve ter ouvido
com freqüência a narração mais tarde, sobretudo quando esse motim
apareceria como o início de um período político muito agitado e de
importância decisiva. Em todo caso, ainda que ignorasse que aquele
dia teria seu lugar na história de Grenoble, pelo menos, a animação
inusitada das ruas, os gestos e os comentários de seus pais bastariam
para que ele compreendesse que o acontecimento ultrapassava o círcu
lo de sua família ou de seu quarteirão. Do mesmo modo, um outro
dia durante esse período, encontra-se na biblioteca, ouvindo seu avô,
numa sala repleta de gente. Mas por que essa gente? Em que oca
sião? o que a imagem não diz. Ela não é senão uma imagem.
(Ibid., p. 60). Teria ele todavia conservado a lembrança se ela não
se situasse como um dia das telhas, num quadro de preocupações,
que devem ter surgido nele neste período e pelas quais já entrava
numa corrente de pensamento coletivo mais amplo?
Pode ser que a lembrança não seja arrastada de imediato nessa
corrente e que algum tempo se passe antes que compreendamos o
sentido do acontecimento. O essencial é que o momento em que
compreendamos venha logo, isto é, enquanto a lembrança esteja viva
ainda. Então, é da própria lembrança em si mesma, é em tomo dela,
que vemos brilhar de alguma forma sua significação histórica. Sabía
mos
bem, pela atitude dos adultos em presença do fato que nos im
pressionou, que este merecia ser lembrado. Se nos lembramos dele,
é porque sentíamos que em tomo de nós os outros se preocupavam.
Mais tarde, compreenderemos melhor porque. A lembrança, no início,
existia no interior da corrente, mas estava retida por algum obstáculo,
6
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permanecia muito à margem. presa nas hervas das margens. Do
mesmo modo, as correntes de pensamento social atravessam o espírito
da criança. mas só com o tempo arrastarão tudo o que lhes pertence.
Eu me lembro (é uma de minhas mais antigas lembranças) que
diante de nossa casa, na rua Gay-Lussac, no local atual do Instituto
Oceanográfico, havia junto de um convento um pequeno hotel, onde
se hospedavam uns russos. Nós
os
víamos com boné de peles e blusas.
sentados diante da porta, víamos suas mulheres e suas crianças. Tal
vez, apesar da singularidade de seus costumes e de seus tipos, não
os teria examinado tão longamente, se não houvesse notado que os
transeuntes se detinham e que meus pais mesmos vinham até o balcão
para olhá-los. Eram habitantes da Sibéria, que tinham sido mordidos
por lobos enraivecidos, e que haviam se instalado há algum tempo
em Paris, na proximidade da rua de Ulm e da Escola Normal, para
serem tratados por Pasteur. Eu ouvi esse nome pela primeira vez, e
pela primeira vez também achei que existiam sábios que faziam des-
cobertas. Não sei, aliás, até que ponto eu compreendia o que se
ouvia dizer a este respeito. Talvez o tenha compreendido somente
muito mais tarde. Mas não creio que essa lembrança tivesse perma
necido tão nítida em meu espírito se, na ocasião dessa imagem, meu
pensamento não estivesse já orientado para novos horizontes, para re-
giões desconhecidas onde eu me sentisse cada vez menos isolado.
Essas ocasiões nas quais, em conseqüência de alguma comoção
do meio social, a criança vê subitamente se entreabrir o círculo
es-
treito que a encerrava, essas revelações, através de repentinas esca
padas, de uma vida política, nacional, ao nível da qual ela não alcança
normalmente, são bastante raras. Quando se envolver em conversas
sérias dos adultos, quando ler os jornais, terá o sentimento de desco
brir uma terra desconhecida. Não será, entretanto, a primeira vez
que entra em contato, aliás, com um meio mais amplo do que sua
família ou do que o pequeno grupo de seus amigos e dos amigos
de seus pais. Os pais têm suas preocupações, as crianças têm outras,
e há muitas razões para que o limite que separa essas duas zonas de
pensamentos não seja transposto. Mas, a criança está em relação
com uma categoria de adultos nos quais a simplicidade habitual de
suas concepções os aproxima dela. Trata-se, por exemplo, dos criados.
Com eles, a criança se entretém espontaneamente e compensa a re-
serva e o silêncio aos quais a condenam seus pais em tudo aquilo que
não é para sua idade . Os criados, algumas vezes, falam livremente
diante da criança ou com ela. e ela
os compreende. porque se expres-
6
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sam geralmente como crianças grandes. Quase tudo que soube e pude
compreender da guerra de 1870, da Comuna, do Segundo Império,
da República, chegou até mim pelo que me contava uma velha cria
da, cheia de superstições e idéias preconcebidas, que aceitava sem
discussão o quadro desses acontecimentos e desses regimes que ha
viam sido pintados pela imaginação popular. Por ela me chegava o
rumor confuso, que é como o remoinho
da
hist6ria que se propaga
nos meios campesinos, de operários, de pessoas simples. Meus pais,
quando ouviam isto, levantavam os ombros. Nesses momentos, meu
pensamento atingia confusamente senão os próprios acontecimentos,
pelo menos uma parte dos ~ i n t s humanos que haviam sido agi
tados. Minha mem6ria, ainda hoje, evoca esse primeiro quadro hist6-
rico de minha infância, ao mesmo tempo que minhas ptimeiras im
pressões. :e em todo o caso, sob esta forma que me representei de
inicio os acontecimentos que precederam de pouco meu nascimento,
e
se
reconheço hoje até que ponto esses relatQs eram inexatos, não
posso saber o quanto me tenha inclinado então por sobre essa cor
rente confusa e que mais de uma dessas imagens confusas ainda emol
dura deformando-as, algumas de minhas lembranças de outrora.
o
liame vivo das gerações
A criança também está em contato com seus av6s, e através
deles é até um passado ainda mais remoto que ela recua. Os avós se
aproximam das crianças, talvez porque, por diversas razões, uns e
outros se desinteressam dos acontecimentos contemporâneos sobre os
quais se fixa a atenção dos pais. Nas sociedades rurais, diz Marc
Bloch, acontece com muita freqüência que, durante o dia, enquanto
pai e mãe estão ocupados nos campos ou com inúmeros trabalhos
de casa, os pequenos são confiados
à
guarda dos velhos , e é destes,
e mais do que de seus familiares mais próximos, que as crianças re -
cebem o legado dos costumes e das tradições de toda a espécie.
Mémoire Collective, traditions
t
Coutumes, Revue de synthese histo
rique, 1925, n.
08
118-120, p. 79). Certamente, os avós também, as
pessoas mais velhas, são
do
seu tempo . Ainda que uma criança
não se aperceba de tudo imediatamente{e·'não distingua
em
seu avô
os traços pessoais, o que parece explicar-se simplesmente pelo fato de
que está velho, e que ele pertence à antiga sociedade' na qual viveu,
formou-se e .da qual guarda a marca, a criança sente, todavia, con
fusamente, que entrando na casa de seu avô. chegando em seu bairro
65
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ou na cidade onde mora, penetra numa região diferente, e que no
entanto não lhe é estranha porque se amolda muito bem à imagem
e à maneira de ser dos membros mais velhos de sua família. Aos
olhos destes, e ela se dá conta, ele ocupa de algum modo o lugar
de
. seus pais, eles mesmos, mas de pais que teriam permanecido crianças
e não estariam engajados inteiramente na vida e na sociedade atual.
Como não se interessaria pelos acontecimentos que lhe dizem respeito
e nos quais foi envolvida, em tudo aquilo que reaparece agora nos
relatos dessas pessoas mais velhas que esquecem a diferença dos
tempos e, sob o presente, reatam o passado ao futuro? Não são
s0-
mente os. fatos, mas as maneiras de ser e de pensar de outrora que
se fixam assim dentro de sua memória. Lamenta-se, às vezes, não
se
ter aproveitado
~
ocasião única que tivemos para entrar em con-
tato direto com períodos que não conhecemos agora a não ser de fora,
através da história, pelos quadros, pela literatura. Em todo o caso,
geralmente é na medida em que a presença de um parente idoso
~ t á
de algum modo impressa em tudo aquilo que nos revelou de
um período e
de
uma sociedade antiga, que ela se destaca em nossa
memória não como uma aparência física um pouco apagada, mas
com o relevo e a cor de um personagem que está no centro de todo
um quadro que o resume e o condensa. De. todos os membros de
sua família, por que Stendhal guardou uma lembrança tão profunda
e nos traça um retrato tão vivo sobretudo de seu avô? Não será por.
que representava para ele o século XVIII acabando, do qual havia
conhecido alguns de seus filósofos e que, através dele pôde pene
trar verdadeiramente nessa sociedade anterior à Revolução, à qual
não cessará de se referir? Se a pessoa desse ancião não houvesse
sido relacionada desde cedo em seu pensamento às obras de Diderot,
Voltaire, d'Alembert, a um gênero de interesses e de sentimentos que
ultrapassava o horizonte de uma pequena província mesquinha e con
servadora, ele não teria sido ele mesmo, quer dizer, aquele entre seus
. familiares que Stendhal mais estimou e mais citou. Lembraria dele
talvez com a mesma precisão, mas ele não teria alcançado tal desta
que
em
sua memória.
1
o século XVIII mas o século XVIII vivido,
e dentro do qual seu pensamento realmente se expandiu, que lhe res-
tituiria, com toda profundidade, o semblante de seu avô. Tanto é ver
dade que os quadros coletivos
da
memória não se resumem em datas,
nomes e fórmulas, que eles representam correntes de pensamento e
de experiência onde reencontramos nosso passado porque este foi
atravessado por isso tudo.
66
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A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo
que resta do passado. Ou, se o quisermos, ao lado de uma história
escrita, há uma história viva que
se
perpetua ou
se
renova através
do tempo e onde é possível encontrar um grande número dessas cor
rentes antigas que haviam desaparecido somente na aparência. Se
não fosse assim, teríamos nós o direito de falar em memória, e que
serviço poderiam nos prestar quadros que subsistiriam apenas
em
estado de informações históricas, impessoais e despojadas? Os gru
pos,
no
seio
dos
quais outrora
se
elaboraram concepções e um espí
rito que reinara algum tempo sobre toda sociedade, recuam logo e
deixam lugar para outros, que seguram, por sua vez, durante certo
-período, o cetro
dos
costumes e que modificam a opinião segundo
novos
modelos. Poder-se-ia crer que o mundo sobre o qual, com
nossos avós idosos, estamos ainda inclinados, ocultou-se de repente.
Como, dos
tempos intermediários entre aquele, muito anterior ao
nosso nascimento, e a época em que os interesses nacionais contem
porâneos
se
apoderarão de nosso espírito, restam-nos poucas lembran
ças que ultrapassam o círculo familiar, tudo
se
passa como se tivesse
havido,
com
efeito, uma interl Upção, durante a qual o mundo das
pessoas idosas tenha-se apagado lentamente, enquanto que o quadro
recobrir-se-ia
de
novos caracteres. Consideremos, todavia, que talvez
não
exista um ambiente, nem um estado de pensamentos ou de sen
sibilidade de outrora, dos quais subsistam traços, e nem mesmo im
pressões, ou seja. tudo o que for necessário para recriá-lo tempo
rariamente.
Assim me pareceu muitas
vezes
que percebi as últimas vibrações
do
romantismo
no
interior do grupo que formei e reformei algumas
vezes
com meus avós. Por romantismo, entendo não somente
um
movimento artístico e literário, mas um modo de sensibilidade parti
cular que não
se
confunde com
as
disposições das almas sensíveis
do
fim do século XVIII,
mas
que também não
se
diferencia muito
nitidamente dele, e que estaria em parte dissipado em meio à frivo
lidade do Segundo Império, mas que subsistiria,
sem
dúvida, com
mais tenacidade nas províncias um pouco afastadas e foi lá que
encontrei dele os últimos traços). Ora, é-nos perfeitamente lícito re
construir esse meio e reconstituir em tomo de nós essa atmosfera, em
particular em meio aos livros, gravuras, e quadros. Não
se
trata,
sobretudo, dos grandes poetas e
de
suas obras mais importantes. Elas
produzem sobre nós, sem dúvida, uma outra ~ m p r s s ã o do que sobre
os
contemporâneos. Fizemos muitas descobertas. Mas há as revistas
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da época e toda essa literatura das famílias , onde esse gênero de
espírito que tudo penetrava e
se
manifestava sob todas
as
formas
encontra-se, de alguma forma, escondido. Folheando essas páginas,
parece-nos ver ainda os velhos parentes que tinham os gestos,
as ex-
pressões, as atitudes e os costumes que reproduzem as gravuras, pa-
rece-nos ouvir suas vozes e reencontrar
as
mesmas expressões que
usavam. Sem dúvida, que esses museus de famílias e revistas
pitorescas tenham subsistido, é um acidente. Poderíamos, aliás, ja-
mais tirá-las de suas estantes e abri-los. Entretanto,
se
reabro esses
livros,
se
encontro essas gravuras, esses quadros, esses retratos, não
é de modo algum porque, possuído por um impulso, por uma curio
sidade de erudito ou pelo gosto das coisas velhas, iria consultar esses
livros numa biblioteca, e olhar esses quadros num museu.
Eles
estão
em minha casa ou em casa de meus pais, eu os descubro entre meus
amigos, prendem meus olhares sobre o cais, nas vitrines das lojas
de antiquários.
No mais, fora das gravuras e dos livros, na sociedade
de
hoje,
o passado deixou muitos traços, visíveis algumas vezes,
ç
que
se
per
cebe também na expressão dos rostos,
no
aspecto dos lugares e
mes-
mo nos modos de pensar e de sentir, inconscientemente conservados
e reproduzidas por tais pessoas e dentro de tais ambientes, nem
nos
apercebemos disto, geralmente. Mas, basta que a atenção
se
volte para
esse lado para que nos apercebamos que
os
costumes modernos
re-
pousam sobre antigas camadas que afloram em mais de um lugar.
Algumas vezes, é preciso
r
muito longe, para descobrir ilhas
de
passado conservadas, parece, tais e quais, de tal modo que nos
sen-
tíssemos subitamente
t r n ~ p o r t d o s
a cinqüenta ou sessenta anos atrás.
Na Áustria, em Viena, certo dia, na família de um banqueiro para
a casa do qual eu fora convidado, tive
a
impressão de
me
encontrar
num salão francês, por volta de 1830. Era menos a decoração exte
rior, o mobiliário, do que uma atmosfera mundana bastante singular,
a maneira pela qual os grupos
se
formavam, não sei o que um pouco
convencional e compassado, como um reflexo do antigo regime .
Aconteceu-me também, em Argélia, numa região onde as habitações
européias estavam um pouco dispersas, e onde não se conseguia che-
gar a não ser em diligência, observar com curiosidade, tipos
de
homens e de mulheres que
me
pareciam familiares, porque
se
asse-
melhavam àqueles que eu havia visto em gravuras do Segundo 'Impé
rio, e imaginava que. dentro desse isolamento e desse afastamento,
os franceses que aqui vieram
se
estabelecer após a conquista e suas
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crianças deveriam viver sob um modelo de idéias e costumes que
datava ainda desta época. Em todo o caso. essas duas imagens, reais
ou imaginárias, reuniram em meu espírito lembranças que me repor
tavam para semelhantes meios: uma velha tia que eu via muito num
daqueles salões, um velho oficial em retirada que havia
viv ido
na
Argélia no período em que começava a colonização. Mas, sem sair
da
França, nem mesmo de Paris, ou de uma cidade onde sempre vive
mos é fácil e freqüente fazer observações do mesmo gênero. Se bem
que, depois de meio século, os aspectos urbanos tenham mudado mui
to, há mais de um quarteirão, em Paris, mesmo mais de uma rua ou
de um aglomerado de casas, que
se
sobressai do resto da cidade e que
mantém sua fisionomia de outrora. Os habitantes, entretanto, asse-
melham-se ao quarteirão ou
à
casa. Ora, há em cada época uma
estreita relação entre os hábitos, o espírito de um grupo e o aspecto
dos lugares onde ele vive. Houve uma Paris de 1860, cuja imagem
está estreitamente ligada à sociedade e aos costumes contemporâneos.
Não basta, para evocá-Ia, procurar as placas que homenageiam as
casas onde viveram e onde morreram alguns personagens famosos
dessa época, nem ler uma história das transformações de Paris. l na
cidade e na população de hoje que um observador. observa bem os
traços
de
outrora, sobretudo nas zonas menos nobres. onde se refu
giam pequenas oficinas e, ainda, em certos dias ou certas noites de
festa popular, na Paris comercial e operária, que mudou menos do
que a outra. Mas, Paris de outrora se encontra talvez melhor ainda
nas pequenas cidades de província, de onde não desapareceram os
tipos, os costumes mesmo, e os modos de falar que encontraríamos à
rua Saint-Honoré e nas avenidas parisienses do tempo de Balzac.
No
próprio círculo de nossos pais, nossos avós deixaram sua
marca. Não percebíamos outrora, porque éramos sobretudo sensíveis
ao que distingu iria uma geração da outra. Nossos pais caminhavam
a nossa frente, e nos orientavam para o futuro, l chegado um
mo-
mento em que eles se detêm e nós os ultrapassamos. Então, devemos
nos voltar para eles e parece que no presente foram envolvidos pelo
passado e que são confundidos agora por entre as sombras de outro
ra. Mareei Proust, em algumas páginas comoventes e profundas,
des-
creve
como, desde
as
semanas que seguiram a morte de sua avó, pa
recia-lhe que subitamente, graças aos seus traços, sua expressão e
todo seu aspecto sua mãe
se
identificava pouco a pouco àquela que
acabava de desaparecer e lhe representava a imagem. como se, atra
vés das gerações, um mesmo tipo
se
reproduzia em dois seres suces-
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sivos. Será isto simples fenômeno de transformação fisiológica e seria
preciso dizer que
se
reecontramos nossos avós em nossos pais é por
que nossos pais envelhecem e porque na escala das idades as lacunas
são logo ocupadas posto que não cessamos de decair?
Mas
talvez
antes seja porque nossa atenção mudou de sentido. Nossos pais e
nossos avós representavam para nós duas épocas distintas e nitida
mente separadas. Não percebíamos que nossos avós estavam mais
engajados no presente e nossos pais no passado do que o julgáva
mos. Entre o momento em que acordei em meio às pessoas e coisas
dez anos haviam se passado desde a guerra de 1870. O Segundo Im-
pério representava a meus olhos um período longínquo que corres
pondia a uma sociedade que quase havia desaparecido. No presente
doze a quinze anos me separam da grande guerra e suponho que
para meus filhos a sociedade de antes de 1914 que eles não conhe
ceram recue da mesma maneira num passado que sua memória julga
não poder atingir. Mas para mim entre os dois períodos não há
solução de continuidade. e a mesma sociedade transformada sem
dúvida por novas experiências aliviada talvez de preocupações ou
preconceitos antigos enriquecida de elementos mais jovens adaptada
de algum modo porque as circunstâncias mudaram mas é a mesma.
Há sem dúvida uma parte mais ou menos grande de ilusão em
mim como em meus filhos. Chegará um momento em que olhando
em torno
de
mim encontrarei somente um pequeno número daqueles
que viveram e pensaram comigo e como eu antes da guerra em que
compreenderei como tive algumas vezes o sentimento e a inquietude
que novas gerações se desenvolveram sobre a minha e que uma
so-
ciedade que por suas aspirações e seus costumes é para mim
em
larga medida estranha tomou o lugar daquela à qual
me
ligo mais
estreitamente; e meus filhos tendo mudado de ponto de vista sur
preender-se-ão ao descobrir subitamente como estou distante deles e
que por meus interesses minhas idéias e minhas lembranças eu es-
tava tão próximo de meus pais. Eles e eu estaremos então sem dú-
vida sob a influência de uma ilusão inversa: não estarei tão longe
deles posto que meus pais não estão tão longe de mim; mas confor
me
a idade e também as circunstâncias ficamos admirados sobretu
do das diferenças ou das semelhanças entre as gerações que ora ~
fecham sobre si mesmas e se afastam uma da outra ora se juntam.
e se confundem.
7
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Lembranças reconstruídas
Assim
- e é o que acabamos de demonstrar no que antecede
- a vida da criança mergulha mais do que
se
imagina nos meios
sociais
através
dos
quais entre em contato com um passa:do mais ou
menos
distante e que é como que o quadro dentro do qual são guar
dadas as suas lembranças mais pessoais. e esse passado vivido bem
mais do
que o passado apreendido pela história escrita sobre o qual
poderá mais tarde apoiar-se sua memória. Se no início ela não dis
tinguiu esse quadro e os estados de consciência que ali
se
desenrolam
é
bem verdade que pouco a pouco a separação entre seu pequeno
mundo
interior e a sociedade que a envolve se operará em seu es
pírito. Porém desde que essas duas espécies de elementos estiverem
na
origem estreitamente fundidos que aparecerem como fazendo par
te de seu eu de criança não
se
pode dizer que mais tarde todos
aqueles que correspondem ao meio social apresentar-se-ão a ela como
um quadro abstrato e artificial.
e
nesse sentido que a história vivida
se distingue da história escrita: ela tem tudo o que é preciso para
constituir um quadro vivo e natural em que um pensamento pode
se apoiar para conservar e reencontrar a imagem de seu passado.
Porém devemos agora ir mais longe. medida em que a criança
cresce
e sobretudo quando se toma adulta participa de maneira mais
distinta e mais refletida da vida e do pensamento desses grupos dos
quais fazia parte inicialmente sem disso aperceber-se. Como a idéia
que·
faz do
seu passado por esse motivo não seria modificada? Como
as informações novas que ela adquire informações de fatos refle
xões e idéias não reagiriam sobre suas lembranças? Temos freqüen
temente repetido: a lembrança é em larga medida uma reconstrução
do
passado com a ajuda de dados emprestados do presente e além
disso preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores
e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. Cer
tamente que se através da memória éramos colocados em contato
diretamente com alguma de nossas antigas impressões a lembrança
se distinguiria por definição dessas idéias mais ou menos precisas
que nossa reflexão ajudada pelos relatos os depoimentos e as confi
dências dos outros permite-nos fazer uma idéia
o
que foi o nosso
passado.
Mas
mesmo
se
é possível evocar de modo tão direto algumas
lembranças não o é em distinguir os casos em que procedemos assim
e aqueles onde imaginamos o que tenha acontecido. Podemos então
chamar de lembranças muitas representações que repousam pelo
me-
71
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nos em parte, em depoimentos e racionalização. Mas então, a parte
do social ou. se o quisermos, do histórico em nossa memória
de
nosso próprio passado, é muito maior do que pensávamos. Porque
temos, desde a infância em contato
com
os adultos, adquirido muitos
meios de encontrar e precisar muitas lembranças que, sem estes,
as
teríamos em sua totalidade ou em parte, esquecido rapidamente.
Aqui, sem dúyida, chocamo-nos com uma objeção já menciona
da e que merece ser examinada um pouco mais. Será que basta re-
construir a noção histórica de um acontecimento que certamente
aconteceu, mas do qual não guardamos nenhuma impressão, para se
constituir todas
as
peças
de
uma lembrança? Por exemplo, eu sei,
porque me disseram e porque refletindo, aquilo me pareceu certo,
que houve um dia em que fui pela primeira vez ao ginásio. Entre
tanto, eu não tenho nenhuma lembrança pessoal e direta desse even-
to. Talvez porque tendo ido muitos dias sucessivos ao mesmo giná-
sio, todas essas lembranças se confundiram. Talvez ainda, porque
estava emocionado, nesse primeiro dia: Não tenho, disse Stendhal,
nenhuma memória das épocas ou dos momentos que senti vivamen-
. te . Vie e Henri Brulard).
e
suficiente que eu reconstitua o quadro
histórico desse evento para que eu possa dizer que dele tenha re-
criado a lembrança?
Certamente, eu não teria, na realidade, nenhuma lembrança desse
evento, e se me ativesse unicamente à noção histórica à qual me re-
duzem, a conseqüência se seguiria: um quadro vazio não pode preen
cher-se sozinho; é o saber abstrato que interviria, e não a memória.
Mas, sem se lembrar de um dia, pode-se lembrar de um período, e
não é certo que a lembrança de um período seja simplesmente a
so-
ma das lembranças de alguns dias. À medida em que
os
acontecimen
tos
se
distanciam, temos o hábito de lembrá-los sob a forma de
con-
juntos, sobre
os
quais se destacam
às
vezes alguns dentre eles, mas
que abrangem muitos outros elementos, sem que possainos distinguir
um. do outro, nem jamais fazer deles uma n u m r ~ ç ã o completa.
e
assim que tendo· freqüentado sucessivamente várias escolas, pensio
natos e colégios, e tendo entrado a cada ano numa nova classe, tenho
ull].a lembrança geral de todas essas entradas, que abrange o dia
es-
pecial em que entrei pela primeira
vez no
colégio. Não posso dizer
então que me lembro desta chegada, mas não posso dizer que não
me
lembro. Por outro, a noção histórica de minha entrada no colégio não é
abstrata. De início, eu li desde então,
um
certo número
de
relatos, reais
ou fictícios, nos quais se descreve as impressões de uma criança que
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pisa pela primeira
vez
numa sala de aula. I bem possível que, quando
as
li, a lembrança pessoal que eu guardava de semelhantes impressões
tenha
se
fundido com a descrição do livro. Eu
me
recordo dessas des
crições, e é talvez nelas em que
se
encontra conservada e que rememo
ro sem
o saber tudo aquilo que subsiste de minha impressão assim
transposta. Seja como for, a idéia, assim concretizada, não
é
mais um
simples esquema sem conteúdo. Some-se que, do colégio onde entrei pe-
la primeira vez, conheço e me lembro de muitas coisas além do nome,
ou
a localização numa planta. Estive ali em cada dia dessa época, eu o
revi várias vezes depois. Mesmo que não o revisse, conheci outros
colégios levei minhas crianças. Do meio familiar que deixava quando
ia para aula, lembro-me de muitas
características, porque permaneci
depois em contato com os meus: não
se
trata de uma família qual
quer, mas de um grupo vivo e concreto, cuja imagem se encaixa na
turalmente ao quadro tal como o recriei, de minha primeira entrada
em aula. Que objeção vemos, por conseguinte, nisto que refletindo
sobre o que devia ser nossa primeira entrada em aula, conseguiria
dela recriar a atmosfera e o aspecto geral? Imagem flutuante, incom
pleta, sem dúvida e, sobretudo, imagem reconstruída: mas quantas
lembranças que acreditamos ter fielmente conservado e cuja identi
dade não nos parece duvidosa, são elas forjadas também quase que
inteiramente sobre falsos reconhecimentos,
de
acordo com relatos e
depoimentos Um quadro não pode produzir totalmente sozinho uma
lembrança precisa e pitoresca. Porém aqui, o quadro está repleto de
reflexões pessoais, de lembranças familiares, e a lembrança é uma
imagem engajada em outras imagens, uma imagem genérica reportada
ao passado.
embranças simuladas
Diremos da mesma maneira: é inútil, se eu quiser ordenar e
precisar todas aquelas minhas lembranças que poderiam
é
restituir
a imagem e a pessoa de meu pai tal como o conheci, que eu passe
em revista os acontecimentos da história contemporânea durante o
período em que ele viveu. Entretanto,
se
eu encontrar alguém que
o tenha conhecido e que
me
fale sobre ele os detalhes e circunstâncias
que eu ignorasse,
se
minha mãe ampliasse e completasse o quadro
de sua vida e dele me esclarecesse certas partes que eram obscuras
para mim, não será verdade, desta vez, que eu teria a impressão de
voltar para dentro do passado e aumentar toda uma categoria de
7
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minhas lembranças? Não é esta uma simples ilusão retrospectiva
como se eu encontrasse uma carta dele que pudesse ler enquanto
vivia se bem que essas novas lembranças correspondentes a im-
pressões recentes viriam se justapor
às
outras sem se confundirem
realmente com elas. Mas a lembrança de meu pai em seu conjunto
se transforma e me parece agora mais adequada à realidade. A ima
gem que fiz de meu pai desde que o conheci não parou de evoluir
não somente porque durante sua vida as lembranças se juntaram
às lembranças: mas eu mesmo mudei isto é meu ponto de vista se
deslocou porque eu ocupava dentro de minha família um lugar di-
ferente e sobretudo porque fazia parte de outros meios. Diremos que
há entretanto uma imagem de meu pai que deve sobrepujar por
seu caráter autêntico todas as outras: será aquela que ficou fixada
no momento de sua morte? Mas até esse momento quantas vezes
ela já não teria se transformado? Além do mais a morte que põe
um fim à vida fisiológica não interrompe bruscamente a corrente
dos pensamentos de modo que eles se desenvolvem no interior do
círculo daquele cujo corpo desapareceu. Algum tempo ainda nós o
imaginamos como se ainda vivesse ele permanece engajado à vida
quotidiana imaginamos o que ele diria e faria em tais c i r c u n s t â n c i s ~
E depois
d
morte de alguém que a atenção dos seus
se
fixa com
maior força sobre sua pessoa. E então também que sua imagem é
a menos nítida que ela se trans forma constantemente conforme as
diversas partes de sua vida que evocamos. Em realidade nunca a
imagem de um falecido se imobiliza. medida em que recua no
passado muda porque algumas impressões se apagam e outras se
sobressaem segundo o ponto de vista de onde a encaramos isto é
segundo as condições novas onde ela se encontra quando nos volta
mos para ela. Tudo o que aprendo de novo sobre meu pai e também
sobre aqueles que foram
ou
estiveram em relação com ele todos
os
novos julgamentos que faço sobre a época em que ele viveu todas
as novas reflexões que faço à medida que me torno mais capaz de
pensar e que disponho de mais termos de comparação inclinam-se a
retocar seu retrato. E assim que o passado tal como me aparecia
outrora enfraquece-se lentamente.
As
novas imagens recobrem
as
antigas como nossos parentes mais próximos se interpõem entre nós
e nossos ascendentes longínquos se bem que destes conhecemos
apenas aquilo que aqueles nos confiam. Os grupos dos quais faço
parte nas diversas épocas não são mais os mesmos. Ora é do ponto
de vista deles que considero o passado. E preciso então que à me
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,
I
dida
em
que estou mais engajado nesses grupos e que participo mais
estreitamente em sua memória, minhas lembranças se renovem e se
completem.
Isso supõe, é verdade, uma dupla condição: por um lado, que
minhas próprias lembranças, tais como eram antes que eu entrasse
nesses grupos, não fossem igualmente esclarecidas sobre todOf
os
seus
aspectos como se, até aqui, não as tivéssemos inteiramente percebido
e compreendido; por outro lado, que
as
lembranças desses grupos
não estejam
sem
relação com os acontecimentos que constituem meu
passado.
A primeira condição é preenchida pelo fato que muito de nossas
lembranças remontam a períodos onde, por falta de maturidade, de
experiência ou de atenção, o sentido de mais de um fato, a natureza
de mais de um objeto ou de uma pessoa nos escapavam pela metade.
Estávamos, por assim dizer, engajados por demais ainda
no
grupo
das crianças e já pertencíamos por uma parte de nosso espírito, p
rém não tão estreitamente, ao grupo
dos
adultos. Então, alguns efei
tos
de
claro-escuro: o que interessa a um adulto nos chama a atenção
também,
mas
muitas vezes pela única razão que sentimos como os
adultos se interessam por isto, e permanece dentro
de
nossa memó-
ria como um problema que não compreendemos, porém sabemos que
pode ser revolvido. Algumas vezes, não observamos mesmo,, a hora,
esses aspectos indefinidos, essas zonas
de
obscuridade, mas não as
esquecemos todavia, porque envolvem nossas lembranças, as mais ní
tidas, e nos ajudam a passsar de uma a outra. Quando uma criança
adormece
em seu
leito e desperta no trem, seu pensamento encontra
segurança no sentimento que aqui e
lá
permaneceu sob a segurança
de
seus pais,
sem
que, aliás, possa explicar como e porquê agiram
assim nesse intervalo. Há muitos graus nesta ignorância ou nesta in
compreensão, e num e noutro sentido, não atingimos jamais o limite
da clareza total ou da sombra inteiramente impenetrável.
Uma cena de nosso passado pode nos parecer tal que não tere
mos
nada a suprimir nem acrescentar, e que nunca haverá nada de
menos nem de mais para compreender. Porém, se encontrássemos al-
guém que dela tivesse participado ou a tivesse assistido, que a evoque
e a relate: após tê-lo ouvido, não teremos mais certeza do que antes
que não poderíamos nos enganar sobre a ordem dos detalhes, a im-
portância relativa das partes e o sentido geral do evento; porque é
impossível que duas pessoas que viram o mesmo fato, quando o
narram algum tempo depois, o reproduzam com traços idênticos.
Re
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portemo-nos ainda aqui
à
vida de Henri Brulard. Stendhal conta co-
mo ele e dois amigos dispararam, quando ainda criança,
um
tiro de
pistola sobre a árvore da Fraternidade. E uma sucessão
de
cenas
muito simples. Porém, a cada instante, seu amigo
R.
Colomb, escre
vendo o manuscrito, registra erros. "Os soldados quase
nos
tocavam,
diz Stendhal, nós fugimos pela porta G. da casa de meu avô, porém
nos viram muito bem. Todo mundo estava nas janelas. Muitos apro
ximavam as velas e iluminava". "Erro, escreve
Colombo
Tudo isto
teve lugar em quatro minutos depois do tiro. Então, estávamos os
três dentro da casa". "Ele e
um
outro (Colomb talvez), continua
Stendhal, entraram na casa e
se
refugiaram junto a duas velhas mo-
distas, muito piedosas". Os policiais chegam. Essas velhas jansenistas
mentem, dizendo que eles passaram lá toda a noite. Nota
de
R.
Co
10mb: "Não foi somente H.
B.
(Stendhal) que entrou na casa das se-
nhoritas Caudey.
R.
C. (ele mesmo) e Mante fugiram pela passagem
nos
celeiros e atingiram assim a Grande-Rue". Stendhal: "Quando
não ouvíamos mais os policiais, saímos e continuamos a subir através
da passagem". Colomb: "Erros". Stendhal: "Mante e Treillard, mais
ágeis do que nós (Colomb: "Treillard não estava com nós três")
con-
taram-nos no dia seguinte que, quando chegaram à porta da Grande
Rue, encontraram-na ocupada por dois guardas. Eles começaram a
falar de amabilidade das senhoritas com as quais haviam passado a
noite. Os guardas não lhes fizeram nenhuma pergunta e eles
sumi-
ram. A narração que fizeram foi tal que se configurou tamanha im-
pressão da realidade que eu não saberia dizer
se
não foi Colomb e
eu que saímos falando da amabilidade dessas senhoritas". Colomb:
"Na realidade,
R.
C.
e Mante trepavam nos celeiros onde
R.
C.,
res-
friado do peito encheu a boca
de
suco de alcaçuz, a
fim
de que sua
tosse não atraísse a atenção dos procuradores da casa.
R.
C. se lem-
bra de um corredor que na metade
se
comunicaria com uma escada
de serviço que dava para a Grande-Rue. E lá que viram duas pessoas
que tomaram como agentes de polícia e
se
puseram a conversar tran
qüilamente como crianças, que voltam para casa depois
de
brincar.
Stendhal: "Escrevendo isso, a imagem da árvore da Fraternidade sur
ge
diante
de
meus olhos. Minha memória faz descobertas. Acredito
ver que a árvore da Fraternidade era cercada por um muro, com dois
pés de altura, guarnecido de pedras e sustentando uma grade
de
ferro de cinco ou seis pés de altura".
R.
Colomb: "Não " - Não é
inútil observar, por exemplo, quais partes de um relato, que pareciam
até então tão luminosas quanto as outras, vão repentinamente mudar
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de aspecto, e
se
tornar obscuras ou duvidosas, até substituí-Ias por
traços e caracteres opostos, desde
que
uma
outra
testemunhava con
frontará suas lembranças com as nossas. A imaginação de Stendhal
ocupou as lacunas de sua memória:
em
sua
narrativa tudo
parece
merecer fé, uma mesma luz parece iluminar todas as paredes; mas
s fissuras se revelam
quando
as consideramos sob um
outro
ângulo.
Inversamente, não
há na
memória, vazio absoluto, quer dizer,
regiões de nosso passado saídas de nossa memória de sorte
que
toda
imagem que ali projetamos não pode agarrar-se a nenhum elemento
de
lembrança e descobre uma imaginação pura e simples, ou uma
representação histórica
que
nos permaneça exterior. Não esquecemos
nada, porém esta proposição pode ser entendida em sentidos diferen
tes. Para Bergson, o passado permanece inteiramente
dentro
de nossa
memória, tal como foi
para
nós; porém alguns obstáculos, em parti
cular o comportamento de nosso cérebro, impedem
que
evoquemos
dele todas as partes. Em todo caso, as imagens dos acontecimentos
passados estão completas em nosso espírito na parte inconsciente de
nosso espírito) como páginas impressas nos livros
que
poderíamos
abrir, ainda que não os abríssemos mais. ara nós, ao contrário, não
subsistem, em alguma galeria subterrânea de nosso pensamento, ima-
. gens completamente prontas, mas na sociedade,
onde
estão todas as
indicações necessárias para reconstruir tais partes de nosso passado,
s quais nos representamos de modo incompleto ou indistinto, ou
que, até mesmo, cremos
que
provêm completamente de nossa memó
ria. De onde vêm realmente que, uma vez
que
o acaso nos coloca
em presença daqueles
que
participaram dos mesmos acontecimentos,
que deles foram atores ou testemunhas ao mesmo tempo
que
nós,
quando nos contam
ou
descobrimos de modo diferente o
que
se pas
sava então em torno de nós, preenchemos essas aparentes lacunas? e
que na realidade o que tomávamos
por um
espaço vazio não passava
de uma região pouco definida, da qual nosso pensamento se desviava,
porque nela encontrava poucos vestígios. Uma vez
que
nos indiquem
com precisão o caminho
que
temos
que
seguir, esses traços se eviden
ciam, os ligamos um ao outro, aprofundam-se e se juntam
por
si mes
mos. Então eles existem, porém eram mais marcantes na memória
dos outros do
que
em nós mesmos. Sem dúvida, reconstruímos,
mas
essa reconstrução se
opera
segundo linhas já demarcadas e delineadas
por nossas
outras
lembranças ou pelas lembranças dos outros. As no
vas imagens se polarizam em tomo do que, para essas outras lembran
ças, permaneceria sem elas. indeciso e inexplicável, mas que nem por
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isso deixaria de ser uma realidade. t assim que quando percorremos
os antigos bairros de uma grande cidade experimentamos uma satis
fação particular
em
que nos contem de novo a história daquelas ruas
e casas. Ali estão tantas informações novas mas que nos
parecem en-
tretanto familiares porque se amoldam às nossas impressões e ocupam
um lugar sem dificuldade no cenário subsistente. Parece-nos que
esse
cenário por si mesmo e totalmente só teria podido evocá-las e o
que imaginamos não é senão o desenrolar daquilo que já havíamos
percebido.
t
que o quadro que
se
descortina sob nossos olhos estava
carregado de uma significação que permanecia obscura para nós
po-
rém da qual pressentíamos alguma coisa. A natureza
dos
seres
com
os quais vivemos deve nos ser revelada e explicada à luz de toda
nossa experiência tal como ela se conformou nos períodos seguintes.
O novo quadro projetado sobre os fatos que já conhecíamos ali nos
revela mais de um traço que nele se posiciona e que dele recebe
um
significado mais claro.
t
assim que a memória
se
enriquece de bens
alheios que desde que se tenham enraizado e encontrado seu lugar
não
se distinguem mais das outras lembranças.
Quadros longínquos e meios próximos
Para que a memória dos outros venha assim reforçar e
comple-
tar a nossa é preciso também dizíamos que as lembranças desses
grupos não estejam absolutamente sem relação
com
os eventos que
constituem o meu passado. Cada um de nós com efeito é membro
ao
mesmo tempo de vários grupos maiores ou menores. Ora se
fi-
xamos nossa atenção sobre os grupos maiores por exemplo a nação
ainda que nossa vida e a de nossos pais ou
de
nossos amigos estejam
compreendidas nela não podemos dizer que a nação
como
tal se
i n t ~ s s pelos destinos individuais de cada um de seus membros.
Admitamos que a história nacional seja um resumo fiel
dos
aconteci
mentos mais importantes que modificaram a vida
de
uma nação. Ela
se
distingue das histórias locais provinciais. urbanas devido a que
ela retém. somente os fatos que interessam ao conjunto
dos
cidadãos
ou se
o quisermos
aos
cidadãos como membros da nação. Para que
a história assim entendida mesmo que seja muito detalhada ajude
nos
a conservar e encontrar a lembrança de um destino individual
é preciso que o indivíduo considerado tenha sido ele mesmo um per-
sonagem histórico. Certamente há momentos em que todos os ho-
mens de um país esquecem seus interesses. sua família
os
grupos
res
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tritos
nos
limites
dos
quais se detém geralmente o seu horizonte. Há
acontecimentos nacionais que modificam ao mesmo tempo todas as
existências. Eles são raros. Embora possam oferecer a todos os ho-
mens
de um
país alguns pontos
de
referência no tempo.
Mas
geral·
mente a nação está longe demais do indivíduo para que este
o n s i ~
dere a história de seu país de outro modo do que como um quadro
muito amplo com o qual sua história pessoal não tem senão muito
poucos pontos de contato. Em vários romances que retratam o desti-
no de uma família ou de um homem não importa que saibamos
em
que época esses acontecimentos
se
deram: não perderiam nada de seu
conteúdo psicológico se os transportássemos de um período para outro.
A vida interior não
se
intensifica à medida
em
que
se
isola das cir-
cunstâncias exteriores que passam para o primeiro plano da memó-
ria histórica? Se mais de um romance ou peça de teatro são situados
por seu ator num período distante de nós em vários séculos não será
geralmente um artifício tendo
em
vista isolar o quadro dos aconteci-
mentos atuais e melhor fazer sentir a que ponto o jogo dos senti-
mentos é independente dos acontecimentos da história e se assemelha
a
si mesmo
através
do
tempo?
Se
por memória histórica entende-
mos
a seqüência dos acontecimentos dos quais a história nacional
conserva a lembrança não é ela não são seus os quadros que re-
presentam o essencial daquilo que chamamos memória coletiva.
Mas entre o indivíduo e a nação há muitos outros grupos mais
restritos do que esse que também eles têm sua memória e cujas
transformações atuam muito mais diretamente sobre a vida e o pen-
samento de seus membros. Que um advogado guarde a lembrança
das causas que defendeu um médico dos doentes que cuidou; que
um
ou
outro
se
lembre dos homens de sua profissão com os quais
manteve relação não avançam eles muito à frente quando fixam sua
atenção sobre todas essas figuras sobre o detalhe de sua vida pessoal
e não evocam eles também pensamentos e preocupações que estão
1
lig8Jios
ao seu
eu
de antigamente aos destinos de sua família às suas
relações de amizade isto é a tudo aquilo que constitui sua história?
Certamentc?
isso tudo é apenas um aspecto de sua vida. Mas obser-
vamos
cada homem está mergulhado ao mesmo tempo ou sucessiva-
mente em vários grupos. Cada grupo aliás se divide e se restringe
no tempo e
no
espaço. no interior dessas sociedades que
se
desen-
volvem tantas memórias coletivas originais que mantêm por algum
tempo a lembrança
de
acontecimentos que não têm importância se-
não para elas
mas
que interessam tanto mais que seus membros que
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sào pouco numerosos. Embora seja fácil ser esquecido e passar des-
percebido dentro
de
uma grande cidade, os habitantes
de um
peque-
.
no
vilarejo
não
param de
se
observar mutuamente, e a memória
de
seu grupo registra fielmente tudo aquilo que pode dizer respeito aos
acontecimentos e gestos de cada um deles, porque repercutem sobre
essa pequena sociedade e contribuem para modificá-la. Dentro
de
tais
meios. todos os indivíduos pensam e
se
recordam
em
comum. Cada
um sem dúvida. tem sua perspectiva. mas em relação e correspondên
cia tão estreitas com aqueles outros que, se suas lembranças se de-
formam, basta que ele se coloque do ponto de vista dos outros para
retificá-Ias.
Oposição final
Entre a memória coletiva e a história
De
tudo o que foi dito anteriormente
se
conclui que a memória
coletiva não se confunde com a história, e que a expressão memória
histórica não foi escolhida com muita felicidade. pois associa dois
termos que
se
opõem em mais de um ponto. A história. sem dúvida.
é a compilação dos fatos que ocuparam o maior espaço na memória
dos homens.
Mas
lidos em livros, ensinados e aprendidos nas escolas.
os acontecimentos passados são escolhidos, aproximados e classifica
dos conforme
as
necessidades ou regras que; não se impunham aos
círculos de homens que deles guardaram por muito tempo a lembran
ça viva. porque geralmente a história começa somente no ponto
onde acaba a tradição, momento em que
se
apaga ou se decompõe a
memória social. Enquanto uma lembrança subsiste, é inútil fixá-la
por escrito, nem mesmo fixá-la, pura e simplesmente. Assim, a
ne-
cessidade de escrever a história de um período,
de
uma sociedade, e
mesmo de uma pessoa desperta somente quando eles já estão muito
distantes no passado, para que se tivesse a oportunidade de encontrar
por muito tempo ainda em tomo de
si
muitas testemunhas que dela
conservem alguma lembrança. Quando a memória de uma seqüência
de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, aquele mes-
mo
em que esteve engajada ou que dela suportou as conseqüências,
que lhe assistiu ou dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores
e espectadores, quando ela
se
dispersa por entre alguns espíritos in-
dividuais, perdidos em novas sociedades para as quais esses fatos não
interessam mais porque lhes são decididamente exteriores, então o
único meio
de
salvar tais lembranças. é fixá-las por escrito em uma
8
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narrativa seguida uma vez que
as
palavras e os pensamentQs morrem.
mas
os
escritos permanecem. Se a condição necessária, para que haja
memória, é que o sujeito que
se
lembra, indivíduo ou grupo, tenha o
sentimento de que busca suas lembranças num movimento contínuo,
como
a história seria uma memória, uma
vez
que há uma solução
de
continuidade entre a sociedade que lê esta história, e os grupos tes
temunhas ou atores, outrora, dos fatos que ali são narrados?
Certamente, um dos objetivos da história pode ser,exatamente,
,lançar uma ponte entre o passado e o presente, e restabelecer essa
continuidade interrompida. Porém, como recriar correntes de pensa
mento
coletivo que tomam impulso no passado, quando só podemos
tratar do presente? Os historiadores, através de um trabalho minu
cioso,
podem encontrar e colocar em dia uma quantidade
de
fatos
grandes e pequenos que julgaríamos definitivamente perdidos, sobre
tudo se tiverem a oportunidade de descobrir memórias inéditas. En-
tretanto, uma
vez
que, por exemplo,
as
Mémoires de Saint-Simon fo-
ram publicadas no início do século XIX, pode-se dizer que a socie
dade francesa de 1830 retomou realmente contato, um contato vivo e
direto, com o fim do século XVII e o período da Regência? O que
foi
transcrito dessas
Mémoires
para
os
livros básicos aqueles que são
lidos por um número bastante grande de homens para criar estados
de opinião coletivos? O único efeito
de
tais publicações, é de nos
·
azer
compreender a que ponto estamos distantes daquele que escre-
·veu e daqueles que ele descreve. Não basta que alguns indivíduos
:dispersos
tenham consagrado a essa leitura muito tempo e esforço de
atenção para derrubar as barreiras que nos separam dessa época. O
estudo da história assim entendido não está reservado senão para
alguns
especialistas, e mesmo quando haja um círculo de leitores das
Mémoires de Saint-Simon ele seria decididamente muito limitado
para
atingir um público numeroso.
A história que quiser rratar dos detalhes dos fatos, torna-se eru
dita e a erudição é condição de apenas uma minoria. Se ela se limita,
ao contrário, a conservar a imagem do passado que possa ainda ter
-
seu
lugar na memória coletiva de hoje, ela apenas retém dela aquilo
'que ainda interessa às nossas sociedades, isto é, em resumo, bem
·
pouca
coisa.
A memória coletiva se distingue da história pelo menos sob dois
aspectos. uma corrente de pensamento contínuo, de uma continui-
·
dade
que nada tem de artificial, já que retém do passado somente,
aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo
8
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que a mantém. Por d e f i n i ç ~ _ e l ~ não ultrapassa os limites deste grupo.
-Quando um. período deixa de interessarao períodoseguínte-;--não é
um mesmo--grtipo que ésqüece-üma parte de seu
pass-àdo-:-há
na
realidade, dois grupos que
s
sucêdém. A história divideasêêlliêiicia
dos-:SéCulos em-períodos, como se distribui o conteúdo e ~ a tragé
dfa-emvários
atos.-
Porém,
e ~ q u a n t o
que numa peça,
de
um ato parâ
outro, a mesma ação prossegue com os mesmos personagens, que
per
manecem até o desenlace de acordo com seus papéis, e cujos
senti
mentos e paixões progridem num movimento ininterrupto, na história
se
tem a impressão de que, de um período a outro, tudo é renovado,
interesses
em
jogo, orientação dos espíritos, maneiras de ver
os ho
mens e os acontecimentos, tradições também e perspectivas para o
futuro, e que se, aparentemente reaparecem
os
mesmos grupos, é
porque as divisões exteriores, que resultam dos lugares, dos nomes
e também da natureza geral das sociedades, subsistem. Mas os con
juntos de homens que constituem um
mesmo
grupo
em
dois períodos
sucessivos são como duas barras em
contato por suas extremidades
opostas, mas que não se juntam de outro modo, e não formam real
mente um mesmo corpo.
Sem dúvida, não
se
vê desde o início, na sucessão das gerações,
razão_ suficiente para que, num momento mais do que em outros, sua
continuidade
se
interrompa, uma vez que o número
dos
nascimentos
varia muito pouco de um ano para outro, se bem que a sociedade se
assemelhe a essas tramas de fios obtidos passando um sobre o outro, de
modo que eles se escalonam regularmente, numa série
de
fibras ani
mais ou vegetais, ou de preferência. no tecido. que resulta do entre
Cruzamento de todos esses fios.
g
verdade que o tecido de algodão
ou de seda
se
divide e que
as
linhas
de
divisão correspondem
ao
objetivo de um modelo ou de um desenho. Será que acontece isso
mesmo na sucessão das gerações?
A história, que se coloca fora dos grupos e acima deles, não va
cila em introduzir na corrente dos fatos divisões simples e cujo lugar
está fixado de uma vez por todas. Ela obedece, assim fazendo, so
mente a uma necessidade didática
de
esquematização. Parece que ela
considera cada período como um todo, independente em grande parte
daquele· que o precede e daquele que o segue. porque ela
tem
uma
tarefa boa, má ou indiferente. a cumprir. Enquanto essa obra não
estiver acabada, enquanto tais situações nacionais, políticas, religiosas
não tenham desenvolvido todas as conseQüências que comportavam
82
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não
levando em conta as diferenças
de
idade, tanto os jovens
como
os velhos se limitariam ao mesmo horizonte. Uma vez concluída, e
que novas
tarefas
se
ofereçam ou se imponham, a partir deste momen-
to as
gerações
que vêm se encontram numa outra vertente diferente
das precedentes.
Há
alguns retardatários. Mas os jovens arrastam
consigo
uma parte
dos
adultos
mais
velhos, que apressam o
passo
como se
temessem
perder uma boa ocasião . Inversamente, aqueles
que se distribuem entre as duas vertentes que estejam muito próximos
da linha
que
separa, não se encontram
em
situação melhor, ignoram
se
também uns aos outros
como
se estivessem mais abaixo, uns em
determinada altura, outros em outra, quer dizer, mais distantes
no
passado, e dentro daquilo que não é mais o passado ou,
se
o quiser
mos
em
pontos
mais
distantes um do outro, sobre a linha sinuosa
do tempo.
Nem tudo é incerto neste quadro. Vistos de longe e de conjunto,
mas sobretudo vistos
de
fora, contemplados por um espectador que
não
faz parte dos grupos que observa, os fatos se deixam assim
agrupar em conjuntos sucessivos e separados, cada período tendo um
começo um
meio e um
fim. Mas
a história que se interessa sobretu
do
pelas diferenças e contradições, do
mesmo modo
que ela enfoca
e relata
uma
figura individual, de maneira que se tornem bem visí-
veis os traços dispersos dentro
do
grupo, relata também e se concen
tra sobre um intervalo
de
alguns anos
de
transformações que, na
realidade, completaram-se em um tempo muito mais longo.
e
pos-
sível que
no
dia seguinte
de
um acontecimento que sacudiu, destruiu
em parte, renovou a estrutura de uma sociedade, um outro período
comece. Mas disso nos aperceberemos somente mais tarde, quando
uma nova
sociedade. realmente. tiver tirado
de si mesma
novos
re-
cursos. e quando
ela
se propuser outros objetivos.
Os
historiadores
não podem levar a sério estas linhas de separação, e imaginar que
foram remarcadas por aqueles
que
viveram durante
os
anos que elas
atravessaram,
como
aquele personagem
de
comédia
diz:
Hoje co-
meça
a guerra
dos
cem anos:» Quem sabe
se
depois de uma guerra,
de uma
revolução, que tenham escavado um fosso entre duas socie-
dades
de
homens,
como
se
uma
geração intermediária houvesse
desa-
parecido, a sociedade jovem ou a parte jovem da sociedade não se
preocupe
sobretudo,
de
acordo com a porção idosa,
em
apagar
os
traços dessa ruptura, de reaproximar as gerações extremas, e de man-
ter
apesar
de
tudo, a continuidade da evolução?
B
preciso ainda que
8
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a sociedade viva; mesmo que
as
instituições sociais estejam profun
damente transformadas, e então, mesmo que o estejam, o melhor
meio
de fazê-las criar raiz, é a j u d á I a ~
em
tudo aquilo que
se
puder apro
veitar das tradições. Então, depois dessas crises repetir-se-á: é preciso
recomeçar do ponto onde fomos interrompidos, é preciso retomar
as
coisas do início. E depois
de
algum tempo,
com
efeito, imagina-se
que nada mudou, porque se reata o fio da continuidade.
Essa ilusão,
da qual nos desembaraçaremos logo. terá pelo menos permitido que
passemos de uma etapa a outra sem que a memória coletiva tivesse
em
nenhum momento o sentimento de
se
interromper.
Em
realidade, no desenvolvimento contínuo da memória
cole-
tiva, não há linhas de separação nitidamente traçadas, como na his-
tória, mas somente limites irregulares e incertos. O presente (enten
dido como estendendo-se por uma certa duração, aquela que interessa
à sociedade de hoje) não
se
opõe ao passado, configurando-se dois
períodos históricos vizinhos. Porque o passado não mais existe,
en-
quanto que. para o historiador,
os
dois períodos
têm
realidade. tanto
um
quanto o outro. A memória de uma sociedade estende-se até onde
pode. quer dizer. até onde atinge a memória dos grupos dos quais
ela é composta. Não é por má vontade, antipatia. repulsa ou indife
rença que ela esquece uma quantidade tão grande de acontecimentos
e de antigas figuras. E porque os grupos que dela guardavam a
lem-
brança desapareceram.
Se
a duração da vida humana for duplicada
ou triplicada. o campo da memória coletiva. medido
em
unidade de
tempo, será bem mais extenso. Não é evidente aliás, que essa
me-
mória ampliada teria um conteúdo mais rico.
se
a sociedade ligada
por tantas tradições evoluísse com mais dificuldade. Da mesma ma-
neira,
se
a vida humana fosse mais curta, uma memória coletiva
re-
cob indo um período mais restrito, não estaria talvez mais empobre
cida, porque, numa sociedade assim aliviada,
as
mudanças
se
precipi
tariam. Em todo o caso, uma vez que a memória de uma sociedade
se esgota lentamente, sobre
as
bordas que assinalam seus limites, à
medida em que seus membros individuais, sobretudo os mais velhos,
desapareçam ou se isolem, ela não cessa de se transformar, e o grupo,
ele próprio, muda sem cessar.
E
aliás, difícil dizer em que momento
uma lembrança coletiva desapareceu, e
se
decididamente deixou a
consciência do grupo, precisamente porque, basta que
se
conserve
numa parte limitada do corpo social, para que possamos encontrá-Ia
sempre ali.
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A história quadro de acontecimentos
s
memórias coletivas centros de tradições
Há, com efeito, muitas memórias coletivas. Ê a segunda caracte-
rística pela qual elas
se
distinguem da história. A história é uma e
podemos dizer que não há senão uma história. Isto é o que entende
mos por ela. Certamente, podemos distinguir a história da França.
a história da Alemanha. a história da Itália. e ainda a história de
t l período ou de tal região, de uma cidade e mesmo de um indi
víduo). Reprovamos ainda l g ~ m s vezes, ao labor histórico esse ex
cesso de especialização e o go,to extremo pelo estudo detalhado que
se
desvia do conjunto e toma de alguma forma a parte pelo todo. Mas,
analisemos mais
de
perto. O que justifica aos olhos do historiador
estas pesquisas de detalhe, é que o detalhe somado ao detalhe resul
tará num conjunto, esse conjunto se somará a outros conjuntos, e que,
no quadro total que resultará de todas essas sucessivas somas, nada
está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto o
outro, e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida. Ora.
um
t l
gênero de apreciação resulta de que não se considera o ponto
de
vista de nenhum dos grupos reais e vivos que existem. ou mesmo
que existiram, para quem. ao contrário. todos acontecimentos. todos
os lugares e todos os períodos estão longe de apresentar a mesma
importância, uma vez que não foram por eles afetados da mesma ma
neira. Mas um historiador julga ser bastante objetivo e imparcial. Mes
mo quando escreve a história de seu país, ele se esforça em reunir
um
conjunto de fatos que poderá ser justaposto a outro conjunto,
à
história de um outro país, de maneira que não haja de
um
a outro
nenhuma solução de continuidade, e, que dentro do panorama total
d
história da Europa, encontremos não a reunião de vários pontos
de vista nacionais sobre os fatos, antes porém a série e a totalidade
dos fatos tais como são, não para tal país ou para tal grupo, mas
independentemente de qualquer julgamento de grupo. Então, dentro
de
um
tal quadro, as divisões propriamente que separam os países são
f tos
históricos do mesmo valor que os outros. Está tudo então sobre o
mesmo plano. O mundo histórico é como um oceano onde afluem to
d s
s
histórias parciais. Não é de estranhar de que na origem da
história, e mesmo
em
todas s épocas. se tenha sonhado escrever
tantas histórias universais. Tal é a orientação natural do espírito his
tórico. Esta
é
a inclinação fatal. dentro da qual todo historiador seria
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arrastado
se
não fosse contido no âmbito de trabalhos mais l i m i t ~
dos por modéstia ou falta de fôlego.
Certamente a musa da histórica é Polímnia. A história pode apre
sentar-se
como
a memória universal
do
gênero humano. Mas não exis-
te memória universal. Toda a memória coletiva tem por suporte um
grupo limitado no espaço e no tempo. Não se pode concentrar num
único quadro a totalidade
dos
acontecimentos passados senão na
con-
dição de desligá-los da memória dos grupos que deles guardavam a
lembrança romper as amarras pelas quais participavam da vida psi-
cológica
dos
meios sociais onde aconteceram de não manter deles
senão o esquema cronológico e espacial. Não
se
trata mais de
revivê-
los
em sua realidade porém de recolocá-los dentro dos quadros nos
quais a história dispõe
os
acontecimentos quadros que permanecem
exteriores aos grupos em si mesmos e defini-los confrontando-os uns
aos outros. 1 como dizer que a história se interessa sobretudo pelas
diferenças feita a abstração das semelhanças
sem
as quais todavia
não haveria memória uma vez que nos lembramos apenas dos fatos
que tenham por traço comum pertencer a uma mesma consciência.
Apesar da variedade dos lugares e dos tempos a história reduz os
acontecimentos a termos aparentemente comparáveis o que lhe per-
mite ligá-los uns aos outros como variações sobre um ou alguns
te-
mas. Somente assim ela consegue nos dar uma visão
em
ponto
pe-
queno do passado apanhando num instante simbolizando em algu-
mas mudanças bruscas em alguns avanços dos povos e
dos
indiví
duos lentas evoluções coletivas. 1 desse modo que ela nos apresenta
uma imagem única e total.
Para termos uma idéia ao contrário da multiplicidade
das me-
mórias coletivas imaginemos. o que seria a história de nossa vida
se
enquanto a relatamos detivéssemo-nos cada vez que nos lem-
brássemos de um dos grupos com o qual tivemos contato para exa-
miná-lo em si mesmo e dizermos tudo o que dele conhecemos. Não
bastaria distinguir alguns conjuntos: nossos pais escola o ginásio
nossos amigos os colegas de profissã o nossas relações mundanas e
ainda tal sociedade política religiosa \rt ística à qual tivemos a opor
tunidade de nos ligarmos. Essas grandes divisões são cômodas porém
respondem ainda a uma visão exterior e simplificada da realidade.
Essas sociedades compreendem grupos bem menores que ocupam ape-
nas uma parte do espaço e é somente com uma seção local
de
algum
dentre eles que tivemos contato. Eles
se
transformam segmentam-se
se bem que mesmo que permaneçamos no lugar que não saiamos de
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um grupo acontece que pela renovação lenta ou rápida de seus mem
bros toma-se realmente um outro grupo que tem senão poucas tradi
ções comuns com aqueles que o constituíam no início. :e assim que
vivendo muito tempo numa mesma cidade faz-se amigos novos tem
se
amigos
antigos e que mesmo no interior de uma família
os
fa
lecimentos
os casamentos os nascimentos são como tantos pontos de
partida sucessivos e
de
recomeços. Certamente esses grupos mais re
centes
são
às vezes apenas
s u ~ i v i s õ e s
de uma sociedade que
se am
pliou
ramificou sobre a
quAl
conjuntos novos vieram
se
enxertar.
Discemimos neles todavia regiões distintas e quando passamos de
uma
para outra não são as mesmas correntes
de
pensamentos e as
mesmas
seqüências de lembranças que atravessam nosso espírito.
:e
como
dizer que a maioria desses grupos ainda que não estejam divi
didos atualmente
como
dizia Leibniz representam todavia uma
es
pécie de
matéria social indefinidamente divisível e segundo as mais
diversas linhas.
Consideremos agora o conteúdo destas memórias coletivas múl
tiplas. Não diremos que de forma diferente da história ou se o qui
sermos da memória histórica a memória coletiva retém somente ana
logias. Para que
se
possa falar de memória é necessário que as. partes
do período sobre o qual ela se estende sejam diferenciadas segundo
um critério. Cada um desses grupos tem uma história. Neles distin
guimos imagens e acontecimentos.
Mas
o que nos chama a atenção
é que na memória as similitudes passam entretanto para o primeiro
plano. O grupo
no
momento em que considera seu passado sente
acertadamente que permaneceu o mesmo e toma consciência de sua
identidade através do tempo. A história já o dissemos deixa perecer
esses
intervalos onde nada acontece aparentemente onde a vida
se
limita a repetir-se sob formas um pouco diferentes
mas
sem altera
ção essencial
sem
ruptura nem revoluções. Mas o grupo que vive
originalmente e sobretudo para si mesmo visa perpetuar os sentimen
tos e as imagens que formam a substância de seu pensamento. :e en
tão
o tempo decorrido
no
curso
do
qual nada o modificou. profunda
mente que ocupa maior espaço
em
sua memória. Assim os aconteci
mentos que podem se passar dentro de uma família e os contratem
pos
diversos
de
seus membros sobre os quais insistiríamos
se
escre
vêssemos a história da família retiram para ela todo o seu sentido
daquilo
que permite ao grupo de familiares manifestar que ele tem
realmente um caráter próprio distinto de todos os outros e que mu
da pouco.
Se
o acontecimento pelo contrário se a iniciativa de um
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ou de alguns de seus membros, ou enfim, se circunstâncias exteriores
introduzissem na vida do grupo um novo elemento, incompatível com
seu passado, um outro grupo nasceria, com uma memória própria,
onde subsistiria apenas uma lembrança incompleta e confusa daqui
lo que precedeu esta crise.
A história é um quadro de mudanças, e é natural que ela
se
convença de que as sociedades mudam sem cessar, porque ela fixa
seu olhar sobre o conjunto, e não passam muitos anos sem que den
tro de uma região desse conjunto, alguma transformação se produza.
Ora, uma vez que, para a história, tudo está ligado, cada uma dessas
transformações deve reagir sobre as outras partes do corpo social, e
preparar, aqui ou lá, uma nova mudança. Aparentemente, a seqüên
cia dos acontecitnentos históricos é descontínua, cada fato estando
separado daquele que o precede ou que o ~ g u por um intervalo,
onde podemos acreditar que nada aconteceu. Na realidade, aqueles
que escrevem a história, e que registram sobretudo as mUdanças, as
diferenças, entendem que, para passar de um para outro,
é
preciso
que se desenvolva uma série de transformações das quais a história
não percebe senão a somatória no sentido do cálculo integral), ou
o resultado final. Tal é o ponto de vista da história, porque ela exa
mina os grupos de fora, e porque ela abrange uma duração bastante
longa. A memória coletiva, ao contrário, é o grupo visto de dentro, e
durante um período que não ultrapassa a duração média da vida hu
mana, que lhe é, freqüentemente, bem inferior. Ela apresenta ao gru
po um quadro de si mesmo que, sem dúvida, se desenrola no tempo,
, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele se reco
nhece sempre dentro dessas imagens sucessivas. A memória coletiva
é um quadro de analogias, e é natural que ela se convença que o
grupo permanece, e permaneceu o mesmo, porque ela fixa sua atenção
sobre o grupo, e o que mudou, foram as relações ou contatos do
grupo com os outros. Uma vez que o grupo é sempre o mesmo, é
preciso que as mudanças sejam aparentes: as mudanças, isto é,
os
aconteBimentos que se produziram dentro do grupo, se resolvem elas
mesmas e Il similitudes, já que parecem ter como papel desenvolver
sob diversos -aspectos um conteúdo idêntico, quer dizer, os diversos
traços fundamentais do próprio grupo.
Fora disso, como seria possível uma memória, e não é a propó
sito paradoxal pretender conservar o passado dentro do presente, ou
introduzir o presente no passado, se não podem haver duas zonas de
um mesmo domínio, e se o grupo, à medida em que penetra em
si
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mesmo em
que toma consciência de
si
ao lembrar-se e que
se
isola
dos demais. não tenderia a
se
fechar em uma forma relativamente
imóvel? Sem dúvida ele está sob a ação de uma ilusão quando crê
que
as analogias sobrepujam
as
diferenças porém lhe é impossível
dar-se conta disso uma vez que a imagem que fazia de si mesmo
outrora transformou-se lentamente. Mas quer o quadro seja amplia
do
ou
restrito em nenhum momento
se
rompeu e podemos admitir
sempre que o grupo fixou apenas pouco a pouco sua atenção
sobre
parte
de
si próprio que passariam de outra feita para segundo plano.
O essencial é que os traços pelos quais ele se diferencia dos demais
subsistam e que estejam assinalados por todo o seu conteúdo. Não
é
verdade que quando devemos nos desligar de um desses grupos não
a propósito de uma separação momentânea mas porque ele
se
dis
solve
porque seus últimos membros desaparecem devido a uma
mu
dança de lugar de carreira de amizades ou de convicções que nos
obriga a lhe dizer adeus quandos nos lembramos então todo o tempo
que ali passamos é como de um único relance que todas essas
lem
branças
se
oferecem a nós a ponto que parece
às
vezes que as mais
antigas são
as
mais próximas ou ainda que todas
se
iluminam por
uma
luz uniforme como objetos a caminho
de
fundir-se entre
si
no
crepúsculo
9
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Capítulo
MEMÓRIA COLETIVA E O TEMPO
divisão social
do
tempo
o tempo faz geralmente pesar sobre n6s
um
forte constrangi-
mento seja porque consideramos muito longo um tempo curto ainda
quando nos impacientamos ou nos aborrecemos ou tínhamos pressa
de ter acabado uma tarefa ingrata
de
ter passado pOr alguma prova
física ou moral; seja porque ao contrário nos pareça muito curto um
período relativamente longo quando nos sentimos apressados e pres-
sionados quer
se
trate de um trabalho de um prazer ou simplesmen-
te da passagem da infância à velhice do nascimento à morte. Gosta-
ríamos que ora o tempo corresse mais rápido ora que
se
arrastasse
ou se imobilizasse. Se, entretanto n6s devemos nos resignar
é sem
dúvida em primeiro lugar porque a sucessão do tempo sua rapidez
e seu ritmo
é
apenas a ordem necessária segundo a qual se encadeiam
os
fenômenos da natureza material e do organismo.
Mas
é também
e talvez sobretudo porque as divisões do tempo a duração das par-
tes assim fixadas resultam de convenções e costumes e porque
ex
primem também a ordem inelutável segundo a qual
se
sucedem
as
diversas etapas da vida social. Durkheim não deixou de observar que
um indivíduo isolado poderia a rigor ignorar o tempo que
se
esvai
e
se
achar incapaz de medir a duração mas que a vida
em
sociedade
implica que todos homens se ajustem aos tempos e às durações e
conheçam bem as
convenções das quais são o objeto. por isso que
existe uma representação coletiva do tempo; ela
se
harmoniza sem
dúvida com
os
grandes fatos de astronomia e
de
física terrestre
po
rém a estes quadros gerais a sociedade sobrepõe outros que
se
ajus-
tam sobretudo às condições e grupos 4umanos concretos. Pode-se
mesmo dizer: as datas e
as
divisões astronômicas do tempo estão
en
cobertas pelas divisões sociais de tal maneira que elas desaparecem
progressivamente e que a natureza deixa cada vez mais à sociedade
o encargo de organizar a duração.
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No
mais, que
as
divisões
do
tempo sejam estas ou aquelas, os
homens a elas
se
acomodam muito bem, já que são geralmente tra
dicionais
e
como cada ano, cada dia se apresenta com a mesma es
trutura temporal que as anteriores, como se fossem todas frutas produ
zidas .pela mesma árvore. Não podemos nos lamentar por sermos
de
sorganizados
em
nossos hábitos. A dificuldade que experimentamos
é de outra natureza. l em primeiro lugar a uniformidade que nos
pesa. O tempo está dividido da mesma maneira para todos os grupos
e membros da sociedade. Ora, pode nos ser desagradável que todos
os domingos a cidade fique com um ar de ociosidade, que as ruas se
esvaziem
ou se vejam repletas de um público não habitual, que o
espetáculo
de
fora nos induza a fazer nada ou a nos distrairmos ainda
que
estejamos com vontade de trabalhar. l para protestar contra essa
lei comum
que muitas pessoas, do centro,
dos
bairros, fazem da noite
o dia ou que aqueles que podem, vão procurar o calor do sul no
auge do
inverno? Sem dúvida, a necessidade de
se
diferenciar
dos
outros quanto ao modo de dividir e regular seu tempo aconteceria com
mais freqüência
se no
que diz respeito às nossas ocupações e distra
ções não fôssemos obrigados a nos sujeitarmos à disciplina social.
Se
eu quiser ir
ao
meu escritório, não posso fazê-lo no momento em
que
o trabalho está suspenso, quando os empregados não mais ali se
encontram. A divisão do trabalho social prende o conjunto dos ho
mens a um mesmo encadeamento mecânico de atividades: quanto
mais ela avança, mais nos obriga a ser exatos. l preciso que eu
che
gue
na hora, se quiser assistir a um concerto, a uma peça de teatro,
não fazer esperar os convidados do jantar para o qual sou convidado,
não perder o trem. Sou então obrigado a regular minhas atividades
conforme o caminhar
dos
ponteiros de um relógio, ou conforme o
ritmo adotado pelos outros e que não levam em conta minhas prefe
rências, ser avaro com o meu tempo, e nunca perdê-lo, porque com
prometeria assim algumas oportunidades e vantagens que me oferece
a vida
em-
sociedade. Mas o que há talvez, de mais penoso, é que .
me sinto forçado, perpetuamente, a considerar a vida e os aconteci
mentos
que a preenchem
sob
o aspecto da medida. Não é somente
porque eu reflita angustiadamente sobre a idade que tenho, expressa
em número
de.
anos, e também em número de anos que me resta,
como se a vida fosse uma página branca dividid; em partes iguais
com tantas linhas - como se, antes, os anos que tenho diante de
mim diminuíssem e se contraíssem, porque cada um representa uma
proporção cada vez
menor do tempo decorrido que aumenta. Mas de
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tanto medir o tempo, de modo a preenchê-lo bem, chegamos a não
saber mais o que fazer desses pedaços de duração que não se deixam
mais dividir da mesma maneira, porque se é abandonado a si próprio,
se é retirado qualquer jeito da corrente da vida social exterior. Po-
deriam ser outros tantos oásis, onde, precisamente, esquece-se o
tem-
po, mas onde,
em
contrapartida, nos encontramos.
Ao
contrário,
so-
mos
sensíveis para aquilo que são intervalos vazios, e o problema é
saber então como passar o tempo. Tanto é verdade que a sociedade,
obrigando-nos a medir sem parar a vida à sua maneira,
nos
torna
cada vez mais inaptos para fazê lo da nossa. Sem dúvida, para alguns,
é verdade que o tempo perdido é aquele que se lamenta menos (ou,
em outro sentido, que se lamenta mais) mas, estes
são
exceções.
A
Duração
Pura Individual) e O Tempo Comum Segundo Bergson
Se existe um tempo social do qual as divisões se impõem assim
às
consciências individuais, de onde ele
mesmo
retira sua origem? Diz-
se que era possível distinguir o tempo ou a duração ela mesma e suas
divisões. Mais precisamente, todo o ser dotado
de
consciência teria
o sentimento da duração, já que nele
se
sucedem estados diferentes.
A duração não seria nada mais
do
que a seqüência desses estados, a
corrente que parece passar através deles, abaixo deles, soerguendo
um
após o outro. Cada homem, nesse sentido, teria sua própria dura
ção, e isto seria mesmo
um
desses dados primitivos da consciência,
que conhecemos diretamente, e do qual é necessário somente que a
noção penetre em nós
de
fora .. eria até possível, já que esses estados
são distintos, perceber dentro desta seqüência divisões naturais, cor-
respondentes à passagem
de
um estado para outro,
de
uma série
con-
tínua
de
estados semelhantes a uma outra seqüência
de
estados
igual-
mente análogos. Além do mais, já que percebemos os objetos exterio
res, como há na natureza muitos retornos regulares, a sucessão dos
dias, a sucessão dos passos que demarcam nossa caminhada etc.,
um
indivíduo isolado seria capaz, por suas próprias forças e a partir dos I ·
dados
de
sua própria experiência,
de
atingir a noção
de um
tempo '
mensurável
Porém
em
torno
de
alguns objetos nosso pensamento
se
encon-
tra também com o dos outros; é, em todo o caso, no espaço que
imagino a existência sensível daqueles com quem, pela voz ou pelos
gestos, relaciono-me a todo momento. Assim, produzir-se-iam cortes
ao mesmo tempo em minha duração e na deles, mas que tendem a
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I
estender-se às
durações
ou às
consclencias dos outros homens
de
todos aqueles que se encontram no universo. Agora entre esses
mo
mentos
sucessivos e comuns
dos
quais se supõe que guardaremos a
lembrança
nos
será possível imaginar que se desenrola uma espécie
de
tempo vazio invólucro comum das durações vividas como dizem
os psicológos quando consciências pessoais. Já que
os
homens con
cordam em medir o tempo por meio de alguns movimentos que se
produzem na natureza como aqueles dos astros ou que criamos e
regulamos artificialmente como em nossos relógios é porque não
saberíamos encontrar na seqüência de nossos estados de consciência
suficientes pontos
de
referência definidos que possam valer para
to
das as consciências. O próprio das durações individuais é com efei
to
que elas têm um conteúdo diferente apesar de que o curso de
seus estados é mais ou menos rápido de uma a outra e também den
tro de cada uma nos diferentes períodos. Existem horas mortas
dias vazios enquanto que em outros momentos quer seja porque os
acontecimentos
se
precipitam seja porque nossa reflexão se acelera
ou porque nos encontrávamos em um estado de exaltação e de efer
vescência afetiva temos a impressão de ter em algumas horas ou
alguns dias vivido anos. Mas acontece o mesmo quando compara
mos num mesmo momento várias consciências. Para um pensamento
vivo impaciente e tenso quantos encontraremos que apenas são
ex
cepcionalmente estimulados por algum acontecimento exterior e cujo
ritmo normal
é
lento e monótono porque seu interesse
se
detém e
ainda sem grande entusiasmo somente a um pequeno número de
objetos.
talvez
um
desinteresse crescente um enfraquecimento
progressivo das faculdades afetivas que explica o fato de que à me
dida
em
que
se
fica mais velho o ritmo da vida interior
se
torna mais
lento e que enquanto um dia de uma criança é repleto de impressões
e observações múltiplas e abrange nesse sentido um grande número
de
momentos no declínio dos anos o conteúdo de um dia se levar
mos em conta apenas o conteúdo real daquilo que despertou nossa
atenção e
nos
deu o sentimento
de
nossa vida interior reduz-se a
muito menos estados diferentes um do outro e nesse sentido a um
pequeno número
de
momentos singularmente dilatados. O velho que
guardou a lembrança
de
sua vida de criança acha que os dias são
hoje ao
mesmo tempo cada
vez
mais lentos e mais curtos o que
quer dizer que tanto acredita que o tempo corre mais lentamente.
porque os momentos tais como tem o sentimento de vivê-los são
mais
longos. como crê que corre mais rápido. porque os momentos
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tais como
se
enumeram
em
tomb dele tais
como
a medida
do pon
teiro do rel6gio sucedem-se com tal rapidez que eles o ultrapassam:
não há tempo para preencher um dia com tudo aquilo que nele uma
criança consegue encaixar facilmente; é porque sua duração interior
é lenta que o espaço
de
um dia lhe parece muito curto. S por este
motivo que um velho e uma criança que vivessem lado a lado e não
tivessem nenhum outro meio de medir o tempo senão reportar-se aos
seus sentimentos da duração e às divisões que comportam suas vidas
interiores não se entenderiam nem sobre os pontos
de
divisão nem
sobre a grandeza dos intervalos escolhidos como unidade comum
que pareceria mínima para as crianças e muito grande para
as pes
soas mais idosas. S melhor para fixar as divisões do tempo guiar
mo-nos
pelas mudanças e movimentos que
se
produzem nos corpos
materiais e que
se
reproduzem de modo bastante regular para que
nos seja sempre possível nos reportarmos a eles. Esta escolha dela
não teríamos a idéia sozinhos. Foi necessário que nos entendêsse
mos a este respeito com outros homens. Na realidade o que esco
lhemos como pontos de referência é neste retomo peri6dico a alguns
fenômenos materiais a ocasião que nos oferecem a n6s e aos outros
já que os percebemos ao mesmo tempo de constatar precisamente
que existe entre algumas de nossas percepções quer dizer entre alguns
de nossos pensamentos para eles e para n6s uma relação de simul
taneidade e sobretudo que essa relação
se
reproduz a intervalos regu
lares que convimos considerar como iguais. A partir desse momento
as divisões convencionais do tempo
se
impõem a n6s de fora.
Mas
elas têm sua origem
nos
pensamentos individuais. Estas somente to
maram consciência de que
em
certos momentos entram em contato
de que adotam às vezes uma atitude idêntica frente a um
mesmo
objeto exterior e
de
que esta atitude
se
reproduz com a mesma
regu
laridade peri6dica. Quando
de
tal operação e quando das conven
ções que dela decorrem
foi
possível fixar pontos de referência apenas
descontínuos exteriores em parte a cada consciência uma vez que
são comuns a todos. Mas não foi possível criar uma nova duração
impessoal que preenchesse o intervalo entre os momentos escolhidos
como pontos de referência quer dizer
um
tempo coletivo ou social
que compreenderia e ligaria uma à outra todos os seus aspectos
em sua unidade mesma todas as durações individuais. Na realidade
no intervalo que se estende entre os dois cortes que correspondem
aos pontos de referência não há senão pensamentos individuais se
parados em tantas correntes
de
pensamento distintas onde cada uma
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tem sua duração próprià. possível,
se se
quiser, imaginar um tem
po vazio no qual se escoariam todas
as
durações individuais e que
estaria dividido pelos mesmos cortes, e, sem dúvida, uma noção assim
se
impõe, com efeito, a todos os pensamentos: porém isto é somCilte
uma representação abstrata, à qual não corresponderia mais nenhuma
realidade,
se as
durações individuais cessassem de existir.
Posicionemo-nos então deste ponto de vista bergsoniano. A
no-
ção de um tempo universal, que envolve todas as existências, todas
as séries sucessivas de fenômenos, traduzir-se-ia por uma seqüência
descontínua de momentos. Cada um deles corresponderia a uma rela
ção estabelecida entre vários pensamentos individuais, que dela to
mariam consciência simultaneamente. Isolados, geralmente um do
outro, todas as vezes que seus caminhos se cruzam, esses pensamen
tos
saem de si mesmos e vêm fundir-se um instante numa representa
ção maior, que envolve ao mesmo tempo as consciências e as relações
entre elas: é nisso que consiste a simultaneidade. O conjunto desses
momentos constituiria um quadro, que teríamos permissão, aliás, de
retocar, regularizar e simplificar. Porque o tempo que separa esses
momentos é vazio, todas as suas partes se
prestam igualmente às mais
variadas divisões: é como um quadro sobre o qual podemos traçar
um número indifinido de linhas paralelas. Nada nos impede então
de
imaginar simultaneidades intercalares, em um ponto qualquer da
linha temporal e abstrata que encaixa dois momentos e que podemos
representar pela imagem de um movimento ou de uma mudança uni
forme acontecida entre um e outro) à metade, à terça parte, a um
quarto desse intervalo. Assim estabelecer-se-ão as divisões do tempo
em
anos, meses, dias, horas, minutos, segundos: além do mais, pode
mos supor que certo número de pensamentos individuais entrarão em
contato com todos os momentos precisos que separam as horas umas
das outras e até os minutos: as divisões do tempo simbolizam somente.
todas essas possibilidades. Nada provaria mais claramente que o tem
po, concebido como se estendendo ao conjunto dos seres, é apenas uma
criação artificial, obtida pela adição, combinação e multiplicação de
dados emprestados
às
durações individuais, e somente a elas.
Crítica do Subjetivismo Bergsoniano
Mas se essas divisões do tempo não estão á e por antecipação
contidas e indicadas nas consciências, será que basta reaproximar
duas ou um maior número destas para delas fazê-Ias surgir. s pre-
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ciso insistir sobre esta proposição ou este postulado, porque aqui se
descobre nitidamente em qual concepção particular de duração nós
nos apoiamos, uma vez que afirmamos que a memória
é
uma facul
dade individual.
Para produzir o sentimento disto que é o pensamento interior
e pessoal, aconselham-nos a descartar a princípio e a apagar tudo
que lembre o espaço e os objetos exteriores. Estes estados que se suce
dem constituem sem dúvida uma diversidade, e são distintos um do
outro, mas de uma maneira completamente diferente do que as coisas
materiais. Eles são presos por uma corrente contínua que se esvai,
sem que haja entre um e outro uma linha de separação bem demar
cada. Mas tal é .realmente a condição da memória, ou antes da forma
de memória que é única e verdadeiramente ativa e psíquica, e que
não se confunde com o mecanismo do hábito. A memória entendida
neste sentido) não tem alcance sobre os estados passados e não nô-los
restitui em sua realidade de outrora, senão em razão de que ela não
os confunde entre si, nem com outros mais antigos ou mais recentes,
isto é, ela toma seu ponto de apoio nas diferenças. Ora, os estados
distintos e nitidamente separados são, sem dúvida, diferentes por si
mesmo. Entretanto, desligados da seqüência dos outros, retirados da
corrente onde estavam entranhados - e tal seria sua sorte se consi
derássemos cada um deles como uma realidade distinta e de contornos
bem delimitados no tempo - como permaneceriam totalmente dife
rentes de qualquer outro estado igualmente considerado à parte e
delimitado? Toda separação desse gênero significa que começa-se a
projetar esses estados no espaço. Mas os objetos no espaço, por mais
diferentes que sejam, comportam muitas analogias. Os lugares que
ocupam são distintos, mas compreendidos em um meio homogêneo.
s diferenças que levantamos entre eles se determinam em relação a
tantos gêneros comuns dos quais participam tanto uns quanto outros.
Ao contrário, a corrente na qual os pensamentos estão entranhados no
interior de cada consciência não é um meio homogêneo, já que aqui
a forma não se distingue
d
matéria e onde o continente exerce a fun
ção de conteúdo. Nos diversos estados de consciência para empregar,
aliás, uma expressão inadequada, já que não existe, na realidade,
es-
tados, porém movimentos
ou
um pensamento incessantemente em de-
vir),
só
distinguimos qualidades por abstração, já que o essencial é
aqui a unidade de cada um deles e que eles são como pontos de
vista na totalidade da consciência: não existe entre eles gêneros co-
muns, pois qüe cada um é único
em
seu Ilênero. Toda a tentativa
de
96
J
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comparação entre
um
e outro romperia a continuidade da série. Mas
é esta continuidade mesma que explica que uns lembram os outros
os que
os
precederam ou seguiram da mesma maneira que não pode
mos desfazer um n6 sem envolver a corrente inteira. Portanto é
porque são todos diferentes que
os
estados individuais formam uma
série contínua. onde toda a semelhança. toda repetição introduziria
um
elemento
de
descontinuidade. e também porque
as
lembranças
são
diferentes que se evocam uma a outra; senãJ a série cessaria
de
se completar e se romperia a cada instante.
Mas
já que é assim. não se compreende como duas consciências
individuais jamais· poderiam entrar em contato como duas séries
de
estados igualmente contínuas conseguiriam se cruzar realmente o que
é necessário para que eu tivesse o sentimento de que há simultanei
dade entre duas modificações. das quais uma se produz em mim. a
outra numa consciência diferente da minha. Sem dúvida. uma vez
que eu percebo objetos exteriores. posso supor que toda a sua reali.
dade se esgota na percepção que deles formo. O que está dentro da
duração. não são
os
objetos. mas meu pensamento que
os
representa
para mim. e então não saio
de
mim mesmo.
e
diferente
de
quando
uma
forma humana. uma voz. um gesto revelam-me a presença de
outro pensamento que não
é
o meu. Então. eu teria em meu espírito
a representação de um objeto de dois pontos de vista. o meu. e o de
um outro diferente de mim que tem. como eu. uma consciência. e
que dura.
Mas
como isto seria possível
se
estou encerrado em minha·
consciência. se não posso sair de minha duração? Ora. não posso dela
sair se como afirmam. meus estados se sucedem um ao outro num
movimento iriinterrupto se estão ligados um ao outro de maneira tão
estreita que não
há
entre eles nenhuma linha de demarcação. nenhum
empecilho na corrente que se escoa. se nenhum objeto de contornos
definidos não se destaca na superfície de minha vida consciente como
uma figura em relevo .
.Poder-se·ia dizer que o que rompe a continuidade de minha vida
consciente e individual é a ação que exerce sobre mim de fora. uma
outra consciência que
me
impõe uma representação à qual ela está
presa. e uma pessoa que cruza meu caminho e
me
obriga a reparar
em
sua presença. Mas em todo caso os objetos materiais
se
impõem
também
de
fora à minha percepção. Todavia se supomos que estou
encerrado em mim mesmo e que não conheço nada
do
mundo exte
rior
uma
tal percepção sensível não deterá a corrente
de
meus estados
mais
do
que
lima
impressão afetiva ou um pensamento qualquer:
97
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nela se incorporará, sem
me
fazer sair de mim mesmo. Seria a mes-
ma coisa, dentro da mesma hipótese de uma consciência reduzida à
contemplação de seus estados, que eu percebesse uma forma humana,
que percebesse uma voz, um gesto. O curso do pensamento individual
não será por isso modificado: não terei a idéia de uma outra duração
se
não a minha. Para que seja de outro modo, é preciso que o objeto
aja sobre mim como um sinal. Mas isso implica que sou capaz, a
qualquer momento, de me colocar,
em
presença de um objeto, ao mes-
mo
tempo que de meu ponto de vista, daquele de outro, e que, repre
sentando para mim, pelo menos corno possíveis, várias consciências,
e a possibilidade delas de entrar em relação, eu
me
represente tam
bém uma duração que lhes é comum.
Supusemos uma consciência fechada sobre si mesma, para a qual
suas percepções seriam somente estados subjetivos que não lhe
reve-
lariam de modo algum a existência dos objetos.
Mas
de que modo
um pensamento assim
se
elevaria ao conhecimento
do
mundo exte
rior? Ele não pode dentro dessas condições alcançar
esse
mundo
nem de dentro, nem de fora. preciso, entretanto, admitir que existe
em toda a percepção sensível uma tendência a
se
exteriorizar, isto
é
a expulsar o pensamento do círculo estreito da consciência individual
no qual ele se
escoa, e a considerar o objeto como representado
ao
mesmo tempo, ou como podendo ser n:presentado a qualquer mo-
mento, em uma ou várias consciências.
Mas
isso supõe que represen
tássemos então uma sociedade de consciências . Além do mais,
se
sonhamos com estados que, à diferença das percepções sensíveis, não
nos parecem estar em relação com uma realidade exterior, tais como
estados, afetivos, o que os caracteriza, e o que lhes empresta um aspec
to puramente interno, é pelo fato dessa representação de consciências
estar ausente, ou é antes por ela estar provisoriamente encoberta, por
que nenhuma ação exercida sobre nós de fora não lhe dá a oportuni
dade de se manifestar, mas por que ela existe todavia, sempre,
em
estado latente, atrás das impressões aparentemente mais individuais?
Tal seria o caso, quando sentimos por algum tempo uma dor física
e nos concentramos em nossas sensações, ainda que a dor atual pareça
prolongar a dor precedente e emprestar-lhe toda a sua substância.
Como agora descobrimos que essa dor é produzida por uma ação
ma-
terial, exterior ou orgânica, como apenas imaginamos, como pensamos,
ainda que outros seres experimentam ou poderiam experimentar a
mesma dor, então nossa impressão se transforma, ao menos
parcial
mente, naquilo que chamaremos uma representação objetiva da dor.
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Mas
de
que modo a representação pode provir da impressão se já
não estivesse nela contida, e desde que essa representação é assim
porque
pode ser comum a várias consciências, que é coletiva na exata
medida
em
que é objetiva, não é preciso pensar que, a não ser a dor
em si
mesma,
pelo menos a idéia que dela fazia para mim mesmo
antes e que é somente isso que a lembrança reterá) não passava de
uma representação coletiva incompleta e truncada?
Assim
sem dúvida poderia ser interpretado dentro de um novo
sentido o antigo paradoxo metafísico de Leibniz, a saber que dores
físicas, e as sensações em geral, são apenas idéias confusas ou inaca
badas.
Não é somente porque dela nos representamot distintamente
a natureza e o mecanismo, as partes e sua relação, que a dor perde
pouco a pouco, em alguns casos, sua acuidade: mas antes, imaginando
que
ela
possa ser experimentada e compreendida por várias pessoas
o que
não seria possível se ela permanecesse uma impressão pura
mente pessoal e portanto única), parece que descarregamos uma parte
de
seu peso sobre
os
outros, e que eles nos ajudam a suportá-la. O
trágico da dor, que faz com que, levada até um certo ponto, crie em
nós
um sentimento desesperado de angústia e de impotência,
é
que
sobre
um
mal cuja causa está naquelas regiões de
nlSs
mesmos onde
os
outros não podem chegar, ninguém pode fazer nada já que nos
confundimos com a dor e que a dor não pode destruir a si mesma.
€ por este motivo que procuramos instintivamente e encontramos
uma explicação para esse sofrimento que seja inteligível, quer dizer,
com
a qual
os
membros
de
um grupo possam concordar, da mesma
maneira que o feiticeiro alivia o paciente fazendo parecer extrair de
seu
cotpO
uma pedra, uma velha ossada, um. preguinho, ou um líqui
do.
Ou despojamos o sofrimento de seu mistério, nele descobrindo
suas outras faces, aquelas que envolvem outras consciências, uma
vez que imaginamos que ela foi ou pode ser experimentada por nossos
semelhantes: nós a relegamos assim para o domínio comum a muitos
seres e lhe restituímos uma fisionomia coletiva e familiar.
Assim, uma análise mais vigorosa da idéia da
s i m u t ~ n e i d a d e
nos
leva
a afastar a hipótese de durações puramente individuais, impene
tráveis entre.:si. A seqüência de nossos estados não é uma linha
sem
espessura cujas partes apenas se relacionam com aquelas que as pre
cedem
e que
as
seguem.
Em
nosso pensamento, na realidade, cru
zam-se a cada momento ou em cada período de seu desenvolvimento,
muitas correntes que vão de uma consciência a outra, e das quais
ele
é o lugar de encontro. Sem dúvida, a continuidade aparente da-
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quilo que chamamos nossa vida interior resulta em parte de que
ela
segue por algum tempo o curso de uma dessas correntes o curso de
um
pensamento que se desenvolve em nós ao mesmo tempo que em
outros a inclinação de um pensamento coletivo. Ela se explica
tam-
bém pela ligação que estabelece sem cessar entre nossos estados aque-
les dentre eles que resultam sobretudo da continuidade de nossa vida
orgânica. Não há aliás entre estes e aqueles senão uma diferença
de grau já que as impressões afetivas elas mesmas tendem a se
manifestar em imagens e representações coletivas. Em todo o caso
se se puder com durações individuais reconstruir uma duração mais
ampla e impessoal n qual estão compreendidas é porque elas mes-
mas se destacam sobre o fundo de um tempo coletivo ao qual empres-
tam toda a sua substância.
data
quadro
da lembrança
Falamos de um tempo coletivo em oposlçao à duração indivi-
dual. Mas a questão que se coloca agora é saber se ele é único e nós
não a prejulgamos absolutamente. Por trás da teoria que discutimos
haveria com efeito por um lado tantas durações quantos indivíduos
por outro lado
um
tempo abstrato que compreenderia a todas. Esse
tempo é vazio e talvez seja I \penas uma idéia. As divisões que ali
traçamos nos pontos onde várias durações individuais se cruzam não
se confundem com os estados que percebemos que são simultâneos.
Não poderia haver nada de mais nessas divisões a não ser tempo que
elas dividem e que é concebido como um meio homogêneo como
uma forma particular de matéria. Mas que gênero de realidade po-
demos atribuir a essa forma e sobretudo como ela pode servir de
quadro aos acontecimentos que situamos?
Um tempo assim definido se presta a todas as divisões. l por
essa razão que podemos ali assinalar o lugar de todos os fatos? Antes
de responder a esta questão
é
preciso observar que o tempo nos
importa aqui somente na medida em que deve nos permitir conservar
e lembrar dos acontecimentos que ali se produziram. Este é o serviço
que esperamos dele. Isso é verdade para os acontecimentos do pas-
sado. Quando nos lembramos de uma viagem mesmo não nos lem-
brando da data exata há entretanto todo um quadro de dados tem-
porais aos quais essa lembrança está de qualquer maneira relacionada:
foi antes ou depois da guerra eu era criança jovem ou homem
feito na pujança da idade; eu estava com tal amigo que era mais ou
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menos velho; em que estação estávamos; eu preparava tal trabalho;
aconteceu tal coisa. E graças a uma série de reflexões desse gênero
que
com muita freqüência uma lembrança toma corpo e
se
completa.
Se
subsiste, entretanto, uma incerteza sobre o período onde o aconteci
mento teve lugar, pelo menos não se trata daqueles outros períodos em
que
se
situam as outras lembranças: é ainda uma maneira de locali
zá-lo. Além do mais, o exemplo de uma viagem pode não ser o mais
favorável, porque pode constituir um fato isolado e sem grandes rela
ções
com o restante de minha vida. Então é menos o tempo do que
o quadro espacial, como veremos, que intervém principalmente. Mas,
se
se trata de um acontecimento de minha vida familiar, de minha
vida profissional, ou que aconteceu em u dos grupos aos quais
meu
pensamento
se
reporta com maior freqüência, será talvez o qua
dro temporal que me ajudará melhor a dele me lembrar. Acontece o
mesmo
com um certo número de fatos futuros, que são preparados
no
presente: o que me lembra u encontro, é geralmente a época
em
que omarquei; o que me lembra que encontrarei um parente, u
amigo, que terei tal tarefa a cumprir, tal negócio a fazer, ou que me
proponho a tal distração, é a data onde todos esses acontecimentos
devem
se realizar. Aconte e também que não reconstituímos o qua
dro temporal senão depois que a lembrança foi restabelecida e então
.
somos
obrigados, a fim de localizar a data do acontecimento, dele
examinar em detalhes todas as partes. Mesmo assim, já que a lem
brança conserva os traços do período ao qual se reporta, este só foi
lembrado talvez, porque havíamos vislumbrado esses traços, e pen
sado no
tempo em que o acontecimento se realizou. A localização.
aproximativa e muito imprecisa de início, definiu-se em seguida quan
do
a lembrança estava presente. Não é menos verdade que, em
grande número de casos, é percorrendo em pensamento o quadro do
tempo que ali encontramos a imagem do acontecimento passado: po
rém, para isso, é preciso que o tempo seja capaz de enquadrar as
lembranças.
empo bstr to e tempo re l
Consideraremos primeiro o tempo concebido sob a forma a mais
abstrata: o tempo completamente homogêneo da mecânica e da física.
de
uma
mecânica e de uma física dominadas pela geometria, e que
podemos chamar o tempo matemático. Ele se opõe ao tempo vivido
de Bergson. como um pólo
ao
outro. e é, de acordo com esse filósofo.
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inteiramente vazio de consciência . O interesse de uma noção
desse
gênero viria de que ela representaria o limite para o qual os homens
tendem a
se
aproximar à medida que, ao invés de permanecer
fecha-
dos em seus próprios pensamentos, colocam-se do ponto de vista de
grupos e conjuntos mais amplos. e preciso que o tempo
se
esvazie
pouco a pouco da matéria o que permitiria distinguir suas partes umas
das outras, para que possa servir a um número crescente
de seres
completamente diferentes. O que orientaria os pensamentos neste
esforço, no objetivo de ampliar e universalizar o tempo, seria a re-
presentação latente de um meio inteiramente uniforme, muito próxi
mo
da representação
do
espaço,
se
até mesmo não
se
confundir
com
ela. Todo o homem, dizemos, é naturalmente geômetra, já que vive
no espaço. Não é portanto de admirar que os homens, quando pen-
sam no tempo fazendo abstração dos acontecimentos particulares, de
modo que atingem as consciências individuais onde estes
se
desen-
volvem, imaginem um meio homogêneo, semelhante ao espaço geo-
métrico.
Mas sobre um tempo assim concebido nossa memória teria algu-
ma compreensão? Sobre uma superfície tão perfeitamente lisa, onde
as lembranças poderiam
se
agarrar? Talvez seja o caso de dizer, com
Leibniz ainda, que não
se
encontraria nesse tempo,
em
si próprio,
nem em suas partes, razão alguma para que um acontecimento nele
se
situasse mais aqui
do
que lá, já que todas essas partes
são
indicer
níveis. De fato, o tempo matemático só atua quando
se
trata de
objetos ou de fenômenos dos quais não
se
proponha fixar e manter
a posição dentro do tempo real, de fatos que não
têm
data e não
mudam de natureza, ainda que aconteçam em momentos diferentes.
Quando representamos por to ti' t
2
,
tn
os aumentos sucessivos do
tempo, a partir
de
zero, sem dúvida fixamos assim a duração e
as
diversas fases de um movimento, porém um desses movimentos que
poderíamos reproduzir em qualquer outro tempo sem que obedeça a
uma outra lei. Em outras palavras, o momento inicial,
to
está intei
ramente livre de qualquer relação com um momento qualquer do
tempo real. s leis
dos
movimentos físicos são,
com
efeito e neste
sentido, independentes do tempo. e por isso que o matemático con-
corda em recolocar tais movimentos dentro de uma duração
comple-
tamente vazia, e representa assim somente esse paradoxo, de
um
movimento que está bem dentro do tempo já que dura, e que não se
situa entretanto, em nenhum momento definido. Mas, salvo a socie-
dade
dos
matemáticos ou
dos
sábios que estudam os movimentos
dos
1 2
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corpos inertes, todos
os
grupos humanos
se
interessam pelos acon
tecimentos que mudam de natureza e de importância, conforme o
momento em que se produzem. Um tempo indefinido, indiferente a
tudo o que nele se posiciona de nada ajudaria na memória desses
fatos.
Sem dúvida, parece que fazemos um apelo a uma representação
deste gênero, quando dividimos o tempo em intervalos iguais. Os
dias, as horas, os minutos, os segundos, não se confundem a propó
sito, todavia, com as divisões de um tempo homogêneo: têm, com
efeito, uma significação coletiva definida. São outros tantos pontos
. de referência dentro de uma duração onde todas as partes diferem.
dentro do pensamento comum, e não podem ser substituídas umas
pelas outras. O que o comprova, é que quando ficamos sabendo que
um trem deve partir às quinze horas, somos obrigados a traduzir, e
nos lembrarmos que ele parte, na realidade, às três horas depois do
meio dia. Da mesma maneira, o dia 30 ou o 3 do mês se distingue
para nós
do
primeiro dia do mês seguinte senão mais, pelo menos
de
uma outra maneira, que o primeiro do dia 2, ou do 5 e do 16.
Mesmo quando nossa atenção se fixa apenas em números, sabemos
que são divisões arbitrárias, e que não podemos modificá-las à von
tade, como
em
mecânica deslocamos a origem, como passamos para
um outro sistema de eixos. diferente passar da hora de verão para
a hora de inverno, e concordar que diremos, de hoje em diante,
uma hora em vez de meio dia: o grupo não aceita perdera hora ou
o seu tempo, e se este sofrer um deslocamento, a vida social não
quer sair de seu quadro, e o acompanha em seu deslocamento. Tanto
é verdade que o tempo social não é indiferente às divisões que nele
introduzimos. Assim é que o tempo social não se confunde e nem
a duração individual com o tempo matemático.
á
uma oposição
fundamental entre o tempo real, individual ou social, e o tempo
abstrato, e sequer é possível dizer, que
à
medida
em
que
se
torna
mais
social. o tempo real
se
aproxima deste.
o
tempo universal e os tempos históricos
Mais concreto, mais definido nos aparecerá agora aquilo que
poderíamos chamar o tempo universal, que se estende a todos os
acontecimentos que se realizaram em todos
os
lugares do mundo.
todos os continentes, todos os países, dentro de cada país a todos os
grupos e, através deles, a todos os indivíduos. Podemos representar.
1 3
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com efeito, o conjunto dos homens como um vasto corpo, que apre
senta aliás, mesmo no presente, mas sobretudo no passado, apenas
uma unidade orgânica muito imperfeita, porém tal, que
todas
as
partes das quais é constituído formam um todo contínuo, porque são
poucas as que, ao menos a intervalos, não tenham tido algum contato
com outra, e que assim, aproximadamente, elas se relacionam com o
todo, por laços mais ou menos frouxos. Sabemos que isso não é exato,
a rigor. Há regiões, habitadas sem dúvida, desde há muito tempo, e
que foram descobertas bem tarde.
á
povos, também, dos quais co-
nhecemos geralmente a existência, porém por tradições muito vagas,
por relatos muito sucintos de viajantes, e que não têm propriamente
história no sentido de que não podemos neles fixar a data dos acon
tecimentos passados, ainda que mesmo se conserve deles alguma lem-
brança. Entretanto, admite-se que esses acontecimentos foram con·
temporâneos dos que conhecemos dentro de nossas civilizações, e
que apenas nos faltam documentos escritos, inscrições sobre monu
mentos ou anais, para que possamos situá-los no tempo mesmo em
que nossa história nos permita remontar. Encontramos aqui o tempo
histórico do qual falávamos no capítulo anterior, com essa diferença
que supusemos estendida para além dos limites que nós lhe tínhamos
reconhecido,
de
maneira que envolva a vida dos povos que não tive
ram história, e mesmo passado histórico.
Por mais natural que possa parecer uma tal extensão, precisa
mos perguntar-nos se ela é verdadeiramente legítima, e que significa
ção pode ter para nós um tempo do qual as pessoas, mesmo as mais
velhas que conhecíamos dele não guardaram nenhuma lembrança.
Sem
dúvida, podemos sempre raciocinar por analogia. Podemos supor,
por exemplo, que o planeta Marte foi sempre habitado. Diremos
entretanto que seus habitantes viveram no mesmo tempo que as
po-
pulações terrestres das quais conhecemos a história? Para que uma
tal proposição tenha um sentido bem definido, seria necessário supor
ainda que os habitantes desse planeta puderam se comunicar conosco
por algum meio, pelo menos, a intervalos, de modo que eles e
nós
tivéssemos entrado em contato, que conhecêssemos alguma coisa de
sua vida e de sua história, e eles da nossa. Se não houver nada disso,
tudo
se
passará como no caso de duas consciências inteiramente
fe-
chadas uma para a outra, e cujas durações não se cruzam jamais.
Como então falar de um tempo que lhes seria comum?
Porém
é
preciso
ir
mais longe e, atendo-nos aos acontecimentos
do passado cujos historiadores puderam, pelo menos, de modo apro-
1 4
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ximativo fixar a data e reconstituir a ordem de sucessão perguntar
nos se o quadro que eles elaboraram nele indicando aqueles fatos
que aconteceram simultaneamente em países e regiões distantes uma
da outra permite-nos concluir pela existência de um tempo universal
dentro dos limites da história. Costuma-se dizer os tempos históri
cos como se houvesse vários e talvez designemos desse modo perío
dos sucessivos mais ou menos distantes do presente. Mas podemos
dar também um outro sentido para essa expressão como se houvesse
várias histórias que começam aliás umas mais cedo outras mais
tarde mas que são distintas. Certamente é possível para um historia
dor colocar-se de fora e acima de todas essas evoluções paralelas e
considerá-las como aspectos de uma histór:ia universal. Mas senti
mos que em muitos casos e talvez em sua maioria a unidade que
se obtém então é completamente artificial porque aproximamos assim
acontecimentos que não tiveram nenhuma influência um sobre o
outro e povos que não se uniram ainda que temporariamente num
só pensamento.
Temos em mãos a
Chronologie
Universelle de Dreyss que foi
publicada em Paris em 1858 onde desde os tempos mais remotos
registra-se ano
por
ano os acontecimentos notáveis que se realiza
ram em certo número de regiões. Vejamos o primeiro período
da
criação do mundo ao dilúvio. Apesar de tudo a tradição
do
dilúvio
especificamente encontra-se em grande número de povos. Talvez
corresponda à lembrança confusa de uma origem comum e mereça
por isso ser o início de um quadro sincrônico dos destinos das na
ções. Em seguida até Jesus
Cristo e
mesmo até o 5.° século depois
de Jesus Cristo o autor se limitou em datar a história da Grécia e a
história de Roma a história dos Judeus a história do Egito e a
justapor esses fragmentos. Isto é somente uma pequena parte do
mundo. Pelo menos tratava-se de regiões próximas umas das outras
para que todas sentissem a miúde o contra-golpe das comoções que
s produziam numa delas. Entre essas cidades ou grupos de cidades
que formavam conjuntos semifechados as idéias circulavam as no
tícias se propagavam. Em 1858 e mesmo antes o horizonte histó
rico no que concerne ao passado havia certamente se ampliado e
teria sido possível dar lugar nesse quadro cronológico antigo a mui
tas outras regiões. Entretanto o quadro tal como se nos apresentam
com suas limitações fornece talvez uma imagem mais adequada à
realidade. Ele nos apresenta um conjunto de povos cujos destinos
estariam assaz estreitamente ligados para que pudessem recolocar
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dentro de um mesmo tempo suas vicissitudes. e apenas o mundo
conhecido dos antigos: pelo menos formava quase um todo.
Mais tarde e na medida que nos aproximamos dos tempos mo
dernos o quadro se amplia
mas
perde cada vez mais sua unidade.
Disseram-nos que em 1453 a Guerra de
Cem
Anos terminou e que
no mesmo ano
os
Turcos tomaram Constantinopla.
Em
que
memó
ria coletiva comum esses dois fatos deixaram seus traços?
Sem
dú
vida tudo se entrelaça e não podemos prever no momento quais
serão as repercussões de um acontecimento e mesmo em que
re
giões do espaço se propagarão. Mas são as repercussões e não o
acontecimento que penetram a memória de um povo que as su
porta e somente a partir do momento em que elas o atingem. Pouco
importa que
os
fatos tenham acontecido
no mesmo
ano
se
essa
si
multaneidade não foi reconhecida pelos contemporâneos. Cada gru
po definido localmente tem sua própria memória e uma represen
tação do tempo que é somente dele. Acontece que cidades provín
cias povos fundem-se numa nova unidade logo o tempo
comum
se amplia
e
talvez avance mais no passado
ao
menos para uma
parte do grupo que
se
encontra então a participar
de
tradições mais
antigas. O inverso pode acontecer também quando
um
povo
se des
membra quando colÔnias se formam quando continentes novos
são
povoados. A história da América até o início do século XIX e
desde as primeiras
colÔnias
está estreitamente ligada à história da
Europa. Durante todo o século XIX e até o presente parece que
dela se desligou. Como um povo que tem atrás de
si
apenas uma
curta história representaria para si o
mesmo
tempo que outros cuja
memória pode remontar a um passado longínquo?
e
através
de
uma
construção artificial que
se
faz esses dois tempos penetrar um
no
outro ou que os colocamos um ao lado do outro sobre um tempo
vazio que nada tem de histórico já que definitivamente este nada
mais é do que o tempo abstrato dos matemáticos.
Não esqueçamos é verdade que
em
uma época
em
que os
meios de comunicação eram difíceis onde não havia
nem
telégra
fos nem jornais viajava-se todavia e as notícias circulavam mais
rápido e mais longe do que o supomos. A Igreja abraçava a Europa
inteira e possuía seus tentáculos nos outros continentes.
Uma
orga
nização diplomática muito desenvolvida permitia
aos
príncipes e
seus
ministros saberem muito depressa o que se passava nos outros países.
Os
comerciantes tinham depósitos feitorias estabelecimentos
cor-
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respondentes nas cidades estrangeiras. Sempre houve alguns meios
e
alguns
grupos que serviam
de
órgãos
de
ligação entre os países
mais
distantes.
Mas nem
por
isso
o horizonte da massa
da
popula
ção era mais amplo. Durante muito tempo a maioria
dos
homens
não estava interessada naquilo que
se
passava além
dos
limites
de
sua província e muito menos de seu país. e por isso que houve e
ainda
há
tantas histórias distintas quanto nações. Aquele que quiser
escrever a história universal e fugir a
essas
limitações colocar-se-á
do ponto
de
vista
de
que conjunto
de
homens? e por essa razão
que estiveram durante muito tempo em primeiro plano
nos
relatos
históricos os acontecimentos que interessam à Igreja como os
con-
cílios os cismas a sucessão
dos
papas
os
conflitos entre clérigos e
chefes
temporais ou os fatos que preocupam os diplomatas nego-
ciações
alianças guerras tratados intrigas de corte? Não será tam-
bém porque
mais
recentemente os círculos sociais que compreendem
os
comerciantes os homens de negócios os industriais os banquei
ros
estenderam
suas
preocupações especiais sobre a maior parte da
terra
que se
cedeu espaço na história universal
aos
progressos
da
indústria aos deslocamentos das correntes comerciais às relações
econômicas
n t r ~
os
povos?
Mas
a história universal
assim
entendida
é
somente
ainda uma justaposição de histórias parciais que abrangem
apenas a vida
de
alguns grupos.
e
o tempo único
assim
reconstruí
do
se
estende sobre espaços mais amplos abrange somente uma par
te restrita da humanidade que povoa essa superfície: a massa da
população que não penetra esses círculos limitados e que ocupa
as
mesmas
regiões
teve todavia ela também sua história.
Cronologia histórica e tradição coletiva
Talvez tenhamos
nos
colocado do ponto de vista que não é e
não pode ser o dos historiadores.
Nós
lhes censuramos por confun
dir num tempo único histórias nacionais e locais que representam
outras tantas linhas de evolução distintas. Todavia se conseguimos
nos
apresentar
um
quadro sincrônico onde todos
os
acontecimentos
em
qualquer lugar onde tenham
se
produzido estejam próximos é
sem dúvida porque os desligamos dos meios que os situavam em
seu
próprio tempo quer dizer que
fazemos
a abstração do tempo
real onde estavam situados. e uma opinião corrente que a história
pelo
contrário se interessa talvez mais exclusivamente pela ordem
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da sucessão cronológica dos fatos no tempo. Mas lembremos o que
dizíamos
no
capítulo anterior quando opúnhamos o que
se
pode
chamar de memória histórica e a memória coletiva. A primeira re-
tém sobretudo as diferenças: porém as diferenças ou as mudanças
assinalam somente a passagem súbita e quase imediata de um estado
que subsiste para um outro estado que subsiste. Quando fazemos
abstração dos estados ou dos intervalos para não ir além de seus
limites, na realidade deixamos de lado aquilo que existe de
mais
substancial no próprio tempo. Sem dúvida, uma mudança
se
estende
também por uma duração, às vezes uma duração muito longa. Mas
isso vem confirmar que ela
se
decompõe
em
uma série
de
mudanças
parciais separadas por intervalos onde nada muda. Destes intervalos
menores, a narração histórica faz ainda abstração. Seria, aliás, bem
possível que nos fornecesse muito mais. Para nos fazer conhecer
aquilo que não muda, aquilo que dura no sentido verdadeiro
do
termo, para que tenhamos dele uma representação adequada, seria
necessário nos recolocarmos no meio social que tomava consciência
dessa estabilidade relativa, fazer reviver para nós uma memória
coletiva que desapareceu. Seria suficiente para que
nos
descrevam
uma instituição, que nos digam que ela não mudou durante meio
século? Primeiro, é inexato, porque houve de qualquer modo muitas
modificações lentas e insensíveis, que o historiador não percebe,
mas
que o grupo tinha o pressentimento, ao mesmo tempo, aliás, que de
uma estabilidade relativa as duas representações estão geralmente
estreitamente ligadas).
J ,
além disso, e por conseguinte, um dado
puramente negativo, enquanto não conhecemos o conteúdo da
cons-
ciência do grupo, e as circunstâncias diversas dentro das quais pode
reconhecer que, com efeito, a instituição não mudaria. A história é
necessariamente um resumo e é por isso que ela resume e concentra
em poucos momentos evoluções que se estendem por períodos intei-
ros: é neste sentido que ela extrai
as
mudanças da duração. Nada
impede agora que
se
aproxime e que
se
reúna os acontecimentos
assim destacados
do
tempo real, e que os disponhamos segundo uma
série cronológica.
Mas
uma tal série sucessiva
se
desenvolve numa
duração artificial que não tem realidade para nenhum dos grupos
aos quais esses acontecimentos foram emprestados: para nenhum
de-
les, não
se
trata do tempo
no
qual seu pensamento tinha o hábito
de
se
movimentar, e de localizar aquilo de que se lembravam de
seu passado.
1 8
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Multiplicidade e heterogeneidade das durações coletivas
A memória coletiva avança
no
passado até certo limite mais
ou
menos longínquo aliás segundo
se
trate deste ou daquele grupo.
Para além desse limite ela não atinge mais os acontecimentos e as
pessoas numa apreensão direta. Ora é precisamente aquilo que
se
encontra além desse limite que detém a atenção da história. Cos
tuma-se dizer às
vezes
que a história
se
interessa pelo passado e
não pelo presente. Mas o que é verdadeiramente o passado para ela.
é aquilo que não está mais compreendido no domínio onde.
se es
tende ainda o pensamento dos grupos atuais. Parece que ela precisa
esperar que
os
antigos grupos desapareçam que seus pensamentos
e sua memória
se
tenham desvanecido para que ela
se
preocupe em
fixar a
imagem
e a ordem de sucessão dos fatos que agora é a única
capaz
de
conservar.
Sem
dúvida é preciso então apoiar-se em depoi
mentos antigos cujo rastro subsiste nos textos oficiais jornais da
época nas memórias escritas pelos contemporâneos.
Mas
na escolha
que deles faz na importância que lhes atribui o historiador se deixa
guiar por razões que não têm nada a ver com a opinião
de
então
porque esta opinião não existe mais; não somos obrigados a levá-la
em conta não se tem medo que ela venha a se chocar com
um
desmentido. Tanto isso é verdade que ele não pode realizar sua obra
senão com a condição de se colocar deliberadamente fora do tempo
vivido pelos grupos que assistiram aos acontecimentos que com eles
tiveram contato mais ou menos direto e que deles podem se lembrar.
ColoquemO-nos agora então do ponto de vista das consciências
coletivas já que é o único meio para permanecermos no interior
de
um tempo real bastante contínuo para que um pensamento possa
percorrer todas as suas partes permanecendo ele mesmo e delas guar
dando o sentimento de unidade. Dissemos que é preciso distinguir
um certo número de tempos coletivos tantos quantos forem os grupos
separados.
Não podemos desconsiderar todavia que a vida social
em
seu
conjunto e em todas suas partes
se
escoa no interior de um
tempo que está dividido em anos meses dias horas. preciso que
seja assim
sem
o que se as durações dentro dos diversos grupos nos
quais se decompõem a sociedade comportassem· divisões diferentes
. não poderíamos estabelecer nenhuma correspondência entre seus
mo
vimentos. Ora precisamente porque esse. grupos estão separados uns
dos
outros porque cada um deles tem seu próprio movimento e
1 9
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porque os homens individualmente passam não obstante de um para
outro, as divisões do tempo devem ser em toda a parte bastante
uniformes. Deve ser sempre possível, quando estivermos num pri
meiro grupo, prever em que momento entraremos no segundo, esse
momento referindo-se, bem entendido, ao tempo do segundo. Porém,
quando estamos no primeiro, estamos no tempo do primeiro, não
no tempo
do
segundo.
l
o problema que se apresenta a um viajante
que deve ir ao estrangeiro, e que dispõe apenas para medida do
tempo, relógios de seu país. Ele estará seguro entretanto de não per
der o trem, se a hora for a mesma em todos os países, ou se houver
entre as horas dos diversos países, um quadro de correspondência.
Diremos então que existe a propósito um tempo único e univer
sal ao qual se referem todas as sociedades, cujas divisões se impõem
a todos os grupos e que essa oscilação comum, transmitida a todas
as r g i ~ s do mundo social, restabelece entre elas as comunicações
e relações que suas barreiras mútuas tenderiam impedir?
Mas
a prin
cípio, a correspondência entre as divisões do tempo em várias socie-
dades vizinhas é muito· menos exata do que quando
se
trata de ho-
rários internacionais
de
estradas de ferro. Isso se explica, aliás, pelo
fato de que as exigências dos diversos grupos a este respeito não são
as mesmas. Na família geralmente o tempo comporta uma certa
fle-
xibilidade bem maior do que no colégio ou no quartel. Ainda que
um padre deva rezar sua missa na hora certa nada foi previsto quan
to à duração exata de seu sermão. Excetuando as cerimônias,
às
quais entretanto chegam com freqüência atrasados e que não
acom-
panham até o final,
os
fiéis podem
r
à igreja quando lhes aprouver,
e fazer em suas casas suas práticas de orações e devoções sem
se
regularem pela hora solar. Um comerciante deve chegar na hora para
não faltar a um encontro de negócios: mas as compras se distribuem
durante todo o dia, e para as encomendas, as entregas,
se
houver
prazos fixados, estes são em geral bastante aproximados. Parece,
aliás, que
se
descansa ou que
se
desforra, em alguns meios, da exa
tidão à qual se é obrigado em outros. Há uma sociedade cuja maté
ria
se
renova sem cessar, cujos elementos se deslocam, uns em rela
ção aos outros, continuamente, é o conjunto dos homens que circulam
pelas ruas. Ora, sem dúvida, alguns dentre eles estão apressados, ace-
leram o passo, voltam o olhar para seus relógios, próximo às esta-
ções, para chegar aos escritórios e na saída, mas em geral quando
se
passeia, quando nos distraímos, quando olhamos as vitrines das lojas,
não medimos a duração das horas, não cuidamos
em
saber que hora
11
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é exatamente e quando devemos fazer um longo trajeto para chegar
a tempo nos guiamos por um sentimento vago como se estivéssemos
andando numa cidade sem olhar o nome das ruas por uma espécie
de faro. Uma vez que nos diversos ambientes não experimentamos
a necessidade de medir o tempo com a mesma exatidão resulta que
a correspondência entre o tempo do escritório o tempo da casa o
tempo da rua o tempo das visitas está fixado apenas dentro de
li-
mites às vezes bastante amplos.
1
por isso que nos desculpamos de
chegar atrasados a um encontro de negócios ou voltar para casa
em
uma hora anormal dizendo que encontramos alguém na rua: iliso sig-
nifica reclamar o benefício da liberdade com a qual medimos o tem
po num meio onde não se cuida muito em levar em consideração a
exatidão.
Falamos sobretudo de horas e de minutos não obstante dizemos
algumas vezes a um amigo: virei ver você um dia desses na próxima
semana dentro de um mês; quando revemos um parente distante con
tamos aproximadamente o número de anos em que não nos víamos.
1 que este tipo de relação ou de sociedade não comporta uma locali
zação no tempo mais definida. Assim e deste ponto de vista não
se
trata absolutamente do mesmo tempo mas de tempos em correspon
dência mais ou menos exata que encontraríamos em nossas sociedades.
1
verdade que todos se inspiram num mesmo tipo e se referem
a um mesmo quadro que poderia ser considerado como o tempo so-
cial por excelência. Não temos a pesquisar qual é a origem da divisão
da duração em anos meses semanas dias. Mas é um fato qUe sob
a forma que a conhecemos ela é muito antiga e repousa sobre as tra
dições. Não podemos dizer com efeito que ela resulta de um acordo
feito entre todos os grupos o que implicaria que num dado momen
to estes suprimiriam as barreiras que os separam e se reuniriam por
algum tempo em uma só sociedade que teria por objeto fixar um sis
tema de divisão da duração. Mas é possível e sem dúvida necessário
que outrora esse acordo se tenha realizado dentro de uma única so-
ciedade de onde todas essas que conhecemos teriam saído. Suponha
mos que outrora as crenças religiosas tenham deixado fortemente suas
impressões sobre as
i n s t i t u i ~ s Talve31 Q
homens que nelas reunissem
atributos de
c h ~ e l i
e padres
tenham
dividido o tempo inl:lpirando-se
ao mesm ). tempo em suas ÇQl\cepçóes religiosas e na observação do
curso natural dos fenômenos celestes e terrestres. Qual\do a sociedade
política
se
distinguiu do ~ p religioso. q1.landoas fatiúlias
se
multi
plicaram elas continuaram dividir o tempo da mesma maneira do
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que na comunidade primitiva de onde saíram. Ainda agora quando
novos grupos se formam grupos permanentes ou efêmeros entre pes-
soas de uma mesma profissão de uma mesma cidade ou de uma aldeia
entre amigos em vista de uma obra social de uma atividade literária
ou artística ou simplesmente por ocasião de um encontro de uma
viagem comum é sempre pela separação de um ou de vários grupos
maiores e mais antigos. natural que dentro dessas formações no-
vas encontremos muitos traços das comunidades-mãe e que muitas
noções elaboradas nestas passem para aquelas: a divisão do tempo
seria uma dessas tradições
as
quais não podemos deixar de lado pois
não há grupo que não tenha a necessidade de distinguir e reconhecer
as diversas partes de sua· duração. e assim que encontramos nos
no-
mes dos dias d semana e dos meses muitos traços de crendices e
tradições desaparecidas que datamos sempre os
anos a partir do nas
cimento de Cristo e que antigas idéias religiosas a respeito da virtude
do número
2
estão na origem da divisão atual do dia em horas mi-
nutos e segundos.
Entretanto apesar de que essas divisões subsistam nada implica
que haja um tempo social único porque a despeito de sua origem co-
mum elas tomaram uma significação muito diferente dentro dos
di-
versos grupos. Não é somente porque como o demonstramos a
ne-
cessidade da exatidão neste ponto varie de uma sociedade à outra;
mais primeiro como se trata de aplicar essas divisões a séries de acon
tecimentos ou de tentativas que não são as mesmas dentro dos vários
grupos e que terminam e recomeçam em intervalos que não se cor
respondem de uma sociedade para outra que podemos dizer que con
tamos o tempo a partir de datas diferentes nesta ou naquela. O ano
escolar não começa no mesmo dia que o ano religioso. No ano reli
gioso o aniversário do nascimento de Cristo e o aniversário de sua
morte t de sua ressurreição determinam as divisões essenciais do ano
cristão. O ano laico começa a primeiro de janeiro porém segundo
as
profissões e os gêneros de atividades ele comporta divisões muito
di-
ferentes. As do ano agrícola se regulam pelo curso dos trabalhos agrí
colas determinado ele pr6prio pela alternância das estações. O ano
industrial ou comercial se decompõe em períodos quando se trabalha
com toda a produção quando as encomendas afluem e em outros
quando os neg6cios se arrefecem ou estacionam: embora não sejam
os mesmos para todos os comércios e todas as indústrias. O ano
mi-
litar se conta tanto partindo da data da incorporação no sentido
es-
trito e tanto logo depois do que se chama arregimentação depois do
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intervalo que os separa isto é em sentido inverso talvez porque a
monotonia das jornadas faça com que essa duração
se
aproxime mais
do tempo homogêneo onde por medida podemos escolher por con
venção o sentido que se quiser. Assim há tantos grupos quantas são as
origens dos diferentes tempos. Não há nenhum deles que se imponha a
todos os grupos.
Mas acontece o mesmo com os dias. Poderíamos crer que alter
nância dos dias e das noites assinala uma divisão fundamental um
ritmo elementar do tempo que é o mesmo para todas as sociedades. A
noite consagrada ao sono interrompe com efeito a vida social. É o
período onde o homem escapa quase inteiramente do aprisionamento
das leis dos costumes das representações coletivas onde está real
mente s6. Entretanto será a noite um período excepcional deste ponto
de vista e será que existe apenas para deter temporariamente a mar
cha
dessas correntes que são as sociedades? Se lhe atribuímos essa
virtude é porque esquecemos que não há somente uma sociedade
mas grupos e que a vida de numerosos dentre eles
se
interrompe mui
to
antes da noite e em outros momentos ainda. Dizemos
se
quiser
mos que um grupo dorme quando não há mais homens associados
para sustentar e desenvolver seu pensamento mas que ele somente
dormita que continua a existir tanto é que seus membros estão pron
tos a se aproximar e reconstituí-Io tal como estava quando eles o dei
xaram. Ora não há senão um grupo do qual
se
possa dizer que sua
vida consciente está periodicamente suspensa pelo sono físico dos ho
mens
é
a família pois que em geral são aos seus a quem pedimos
permissão quando nos deitamos e que vemos antes de todos os outros.
ao despertar.
Mas
a consciência do grupo familiar se apaga e se es-
vanece ainda em outros momentos: quando seus membros se distan
ciam o pai e algumas vezes a mãe em seu trabalho a criança na
escola e os períodos de ausência que contados em horas de relógio.
são mais curtos do que a noite e não parecem talvez menos longos
para a pr6pria família porque durante a noite ela não tem consciên
cia do tempo; que um homem tenha dormido uma hora ou dez ho
ras ao despertar não sabe quanto tempo decorreu: um minuto. uma
eternidade? Quanto aos outros grupos
é
em geral bem antes do anoi
tecer que suas vidas se interrompem e muito tempo depois que reco
meçam. Se aliás essa interrupção
é
mais demorada ela não
é
de outra
natureza senão da de outras paradas que se produzem na vida dos
mesmos grupos e em outros momentos do dia.
Em
todo o caso o dia
de
trabalho não se estende de modo ininterrupto por toda a seqüên-
3
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cia das horas que separam o despertar do sono: ele não atinge esses
dois limites, e é interrompido, por intervalos que pertencem a outros
grupos. e da mesma maneira, com maior razão do dia religioso ou
do dia mundano.
Se
a noite nos parece, não obstante, assinalar a
di-
visão essencial do tempo, é porque ela o é com efeito para a família
e porque não existe comunidade à qual nos apeguemos mais estreita-
mente. Mas examinemos apenas os outros grupos cuja vida tanto se
detém como recomeça: suponhamos que os intervalos de parada se-
jam tão vazios quanto a noite e que a representação do tempo ali
desapareça então completamente também. Será muito difícil dizer den-
tro desses grupos quando o dia começa e quando acaba, e nesse caso
não começaria no mesmo momento, em todos os grupos.
De fato todavia, como vimos, há uma correspondência bastante
exata entre todos esses tempos, ainda que não possamos dizer que
estejam adaptados um ao outro por uma convenção estabelecida en-
tre os grupos. Todos dividem o tempo de modo geral da mesma
ma-
neira, porque todos eles herdaram, a respeito disso, uma mesma tra-
dição. Essa divisão tradicional da duração se adapta, aliás, ao curso
da natureza, e não há como dela se separar, já que
foi estabelecida
por homens que observavam o curso dos astros e o curso
do
sol.
o-
mo a vida de todos os grupos se desenrola nas mesmas condições as-
tronômicas, todos eles podem constatar que o ritmo do tempo social
e a alternância dos fenômenos da natureza, estão bem adaptados
um
ao outro. Não é menos verdade que, de um grupo a outro, as divisões
do tempo que se harmonizam não são as mesmas e não têm nesse
caso o mesmo sentido. Tudo se passa como se um mesmo pêndulo
comunicasse seu movimento a todas as partes do corpo social. Porém,
na realidade, não existe um único calendário, exterior aos grupos e
ao qual eles se refeririam. Há tantos calendários quantas sociedades
diferentes, já que
as
divisões do tempo se expressam tanto em ter-
mos religiosos cada dia sendo consagrado a um santo), tanto em ter-
mos de negócios dias de pagamento etc.). Pouco importa que aqui e
ali se fale de dias, de meses, de anos. Um grupo não poderia se servir
do calendário de um outro. Não é no campo religioso que vive o co-
merciante e que pode encontrar os pontos de referência.
Se
outrora
foi diferente, se as feiras e os mercados se situavam em dias consagra-
dos pela religião, se o prazo de vencimento de uma dívida de comér-
cio era fixada no dia de São João, na Candelária, é porque o grupo
econômico ainda não estava desligado da sociedade religiosa.
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ua impermeabilidade
Mas
a questão é então saber se
os
grupos, em si mesmos estão
verdadeiramente separados. Poder-se-ia conceber, com efeito, não
so-
mente que eles sejam formados por numerosos empréstimos, mas que
suas vidas se aproximam e se fundam geralmente, como se essas li
nhas de evolução se cruzassem incessantemente.
Se
várias correntes
de pensamento coletivo podem assim, pelo menos a intervalos, mis-
turar-se, trocar sua substância e procriar num mesmo leito, como fa-
lar
de
tempos múltiplos? Não será num mesmo tempo que eles fixam
o lugar
de
uma parte ao menos de suas lembranças? Se acompanha
mos
a vida
de
um grupo tal como a Igreja, durante um período de
sua evolução, veremos que seu pensamento refletiu a vida de outras
sociedades contemporâneas com
as
quais ela esteve em contato. Quan
do Saint-Beuve escreve Port-Royal ele penetra tanto mais profunda
mente nesse movimento religioso único em seu gênero, atinge tanto
melhor as forças e a originalidade interna de modo que faz entrar em
seu quadro um maior número de fatos e de personagens emprestados
de
outros meios, mas que determinam inúmeros pontos de contato
entre o século e
as
preocupações desses solitários. São poucos
os
acon
tecimentos religiosos que não tenham uma face voltada para a vida
mundana, que não tenham sua ressonância nos grupos leigos. como
tomar nota das conversas trocadas numa reunião de família ou num
salão, onde se tratará daquilo que se passa em outras famílias, em
outros meios, como
se
os grupos dos artistas, o grupo dos políticos
penetrassem no interior dessas assembléias tão diferentes, ou as ar
rastassem em seu movimento. Quando dizemos de uma sociedade,
de
uma família, de um meio mundano que são antiquados ou que estão
por dentro não será
em
penetrações e contaminações desse gênero
que pensamos? Uma vez que todo o fato notável, em qualquer região
do
corpo social em que tenha nascido pode ser tomado como ponto
de referência por qualquer grupo para determinar as épocas de sua
duração, não será isto uma prova de que os limites traçados entre as
diversas correntes coletivas são arbitrários, e que se encontram em
muitos pontos de seu percurso para que haja motivo de separá-los?
Dissemos que um mesmo acontecimento pode afetar, ao mesmo
tempo várias consciências coletivas distintas; disso concluímos que
nesse momento essas consciências
se
aproximam e
se
unem numa
re-
presentação comum. Mas será um mesmo acontecimento se cada um
,desses pensamentos o representa para
si
mesmo à sua maneira e o
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traduz em sua linguagem? Trata-se de grupos que estão tanto um
quanto o outro no espaço. O acontecimento também
se
produz no
espaço e pode ser que um e outro ·grupo o percebam. Mas o que im-
porta é a maneira pela qual o interpretam o sentido que lhe dão.
Para que eles lhe emprestem a mesma significação é preciso que an
tes de tudo as duas consciências estejam confundidas. Ora por hipó
tese elas são distintas. De fato é pouco concebível que dois pensa
mentos penetrem assim um no outro. Sem dúvida acontece que dois
grupos
se
fundem mas nasce então uma nova consciência cuja du
ração e cujo conteúdo não são os mesmos que antes. Ou então essa
fusão é apenas aparente se em seguida os dois grupos se separam e
se reencontram para o essencial como faziam antes. Um povo que con
quista um outro pode assimilá-lo: mas então ele mesmo
se
torna um
outro povo ou pelo menos entra em outra fase de sua existência. Se
não assimila cada um dos dois povos mantém sua consciência na-
cional própria e reage de modo diferente em presença dos mesmos
acontecimentos. O mesmo acontece em determinado país com a so-
ciedade religiosa e com a sociedade política. Quando o Estado domí
na a Igreja quando a preencha com seu espírito a Igreja
se
torna
um órgão do Estado e perde sua natureza de sociedade religiosa a
corrente de pensamento religioso se reduz a um fino ccrdão da parte
da Igreja que não se resigna em desaparecer. Quando Igreja e Estado
estão separados um mesmo acontecimento a reforma por exemplo
será causa nas almas religiosas e no espírito dos chefes políticos
de
interpretações diferentes que se relacionarão naturalmente aos pensa
mentos e tradições dos dois grupos mas que não se confundirão.
Do mesmo modo
se
a publicação das ettres provinci les assinala
uma data na história da literatura e na vida de Port-Royal não pen-
semos que naquele ano a corrente do pensamento literário e a cor
rente religiosa jansenista se confundiram. Sabemos que Pascal não
reconciliou
M
de Sacy com Montaigne que os jansenistas não ces-
saram de condenar a concupiscência do espírito que para eles Pascal
era apenas um instrumento de Deus e que eles atribuíam talvez mais
importância ao milagre do Santo Espinheiro o qual fora favorecido
por sua família do que
à
sua atividade de escritor. Quando Sainte
Beuve nos traça o retrato dos que entraram em Port-Royal entende
mos claramente o desdobramento de suas pessoas: são realmente os
mesmos homens; mas são as mesmas personagens aquelas das quais
o mundo guardou a lembrança e aquelas que se impuseram à memó-
ria dos jansenistas. todo o brilho do espírito. do talento tendo se apa-
116
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gado
a conversão assinalando um fim para uma sociedade e para
outra um começo, como se houvesse lá duas datas que não têm lugar
ao mesmo tempo? Quando se trata, como aqui, de um acontecimento.
de uma conduta moral, á questão. é verdade, se complica um pouco
~
concebível que, por exemplo. o grupo religioso e determinada
fa-
mília sejam afetados da mesma maneira, porque a própria família é
muito religiosa.
Quando Mme. Périer conlJ a vida de seu irmão. fala dele como
de um santo, com um acento muito jansenista. Mas do mesmo modo
como
numa família que se apaixona pela política.
as
discussões que
aí
se dão, colocam a família em contato com os meios onde esses
debates são o objeto exclusivo. Observemos esta situação, todavia. um
pouco mais de perto. Há sempre pelo menos uma nuança ou a ausên
cia
de
uma sutileza que nos mostra
se
a religião ou a política fizeram
passar para segundo plano todas as considerações de parentesco, no
caso. bem entendido. de que não pertençamos à família.
Houve momentos em que o quarto de Pascal se transformou em
uma
célula ou uma capela e em que o salão de Mme. RoJand não
se
distinguia mais de um clube ou de um conselho de ministros giron
dinos.
Ao
contrário em outros casos. o pensamento familiar se apode
ra
das imagens e dos acontecimentos da religião e da política para
alimentar sqa própria vida, acontece então que nos orgulhamos do
brilho que recai sobre a família porque um de seus membro.s
se
tor
nou ilustre num ou noutro domínio. onde seus membros se sentem
parentes mais próximos, ou. ao contrário, distantes porque suas cren
ças
e convicções políticas os unem ou os separam. Mas isso só será
possível se esses elementos de pensamento que
se
relacionam aparen
temente, para a família, aos objetds e pessoas que lhes são exteriores,
transpuserem-se em representações familiares. isto é, conservem per
feitamente a forma aparente, política ou religiosa. mas tenham como
substância as reações do parentesco, os interesses e as preferências da
casa dos irmãos. dos ascendentes. Que tais transposições sejam pos-
síveis é o que resulta de que geralmente praticamos tal religião e
seguimos
tal opinião política, porque essas são. desde há muito tem
po
as
da família. "Meu Deus e meu Rei", diz o camponês, porém
é
preciso entender: meu lar, meus pais. Quantas contradições de eren-
.
ças
e convicções não passam de antagonismos mascarados de irmão
para irmão, da criança para com os pais O que não impede que
em
certas ocasiões, todas as preocupações da família desapareçam. e ~
familiares sejam esquecidos. l então que somos apanhados realmente
1 7
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pelos grupos religiosos e políticos: como o seríamos também pelos
grupos que
se
ocupam das ciências da arte e de negócios:
mas
então
não é preciso que conversando dessas coisas com os nossos esque
çamos esses grupos para pensar nos nossos.
entidão rapidez
da
~ r n s f o r m ç ã o
social
Se
as diversas correntes de pensamento coletivo não penetram
realmente jamais uma na outra e não podem ser colocadas e mantidas
em contato é bem difícil dizer
se
o tempo
se
escoa mais rápido para
uma do que para outra. Como
se
conhece a rapidez do tempo já que
não existe uma medida comum e não concebemos nenhum meio de
medir a rapidez uma em relação à outra? Pode-se dizer que em
cer-
tos meios a vida passa
os
pensamentos e os sentimentos
se
sucedem
conforme um ritmo mais rápido do que em outro lugar. Definiremos
a rapidez
do
tempo de acordo com o número de acontecimentos que
ele encerra? Mas já o dissemos; o tempo não é outra coisa senão uma
série sucessiva de fatos ou uma soma de diferenças. Somos vítimas
de uma ilusão quando imaginamos que uma maior quantidade de
acontecimentos ou de diferenças significa a mesma coisa que um
tem-
po mais longo.
~
esquecer que
os
acontecimentos dividem o tempo
mas não o preenchem. Aqueles que multiplicam suas ocupações e suas
distrações acabam por perder a noção do tempo real
~
talvez apagar
a substância mesma do tempo que dividido em tantas partes não
pode mais
se
estender e
se
ampliar e não oferece mais nenhuma con-
sistência. omo a faculdade de mudar para um grupo humano é
limitada é necessário que à medida que
as
mudanças
se
multiplicam
dentro de uma mesma duração de vinte e quatro horas cada
um
deles
se
torne menos importante. De fato a atividade de grupos
co-
mo as bolsas de valores as sociedades industriais e comerciais onde
se trata em pouco tempo de uma quantidade grande de negócios é
quase sempre de tipo mecânico. São
os
mesmos cálculos
as mesmas
espécies de combinação que
se
apresentam ao pensamento de seus
membros. Será preciso esperar vários anos
às
vezes várias décadas
pata que da acumulação de todas essas palavras e de todos esses
gestos resulte uma mudança importante que modifique de modo du-
rável a memória desses meios quer dizer a imagem que guardam de
seu passado. Através dessa agitação
~ i s
do que semi-automática o
grupo reencontra um tempo bastante uniforme e que não
se
escoa
em resumo mais rapidamente do que aquele do pescador
com
a linha.
8
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Tornamos a dizer também que há povos retardatários, cuja evo
lução se
efetuou muito lentamente, e num mesmo país, é lugar co
mum
insistir sobre o ritmo rápido da existência nas grandes cidades
em comparação com as pequenas povoações, ou em regiões indus
triais em comparação com o campo. Não esqueçamos, entretanto, que
os
grupos que comparamos não têm nem a mesma natureza, nem a
mesma espécie de ocupação. Mas pelo fato de que no intervalo de
um dia, os habitantes de um vilarejo têm menos ocasiões de mudar
a direção de sua atividade ou de seu pensamento, será que, para eles,
o
tempo se
escoa mais lentamente do que nas cidades? e o habitante
da
cidade que tem essa idéia, mas por quê? Porque ele representa
para
si a cidadezinha como uma cidade na qual a atividade diminui
e que é pouco a pouco paralisada, adormecida. Mas, uma cidadezinha
é uma
cidadezinha, e é preciso, compará-la a si mesma e não a
um
grupo
de
outra natureza. Ora, no campo, o tempo se divide conforme
uma
ordem de ocupações que
se
regulam segundo o curso da nature
za .animal e vegetal. e preciso aguardar que o trigo brote, que os ani
mais tenham posto seus ovos ou nascido os seus filhotes, que as tetas
das vacas
estejam cheias. Não há mecanismo que possa apressar essas
operações. O tempo é aquilo que deve ser dentro de um grupo desses,
e para
esses
homens cujo pensamento assumiu uma conduta conforme
as necessidades e as tradições. Sem dúvida, há períodos de press a,
dias
em que
se
descansa, mas são irregularidades que sustentam o
conteúdo do tempo e não alteram seu curso. Quer estejamos absorvi
dos
por uma tarefa, por uma conversa em família, um sonho, uma
re
flexão uma lembrança, quer olhemos as pessoas passarem, quer
jo
guemos
cartas, no momento em que estas são maneiras de ser e ativi
dades
habituais, reguladas pelo hábito, e que cada uma, tem o lugar
e a duração que lhe convém, o tempo é realmente aquilo que sempre
foi
nem
muito rápido, nem muito lento.
Ao
contrário. camponeses
levados
para a cidade
se
espantarão pelo fato de que
o.
ritmo da vida
se precipita e pensarão que o dia sendo mais cheio deve condensar
também
mais tempo. Eles imaginam a cidade como um vilarejo,
to
mado por uma febre de atividades, onde os homens estão superexci
tados
onde
os
pensamentos e
os
gestos são arrastados num movimen
to
vertiginoso. Mas a cidade é a cidade, quer dizer, um meio onde o
mecanismo se
introduziu não somente nos trabalhos produtivos, mas
regula
também os deslocamentos, as distrações e o jogo do espírito.
O
tempo
está dividido como deve ser, ele é o que deve ser, nem mui
to
rápido, nem muito lento, á que está em conformidade com as
ne-
9
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cessidades da vida urbana. Os pensamentos que o preenchem são
mais numerosos, mas também mais breves: não podem criar raízes
profundas nos espíritos. porque um pensamento não toma consis
tência a não ser quando
se
estende por uma duração satisfatória. Mas
como comparar o número dos estados de consciência que se sucedl'm
para medir a rapidez do tempo dentro dos dois grupos, já que nâo
se trata de pensamentos e representações da mesma espécie? Na rea
lidade, não podemos dizer que o tempo
se
escoa mais rápido ou mais
lentamente numa sociedade do que na outra; a noção de rapidez,
aplicada ao curso do tempo, não oferece uma significação definida.
o contrário, é um fato marcante que o pensamento, quando se re-
corda, pode percorrer em alguns instantes intervalos de tempo mais
ou menos grandes e percorrer o curso da duração com uma rapidez
que varia não somente de um grupo para outro, mas ainda no interior
de um mesmo grupo, de um indivíduo para outro, e até mesmo, para
um iQdivíduo que permaneça dentro do mesmo grupo, de um momen
to para outro. Admiramo-nos, às vezes, quando buscamos uma
lem-
brança muito longínqua, da rapidez com a qual o espírito salta por
cima de vastos períodos e, como se houvesse calçado botas de sete
léguas, divisa apenas de passagem as representações do passado que
aparentemente deveriam ocupar o intervalo.
A substância impessoal dos grupos duráveis
Mas porque imaginar que todas as antigas lembranças estão lá,
arrumadas, segundo a ordem mesma em que se sucederam como se
nos aguardassem Se, para voltar no passado, fosse necessário nos
guiarmos por essas imagens totalmente diferentes uma da outra, cada
uma correspondendo a um acontecimento que teve lugar somente uma
vez, então o espírito não passaria por cima delas com grandes pas
sadas, e não
se
limitaria mesmo em rogá-las mas repassaria uma por
uma sob seu olhar. Na realidade, o espírito não passa em revista to-
das essas imagens, das quais aliás nada indica que elas subsi.stem.
no tempo, tempo este que é aquele de um determinado grupo, que
ele procura encontrar ou ainda reconstituir a lembrança e é no tempo
que ele
se
apóia. O tempo e
só
ele pode desempenhar esse papel
à
medida em que o representamos como um meio contínuo que não
mudou e que permaneceu o mesmo hoje como ontem, de maneira
que podemos encontrar ontem dentro de hoje. Que o tempo possa
permanecer de algum modo imóvel por um período bastante longo.
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isso advém de que ele serve de quadro comum para o pensamento de
um grupo que em
si
mesmo durante esse período não muda de na
tureza conserva quase a mesma estrutura e volta sua atenção aos
mesmos
objetos. Enquanto meu pensamento pode voltar a um tempo
desse
gênero aprofundar-se nele nele explorar as diversas partes de
um movimento contínuo sem esbarrar em obstáculo nenhum ou bar
reira que o impeça de ver além ele se move num meio onde todos
os acontecimentos se concatenam. Basta que ele se desloque dentro
desse meio para que nele encontre todos os elementos.
Bem
entendi
do
esse tempo não se confunde com os acontecimentos que ali se
sucederam. Mas também não mais se reduz como o demonstramos
a um quadro homogêneo e inteiramente vazio. Ali encontramos ins
crita ou indicada a marca dos acontecimentos ou das imagens de ou
trora à medida que respondiam ou respondem ainda a um interesse
ou a uma preocupação do grupo. Quando dizemos que o indivíduo
se conduz com a ajuda da memória do grupo é necessário entender
que essa ajuda não implica na presença atual de um ou vários de
seus
membros. Com efeito continuo a sofrer a influência de uma so-
ciedade ainda que tenha me distanciado: basta que carregue comigo
em meu espírito tudo o que me capacite para me posicionar do ponto
de
vista
de
seus membros de me envolver em seu meio e em seu
próprio tempo e de me sentir no coração do grupo. Isto exige é
verdade alguma explicação. Vejo-me em pensamento ao lado de um
colega
de escola a quem era muito ligado envolvidos
os
dois dentro
numa discussão psicológica; analisamos e descrevemos os caracteres
de nossos mestres de nossos amigos. Ele e eu fazíamos parte do gru
po de nossos colegas mas dentro desse grupo nossas relações pessoais
além
do mais anteriores a nossa entrada na Escola haviam criado
entre nós uma comunidade mais estreita. Há muitos anos que não
o vejo porém nosso grupo subsiste pelo menos em pensamento por
que
se
nos encontrarmos· amanhã teríamos um frente ao outro a
mesma
atitude tal como quando nos separamos. Ele morreu há p e ~
nas alguns meses. Então nosso grupo se dissolveu. Não o encontrarei
mais.
Não posso mais evocá-lo como uma pessoa viva hoje. Quando
nos revejo agora engajados outrora numa conversa como pretender
que
para evocar essas lembranças. eu me apóie na memória de nosso
grupo já que nosso grupo não existe mais? Mas o grupo não é so-
mente nem mesmo principalmente um conjunto de indivíduos defini
dos e sua realidade não se esgota em algumas imagens que podemos
enumerar e a partir das quais o reconstruiríamos. Pelo contrário o
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que o constitui essencialmente é um interesse uma ordem de idéias
e de preocupações que sem dúvida se particularizam e refletem em
certa medida as personalidades de seus membros mas que são não
todavia bastante gerais e mesmo impessoais para conservar seu sentido
e sua importância para mim ainda que mesmo essas personalidades
se
transformassem e que outras semelhantes
é
verdade porém dife
rentes lhes fossem substituídas. E isto que representa o elemento es-
tável e permanente do grupo e longe de encontrá-lo a partir de seus
membros é partir -deste elemento que reconstruo as imagens destes.
Se portanto penso em meu amigo é que me recoloco numa corrente
de idéias que nos foram comuns e que subsiste para mim mesmo
que meu amigo não esteja mais lá ou não possa mais no futuro en-
contrar-me contanto que se conservem em torno de mim as condi
ções que me permitam nela me recolocar. Ora elas
se
conservam
porque tais preocupações não seriam estranhas aos nossos amigos o-
muns e encontrei e ainda encontro pessoas que se parecem com
meu amigo pelo menos sob esse aspecto nos quais distingo o mesmo
caráter e os mesmos pensamentos como se fossem membros virtuais
do mesmo grupo.
Suponhamos que as relações entre duas ou várias pessoas sejam
tais que esse elemento de pensamento comum impessoal faça falta.
Dois seres se amam com uma paixão profundamente egoísta o pen
samento de cada um é preenchido inteiramente pelo outro. Eles po
dem dizer: eu o amo porque é ele ou porque é
ela
Neste caso
nenhuma substituição é possível. Mas a paixão desaparecendo não
subsistirá nada do laço que os unia e então esquecerão ou não
guardarão um do outro senão
u ~
lembrança pálida e descolorida.
Em que se apoiariam eles com efeito para que cada um se lem
brasse do outro tal como via? Às vezes entretanto se a lembrança
subsiste apesar da separação apesar da morte
é
que além da liga
ção pessoal havia um pensamento comum o sentimento da fuga do
tempo a visão dos objetos circundantes a natureza algum tema de
meditação: é o elemento estável que transformava a união dos dois
seres de base simplesmente afetiva numa sociedade e é o pensamen
to subsistente do grupo que evoca a aproximação passada e que
salva do esquecimento a imagem da pessoa. Auguste Comte poderia
ter evocado Clotilde de Vaux e tê-la visto quase com os olhos do
corpo se seu amor não houvesse tomado o sentido de uma união
espiritual e se não a houvessem legado à religião da humanidade?
E assim que nos lembramos de nossos pais sem dúvida porque os
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amamos mas sobretudo porque são nossos pais. Dois amigos não
se
esquecem porque a amizade supõe
uma
concordância de pensa-
mentos e algumas preocupações comuns.
Na realidade nossas relações com algumas pessoas se incorpo-
ram a conjuntos mais amplos dos quais
não
representamos mais
sob
forma concreta os outros membros. Esses conjuntos tendem a
ultrapassar as imagens que nós conhecemos
é
quase a se desperso-
nalizar. Ora o que é impessoal é também o mais estável. O tempo
onde viveu o grupo é
um
meio semidespersonalizado em que
po .
demos assinalar o lugar de mais de um acontecimento passado por-
que cada um deles tem uma significação em relação ao conjunto .. E
essa
significação que encontramos no conjunto e este se conserya
porque sua realidade não se confunde com as imagens particulares
e passageiras que o atravessam.
ermanência
transformação dos
grupos as épocas da
família
Esta permanência do tempo social é além do mais muito rela-
tiva. De fato se nossa retomada
do
passado nas diversas direções
onde
se
engaja o pensamento destes grupos vai bastante longe ela
não
é ilimitada e não ultrapassa jamais uma linha que se desloca
à medida que as sociedades das quais somos membros entram num
novo
período de existência.
Tudo
se passa aparentemente como se
a memória tivesse necessidade de se descarregar quando aumenta a
quantidade dos acontecimentos de que deve se lembrar. Assinalemos
aliás que não é o número de lembranças que importa aqui. Enquan-
to
o grupo não muda sensivelmente o tempo que sua memória abran-
ge
pode
se
alongar: é sempre
um
meio contínuo que se torna aces-
sível em toda a sua extensão. E quando se transforma que
um
novo
tempo começa
para
ele e que sua atenção se afasta progressiva-
mente
daquilo que foi e do
que
não é mais agora. Mas o tempo
antigo pode subsistir ao lado do tempo novo e mesmo nele
para
aqueles de seus membros
para
quem uma tal transformação tenha
abalado menos como se o antigo grupo recusasse a se deixar absor-
ver
inteiramente pelo novo grupo que nasceu de sua substância. Se
a memória atinge então regiões do passado inegavelmente distantes
conforme as partés do corpo social que se considera não é porque
uns
têm mais lembranças do que os outros: mas as duas partes do
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grupo organizam seu pensamento
em
torno
de
centros
de
interesses
que não são mais completamente os mesmos.
Sem sair da família. a memória do pai e da mãe os transportam
ao tempo que se seguiu ao seu casamento: ela explora uma região
do passado que as crianças não conhecem a não ser por ouvir falar:
estas não
se
lembram
de
um tempo em que não tinham despertado
ainda para a consciência do meio de seus pais. A memória do grupo
familiar se reduz então a
um
feixe de séries de lembranças indivi
duais. semelhantes para todas as partes do tempo a que elas
cor-
respondem nas mesmas circunstâncias, mas que, quando remonta
mos
ao
curso da duração, interrompem-se mais ou menos cedo?
Assim, numa família. tantas memórias, tantas opiniões sobre um
mesmo grupo quantos sejam os membros da família,
já
que elas
se
estendem por tempos desiguais? Não, mas reconheçamos antes na
vida desse grupo transformações características.
Até o momento em que as crianças nasceram e
se
tomaram
capazes de
se
lembrar, e o período após o casamento, decorreu pou
co tempo. Porém esse ano ou alguns anos estão repletos de aconteci
mentos, ainda que aparentemente nada acontecesse. então que se
descobrem não somente os caracteres pessoais
dos
dois esposos, mas
tudo o que herdaram de seus pais, dos ambientes onde viveram até
então; para que um novo grupo
se
edifique sobre esses elementos, é
necessário toda uma série de esforços em comum através de muitas
surpresas, resistências, conflitos, sacrifícios, mas também de muitos
acordos espontâneos e encontros, consentimentos, encorajamentos,
descobertas feitas
jUllll\S no
mundo da natureza e da sociedade. E
o tempo consagrado
ao
estabelecimento dos alicerces do edifício,
tempo mais pitoresco
c.
movimentado do que
os
longos intervalos
dedicados a acabar a casa: há no canteiro de obras uma efervescên
cia,
um
entusiasmo unânime, primeiro porque é um começo. Mais
tarde, seremos obrigados a regular nosso trabalho conforme o que
.á foi realizado, pelo qual temos a responsabilidade
ao
mesmo tem-
po que sentimos orgulho, colocarmo-nos em alinhamento com os edi
fícios vizinhos, levarmos em conta exigências e preferências daque
les que habitarão a casa que nem sempre prevemos:
de
onde muitos
contratempos, tempo perdido, trabalho por desfazer e refazer. Mas
também estaremos expostos a parar no meio do trabalho por uma
razão ou outra. Há casas inacabadas, trabalhos que aguardam muito
para que os retomemos. Pendent opera interrupta Há também o
té
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um grupo compreende mais membros, sobretudo quando estes são de
idades diferentes, entra em contato com a sociedade através de um
maior número de partes de si mesmo. Incorpora-se mais estreitamente
ao meio que compreende s outras famílias, penetra em seu espírito,
sujeita-se às suas regras. Poderíamos pensar que uma família maior
se
baste mais a
si
mesma e constitua um meio mais fechado. Isso não
é absolutamente verdadeiro. Por certo, os pais têm agora uma preo
cupação comum nova e singularmente forte. Mas o grupo familiar
mais amplo, tem mais dificuldade em se isolar materialmente: oferece
uma superfície maior aos olhares dos outros, uma abertura maior à
opinião. A família é constituída de um conjunto de relações internas
mais numerosas e mais complexas, mais impessoais também, já que
realiza a seu modo um tipo de organização doméstica que existe fora
dela e que tende a ultrapassá-la. A essa transformação do grupo cor
responde um remanejamento profundo de seu pensamento. E como
um novo ponto de partida. Para s crianças, é toda a vida da família.
pelo menos daquela da qual guardam alguma lembrança. A memória
dos pais recua bastante, sem dGvida, porque o grupo que formavam
outrora não foi inteiramente reabsorvido na família ampliada. Conti
nuou a existir, mas como uma vida descontínua e apagada. Disso nos
percebemos quando os filhos
se
afastam. Experimentamos então uma
impressão de irrealidade como quando dois amigos se el1contram de-
pois de muito tempo, podem evocar o passado comum mas não têm
nada mais a
se
dizer. Está-se como que na extremidade de um cami
nho que se perde, ou como dois parceiros que esqueceram s regras
do jogo.
obrevivência dos grupos desaparecidos
Assim, quando uma sociedade foi submetida a uma modificação
profunda, parece que a memória atinge por dois caminhos diferentes
s lembranças que correspondem a esses dois períodos sucessivos e
não volta, de um para o outro, de modo contínuo. Há na realidade
dois tempos nos quais conservam dois quadros de pensamento. e é
tanto num como no outro que é preciso nos colocarmos para encontrar
s
lembranças em cada um dos quadros onde estão localizadas. Para
encontrar uma cidade antiga no labirinto das novas ruas que pouco
a pouco circundaram e transformaram casas e monumentos, que ora
descobriram
os
antigos quarteirões e encontraram lugar
no
prolonga-
126
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dio por voltar a trabalhar no mesmo lugar. dia após dia. Na atividade
mesma
daqueles que executam uma construção. há sempre mais in
quietude do que alegria. Um trabalho de demolição evoca sempre um
pouco da natureza e os operários que escavam as fundações
se
as-
semelham a pioneiros. Como o período onde estabelecemos as bases
de
um novo grupo não seria repleto de pensamentos intensos e desti
nados a perdurar? Em mais de uma sociedade sobrevive assim o
es-
pírito dos fundadores. por mais curto que tenha sido o tempo consa
grado à fundação.
Em muitos casos a chegada dos filhos não amplia somente a fa-
mília ela modifica seu pensamento e a direção de seu interesse. A
criança é sempre um intruso nesse sentido que sabemos bem que não
se
adaptará à família já constituída. mas que os pais e mesmo os
irmãos deverão sujeitar-se senão às exigências do recém-chegado. pe
lo menos às mudanças que resultam de sua introdução no grupo. Até
aqui o casal sem filhos pode pensar que bastava a
si
mesmo: talvez
apenas se bastasse aparentemente. quando. na realidade se abria para
muitas influências externas: leituras. teatro relações viagens. ocupa
ções profissionais do homen e talvez da mulher tudo feito em co-
mum, e nessa passagem através de muitos ambientes o casal reagindo
à
sua maneira e tomando cada vez melhor consciência de sua unidade.
Ele se situa entre dois perigos: retrair-se demais e se fechar sobre si
mesmo, não conservar mais com os grupos exteriores o mesmo con
tato que permite a leitura o que o condena a involuir porque não
pude viver senão da substância social e é por isso que aspira sempre
a sair do círculo de seus membros e a se expandir. Mas outro risco é
se expandir demais. ao se deixar absorver por um grupo exterior ao
casal ou por alguma preocupação que lhe seja por demais excêntrica.
Disso decorre à vezes. ao menos no início uma alternância de
pe-
ríodos nos quais o casal procurando de algum modo seu lugar
na
sociedade exterior. tanto
se
deixa dominar por ela como procura
se
afastar dela: contrastes que se sobressaem de modo bastante vivo pa
ra que essa fasl de sua vida se diferencie por si mesma das seguintes
e permaneça gravada em sua memória.
Mais tarde. o casal encontrou seu lugar: tem suas relações. seus
interesses seu grupo; suas ligações com
os
outros grupos estão quase
estabilizadas; suas preocupações essenciais tomaram uma forma mais
definida. Com maior razão. quando um casal tem filhos. suas relações
com o meio social que o cerca se multiplicam e se definem. Quando
2:;
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mento e
no
intervalo das construções
de
outrora, não
se
recua do pre
sente
ao
passado seguindo em sentido inverso e
de
modo contínuo a
série dos trabalhos, demolições, traçados das ruas etc., que modifica
ram progressivamente o aspecto dessa cidade.
Mas
para reencontrar
caminhos e monumentos antigos, conservados, aliás, ou desapareci
dos, guiamo-nos pela planta geral da cidade antiga, transportamo-nos
em pensamento até lá, o que é sempre possível àqueles que ali
vive-
ram, antes que se tivesse ampliado e reconstruído os velhos quartei
rões, e para quem esses muros ainda de pé, essas fachadas
de
outro
século,
esses
trechos
de
ruas guardam sua significação de outrora. Na
cidade moderna em
si
mesma encontramos particularidades da cida
de
antiga, porque temos olhos e pensamentos somente para esta. s-
sim, quando numa sociedade que
se
transformou subsistem vestígios
de
que existia antes, aqueles que a conheceram
em
seu estado pri
meiro podem também deter sua atenção sobre esses traços antigos que
lhes dão acesso a um outro tempo e a um outro passado. Poucas são
as
sociedades nas quais tenhamos vivido, seja
em
que tempo for que
não subsistam, ou que pelo menos não tenham deixado algum traço de
si
mesmas nos grupos mais recentes onde estamos mergulhados: a
subsistência desses traços basta para explicar a permanência e a
con-
tinuidade do próprio tempo nesta sociedade antiga, e que
nos
seja
possível, a qualquer momento, nela penetrar através do pensamento.
Todos
esses
tempos que subsistindo ainda, mesmo quando cor
respondam
aos
estados e também
às
formas sucessivas
de
uma socie
dade que evoluiu profundamente, são impenetráveis um ao outro.
Subsistem, aliás, um
ao
lado do outro.
Com
efeito, os grupos cujos
pensamentos são distintos, são ampliados materialmente
no
espaço e
os membros dos quais
se
compõem entram por sua vez ou sucessiva
mente em vários dentre eles. Não há um tempo universal e único,
mas
a sociedade
se
decompõe em uma multiplicidade de grupo, nos
quais cada um tem sua duração própria. O que distingue esses
tem-
pos
coletivos, não é o fato
de
que uns
se
escoem mais depressa do
que
os
outros. Não podemos mesmo dizer que esses tempo;
se
escoam.
já que cada consciência coletiva pode lembrar-se, e que a substância
do tempo parece realmente ser uma condição da memória. Os acon
tecimentos
se
sucedem no tempo, mas o tempo
em
si mesmo é
um
quadro imóvel. Somente os tempos são mais ou menos amplos, eles
permitem à memória retroceder mais ou menos longe, dentro daquilo
que convém chamar
de
passado.
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As durações coletivas: Bases únicas das memórias ditas individuais
Coloquemo-nos agora do ponto de vista dos indivíduos. Cada um
é
membro de vários grupos participa de vários pensamentos sociais
seu olhar mergulha sucessivamente em vários tempos coletivos.
des-
de já um elemento de diferenciação individual de modo que num
mes-
mo período numa região do espaço não é entre s mesmas correntes
coletivas que
se
dividem as consciências dos vários homens. Mas além
disso seus pensamentos recuam para mais ou menos longe deslo
cam-se mais ou menos rápido no passado ou no tempo
de
cada gru-
po. nesse sentido que s consciências concentram num mesmo in-
tervalo durações mais ou menos extensas: digamos que num
mesmo
intervalo de duração social vivida elas concentram uma extensão
mais ou menos grande de tempo representado. Há naturalmente nes-
te sentido grandes diferenças entre elas.
Qualquer outra coisa é interpretação dos psicólogos que acredi
tam que existem tantas durações diferentes irredutíveis uma a outra
quantas forem as consciências individuais porque cada uma delas
é como uma onda de pensamento que se escoa com seu movimento
próprio. Mas em primeiro lugar o tempo não
se
escoa: ele dura sub-
siste é necessário do contrário. como a memória poderia percorrer
o curso do tempo? Além do mais cada uma dessas correntes não se
representa como uma série única e contínua de estados sucessivos
desenvolvendo-se mais ou menos depressa senão como de sua com-
paração poderíamos extrair a representação de um tempo comum a
várias consciências? Na realidade se. aproximando várias consciên
cias individuais podemos reposicionar seus pensamentos ou seus acon
tecimentos em um ou vários tempos comuns é porque a duração
in-
terior
se
decompõe em várias correntes de pensamentos que têm sua
origem nos próprios grupos. A consciência individual é apenas o lugar
de passagem dessas correntes o ponto de encontro dos tempos c
letivos.
curioso que essa concepção pouco tenha sido considerada até
hoje pelos filósofos que estudaram o tempo. Isto acontece porque
representamos sempre s consciências como isoladas uma da outra
e cada uma como encerrada em si mesma. A expressão stream o
thought
ou ainda fluxo ou corrente psicológica que encontramos nos
escritos de William James e de Henri Bergson traduz com a ajuda
de
uma imagem exata o sentimento no qual cada um de nós pode
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fazer
a experiência quando assiste como espectadol ao desenrolar
de sua vida psíquica. Tudo parece, com efeito, passar-se como se,
no
interior de cada um de n6s, nossos estados de consciências
se
sucedessem como as partes
de
uma corrente contínua, como ondas
que
se
empurram umas
às
outras. Pensando bem, entretanto, aperce
bemo-nos que
se
trata de um pensamento que avança sem cessar, que
muda sem
parar, de uma percepção para outra, de um estado afetivo
para outro, mas que o que caracteriza a memória é, pelo contrário,
o fato de que ela nos obriga a nos determos, a nos afastarmos mo
mentaneamente desses fluxos e. senão a percorrer a corrente, pelo
menos a nos enganjarmos numa direção oblíqua, como se ao longo
dessa
série contínua houvesse uma quantidade de pontos que ori
ginam
bifurcações. Certamente, o pensamento está ainda ativo na
mem6ria: ele
se
desloca, está
em
movimento.
Mas
o que é notável
assinalar é que então, e somente então, pode-se dizer que ele se
desloca
e
se
move no tempo.
Como
sem a mem6ria e fora dos mo
mentos em que nos lembramos, teríamos consciência de estarmos no
tempo
e nos transportamos através da duração? Ao nos absorvemos
nessas
impressões, quando as seguimos medida em que aparecem
e
depois
desaparecem, n6s nos confundimos sem dúvida com um
momento da duração, depois com outro: mas, como representaríamos
o
tempo em si
mesmo, quer dizer, o quadro temporal que abrange
ao mesmo tempo esses momentos e muitos outros? Podemos estar no
tempo no
presente, que é uma parte
do
tempo, e todavia não sermos
capazes de pens r no tempo, de nos transportarmos em pensamento
para o passado pr6ximo ou longínquo. Em outras palavras, na cor
tente das impressões, é necessário distinguir as correntes do pensa
mento
propriamente dito ou da mem6ria:
as
primeiras estão estrei
tamente ligadas ao nosso corpo, não nos fazem sair de n6s mesmos,
mas
também não nos abrem qualquer perspectiva sobre o passado;
as segundas têm sua origem e a maior parte de seu curso no pensa
mento dos
diversos grupos
aos
quais nos ligamos.
Se colocarmos em primeiro plano os grupos e suas representa
'ÇÕeS,
se
concebermos o pensamento individual como uma série de
.pontos de vista sucessivos sobre os pensamentos desses grupos, então
que eles possam recuar no passado e ir mais ou
longe conforme a extensão das perspectivas que lhe oferecem
um desses
pontos de vista sobre o passado tal como é repre
nas consciências coletivas das quais participa. A condição
t1ec:esllãrila para que seja assim, é que
em
cada uma dessas consciên-
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cias o tempo passado uma certa imagem do tempo subsista e
se
imobilize que o tempo dure pelo menos dentro de certos limites va-
riáveis conforme os grupos. Está
í
o grande paradoxo.
Mas.
pen-
sando bem
como
poderia ser
de
outro modo? Como uma sociedade
qualquer que seja poderia existir subsistir tomar consciência dela
mesma
se
nio
abraçasse num olhar
um
conjunto
de
acontecimentos
presentes e passados se não tivesse a faculdade
de
percorrer o curso
do tempo e repassar incessantemente traços que deixou
de si
mesma?
Sociedades religiosas políticas econÔmicas, familiares grupos
de
amigos,
relações e
mesmo
reuniões efêmeras de salão numa sala de
espetáculos na rua todas imobilizam o tempo sua maneira ou
impõem a seus membros a ilusão
de
que por uma certa duração ao
menos num mundo que
se
transforma incessantemente
algumas
z0
nas adquiriram uma estabilidade e um equilíbrio relativos e que na-
da
de
essencial ali se transformou por um período mais ou menos
longo.
Certamente
os
limites até
os
quais recuamos
no
passado são
variáveis conforme os grupos e isto é o que explica que
os pensa-
mentos individuais
de
acordo
com os
momentos isto
é, segundo
o
grau
de
sua participação neste ou naquele pensamento coletivo atin-
gem
lembranças mais ou menos distantes. Para.
além dessa
franja
movente do tempo ou mais exatamente
dos
tempos coletivos nio
há mais nada porque o tempo
dos
filósofos não é senão
uma forma
vazia. O tempo é real somente à medida em que tem um conteúdo
isto é quando oferece um conteúdo
de
acontecimentos ao
pensamen-
to. e limitado e relativo porém tem uma realidade plena. e muito
amplo aliás para oferecer
às
consciências individuais um quadro
suficientemente respaldado para que elas possam nele dispor e en-
contrar suas lembranças.
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Capítulo IV
A MEMÓRIA COLETIVA E O ESPAÇO
o rupo em
seu quadro espacial poder do meio material
Auguste Comte observou que o equilíbrio mental decorre em
boa
parte e primeiro pelo fato que
os
objetos materiais com
os
quais
estamos
em contato diário mudam pouco e nos oferecem uma ima
gem de
permanência e estabilidade. como se fosse uma sociedade
silenciosa e imóvel estranha à nossa agitação e às nossas mudanças
de
humor que nos dá uma sensação de ordem e de quietude. certo
que mais
de
uma perturbação psíquica seja acompanhada por uma
espécie
de ruptura do contato entre nosso pensamento e as coisas de
uma incapacidade de reconhecer
os
objetos familiares de tal modo
que
nos
~ n c o n t r m o s
perdidos em
u
meio estranho e movente e
que nos falte algum ponto de apoio. Até mesmo fora dos casos pa
tológicos quando algum aContecimento nos obriga também a nos
transportarmos para u novo entorno material antes de a ele nos
adaptarmos atravessamos um período de incerteza como se houvés
semos deixado para trás toda a nossa personalidade tanto é verdade
que as imagens habituais do mundo exterior são inseparáveis do
nosso
eu.
Não se trata somente da dificuldade que temos para mudar nos-
sos hábitos motores. Por que nos apegamos aos objetos? Por que
desejamos
que não mudem e continuem a nos fazer companhia?
Afastamos toda consideração de comodidade ou de estética. Nosso
entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros.
Nossa casa nossos móveis e a maneira segundo a qual estão dis-
postos
o arranjo dos cômodos onde vivemos lembram-nos nossa
fa-
mília e
os
amigos que víamos geralmente nesse quadro. Se vivemos
SÓ a região do espaço que nos cerca de modo permanente e suas
diversas partes não refletem somente aquilo que nos distingue de
todas as outras. Nossa cultura e nossos gostos aparentes na escolha
e na disposição desses objetos se explicam em larga medida pelos elos
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que nos prendem sempre a um grande número de sociedades,
sensí-
veis ou invisíveis. Não podemos dizer que as coisas façam parte da
sociedade. Entretanto móveis, ornamentos, quadros, utensílios e
i e
1 ls circulam no interior do grupo, nele são objetos
de
apreciações.
de comparações, descortinam a cada instante horizontes sobre as no-
vas direções da moda e do gosto, nos lembram também
os
costumes
e distinções sociais antigas.
Em
uma loja de antiguidades, todas as
épocas e todas
as
classes
se
defrontam assim, nas peças espalhadas
e fora de
uso
das mobílias dispersas; e certamente, perguntamo-nos:
a quem pode ter pertencido essa poltrona, essas tapeçarias, este
con-
junto, aquela taça?
Mas
ao mesmo tempo sonhamos e é
no
fundo
a mesma coisa) com um mundo em que se
reconheceria tudo aquilo,
como
se
o estilo do mobiliário, o gosto pela disposição
fossem
para
ele o equivalente
de
uma linguagem que ele compreenderia. Quando
Balzac descreve uma pensão familiar, a casa
de
um avarento, e Dickens.
o escritório de um tabelião, esses quadros já
nos
permitem pressentir
a que espécie ou categoria social pertencem os homens que vivem
den-
tro de um tal quadro. Não é uma simples harmonia e correspondência
física entre o aspecto dos lugares e das pessoas. Mas cada objeto
encontrado, e o lugar que ocupa no conjunto, lembram-nos uma ma-
neira de ser
c\.Jmum
a muitos homens, e quando analisamos este con-
junto, fixamos nossa atenção sobre cada uma
de
suas partes, é
como
se
dissecássemos um pensamento onde se confundem as relações
de
uma certa quantidade de grupos.
De
fato,
as
formas dos objetos que
nos
cercam têm muito esta
significação_ Não estávamos errados
ao
dizer que estão
em
torno
de
nós como uma sociedade muda e imóvel. Se não falam, entretanto
os
compreendemos, já que têm um sentido que deciframos familiar
mente. Imóveis, apenas o são aparentemente, já que
as
preferências
e
os
hábitos sociais se transformam, e
se
nos cansamos
de
um móvel,
ou
de
um quarto, é como se os próprios objetos envelhecessem. E
verdade que, durante períodos muito longos, é a impressão de
imobi-
lidade que predomina, e que
se
explica ao mesmo tempo pela natu
reza inerte das coisas físicas e pela estabilidade relativa dos grupos
sociais. Seria exagerado pretender que
os
deslocamentos ou mudan
ças de lugar, e
as
modificações importantes introduzidas
em
certas
datas na instalação e mobília de um apartamento, assinalam tantas
épocas na história da família. A estabilidade do alojamento e
de
seu
aspecto interior impõem ao próprio grupo a imagem apaziguante
de
sua continuidade. Anos
de
vida comum decorridos num quadro até
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este ponto uniforme, se distinguem mal um do outro e chegamos a
duvidar que tenha passado muito tempo e que tenhamos mudado muito
nó intervalo. Não está totalmente errado. Quando um grupo está
inserido numa parte do espaço, ele a transforma à sua imagem, ao
mesmo
tempo
em
que
se
sujeita e
se
adapta
às
coisas materiais que
a
ele
resistem. le
se
fecha no quadro que construiu. A imagem do
meio exterior e das relações estáveis que mantém consigo passa ao
primeiro plano da idéia que faz
de
si mesmo. Ela penetra todos os
elementos de sua consciência, comanda e regula sua evolução. A ima
gem das
coisas participa da inércia destas. Não é o indivíduo isolado,
é
o indivíduo como membro do grupo, é o próprio grupo que, dessa
maneira, permanece submetido à influência da natureza material e
participa de seu equilíbrio. Mesmo que pudéssemos pensar que é di
ferente, quando
os
membros de um grupo estão dispersos e não encon
tram nada, em seu novo ambiente material, que lhes lembra a casa
e os quartos que deixaram, se permanecerem unidos através do espaço,
é porque pensam nesta casa e nestes quartos. Quando se expulsava
os senhores e
os
religiosos de Port-Royal, nada era feito enquanto não
se tivesse demolido os edifícios da abadia, e enquanto não tivessem
desaparecido
os
que deles conservavam a lembrança.
Assim se explica como as imagens espaciais desempenham
um
papel na memória coletiva. O lugar ocupado por um grupo não é
como um quadro negro sobre o qual escrevemos, depois apagamos os
números e figuras. Como a imagem do quadro evocaria aquilo que
nele traçamos, já que o quadro é indiferente aos signos, e como, sobre
um mesmo quadro, poderemos reproduzir todas as figuras que se qui
ser? Não. Todavia, o lugar recebeu a marca do grupo, e vice-versa.
Então, todas
as
ações do grupo podem
se
traduzir em termos espaciais.
e o lugar ocupado por ele é somente a reunião de todos os termos.
Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em
si
mesmo tem um sentido
que é inteligível apenas para os membros do grupo, porque todas as
partes do espaço que ele ocupou correspondem a outro tanto de aspec
tos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, ao menos,
naquilo que havia nela de mais estável. Certamente,
os
acontecimentos
excepcionais também têm lugar neste quadro espacial, mas porque na
ocasião certa o grupo tomou consciência com mais intensidade daquilo
que ele era desde há muito tempo e até este momento, e porque os
vínculos que o ligavam ao lugar se tornaram mais claros, no momento
em
que iam se romper. Porém, um acontecimento realmente grave
sempre causa uma mudança nas relações do grupo com o lugar, seja
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porque modifique o grupo
em
sua extensão por exemplo uma morte
ou
um
casamento seja porque modifique o lugar quer a família enri
queça ou empobreça quer o chefe da família seja convocado para um
outro posto ou passe a ter outra ocupação. A partir desse momento
não será mais exatamente o mesmo grupo nem a mesma memória
co-
letiva; mas ao mesmo tempo o ambiente material não mais será o
mesmo.
As pedras da cidade
Os
diversos quarteirões no interior de uma cidade e as casas
no interior de um quarteirão têm um lugar fino e estão também liga-
das ao solo
como
as árvores e os rochedos uma colina ou planalto.
Disso decorre que o grupo urbano não tem a impressão de mudar en-
quanto o aspecto das ruas e
dos
edifícios permanece idêntico e que
há poucas formações sociáis ao mesmo tempo estáveis e ainda segu-
ras de permanecer. Paris e Roma por exemplo apesar
das
guerras
das revoluções e das crises parecem ter atravessado séculos sem que
a continuidade de suas vidas tenha sido interrompida só por um
mo-
mento. O corpo nacional pode ser presa das mais violentas convul
sões. O cidadão sai à rua
lê as
notícias mistura-se
aos
grupos que
as discutem é preciso que os jovens corram para a fronteira; é pre
ciso pagar
as
pesadas taxas; uma parte dos habitantes se volta contra
a outra e se trata de um episódio de uma luta política que
se
propaga
pelo país inteiro.
as
toda essa agitação
se
desenvolve num cenário
familiar e que parece não ter sido afetado. Será o contraste entre
a impassividade das pedras e o tumulto
no
qual
se
encontram que
os persuade que apesar de tudo nada está perdido já que as paredes
e
as
casas permanecem
em
pé? preciso antes
de
tudo considerar
que
os
habitantes são levados a prestar uma atenção muito desigual
àquilo que chamamos o aspécto material da cidade ainda que a maio-
ria sem dúvida seria bem mais sensível ao desaparecimento de tal
rua de tal edifício de tal casa
do
que aos acontecimentos nacionais
religiosos políticos mais graves. por isso que o efeito da agitação
que abala a sociedade
sem
alterar a fisionomia da cidade atenua-se
quando passamos àquelas categorias do povo que
se
apegam mais
às
pedras do que aos homens: por exemplo o sapateiro em sua oficina
o artesão em seu ateliê o comerciante em sua loja no local do mer-
cado onde o encontramos costumeiramente o transeunte nas ruas que
percorre nas estações
de
trem onde passeia
nos
terraços dos jardins
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as crianças num canto da praça onde brincam, o velho
no
muro expos
to ao sol, no bánco de pedra, o mendigo na borda da calçada, junto
à qual
está acocorado. Assim, não somente casas e muralhas persis
tem através dos séculos, mas toda a parte do grupo que está,
sem
cessar, em contato com elas, e que confunde sua vida e a dessas coisas,
permanece impassível, porque não
se
interessa a não ser por aquilo
que
se
passa, na realidade, fora de seu círculo mais próximo e além
de
seu horizonte mais imediato. O grupo
se
apercebe, então, que uma
parte de si mesmo permanece indiferente às suas paixões, às suas es-
peranças, aos seus pânicos: e é essa passividade dos homens que re-
força a impressão que resultava das coisas. Porém, é a mesma coisa
com as
agitações que abalam determinado grupo mais limitado, basea
do
nos
vínculos
de
sangue, da amizade,
de
amor, falecimentos, sepa
rações, jogo de paixões e de interesses etc. Então, quando estamos sob
a ação de um abalo desse gênero, quando saímos, quando percorre
mos
as
ruas, espantamo-nos pelo fato que a vida, em tomo de nós,
continua como se nada fosse, que rostos alegres aparecem nas janelas,
que
são trocados palpites entre transeuntes parados nas esquinas, com-
pradores e negociantes na porta das lojas, enquanto que nós, nossa
família, nossos amigos, sentimos passar um vento de catástrofe. 1
porque nós e aqueles que nos são mais chegados representamos
s
mente algumas unidades dentro desta multiplicidade. Certamente, cada
um
dos que eu encontro, considerado à parte, recolocado na família
e
no
pequeno grupo de seus amigos, seria capaz de simpatizar comigo,
se eu lhe expusesse meus pesares ou minhas preocupações. Porém os
homens, presos às correntes que seguem as ruas, quer se apresentem
como multidão, quer se dispersem e pareçam querer mutuamente fugir
umas das outras e
se
evitar, assemelham-se a partes de matéria compri
midas umas contra as outras, ou em movimento, e que obedecem, em
parte, às leis da natureza
Werte.
Assim se explica sua insensibilidade
aparente, de que as acu WU00s injustamente, como à natureza sua indi
ferença, porque, se ell:rnos fere, contribui, não obstante, para nos acal
mar, põe-nos em equilíbrio, colocandCNlos, por um instante, sob a
influência do mundo e das forças físicas.
Para bem compreender esse gênero de influência que exercem os
diversos lugares
de
uma cidade sobre
os
grupos que a ela
se
adapta
ram lentamente, seria necessário, numa grande cidade moderna, obser
var sobretudo os quarteirões antigos, ou as regiões relativamente iso-
ladas de onde seus habitantes não se afastam, a não ser para ir
ao
trabalho, e que formam como pequenos muódos fechados, ou ainda,
135
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mesmo nas partes novas da cidade as ruas e
as
avenidas povoadas
sobretudo de operários e onde estes
se
encontram em casa porque
entre a casa e a rua há trocas permanentes e porque as relações
de
vizinhança ali
se
multiplicam. Porém é nas cidades menores
um
pouco afastadas das grandes correntes ou naqueles países orientais
onde a vida é ainda regulada e ritmada como o era entre
nós
há um
ou dois séculos que
as
tradições locais são mais estáveis e que o grupo
urbano aparece melhor tal como é e
em
outros lugares
em
menor
grau quer dizer como um corpo social que em suas divisões e em
sua estrutura reproduz a configuração material da cidade na qual
está encerrado. Sem dúvida a diferenciação de uma cidade resulta
na origem
de
uma diversidade de funções e costumes sociais; mas
enquanto o grupo evolui a cidade em seu aspecto exterior muda
mais lentamente. Os hábitos locais resistem às forças que tendem a
transformá-los e essa resistência permite perceber melhor até que
ponto em tais grupos a memória coletiva tem seu ponto
de
apoio
sobre
as
imagens espaciais.
Com
efeito
as
cidades
se
transformam
no
curso da história. Geralmente em conseqüência
de
uma ocupação
militar da invasão por bandos de saqueadores quarteirões inteiros
são destruídos e não mais existem a não ser
em
estado
de
ruínas. O
incêndio vem como um golpe decisivo. Velhas casas desabam lenta
mente. Ruas outrora habitadas por ricos são invadidas por uma
po-
pulação miserável e mudam de aspecto. s obras públicas os traça
dos de novas ruas ocasionam Ir.uitas demolições e construções: os pla
nos
se
sobrepõem uns
aos
outros. Arrabaldes que
se
desenvolveram
ao redor dos muros da cidade
se
unem a estes. O centro
se
desloca.
Os antigos quarteirões fechados por altas e novas construções pare
cem perpetuar o espetáculo da vida de outrora.
Mas
esta é somente
uma imagem da velhice e não é certo que seus antigos habitantes se
reaparecessem
os
reconhecessem.
Se entre
as
casas
as
ruas e
os
grupos
de
seus habitantes não
houvesse apenas uma relação inteiramente acidental e de efêmera
os
homens poderiam destruir suas casas seu quarteirão sua cidade
reconstruir
~ o r e
o mesmo lugar uma outra segundo um plano
dife-
rente; mas
se as
pedras
se
deixam transportar não é tão fácil
modi-
ficar
as
relações que são estabelecidas entre
as
pedras e
os
homens.
Quando um grupo humano vive muito tempo em lugar adaptado a seus
hábitos não somente
os
seus movimentos mas também seus pensa
mentos
se
regulam pela sucessão das imagens que lhe representam
os
objetos exteriores. Eliminai agora eliminai parcialmente ou modifi-
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cai
em
sua direção sua orientação
sua
forma seu aspecto essas
casas essas ruas essas passagens ou mudai somente o lugar que ocu
pam um em relação
ao
outro. As pedras e os materiais não vos resis
tirão. Mas os grupos resistirão e deles é com a própria resistência
senão das pedras pelo menos de seus antigos arranjos na qual vos
esbarreis.
Sem dúvida essa disposição anterior foi outrora obra
de
um grupo. O que um grupo fez um outro pode desfazê-lo. Mas o
desígnio dos antigos homens tomou corpo dentro de um arranjo ma
terial quer dizer dentro de uma coisa e a força da tradição local veio
da coisa da qual era a imagem. Tanto é verdade que para toda uma
parte deles mesmos os grupos imitam a passividade da matéria inerte.
Situações e deslocamentos
derência do grupo o seu lugar
Para que essa resistência se manifeste é preciso que emane de
um grupo. Com efeito não nos enganamos sobre isto. Certamente
é inevitável que as transformações
de
uma cidade e a simples demoli
ção
de
uma casa incomodem alguns indivíduos em seus hábitos per
turbem-nos e
os
desconcertem. O mendigo o cego buscam tateando
o canto onde aguardam os transeuntes. O homem a passeio lamenta
a perda da alameda onde costumava tomar ar fresco e se aflige ao ver
desaparecer mais um detalhe pitoresco que
o
ligava a esse quarteirão.
Um outro habitante para quem esses velhos muros essas casas decré
pitas essas passagens escuras e essas ruas sem saída faziam parte de
seu pequeno universo e cujas lembranças se ligam a essas imagens
agora apagadas para sempre sente que toda uma parte de si mesmo
está morta com essas coisas e lamenta que elas não tenham durado
pelo menos tanto tempo. quanto lhe resta para viver. Esses pesares
ou mal-estares individuais não têm efeito porque não dizem respeito
à coletividade. Um grupo ao contrário não se contesta em manifes
tar que sofre em indignar-se e protestar na hora. Resiste com todas
as forças de suas tradições e essa resistência não permanece sem efei
to. Procura e tenta em parte encontrar seu equilíbrio antigo sob
novas condições. Tenta se manter ou se adaptar a um quarteirão ou
rua que não são mais para ele mas sobre o terreno que já foi seu.
Durante muito tempo velhas famílias aristocráticas um antigo pa-
: triarcado urbano não abandonam voluntariamente o quarteirão onde
até o presente e desde um tempo imemorável haviam fixado sua
re-
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sidência, apesar da solidão se fazer sentir em tomo deles, e que quar
teirões novos e ricos sejam abertos em outros locais, com ruas mais
amplas, parques mais próximos, com mais ar, mais animação e um
aspecto mais moderno. Mas a população pobre também não se deixa
deslocar sem resistência, sem ressentimentos, e mesmo quando cede,
deixa para trás muitos traços de si mesma. Por detrás das novas
fachadas, ao lado das avenidas ocupadas por casas ricas recentemente
construídas, nos pátios, nas alamedas, em ruazinhas dos arredores, a
vida popular de outrora se abriga e recua somente pouco a pouco.
e assim que, em meio aos quarteirões novos, surpreendemo-nos ao
encontrar arcaicas ilhotas. e um fato muito curioso vermos reapare
cer, mesmo ap6s um intervalo, onde nada parece subsistir, em quar
teirões inteiramente transformados, e onde pensávamos que não tives
sem mais lugar, casas de diversões, pequenos teatros, bolsas mais ou
menos ocultas, lojas de varejo etc. Isso ocorre sobretudo, com as ati
vidades, profissões, e todas as formas de neg6cio
um
pouco antiqua
das, que não têm mais lugar nas cidades modernas. Sobrevivem em
virtude da força do hábito, e desapareceriam, sem dúvida, se não se
agarrassem obstinadamente aos locais que lhes eram, outrora, reserva
dos. Encontramos pequenos neg6cios que somente conseguem
se
estabe
lecer porque, há muito tempo, confundem-se com um lugar que chama
a atenção do público para eles. á velhos hotéis que datam do tempo
das diligências, onde nos hospedamos, ainda simplesmente porque es-
tão num lugar que sempre se destaca na memória dos habitantes. To
das essas sobrevivências e essas rotinas podem explicar-se somente por
uma espécie de automatismo coletivo, uma rigidez persistente do pen
samento em alguns meios de comerciantes e de clientes. Se esses
grupos não se adaptam mais depressa, se em muitas circunstâncias,
dão prova de extraordinária faculdade de inadaptação, é porque ou
trora traçaram e determinaram seus limites e suas reações em relação
a uma certa configuração do meio exterior, até
se
tomar parte inte
grante das muralhas às quais se encostavam suas casas, as colunas
que as sustentavam, as abóbadas que os abrigavam. Para eles, perder
seu lugar no recanto de tal rua, à sombra daquele muro, ou daquela
igreja, seria perder o apoio de uma tradição que os ampara, isto é
sua única razão de ser. Assim se explica que de edifícios demolidos,
de caminhos desfeitos, deles sobrevivem por muito tempo alguns ves-
tígios materiais, nem que seja ãpenas o nome tradicional de uma rua,
de um lugar, ou a tabuleta de uma loja: pela antiga porta , pela
antiga porta de França etc.
138
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Agrupamentos aparentemente sem bases espaciais: Agrupamentos
jurídicos, econômi\.os, religiosos
Os grupos dos quais falamos até aqui estão naturalmente ligados
a um lugar porque é o fato de estarem próximos no espaço que criou
entre seus membros relações sociais: uma família, um casal pode ser
definido, olhando de fora, como o conjunto das pessoas que vivem na
mesma casa, no mesmo apartamento, e, como se diz nos recenseamen
tos, sob o mesmo teto.
Se os
habitantes de uma cidade ou de um quar
teirão formam uma pequena sociedade, é porque estão reunidos numa
mesma região do espaço. Deve-se dizer que isto é apenas uma condi
ção da existência desses grupos, mas uma condição essencial e muito
clara. Não é o que acontece exatamente com outras formações sociais.
Pode-se meSmO dizer que a maioria delas tende a separar os homens
do espaço, já que fazem abstração do lugar que eles ocupam e neles
consideram apenas qualidades de outra ordem. Os próprios laços de
parentesco
se
reduzem à coabitação e o grupo urbano não é outra coisa
do que uma soma de indivíduos justapostos.
s
relações jurídicas
estão fundamentadas sobre o fato de que os homens têm direitos e
podem contrair obrigações que, pelo menos,
em
nossas sociedades,
não parecem subordinados à posição deles no meio exterior. Os gru
pos econômicos decorrem da posição dos homens não no espaço, mas
em relação à produção, isto é, numa diversidade de funções, e tam
bém diversos modos de remuneração, de distribuição de bens: no pla
no econômico, os homens são diferenciados, agrupados conforme qua
lidades ligadas
à
pessoa e não ao lugar. Com maior razão
se
dá o
mesmo nas sociedades religiosas: elas repousam numa comunidade de
crenças que tem como objeto seres imateriais; essas associações esta
belecem entre seus membros laços invisíveis, e se interessam sobre
tudo pelo homem interior. Todos esses grupos se sobrepõem às so-
ciedades locais. Longe de
se
confundirem com elas, eles as decom
põem, seguindo regras sem relação com a configuração do espaço. E
por isso que não é suficiente considerar que os homens estejam reuni
dos num mesmo lugar, e guardar na memória a imagem desse lugar
para descobrir e
se
lembrar a que sociedades eles se ligam .
•
Entretanto, quando passamos em revista rapidamente, como aca
bamos de fazer, as formações coletivas mais importantes que se
dis-
tinguem dos grupos locais estudados antes, percebe-se que é difícil
139
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descrevê-los afastando toda imagem espacial. Essa dificuldade é tanto
maior quanto
mais nos
voltamos para o passado. Dizíamos que os
grupos jurídi os
podem ser definidos pelos direitos e deveres de seus
membros. Mas sabemos que o servo estava outrora ligado à gleba
e que para um camponês a única maneira de escapar à condição de
servo era fazer-se admitir numa comunidade urbana. A condição
jurídica de um homem decorria então do lugar onde morava
no
campo ou na cidade. O
regime
ao qual estavam sujeitas as diversas
partes
da
terra não era contudo o
mesmo
por outro lado as
leis
das
diferentes comunas não lltes permitiam os mesmos privilégios.
Diz-se
que a Idade Média
foi
a idade das particularidades e com
efeito houve ali então uma quantidade de
regimes que
diferiam se
gundo o lugar
se
bem que sabendo onde
se
encontrava a moradia
de
um homem os outros e ele mesmo eram informados ao
mesmo
tempo
de seu estatuto. Não é possível descrever o funcionamento da justiça
e de todo o sistema de impostos antes
do
que chamamos tempos mo
dernos sem descer
ao
detalhe
das
subdivisões territoriais: é porque
cada província na Inglaterra cada condado cada burgo teve durante
muito tempo
seu
regime jurídico e
seus
próprios costumes.
Desde
essa época os tribunais do rei por exemplo tendem a suplantar os
tribunais feudais na Inglaterra
e em
França desde a Revolução todos
os cidadãos eram iguais diante
dos
tribunais e diante
do
imposto. De
onde mais uniformidade
no
presente: as diversas partes
de
um
país
não representam mais tantos regimes jurídicos distintos. Mas o pen
samento coletivo não considera as leis abstração feita das condições
locais onde elas se aplicam. Ele se prende antes a essas condições.
Ora elas são muito diversas porque uniformizando-se
suas
regras
não foi possível uniformizar a condição das terras e a situação das
pessoas. por isso que primeiro no campo uma diferença
de
situa
ção no espaço conserva alguma significação jurídica. Segundo o
espí
rito de um certo tabelião
de
zona rural ou
de
um prefeito
de
aldeia
os campos as lavouras as matas as fazendas as casas
evocam
os
direitos
de
propriedade
os
contratos
de
venda as sujeições as
hipo
tecas as divisas os loteamentos quer dizer toda uma série de
atos
e
de
situações jurídicas que a
imagem
pura e simples desta terra tal
como
aparece a
um
estranho não contém
mas
que ali
se
sobrepõem
na mem6ria jurídica do grupo camponês. Essas lembranças
estão
li
gadas às diversas partes do solo. Se elas
se
ap6iam
umas
sobre as
outras é porque as parcelas às quais se relacionam estão justapostas.
Se as lembranças
se
conservam no pensamento do grupo. é o que
se
14
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conserva sobre o solo, é porque a imagem do solo permanece, mate
rialmente fora dele; e porque pode a cada instante retomá-la.
I verdade que no campo todas as negociações e todos os acor
dos se relacionam à terra. Porém, numa cidade, o pensamento jurídi
co do
grupo
se
distribui através de outros quadros materiais, expan
dindo-se a outros objetos visíveis. Aqui, também, um tabelião, ou
um
leiloeiro, são levados, por ocasião de lidar com as pessoas das
quais cuidam dos interesses, ou então, em nome das quais realizam
transmissões de posse, a pensar nas coisas às quais
se
relacionam esses
interesses ou esses direitos. Pode ser que esses objetos se afastem e
não estejam mais sob seus olhos, quando os interessados sairem
do
escritório, ou quando a venda em leilão terminar: mas o tabelião se
lembrará do lugar
do
imóvel que foi vendido, constituído em dote,
legado. O leiloeiro relacionará a lembrança aos lances feitos, às adju
dicações a determinado bem ou a tal obra de arte que não reverá,
mas que pertence a uma categoria de objetos da mesma ordem: ora,
estes lhe são sempre presentes, já que vários deles passam sob seus
olhos.
Sem dúvida, muda o método das transações relativas a serviços,
e também a todas
as
operações de bolsas e de bancos.
Os
trabalhos
de um operário, as ocupações de um empregado, os cuidados de um
médico, a assistência de um advogado etc., não são objetos que ocupam
um lugar definido e estável no espaço. Quanto aos valores que
re-
presentam os títulos ou depósitos, quanto aos créditos ou débitos,
não os situamos num lugar: penetramos, neste ponto o mundo do
dinheiro e
dos
negócios monetários, em que
se
faz abstração
dos
objetos particulares, e o que se adquire ou o que se despende,
é sempre simplesmente a faculdade de adquirir ou vender alguma
coisa. Entretanto, é num lugar definido que os serviços são prestados
e os trabalhos executados: o trabalho ou o serviço somente têm valor,
para o patrão que o compra, com a condição de ser utilizado em tal
lugar,
em
tal escritório,
em
tal fábrica. Quando um conselheiro ou
um
secretário de sindicato passa diante de uma fábrica ou representa
o lugar que ela ocupa, esta imagem é apenas parte de um quadro local
mais amplo, que compreende todas as fábricas das quais os operários
ou patrões estão sujeitos a se dirigirem a ele e que lhes permite reto
mar a lembrança dos contratos de salários, de suas modalidades, dos
conflitos aos quais deram lugar, e também de todas
as
leis, regras e
costumes locais ou profissionais que definem a situação e os direitos
recíprocos
de
empregados e empregadores. Quanto às operações fi
141
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nanceiras ou bancárias elas se localizam no quadro local dos estabe-
I
lecimentos de crédito onde tivemos que
r
para assinarmos
as
ordens
para receber ou retirar os fundos: sem dúvida a imagem do banco
nos lembra apenis um número restrito de-operações precisas e antes
uma ordem regular de passos que não se diferenciam muito e
dos
quais não guardamos senão uma noção geral. Mas é este geralmente
todo o conteúdo de tal gênero de memória que abrange somente um
passado recente. Tabelião prefeito leiloeiro conselheiro secretário
de sindicato: escolhemos tais pessoas a título de exemplos porque é •
nelas que a memória das relações de direito e dos atos jurídicos que
se liga
à
sua função deve adquirir mais extensão e relevo; mas elas
representam o principal centro desta memória que é ela própria cole
tiva e que se estende a todo grupo jurídico comunidade camponesa
comunidade de compra e venda comunidade de prestação de serviços
etc. Bastaria estabelecer que essa
memória
se
apoiasse sobre a ima
gem de· alguns lugares aos quais ela se incorpora melhor para que
possamos supor que
é
a mesma coisa para todos
os
membros
do
grupo.
Os diversos assuntos e
as
diferentes situações no espaço têm aos olhos
deles um significado diante dos direitos e obrigações que a eles
se
relacionam e é porque não saindo de tal círculo material permane-
cem encerrados também num mundo definido de relações jurídicas
formadas no passado mas que permanecem sempre presentes para eles.
Poderíamos raciocinar da mesma maneira a propósito de muitas
outras espécies de sociedades. Por exemplo não é necessário ir ao
campo para saber que a fazenda é ao mesmo tempo a habitação e a
cónstrução na qual ou em torno ou em vista da qual trabalhamos
do mesmo modo que passear pelas cidades antigas e ali ler o nome
das ruas: rua dos Tanoeiros rua dos Ourives para evocar um tempo
no qual
as
profissões se agrupavam localmente. Em nossas socieda
des modernas os locais de trabalho
se
diferenciam clatamente das
casas onde moramos; como a oficina o escritório e a loja abrigam no
dia-a-dia
as
equipes ou grupos de homens que ali cumprem sua tare
fa.
e
realmente sobre um fundo espacial que se delineiam esses
pe-
quenos grupos econômicos. Da mesma maneira nas grandes cidades
os quarteirões se diferenciam segundo a ptedominância mais ou
me-
nos acentuada de tal tipo de profissão ou indústria tal nível de po-
breza
ou
de riqueza. Assim se desenrolam diante dos olhos do tran
seunte todas
as
nuances das condições e não raro na paisagem urba
na sobre a qual esta ou aquela classe social tenha deixado sua marca.
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\
t
Quanto
às
religiões elas estão solidamente afixadas sobre o solo
não somente porque.
se
trata de uma condição que se impõe a todos
os homens e a todos os grupos; mas uma sociedade de fiéis é conduzi
da a distribuir entre os diversos pontos do espaço o maior número de
idéias e imagens que são por ela defendidas. Há lugares sagrados há
outros que evocam lembranças religiosas há lugares profanos alguns
que
estio povoados de inimigos de Deus onde é preciso fechar os
olhos e os ouvidos outros sobre os quais pesa uma maldição. Hoje
dentro de uma velha igreja ou no claustro de um convento caminha
mos distraidamente sobre as lajes que assinalam o lugar dos túmulos
e não tentamos decifrar
os
caracteres gravados na pedra sobre o solo
ou nas paredes dos santuários. Tais inscrições se ofereciam sem cessar
aos
olhos
dos
que se encerravam neste claustro que faziam longas
meditações nessa igreja e por entre esses túmulos assim como pelos
altares estátuas quadros consagrados a santos espaços que rodea
vam os fiéis e no seio dos quais permaneciam impregnavam-se de
um significado religioso. Faríamos uma idéia incorreta do modo pelo
qual se desporiam em sua memória as lembranças das cerimônias
das orações e de todos os atos e de todos os pensamentos que ocupam
uma vida devota
se
não soubéssemos que cada um deles encontraria
lugar
em
alguma parte desse espaço.
A inserção no espaço da memória coletiva
Assim
não há memória coletiva que não
se
desenvolva num qua
dro espacial. Ora o espaço é uma realidade que dura: nossas im-
pressões se sucedem uma à outra nada permanece em nosso espírito
e não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o passa
do se ele não
se
conservasse com efeito no meio material que nos
cerca. e sobre o espaço sobre o nosso espaço - aquele que ocupa
mos por onde sempre passamos ao qual sempre temos acesso e que
em
todo o caso nossa i ~ g i n ç ã o ou nosso pensamento é a cada mo-
mento capaz de reconstruir - que devemos voltar nossa atenção; é
sobre ele que nosso pensamento deve
se
fixar para que reapareça
esta ou aquela categoria de lembranças.
Diremos que não há com efeito grupo nem gênero de atividade
coletiva que não tenha qualquer relação omum lugar isto é com
uma parte do espaço porém isto está longe de ser suficiente para
explicar que representando-nos a imagem do lugar sejamos conduzi
dos
a pensar em tal atuação do grupo que a ela esteve associada.
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Todo quadro tem com efeito uma moldura mas não há qualquer
relação necessária e estreita entre uma coisa e outra e a moldura
não pode evocar o quadro. Essa objeção seria legítima se por espaço
entendêssemos somente o espaço físico isto é o conjunto das formas
e das cores tal como as percebemos em torno de nós. Mas será
aquele para nós o espaço primitivo? Será assim que percebemos o
meio exterior na maior parte das vezes? e difícil saber o que seria
o espaço para um homem realmente isolado que não fizesse ou não
tivesse feito parte de nenhuma sociedade. Perguntemo-nos apenas em
que condições deveríamos nos colocar se quiséssemos perceber apenas
as qualidades físicas e sensíveis das coisas. Deveríamos livrar os
objetos de uma quantidade de relações que se impõem ao nosso pen
samento e que correspondem a vários pontos de vista diferentes isto
é livrar-nos nós mesmos de todos
os
grupos dos quais fazemos parte
que estabelecem entre eles tais relações e
as
consideram de tais pontos
de vista. Só conseguiríamos isto todavia adotando a atitude de um
outro grupo definido aquela dos físicos ou dos artistas uma vez que
pretendemos fixar nossa atenção sobre algumas propriedades abstratas
da matéria ou sobre as linhas e nuances das imagens e das paisagens.
Quando saímos de uma galeria de pintura e quando nos deparamos
com o cais de um rio a entrada de um parque ou a animação da
rua experimentamos ainda a influência da sociedade dos pintores e
vemos
as
coisas não como são porém tais como aparecem aos que
se dedicam somente a delas reproduzir a imagem. Não há na reali
dade nada de menos natural. Certamente no espaço dos sábios e
dos
pintores as lembranças que interessam aos outros grupos não podem
ter lugar e se conservar.
ã ~
poderia ser de outra maneira já que
o espaço dos cientistas e dos pintores é construído por eliminação
dos outros espaços. Mas isso não prova que estes não tenham tanta
ilOção da realidade quanto os outros
o
espaço jurídico e a memória dos direitos
1
O espaço jurídico não é um espaço vazio que simbolizaria
somente uma possibilidade indefinida de relações de direito entre os
homens: como uma de suas partes poderia evocar então uma relação
mais do que outra? Consideremos o direito de propriedade que está
sem dúvida na base de todo o pensamento jurídico sobre o modelo e
a partir do qual
é
possível conceber como todas
as
outras obrigações
são definidas. Disto decorre que a sociedade adota uma atitude e
144
J
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uma atitude durável f r ~ t a tal parte do solo ou tal objeto material.
Enquanto que o solo é imóvel como os objetos materiais e se não
permanecem sempre no mesmo lugar guardam
as
mesmas proprieda
des e a mesma característica tanto que podemos segui-los e àssegu-
rarmo-nos
de
sua identidade através
do
tempo ocorre que
os
homens
mudam de lugar assim CQ.no suas disposições e suas faculdades for-
ças e poderes se transformam. Ora um homem ou vários homens
somente adquirem direito
de propriedade sobre uma terra ou uma
coisa a partir do momento em que a sociedade da qual são membros
admite a existência de uma relação permanente entre eles e essa terra
ou essa coisa ou que essa relação é tão imutável como a coisa em
si
mesma. Esta é uma convenção que violenta a realidade já que
os
indivíduos mudam incessantemente. Qualquer princípio que invo
quemos para fundamentar o direito de propriedade ele somente adqui
re algum valor se a memória coletiva intervir para garantir-lhe a apli
cação.
Como
se poderia saber por exemplo que fui o primeiro a
ocupar certa parcela do solo ou que arei a terra ou que determinado
bem
é produto
de
meu trabalho se não nos reportássemos a um esta
do de coisas antigo e se não estivesse convencionado que a situação
não mudaria e quem poderia opor o fato sobre o qual fundamento
meus direitos às pretensões de outros se o grupo não conservasse a
lembrança dele? Porém a memória que garante a permanência dessa
situação apóia-se ela própria sobre a permanência do espaço ou pelo
menos
sobre a permanência da atitude adotada pelo grupo frente a
essa porção do espaço. e preciso considerar aqui como um conjunto
as coisas e
os
signos ou símbolos que a sociedade a ela relacionou e
que desde que direcione sua atenção para o mundo exterior estão
sempre presentes
em
seu pensamento. Não que esses indícios sejam
exteriores às coisas e não que tenham com elas apenas uma relação
arbitrária e artificial. Quando
foi redigida a magna Carta no dia
seguinte à conquista da Inglaterra não se subdividiu o solo no papel
mas
foram registrados
os
poderes que exerciam sobre suas diferentes
partes os nobres entre os quais ele havia sido repartido. Acontece o
mesmo
todas
as
vezes em que se faz um cadastramento ou que se
re-
lembra numa ata a existência de algum direito de propriedade. A
sociedade não estabelece somente uma relação entre a imagem
de um
lugar e um escrito. Ela considera o local enquanto se relaciona então
a uma pessoa seja porque esta o tenha demarcado com balizas e
cer-
cas seja porque ali reside habitualmente porque o explora ou mande
explorar. Tudo isto é o que podemos chamar
de
espaço jurídico
145
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espaço permanente, pelo menos dentro de certos limites de tempo, que
permite a cada instante à memóda coletiva, desde que perceba o
espaço, de nele localizar a lembrança dos direitos.
Não é somente a relação entre o homem e a coisa, é o próprio
homem o qual
se
supõe que seja imóvel e que não mude, quando
pensamos nos direitos dos homens sobre
as
coisas. Certamente, numa
comunidade camponesa, no escritório de um tabelião, diante de um
tribunal, os direitos que evocamos se referem realmente a pessoas par
ticulares. Porém, à medida em que o pensamento
se
volta para o
,aspecto jurídico dos fatos, retém da pessoa apenas a qualidade na
qual intervém: é o titular de um direito reconhecido ou contestado,
é o proprietário, o usufruidor, o donatário, o herdeiro etc. Ora, en-
quanto que uma pessoa oscila de um momento para outro, reduzida
a uma qualidade jurídica, ela não muda. Fala-se muito da vontade,
da vontade das partes, por exemplo,
em
direito, mas entende-se por
isto a intenção tal como decorre da qualidade jurídica da pessoa, con-
siderada a mesma por todas as pessoas que têm a mesma qualidade,
e c o n ~ i d e r d
a mesma durante todo o tempo em que a situação jurí
dica não mude.. Essa tendência de fazer abstração de todas as parti
cularidades individuais, quando consideramos os sujeitos em função
dos direitos, explica duas ficções muito próprias do espírito jurídico.
Quando uma pessoa morre, e deixa um herdeiro natural, dizemos que
o morto agarra-se ao vivo , quer dizer, tudo se passa como
se
não
tivesse havido interrupção
no
exercício dos direitos, como
se
houvesse
continuidade entre a pessoa do herdeiro e a do de cujus Por outro
lado, quando várias pessoas
se
reúnem para adquirir e explorar bens,
supomos que a sociedade que eles formam tem uma personalidade
jurídica, que não muda, tanto que o contrato de associação subsiste,
ainda que todos os membros dessa comunidade dela tivessem saído
e sido substituídos por outros. Assim, as pessoas duram porque
as
coisas duram, e é assim que um processo deflagrado a propósito
de
um testamento pode prosseguir durante muitos anos e somente pode
ser julgado definitivamente depois de decorrida mais de uma geração
se
é verdade que os bens permanecem, a memória da sociedade jurí
dica não
se
engana.
Mas
o direito
de
propriedade não
se
exerce somente sobre a terra
ou sobre objetos materiais e definidos. Em nossas sociedades a
ri-
queza mobiliária
~ r e s e u
consideravelmente, e longe de permanecer
estática ou de conservar a mesma forma, circula sem cessat e escapa
às análises. Tudo se resume aos compromissos assumidos entre
em
146
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prestadores e credores ou emprestadores e devedores: mas o objeto
do contrato não ocupa um lugar invariável já que é dinheiro ou dí-
vidas isto é signos abstratos. Por outro lado há muitas outras obri
gações que não
se
referem de modo algum a coisas e que conferem
a uma parte certos direitos a serviços escrituras e também a absten
ções por parte da outra parte: lá onde as pessoas estão somente em
relação e onde não há mais bens parece também que se sai do es-
paço. Não é menos verdade que todo contrato mesmo que não
se
refira a coisas coloca ambas as partes numa situação que se supõe
não mudar enquanto o contrato permanece válido.
Eis também uma
ficção introduzida pela sociedade de que desde que as cláusulas de
um
contrato estão fixadas considera-se que as partes estejam
liga-
das.
Mas
é impossível que a imobilidade das pessoas e a permanên
cia
de
suas atitudes recíprocas não se expressem sob forma material
e não
se
delineiem no espaço. E necessário que a todo instante cada
parte saiba onde encontrar a outra e que ambas as partes saibam
também onde
se
encontra a linha que delimita os poderes
q ~
elas
têm uma sobre a outra.
A forma extrema sob a qual
se
apresenta o poder de uma pessoa
sobre a outra. é o direito em virtude do qual outrora
se
possuía
es-
cravos. O escravo é verdade não passava de pessoa reduzida
ao
es-
tado de coisa: não havia contrato entre o senhor e o escravo e o
di-
reito de propriedade
se
exercia sobre este como sobre os demais bens.
Os escravos entretanto eram homens que até certo ponto podiam
ferir os direitos de seus senhores fosse reclamando sua liberdade
com
base em falsos títulos ou ainda fugindo ou se suicidando. E por isso
que o escravo possuía um estado jurídico que comportava apenas é
verdade obrigações e nenhum direito. Ora nas antigas casas
os
lo-
cais reservados aos escravos eram separados dos outros nos quais s6
podiam penetrar quando recebiam ordens e a separação dessas duas
partes do espaço bastava para perpetuar no espírito
dos
senhores e
dos escravos a imagem dos direitos ilimitados
de
uns sobre
os
outros.
Longe dos olhos do senhor o escravo podia esquecer sua condição
servil. Entrasse ele numa das alas onde seu senhor morava tomava
novamente consciência de ser escravo. Era como
se
passando pelo
umbral da propriedade do senhor se
encontrasse transportado a uma
parte do espaço onde a lembrança da relação de dependência frente
ao
senhor se conservasse.
Não conhecemos mais a escravatura nem a servidão nem a dife
rença de ordem ou de estados nobres plebeus etc. quer dizer que
147
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no presente, não aceitamos outras obrigações, a não ser aquelas nas
quais estamos engajados. Entretanto, pensemos nos sentimentos de
um
operário ou de um empregado que
é
chamado ao escritório de
seu patrão, de um devedor que vem à casa de comércio ou ao banco
de onde emprestou e que o faz não para quitar a dívida, mas para
pedir mais um prazo ou para endividar-se ainda mais. Eles também
se
esqueceram talvez dos serviços e prestações às quais estão obriga
dos;
se
delas
se
lembram,
se se
encontram subitamente numa situa
ção de dependência, é porque a moradia ou o lugar habitual de resi-
dência do patrão ou
do
credor, representa aos olhos deles, uma zona
ativa, um centro
de
onde irradiam os direitos e os poderes daquele
que possui a liberdade de dispor de sua pessoa dentro de certos limi-
tes, e que à medida que penetrem nesta zona ou
se
p r o x i ~ e m
desse
centro, parece-lhes que se reconstituem ou novamente surgem em
suas memórias as circunstâncias e a significação do contrato que
as-
sinaram. em entendido, estes são casos extremos. Acontece que
es-
tamos frente a frente com uma mesma pessoa numa situação de su-
perioridade e de inferioridade jurídicas: por exemplo o Sr. Dimanche
que tem como devedor um cavalheiro e que, por humildade, não ousa
reclamar seu direito. O essencial é que
em
todo contrato especifique
mos ou em que lugar deve ser executado, ou o lugar de residência e
domicílio das duas partes, aquele onde o credor sabe que pode
en-
contrar seu devedor, aquele de onde o devedor sabe que lhe virá a
ordem de execução. No mais, essas zonas das quais nos sentimos do-
nos, e de que os outros dependem, podem se resumir numa espécie
de ponto local, onde cada uma das partes elegeu um domicílio, ou
estender-se
aos
limites de uma empresa, ainda que desde a entrada,
da fábrica ou da loja, sintamos a pressão dos direitos que outorgamos
a nós mesmos, e às vezes estendendo-se mais longe ainda:
no
tempo
das vias
de
fato, o devedor insolvente não ousava sair à rua.
Mas aqui chegamos
ao
ponto em que não se trata somente de
um contrato entre duas partes, porém das leis e
do
desrespeito às leis.
Geralmente, só pensamos nessas obrigações de ordem pública quando
deixamos de cumpri-las ou quando
somos
tentados a descumprí-Ias.
Então, há poucas partes deste espaço ocupado pela sociedade que
fez
essas leis, de onde nos sentimos constrangidos
como se temêssemos
esbarrar em alguma repressão, ou em alguma reprovação. Porém,
mes-
mo que estejamos dentro das normas, nem por isso o pensamento
ju-
rídico deixa de estar presente. estendido sobre o solo. Para os anti-
48
l
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gos
a imagem da cidade não se separava da lembrança das leis. Ainda
hoje quando deixamos nosso país e vamos ao exterior sentimos
cla-
ramente que passamos de uma zona jurídica a outra e que a linha
que as separa é materialmente delimitada sobre o solo.
o espaço econômico
A vida econômica nos coloca em relação com os bens materiais
porém de uma outra maneira que o exercício do direito de proprie
dade e o estabelecimento de contratos a propósito das coisas. Saímos
do mundo dos direitos para penetrar aquele do valor: um e outro são
bem diferentes
do
mundo físico mas talvez quando avaliamos os
objetos dele nos distanciamos ainda mais do que quando determi
namos de acordo com
os
outros homens a extensão e os limites de
nossos direitos sobre as diversas partes do mundo material.
Não falemos de valores
mas
de preços já que no final das
con-
tas é o que nos é dado. Os preços estão ligados às coisas como ró-
tulos:
mas
entre o aspecto físico de um objeto e seu preço não há
qualquer relação. Seria diferente se o preço que um homem dá ou
está prestes a .dar a uma coisa correspondesse ao desejo e à neces-
sidade que dela experimenta ou ainda se o preço pedido por ela
medisse o seu trabalho e o seu sacrifício quer renuncie a este bem
quer trabalhe para trocá-lo.
Sob
esta hipótese não haveria lugar para
falar de uma memória econômica. Cada homem avaliaria os objetos
conforme suas necessidades do inomento e o sentimento atual do es-
forço que tivesse despendido para produzi-los ou para deles
se
privar.
Mas não é assim. Sabemos que os homens avaliam bem os objetos
e também
as
satisfações que sentem pelo esforço e o trabalho que eles
representam de acordo com seus preços e que esses preços são esta
belecidos fora de nós
em
nosso grupo econômico. Ora se os homens
decidem atribuir assim tais preços aos diversos objetos não é sem
dúvida
sem se
referir de alguma maneira à opinião que reina
em
seu grupo no que diz respeito à utilidade desse objeto e à quantidade
de trabalho que ele implica. Porém essa opinião
em
seu estado atual
explica-se sobretudo por aquilo que era antes e os preços atuais pe-
los
preços anteriores. A vida econômica
se
baseia portanto sobre a
tabela dos preços anteriores e pelo menos sobre o último preço ao
qual
se
referem compradores e vendedores isto é todos os membros
do grupo.
Mas
essas lembranças então se sobrepõem aos fins atuais
através uma série de decretos sociais: de que modo então o aspecto
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dos objetos e sua posição no espaço bastariam para evocar essas
lem
branças? Os preços são números, que representam medidas.
Mas en
quanto os números correspondentes
às
qualidades físicas da matéria,
estão de algum modo, contidas nela, já que podemos encontrá-los
observando-a, por sua vez, no mundo econômico,
os
objetos materiais
s6
adquirem valpr a partir do momento que lhes atribuímos
um
preço.
Esse preço não tem então nenhuma relação com o aspecto e
as
pro
priedades físicas do objeto. De que modo a imagem
do
objeto evoca
ria a lembrança de seu preço, isto é, de uma quantia em dinheiro,
se
o objeto nos é apresentado tal como nos aparece no espaço físico,
isto é desligado de toda relação com a vida do grupo?
Mas, precisamente, porque os preços decorrem de opiniões so
ciais em suspensão no pensamento do grupo, e não das qualidades
físicas
dos
objetos . I 1ão é o espaço ocupado pelos objetos,
são os
lu
gares onde
se
formam essas opiniões sobre o valor
das
coisas, e onde
se
transmitem as lembranças
dos
preços, que podem servir de supor
te à memória econômica. Em outras palavras, no pensamento coletivo,
algumas partes do espaço se diferenciam de todas
as
outras, porque -
elas são o lugar comum de reunião
dos
grupos que têm por função
se
lembrar e lembrar aos outros grupos quais são os preços das diferen
tes mercadorias.
I
dentro do quadro espacial constituído por esses
lugares que evocamos, para lembrar as ações de troca e o valor
dos
objetos, quer dizer, todo o conteúdo da mem6ria do grupo econômico.
Simiand dizia que um pastor, nas montanhas, depois de oferecer
ao viajante uma tigela
de
leite, não sàbia que preço cobllftr e pediu
o que você pagaria na cidade . Do
mesmo
modo,
s s ~
camponeses
que vendem ovos, manteiga, queijo. fixam o preço conforme o que
foi pago na última feira. Observamos imediatamente e
em
primeiro
lugar, que essas lembranças se referem a uma época muito recente e
é assim, aliás, para quase todas as que têm por origem diligências e
pensamentos econômicos. Se com efeito, descartamos tudo aquilo
que, no ãmbito da produção, depende da técnica e que não precisa
mos levar em conta atualmente, decorre que as condições
das com
pras e das vendas, os preços e os salários, são submetidos a constan
tes flutuações, e que aliás, são poucos os domínios nos quais
as
lem
branças recentes apagam mais depressa e por completo
as
mais
n t i ~
gas. Não resta dúvida que o ritmo da vida econômica pode ser mais
ou menos rápido. Sob o regime das corporações e da pequena indús
tria, enquanto os processos de produção mudavam muito lentamente,
nas cidades onde o número de compradores e vendedores era subme-
15
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tido também a fracas vanaçoes durante longos períodos os preços
permaneciam quase iguais. O mesmo não ocorre quando a técnica se
transforma ao mesmo tempo do que as necessidades e que numa
so-
ciedade econômica estendida aos limites de nação e mesmo além sob
um regime de concorrência o sistema de preços apesar de mais
com-
plexo que outrora é sujeito a flutuações de conjunto e parciais que
se propagam de uma região a outra de uma indústria a outra. Então
é
preciso que compradores e vendedores se readaptem sem cessar às
condições de um novo equilíbrio e que esqueçam a cada momento
seus hábitos pretensões e experiências anteriores. Pensemos nestes
períodos de inflação de queda brusca da moeda de alta ininterrupta
dos preços durante os quais é de um dia para outro e por vezes da
manhã para a noite que é necessário fixar no espírito uma nova
es-
cala de valores. Mas podemos observar diferenças análogas quando
num mesmo momento ou num mesmo período passamos de um do-
mínio da vida econômica a outro. No campo quando os camponeses
vão
ao
mercado ou à cidade a intervalos bastante longos podem
ve-
rificar que os preços não mudaram desde o momento em que eram
compradores ou vendedores: vivem em função da lembrança dos
preços antigos. Não é mais assim nos meios onde
as
relações entre
comerciantes e clientes são mais freqüentes em particular naqueles
grupos de comerciantes a varejo e comerciantes atacadistas que não
compram somente para satisfazer suas necessidades de consumo e
que não vendem somente para escoar seus produtos mas que com-
pram e vendem por conta e de algum modo por delegação de to
dos os consumidores e de todos os produtores.
e
dentro de tais cír
culos que a memória econômica deve permanentemente renovar e
fixar a cada momento o estado das relações e dos preços mais re-
centes. Uma maior razão haveria nas bolsas onde se negociam títulos
cujos valores mudam não somente de um dia para outro mas até numa
mesma seção de uma hora para outra porque todas as forças que
modificam a opinião dos vendedores e dos compradores ali fazem
sentir imediatamente sua ação e não existe outro meio de conjecturar
ou
prever como vão estar os preços a não ser orientar-se a partir do
que
foram no último momento.
À
medida em que nos distanciamos
desses círculos onde a atividade das trocas é mais intensa a memória
econômica diminui o ritmo apóia-se sobre um passado mais longínquo
e atrasa o presente. São os comerciantes que lhe dão um novo alento
e a obrigam a se renovar:
5
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São os comerciantes que ensinam a seus clientes e que lhes lem-
bram o preço de cada artigo. Os compradores que são apenas com-
pradores participam somente portanto da vida e da memória do gru-
po econômico quando penetram nos círculos comerciais ou quando
se .lembram de neles ter penetrado. De que modo conheceriam eles
o valor
dos
bens e como permanecendo fechados na família e isolados
das correntes de troca conseguiriam eles apreciar
em
dinheiro aque
les bens de que dispõem? Consideremos agora esses grupos de comer-
ciantes que como dissemos constituem a parte mais ativa da
socie-
dade econômica já que é em seu seio que os valores se elaboram e
se conservam. Quer estejam reunidos nos mercados atrás dos balcões
ou nas ruas comerciais das cidades pode parecer primeiro que este-
jam mais separados
do
que reunidos e ligados uns aos outros por uma
espécie de consciência comum. Voltados aos clientes é com eles qu ·
se colocam em relação e não com os comerciantes vizinhos que
são
seus concorrentes aos quais parecem ignorar; ou que não vendem os
mesmos artigos que eles; de tal modo que como vendedores deles
se desinteressam; Entretanto ainda que não haja ponto de comunica
ção direta entre um e outro nem por isso deixam de ser agentes de
uma mesma função coletiva. Neles circula um
mesmo
espírito
são
portadores
de
aptidões da mesma ordem obedecem a uma mesma ética
profissional. Ainda que concorram entre si sentem-se solidários quan
do se trata de manter os preços e de imputá-los aos compradores. o-
bretudo estão todos em relação aos outros meios aqueles
dos
comer-
ciantes por atacado e através deles com as bolsas de comércio e por
outro lado com
os
banqueiros e homens de negócios isto é com a
parcela da sociedade econômica na qual se concentram todas as
in-
formações que sofre imediatamente o contragolpe de todas as opera
ções
do comércio e que contribui o mais eficazmente para o estabele
cimento dos preços. E o órgão regulador: através dele todos os co-
merciantes estão ligados uns aos outros já que as vendas de cada
um deles contribuem por seu turno a modificar suas reações e para
que todos obedeçam a seus impulsos. Assim o comércio a varejo re-
presenta os contornos e os limites da sociedade econômica dos
comer-
ciantes que têm seu centro e seu ponto nevrálgico nos meios da bol-
sa e do banco: entre eles e este centro os viajantes os corretores
os
agentes de informação e de publicidade mantêm e restabelecem a ca-
da instante o contato.
Em todo este gênero de atividade os consumidores não foram
iniciados. O balcão do comerciante é como um escudo que impede
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que
os
olhos deles penetrem as regiões onde se elaboram os preços.
Isto é mais do que uma imagem e veremos que se o grupo de comer
ciantes
se
imobiliza assim no espaço, fixa-se em alguns lugares onde
o comerciante aguarda o cliente, é porque somente sob esta condição
pode preencher a função que lhes pertence na sociedade econômica.
Coloquemo-nos, então, do ponto de vista dos clientes. Dissemos que
eles podem aprender a avaliar
os
bens de consumo, a menos que
os
comerciantes não lhes dêem a conhecer os preços. preciso então que
os
clientes se aproximem dos círculos comerciais. Aliás, é uma condi
ção necessária da troca que o cliente saiba onde encontrar o comer
ciante ao menos na maioria das vezes e sem que nos esqueçamos que
existem vendedores ambulantes que vão vender a domicílio; mas isto
é uma exceção que, como veremos, confirma a regra). Os comercian
tes aguardam então os clientes em suas lojas.
Ao mesmo tempo, as mercadorias, nessas mesmas lojas, aguardam
os
compradores. Não há aí duas expressões diferentes de um mesmo
fato, mas antes dois fatos distintos que é preciso considerar ao mesmo
tempo, porque um e outro e a relação entre eles fazem parte, por
sua vez_ da representação econômica do espaço.
~
com efeito, porque
a mercadoria aguarda, quer dizer, permanece no mesmo lugar, que o
comerciante é obrigado a aguardar também, quer dizer, a manter um
preço fixo pelo menos durante todo o tempo que decorre até a venda.
E sob essa condição, com efeito, que o cliente é encorajado a comprar,
e que tem a impressão de pagar o objeto não conforme um jogo com
plicado de avaliações que mudam sempre, mas por seu preço, como
se este resultasse da natureza mesma da coisa. Bem entendido, é uma
ilusão, já que o preço permanece ligado à coisa como um rótulo a um
artigo, e que na realidade, transforma-se incessantemente, enquanto
que o objeto não muda. Mas, enquanto negociamos, como se nos dés
semos
conta de todo artifício na determinação do preço, na realidade
ficamos convencidos que há um preço verdadeiro, que corresponde
ao
valor da coisa, que o comerciante esconde do cliente e que se pro
cura fazer com que ele confesse, ou então, que é como ele diz mas
que tentamos fazer que esqueça. Quanto a idéia de que o preço vem
de
fora, que não está no objeto, é aquela que o comerciante se esfor
ça
por afastar, persuadindo o comprador de que o objeto se vende
por seu preço. Somente consegue fixar pouco a pouco o preço do
objeto a nele incorporá-lo, a não ser oferecendo-o, durante um tempo
mais
ou menos longo, pelo mesmo preço.
153
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Quem quer que tenha comprado um imóvel uma roupa ou mes-
mo um artigo de consumo corrente e que o traga para casa pode crer
que ele mantém seu valor medido através do preço pago ao comer-
ciante durante todo
>
tempo que o utiliza e até que esteja fora
de
uso ou que tenha desaparecido. Trata-se geralmente de um erro por-
que
se
revendêssemos logo em seguida ou após algum tempo o
mesmo
objeto ou se o tivéssemos substituído perceberíamos que mudaria de
preço. O comprador vive de antigas lembranças. As lembranças
do
comerciante em relação
ao
preço são mais recentes; porque venden
do a muitas pessoas escoa suas mercadorias e deve renová-las o mais
depressa possível do que um cliente renova sua compra junto
do
mesmo comerciante. Entretanto está na mesma situação em relação
ao comerciante atacadista como o cliente está em relação a ele.
E
por isso que
os
preços no varejo mudam mais lentamente que
os
pre-
ços
de atacado com um atraso. papel dos comerciantes a varejo
portanto é este: devem estabilizar os preços de modo que os clientes
possam comprar. Trata-se somente de uma aplicação particular de uma
função que toda a sociedade deve preencher: então como tudo muda
sem cessar persuadir seus membros para que ela não mude pelo me-
nos durante um certo tempo e em alguns pontos. A sociedade dos
comerciantes deve do mesmo modo persuadir
os
clientes
de
que
os
preços não mudam ao menos pelo tempo necessário para que estes
serdecidam. Ela somente consegue estabilizar a
si
mesma e se fixar
em alguns lugares onde comerciantes e mercadorias se imobilizam à
espera dos compradores. Em outras palavras os preços não poderiam
se fixar na memória dos compradores e dos vendedores se uns e
ou-
tros não pensassem ao mesmo tempo não somente nos objetos
mas
nos lugares onde estão expostos e oferecidos. Já que o grupo econô-
mico não pode estender sua memória sobre um período bastante
lon-
go e projetar suas lembranças de preços por um passado longínquo
sem
que ele próprio dure quer dizer sem permanecer tal como é
nos mesmos lugares nos mesmos locais é natural que ele e os seus
membros
s u s t i t u i n d o ~ s e
realmente ou pelo pensamento nesses luga-
res reconstituam o mundo
dos
valores do qual continuam a ser o
quadro.
o espaço r ligioso
Que as lembranças de um grupo religioso lhes sejam lembradas
pela visão de certos lugares localização e disposições dos objetos não
154
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há do que se espantar. A separação fundamental, para estas socieda
des, entre o mundo sagrado e o mundo profano, realiza-se material
mente no espaço. Quando entra numa igreja, num cemitério, num
lugar sagrado, o cristão sabe que vai encontrar lá um estado de espí
rito do qual já teve experiência, e com outros fiéis, vai reconstruir,
ao
mesmo tempo, além de uma comunidade visível, um pensamento
e lembranças comuns, aquelas mesmas que foram formadas e manti
das em épocas anteriores, nesse mesmo lugar. Certamente, já no mun
do profano, no curso de ocupações sem qualquer relação com a
re-
ligião, no contato com meios cujos fins são completamente diferentes,
muitos fiéis se comportam como devotos que não esquecem de se
dirigir a Deus o quanto puderem, em pensamento e em seus atos. Nas
antigas cidades, a religião se disseminava por toda a parte, e em mui
tas outras sociedades mais antigas ainda, na China, por exemplo, não
há região em que se escape da influência destas ou d&quelas forças
sobrenaturais. medida que as principais atividades da vida social se
desprenderam da dominação religiosa, o número e a extensão dos es-
paços consagrados
à
religião, ou ocupados habitualmente por comuni
dades religiosas, reduziram-se e se fecharam. Certamente,
para
os
santos, tudo é santo , e não existe lugar aparentemente tão profano
onde os cristãos não possam evocar a Deus. Nem por isso os fiéis
ex-
perimentam menos necessidade de se reunir periodicamente e de se
comprimir uns contra os outros, em edifícios e locais consagrados à
devoção. Não basta franquear a entrada de uma igreja para que nos
lembremos em detalhes e de modo preciso, de nossas relações com o
grupo dos que têm as mesmas crenças que nós. Em todo caso, en
contramo-nos com a mesma disposição de espírito dos fiéis, quando
estão num local de culto e, apesar de não se tratar de acontecimentos
propriamente ditos, mas de uma certa inclinação e direção uniforme
da
sensibilidade e do pensamento, está bem aí o fundamento e o con
teúdo da memória coletiva religiosa. Ora, não hà dúvida de que ela
se
conserva nas religiões consagradas pois, desde que nelas nos oculta
mos
nelas nos recordamos.
Podemos até mesmo nos afigurar de que a memória de nosso
grupo é também contínua como os locais nos quais parece que ela se
conserva e que, sem interrupção, uma mesma corrente de pensamento
religioso teria passado sob estas abóbadas. Sem dúvida,
há
momentos
em que a Igreja está vazia de fato, ou quase vazia, períodos durante
os
quais suas portas estão fechadas, em que há somente paredes e
objetos sem vida. Durante estes períodos, o grupo está disperso. Ele
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dura, entretanto, e permanece o que era; até que se transforme, nada
o deixará supor que tenha mudado ou deixado de existir em algum
momento, com a condição de que, durante o intervalo, os fiéis tenham
passado diante da Igreja, que a tenham visto
de
longe, que tenham
ouvido os sinos, que a imagem de sua reunião neste lugar e das ce
rimônias
às
quais tenham assistido lhes tenha permanecido presente,
ou que lhes tenha sido sempre o meio de evocá-la de imediato. Mas
por outro lado, como estariam seguros
de
que seus sentimentos
reli
giosos não mudaram, que são hoje o que eram ontem, e que não se
pode distinguir neles o que é do passado e o que é do presente, se a
permanência dos lugares não lhes assegura a garantia? Um grupo
re
ligioso, mais que qualquer outro, tem a necessidade
de
se apoiar so
bre um objeto, sobre alguma realidade que dure, porque ele próprio
pretende não mudar, ainda que em tomo dele
as
instituições e
os cos
tumes
se
transformem e que idéias e experiências
se
renovem. Ainda
que os outros grupos se entretenham em persuadir seus membros
de
que suas regras e disposições permanecem
as
mesmas por todo
um
período, mas por um período limitado, a sociedade religiosa não pode
admitir que não seja hoje igual ao que era na origem, nem que deva
se transformar. Mas, como todo elemento de estabilidade faz falta no
mundo
dos
pensamentos e sentimentos, é na matéria e
s o r ~
uma
das
várias partes do espaço que ela deve assegurar seu equilíbrio.
A Igreja não é somente o lugar onde se
reúnem os fiéis e o re
cinto no interior do qual não penetram mais as influências dos meios
profanos. Primeiro, por seu aspecto interior, ela
se
distingue
de
todos
os outros lugares de reunião, de todos os outros recintos da vida
co
letiva. A distribuição e o arranjo de suas partes respondem
às neces
sidades do culto e se inspiram em tradições e pensamentos do grupo
religioso. Seja porque diferentes lugares estejam preparados para
di
versas categorias de fiéis, seja porque os sacramentos essenciais e as.
principais formas
de
devoção ali encontrem o lugar que lhes convém,
a Igreja mesma impõe aos membros do grupo uma distribuição e ati
tudes e grava em seu espírito um conjunto
de
imagens tão determina
das e imutáveis como as
dos
ritos, preces, elementos do dogma.
e
sem dúvida uma necessidade de exercício da
religiãQ
que faz com
que, no santuário, algumas regiões
se
sobressaiam
às
outras porque
o pensamento do grupo tem a necessidade de concentrar sobre certos
pontos sua atenção, de ali projetar de alguma forma uma parte maior
de sua substância e que, enquanto que para os padres, melhor infor
mados das tradições, todos os detalhes desse arranjo interior têm sen-
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tido, quer dizer, correspondem a uma direção do pensamento religio
so no espírito da massa dos fiéis predomina, em presença dessas ima-
gens
materiais, uma impressão de mistério. Porém, do
mesmo
modo,
nos templos da antigüidade, naquele de Jerusalém, nem todos os fiéis
eram admitidos
nos
lugares mais sagrados, no altar-mor e no saint
des saints . Uma Igreja é como um livro do qual somente um pe-
queno número, pope soletrar e decifrar todos os caracteres. De qual
quer modo, como praticamos o culto e
como
recebemos ensino
re-
ligioso no interior desses edifícios, todos os pensamentos do grupo
tomam a forma
dos
objetos sobre os quais eles concentram. Já que
encontram por toda parte imagens
de
Deus, dos apóstolos, dos san
tos, e dentro num cenário de luzes, paramentos e vestimentas ecle-
siásticas,
eles
se
imaginam assim e dentro desse quadro os seres
sa-
grados e o paraíso, e transpõem para tais quadros as verdades trans
cendentais do dogma. A religião se expressa portanto sob formas sim-
bólicas que se desenrolam e se aproximam no espaço: é sob essa
condição somente que asseguramos que ela sobreviva. Por isso é
preciso derrubar
os altares dos antigos deuses e destruir seu templo
se quisermos apagar da memória dos homens a lembrança dos cultos
ultrapassados;
os
fiéis dispersos se lamentam
de
terem sido afastados
de seus santuários, como se seu Deus os houvesse abandonado e a
cada
vez
que se ergue uma nova Igreja, o grupo religioso sente que
cresce e que
se
consolida.
Mas
toda a religião tem também sua história, ou antes, há uma
memória religiosa feita de tradições que remontam a acontecimentos
geralmente muito distantes no passado, e que aconteceram em
luga
res determinados. Ora, seria muito difícil evocar o acontecimento se
não imaginássemos o lugar que conhecemos geralmente não porque
o vimos, mas porque sabemos que existe, que poderíamos vê-lo, e
que em todo o caso, sua existência está garantida através de teste
munhas. l por isso que há uma geografia ou uma topografia religio
sa.
Quando as cruzadas chegaram a Jerusalém e se reapossaram
dos
lugares santos, não se contentaram em procurar os locais onde a tra
dição situava os principais acontecimentos narrados nos evangelhos.
Localizaram amiúde mais ou menos arbitrariamente alguns detalhes
da vida
de
Cristo ou da primitiva Igreja Cristã, guiando-se por
ves-
tígios incertos e mesmo, na ausência
de
todos vestígios, obedecendo
à
inspiração do momento. Depois, muitos peregrinos vieram rezar
nesses lugares, formaram-se tradições novas, e temos hoje muita
di-
ficuldade para distinguir as lembranças
dos
lugares que remontam
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aos
primeiros séculos da era cristã e tudo o que a imaginação
reli-
giosa lhes acrescentou. Ora, sem dúvida, nenhuma dessas localizà
ções é de fé, já que nenhuma foi comprovada por uma tradição
con-
tínua e suficientemente antiga. Sabemos, aliás, que houve ao mesmo
tempo, num mesmo lugar, várias tradições diferentes, que mais
de
uma dessas lembranças errou consideravelmente a respeito
das
incli
nações do monte das Oliveiras ou da colina
de
Sião, deslocou-se
de
um quadrante a outro, que algumas, dentre elas atrairiam as outras
ou,
ao
contrário, dividir-se-iam, o arrependimento
de
São Pedro se
desviando, por exemplo, da renegação e
se
fixando em outro lugar.
Se todavia, a Igreja e os fiéis se acomodam a essas variações e con-
tradições, não seria porque a memória religiosa tem necessidade
de
imaginar os lugares, para evocar os acontecimentos aos quais ela
se
liga?
Sem
dúvida, nem todos
os
fiéis podem ir em peregrinação a
Jerusalém, e contemplar com seus próprios olhos os lugares santos.
Mas, basta que os imaginem e que saibam que sobrevivem: ora, ja-
mais duvidaram deles.
No mais e qualquer que seja o papel que tenha desempenhado
o culto dos lugares santos na história do cristianismo, como
de
ou-
tras religiões, há este particular no espaço religioso de que, sendo
Deus onipresente, não existe região que não possa participar
do
mes-
mo caráter sagrado que esses locais privilegiados onde ele tenha
se
manifestado. e basta que
os
fiéis queiram coletivamente neles
come-
morar este ou aquele aspecto de sua pessoa ou de seus atos, para
que essas lembranças aí se prendam, com efeito, e que se possa
re-
cordá-las aí. Qualquer Igreja, já o vimos, pode se prestar a um tal
ofício: podemos dizer que Jesus Cristo
foi
crucificado não somente
sobre o Gólgota,
mas
por toda a parte onde
se
adora a cruz, e que
não
foi
somente no Cenáculo que
ele
comungou
com seus
discípulos,
mas em todo lugar onde é celebrado o sacrifício da missa, e onde
os fiéis se aproximam do altar da comunhão. A isto devemos
acres-
centar as capelas consagradas
à
Virgem, aos apóstolos, aos santos e
tantos outros lugaress que atraem
os
crentes, porque ali se conserva
alguma relíquia, uma fonte que cura, um túmulo em tomo do qual
houve milagres etc. Certamente que, em Jerusalém, na Palestina e
na Galiléia,
os
lugares de comemoração são mais numerosos: toda
a história evangélica está escrita sobre o solo; são, aliás, duplamente
consagrados, não somente pela vontade e a fé daqueles que alí
se
reúnem ou se sucedem, mas porque é lá pelo menos acreditamos)
que no tempo de Cristo, pode-se assistir
ao
que está relatado nos
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livros santos. Mas apesar de tudo o que importa é a significação
invisível e eterna desses fatos não há lugar onde não possamos evo
cá-la com a condição que aàotemos a mesma atitude quer dizer
que reproduzamos materialmente a cruz e os santuários que os er
guem sobre o teatro histórico dos evangelhos. assim que se cons
titui a devoção da via sacra como se ao reconstituir-se bem longe
de Jerusalém a via dolorosa e suas estações estivéssemos aptos do
mesmo modo que
os
peregrinos para reviver interiormente as suces
sivas cenas da Paixão. De qualquer modo. é sempre o mesmo objeti
vo
que se persegue. A sociedade religiosa quer se persuadir de que
não mudou ainda que tudo se transforme em torno dela. Consegue
isto somente com a condição de recordar
os
lugares ou reconstituir
em torno dela uma imagem ao menos simbólica dos lugares nos quais
ela se organizou de início. Porque
os
lugares participam da estabili
dade das coisas materiais e é baseando-se neles encerrando-se em
seus limites e sujeitando nossa atitude à sua disposição que o pen
samento coletivo do grupo dos crentes tem maior oportunidade de
se eternizar e de durar: esta é realmente a condição da memória.
Resumindo tudo o que o foi dito a maioria dos grupos não
so-
mente aqueles que resultam da justaposição permanente de seus mem
bros dentro dos limites de uma cidade de uma casa ou de um apar
tamento porém muitos outros também imprimem de algum modo
sua marca sobre o solo e evocam suas lembranças coletivas no inte
rior do quadro espacial assim definido. Em outras palavras há tan
tas maneiras de representar o espaço quantos sejam ps grupos. Po
demos fixar nossa atenção nos limites das propriedades nos direitos
que estão ligados
às
diversas partes do solo distinguir os lugares
ocupados pelo senhores e escravos suseranos e vassalos nobres e
plebeus credores e devedores como zonas ativas e passivas de onde
emanam ou sobre as quais se exercem
os
direitos relacionados ou
supressos à pessoas. Podemos também pensar nos ·lugares ocupados
pelos bens econômicos que
só
adquirem valor à medida em que são
oferecidos e postos à venda nos mercados nas lojas quer dizer no
limite em que divide o grupo econômico entre vendedores e clientes:
aqui ainda há uma parte do espaço que se diferencia das outras: é
aquela na qual a parte mais ativa da sociedade que se interessa pe
los bens reside geralmente e sobre a qual deixa sua marca. Pode
mos enfim ser sensíveis à separação que passa
o
primeiro plano
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da consclencia religiosa, entre lugares sagrados e lugares profanos,
porque há partes
do
solo e regiões
do
espaço que o grupo
dos
fiéis
considerou proibidos a todos os outros, onde encontram ao mesmo
. empo, um abrigo e um apoio sobre o qual apoiar suas tradições.
Assim, cada soCiedade recorta o espaço a seu modo,
mas
por sua
vez
para todas, ou seguindo sempre
as
mesmas linhas,
de
modo a
, constituir um quadro fixo onde encerra e localiza suas lembranças
Concentremo-nos agora, fechemos os olhos, remontemos o cur
so do tempo tão longe quanto nos seja possível, tanto quanto
nosso
pensamento possa se fixar em cenas ou pessoas das quais conserva
mos
a lembrança. Jamais saímos do espaço. Não nos encontramos,
aliás, num espaço indeterminado, porém em regiões que conhecemos,
ou as quais sabemos muito bem que poderíamos localizar, já que
sempre fazem parte do meio material onde estamos hoje. Não adianta
fazer esforço para apagar essa sociedade local, para ater-me
aos sen-
timentos que experimentei ou reflexões que formulei outrora. Senti-
mentos, reflexões, como quaisquer acontecimentos, devem realmen
te
se
recolocar num lugar onde residi ou pelo qual passei neste mo-
mento, e que existe sempre. Tentemos retroceder mais. Quando atin
gimos
a época na qual nós ainda não nos representamos, mesmo
confusamente, os lugares, chegamos também
às
regiões do passado
onde nossa memória não alcança. Não é certo então, que para lem-
brar-se, seja necessário se transportar em pensamento para fora do
espaço, pois pelo contrário é somente a imagem
do
espaço que, em
razão
de
sua estabilidade, dá-nos a ilusão
de
não mudar através do
tempo e de encontrar o passado no presente; mas é assim que
po-
demos definir a memória; e o espaço só é suficientemente estável
para poder durar sem envelhecer, nem perder nenhuma
de
suas
partes.
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Anexo
A MEMÓRIA COLETIVA NOS MÚSICOS 1
A lembrança de uma palavra se distingue da lembrança de
um
som qualquer, natural ou musical, nisto que ao primeiro correspon
de sempre um modelo ou
u
esquema exterior, determinado seja
pelos hábitos fonéticos do grupo (isto é, sobre um suporte orgânico),
seja sob a forma impressa (quer dizer, sobre uma superfície mate
rial), enquanto a maioria dos homens, quando ouvem sons que não
são palavras, podem dificilmente compará-los a modelos puramente
auditivos, porque estes lhes faltam.
Certamente, quando em meu· gabinete de trabalho, levanto a
cabeça para escutar por um momento os ruídos de fora e de dentro.
posso dizer: isto. é um ruído de um motor a carvão no corredor,
aquilo, é o trote do cavalo na rua, é o grito de uma criança etc. Mas,
como natural, não é
em
torno de uma representação tipicamente
au-
ditiva que se agrupam geralmente os sons ou os ruídos de uma mes-
ma categoria: quando quero reconhecer esses ruídos, penso nos ob
jetos ou nos seres que, em meu entendimento produzem sons análo
gos isto é, reporto-me a noções que não são essencialmente de or
dem sonora. o som que faz pensar no objeto, porque reconhece
mos
o objeto através do som; mas o objeto
em
si mesmo (quer di-
zer, o modelo ao qual nos reportamos) raramente evocaria sozinho
o som. Quando ouvimos
um
ruído de corrente, ou ainda uma freada,
cavalos a galope, um estalar de chicote, pensamos nos prisioneiros,
numa corrida de carros. Como estes espetáculos nos aparecessem na
tela
de um cinema, sem que nenhuma orquestra invisível os acom
panhe, imitando os sons, nós próprios nos evocaremos
os
sons, e as
imagens que se agitam no silêncio provocarão em nós muito menos
ilusão.
Mas é a mesma coisa quando se trata da voz humana, e quando
nossa atenção se concentra não mais sobre as palavras em si mesmas,
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mas
sobre o timbre, a entonação e o acento. Suponhamos que
na
escuridão ou no telefone, ouçamos pessoas que conhecemos e que
não conhecemos, uma de cada vez. Ouvimos uma pessoa sem vê-la
de tal modo que só podemos pensar
em
sua voz. Mas
em
que nos
faz pensar sua voz? Raramente nos reportaremos a modelos auditi
vos, porque o que nos interessa sobretudo é distinguir essas vozes
conforme a qualidade e a ação que podem exercer sobre os ouvidos
do público: ponto de vista que passa talvez para o primeiro plano
nos concursos
de
Conservatório, ponto
de
vista do diretor
de
teatro.
Pensaremos antes, quando ouvirmos vozes conhecidas, nas pessoas
que reconhecemos por trás dessas vozes e, quando ouvirmos
vozes
desconhecidas, no caráter e no sentimento que nelas se revelam, ou
que parecem expressar. Assim nos reportaremos a
um
certo número
de idéias que nos são familiares, idéias e reflexões acompanhadas de
imagens: rostos
de
nossos pais,
de
nossos amigos, mas também
de
figuras que representam para nós a doçura, a ternura, a secura, a
maldade, o amargor, a dissimulação.
1
com essas noções estáveis,
tão estáveis quanto as noções dos objetos, que confrontamos as vo
zes ouvidas, para reconhecê-las, ou para nos capacitarmos
em reco
nhecê-las. Daí nossa surpresa, algumas vezes, quando encontramos
uma pessoa que nos é estranha, que tem a mesma voz de um
de
nossos parentes, de um dos nossos amigos; surpresa e também sen
timento de que aí existe alguma coisa de cômico, como se nosso
parente houvesse colocado uma máscara, ou como se o estranho
houvesse se enganado, assumindo uma voz que não era a sua. O
mesmo acontece quando a intensidade da emissão vocal está em de
sacordo com a aparência física, que é forte diante
de
um ser frágil
etc.
Chegamos aos sons musicais. Se para fixá-los em nossa memó
ria e lembrá-los, apenas pudéssemos ouvi-los, o maior número de
notas ou de conjuntos de sons musicais que ferem nossos ouvidos,
rapidamente nos escaparia. Berlioz contou em suas memórias que
uma noite compôs mentalmente uma sinfonia que lhe parecia admi
rável. Ia anotá-la, quando pensou que para executá-la, seria neces
sário perder tempo demais e dinheiro em diligências, quando decidiu
renunciar a isto e nada anotou. Na manhã
do
dia seguinte, não lhe
restou nenhuma lembrança daquilo que se lhe apresentara e do que
ouvira interiormente, algumas horas antes, com tal nitidez. Isto acon
tece e com mais razão entre aqueles que não aprenderam nem a
decifrar, nem a executar. Quando saem de um concerto em que ouvi-
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ram uma obra pela primeira vez, não resta em sua memória quase
nada.
Os
motivos melódicos se separam e suas notas se espalham
como
as pérolas
de
um colar cujo fio se rompeu. Certamente, pode
mos
mesmo
quando
somos
ignorantes da transcrição musical,
reco
nhecer e lembrar desta ou daquela seqüência de notas (uma suite) ,
árias, temas, melodias, e mesmo acordes, e partes
de
uma sinfonia.
Mas, então, ou se trata daquilo que ouvimos várias vezes, ou que
aprendemos a reproduzir vocalmente. Os sons musicais não se fixa
ram na memória sob a forma
de
lembranças auditivas, mas aprende
mos a reproduzir um seqüência
de
movimentos vocais. Quando en
contramos uma ária, nós nos reportamos para um desses esquemas
ativos e motores dos quais fala Bergson que, ainda que estejam fi
xados
em
nosso cérebro, permanecem fora
de
nossa consciência. Ou
então, trata-se
de
seqüências de sons que seríamos incapazes de re
produzir nós mesmos,
mas
que reconhecemos quando os outros as
executam e somente nesse momento.
Suponhamos então que a mesma ária que h v í m o ~ ouvido
an
tes
tocada ao piano, seja agora executada no violão. Onde está o
modelo ao qual nos reportamos, quando a reconhecemos? Deve
se
encontrar ao mesmo tempo em nosso cérebro, e no espaço sonoro.
Em
nosso cérebro, sob a forma de disposição adquirida anteriormen
te
a reproduzir o que ouvimos, mas disposição insuficiente e incom
pleta, porque não poderíamos reproduzi-la. Mas os sons ouvidos no .
presente vêm ao encontro desses mvoimentos de reprodução esboça
dos,
ainda que aquilo que reconhecemos seja aquilo que, nesses sons,
se
ajuste aos movimentos, isto é, não o seu timbre, mas essencial
mente a diferença
de
altura dos sons;
os i n t ~ r v a l o s
o ritmo, ou,
em
outras palavras, aquilo que da música pode realmente transcrever e
representar através
dos
símbolos visuais. Certamente, ouvimos outra
coisa. Ouvimos os sons em si mesmos, os sons do violino, tão dife
rentes
dos
sons do· piano, a ária executada no violino tão diferente
da executada no piano. Se reconhecemos então essa ária, é porque
sem ler as notas,
sem
vê-las tais como são ou estão inscritas na par
titura, imaginamos, à nossa maneira, esses símbolos· que ditam os
movimentos dos músicos e que são
os
mesmos que
se
toca no piano
ou no
violino. Assim, não haveria reconhecimento, e a metnória não
reteria nada,
se
não houvessem movimentos no cérebro, e notas
so
bre a pauta dos músicos.
Distinguimos no que
foi
dito dois modos; para as pessoas que
não sabem nem ler a música, nem tocar um in·strumento,
de
lem-
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brar-se de um tema musical. Uns se lembram porque podem repro
duzi-lo cantando. Outros
se
lembram porque já o ouviram e nele
re-
conhecem algumas passagens. Consideremos agora duas maneiras
ainda porém desta vez para músicos ou para
as
pessoas que sabem
ler a música de
se
lembrar igualmente
de
um tema musical.
Uns se
lembram porque podem executá-lo e
os
outros porque tendo lido
antes ou lendo agora a partitura o reconhecerão quando o executa
rem. Entre essas duas categorias
de
músicos
dos
quais uns executam
e
os
outros escutam ao mesmo tempo que
se
representam
os símbo-
los musicais e sua seqüência há a mesma relação entre aqueles que
cantam uma ária e
os
que a reconhecem pela audição ainda que
nem uns e nem outros saibam ler a música. A memória musical
nos
grupos de músicos é naturalmente bem mais ampla e bem mais
se-
gura do que a dos outros. Estudamos um pouco mais
de
perto qual
parece ser o mecanismo para quem examina esses grupos
de
fora.
Eis numa sala de concerto um conjunto de instrumentistas que
forma uma orquestra. Quando cada um deles executa sua parte
man-
tém
os
olhos fixos sobre uma folha de papel onde são reproduzidos
os sinais. Esses sinais representam notas seu tom sua duração
os
intervalos que
as
separam. Tudo se passa como se fossem vários si-
nais colocados com a finalidade de advertir o músico e de lhe indi
car o que deve fazer. Esses sinais não são imagens
de
sons que
os
reproduziriam
os
próprios sons. Entre esses traços e
esses
pontos que
atraem a vista e sons que sensibilizam
os
ouvidos não existe
ne-
nhuma relação natural. Esses pontos não representam
os
sons já
que não existe entre uns e outros nenhuma analogia porém traduzem
numa linguagem convencional uma série de comandos aos quais o
músico deve obedecer
se
quiser reproduzir
as
notas e sua seqüên
cia com
as
nuances e no ritmo que convém.
Porém o que
vê
o músico na realidade quando olha para essas
páginas? Aqui como no caso
de
qualquer leitura conforme o leitor
esteja mais ou menos exercitado o número dos sinais que impressio
nam sua retina diminui ou aumenta. Distingamos
os
sinais
em
si
mesmos e
as
combinações onde entram. Esses sinais são
em
número
limitado e cada um deles é relativamente simples. Podemos admitir
que de tanto lê-los e executar as ordens que transmitem o músico
deles assimilou plenamente o sentido quer dizer estão inscritos
de
uma maneira ou
de
outra em seu cérebro: não há necessidade de
vê-
los para lembrar deles.
s
combinações que podemos formar
com
esses sinais pelo contrário são ilimitadas e algumas dentre elas
são
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complicadas, de forma que é inconcebível que todas essas combina
ções se conservem tais e quais, na superfície cerebral, sob a forma
de
mecanismos que preparariam os movimentos necessários para re
produzi-las.
Também isso não é necessário. De fato, essas combinações de
sinais estão inscritas fora do cérebro, sobre folhas de papel, quer
dizer, elas se conservam materialmente no exterior. Certamente, sal
vo
em
casos totalmente excepcionais), o cérebro de um músico não
contém, não conserva a notação, sob uma forma qualquer mas satis
fatória para que possa reproduzi-los, a todos os trechos de música
que já tenha tocado. No momento mesmo em que executa um trecho
que ensaiou, o músico não sabe executá-lo totalmente de cor, em
geral, já que tem a necessidade. de olhar pelo menos de vez em quan
do a pauta. Observemos que,
se
não tivesse assimilado primeiro os
sinais simples e elementares, e mesmo as combinações mais freqüen
tes que comportam esses sinais, estaria, ao executar, lendo a parti
tura na mesma situação de uma pessoa que lê alto e que deve parar
a cada instante, porque há letras que não reconhece. Então s po
deria tocar numa orquestra ou em público, na condição de ter apren
dido de cor: não haveria mais necessidade de partitura; mas daria
muito mais trabalho antes de cada execução, e isso limitaria o nú
mero de trechos que seria capaz de executar. e porque os sinais e
combinações musicais simples subsistem no cérebro, que é inútil que
ali
se
conservem tantas combinações complexas, e basta que as últi
mas estejam assinaladas em folhas de papel. A partitura desempenha
então aqui, o papel de substituto material do cérebro.
Observe-se a atitude e os movimentos dos músicos, numa or
questra. Cada um deles é somente uma parte de um conjunto que
compreende os outros músicos e o maestro. Com efeito, eles tocam
em
conjunto e no ritmo, quase sempre cada um conhece não somen
te
sua parte mas também a dos outros, e o lugar da sua entre as
demais. Esse conjunto compreende também as partituras escritas.
Ora, aqui, como em todo organismo, o trabalho se divide, as fun
ções são executadas por diferentes órgãos, e pode-se dizer que se os
centros motores que condicionam os movimentos dos músicos estão
no interior de seu cérebro ou no interior de seus corpos, seus cen
tros visuais, encontram-se na parte de fora, já que seus movimentos
estão ligados aos sinais que lêem sobre as partituras.
Essa descrição, reconheçamos, corresponde, apenas aproximada
mente à realidade. Alguns músicos, com efeito, poderiam executar de
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cor toda a sua parte. Outros,
mesmo
acompanhando
com os
olhos
as
notas sobre a pauta, sabem de cor fragmentos inteiros da parte que
tocam. Conforme as aptidões pessoais do músico, conforme tenha
praticado e repetido com maior ou menor freqüência, poderá dispen
sar mais ou menos o apoio exterior que os sinais escritos ou impres
sos oferecem à memória. Porém, por maior que seja a sua virtuosi
dade, não reterá· tudo, nem mesmo todas as obras que tenha executa
do, de modo a ser capaz de reproduzir, à vontade e a qualquer mo
mento, qualquer uma delas. Em todo o caso, isole o músico, prive-o
de todos esses meios de tradução e memorização dos sons que repre
senta a escrita musical; ser-Ihe-á bem difícil e quase impossível fixar
na memória um número tão grande de lembranças.
Os sinais musicais e
as
modificações cerebrais que lhes corres
pondem diferem dos sons e dos vestígios que
os
sons deixam
em
nosso cérebro, já que são artificiais. Resultam de convenções, e não
têm sentido a não ser em relação ao grupo que
os
inventou ou
ado
tou. Um fisiologista que ignorasse tudo sobre música, que não
sou
besse que há concertos, orquestras e músicos,
se
pudesse penetrar
nos cérebros deles, perceber os movimentos que ali
se
produzem e
ligá-los às suas causas exteriores, saberia que alguns dentre eles
re
sultam desses fenômenos físicos naturais a que chamamos sons. Mas
observando o cérebro de um músico no momento
em
que
ele exe
cuta uma partitura, ao lado dos vestígios cerebrais dos sons, o fisio
logista distinguiria nele outros sons que se relacionariam
aos
carac
teres figurativos, a sinais impressos, dos quais o mais que se pode
dizer é que não os encontramos na natureza.
Ele experimentaria, talvez, o mesmo espanto
de
Robinson quan
do explorando sua ilha, sobre a areia, não longe do mar, percebeu
marcas de passos. Suponhamos que essas marcas tenham sido
dei
xadas por homens no dia anterior, sem que ele os tivesse visto, e
que tivessem ido embora. Há ainda muitos outros vestígios: marcas
de animais, penas de pássaros, conchas na praia. Mas
as
marcas
de
passos humanos diferem de todas as outras pois estas surgiram na
ilha pelo jogo exclusivo das forças naturais. A ilha, podemos dizer,
produziu-as sozinha. Porém, uma ilha deserta não produz, sozinha,
marcas de passos. Quando
se
inclina- sobre essas marcas, Robinson
vê então, na realidade, alguma coisa que não é mais a sua ilha. Ainda
que estejam marcados sobre a areia, estes passos o transportam
alhu
res. Através deles, retoma contato com o mundo dos homens, porque
somente têm sentido se recolocados no conjunto das marcas deixa-
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das nas diferentes partes do solo nas idas e vindas dos membros
do grupo. O mesmo se passa com as marcas deixadas pelos sinais na
substância cerebral. Elas revelam a ação que exerce no cérebro do
homem aquilo que um fisiologista poderia chamar de um sistema ou
uma colônia
de
outros cérebros humanos.
Esse gênero de ação oferece o particular de que ele se exerce
através de sinais isto é que supõe um acordo preliminar e um acordo
contínuo entre os homens a respeito da significação desses sinais.
Essas modificações ainda que se produzem em diversos cérebros
nem por isso deixam de constituir um todo já que uma responde
exatamente à outra; Ainda mais o símbolo e ao mesmo tempo o ins
trumento dessa unidade da unidade desse todo existem material
mente: são
os
sinais musicais e as folhas impressas da partitura. Tu
do aquilo que se produz no cérebro em razão desse acordo ou dessa
unidade não pode ser considerado isoladamente.
Para qualquer um que ignorasse a existência do grupo de que
faz parte o músico a ação exercida sobre seu cérebro pelos sinais
teria sido apenas insignificante porque só o apreciaria à luz das
propriedades puramente sensíveis do signo em si mesmo. Ora essas
propriedades não distinguem quase nada o signo de muitos outros
objetos da visão que não exercem sobre nós nenhuma ação. Para
devolver
à
percepção deste signo todo seu valor é preciso deslocá-la
dentro do conjunto do qual ela faz parte: isto é significa que a lem
brança de uma página coberta de notas é apenas uma parte de uma
lembrança mais ampla ou de um conjunto de lembranças: ao mesmo
tempo em que vemos em pensamento a partitura entrevemos tam
bém todo um meio social os músicos suas convenções e a obriga
ção que se impõe a nós para entrar em relação com eles de a ela
nos curvarmos.
Consideremos agora uma vez ainda os músicos que tocam nu
ma orquestra. Todos têm seus olhos fixos na partitura e seus pen
samentos assim como seus gestos se harmonizam porque são outras
tantas cópias de um mesmo modelo. Suponhamos que todos tenham
suficiente memória para que lhes seja possível tocar sem olhar essas
páginas cobertas de signos para ali lançar de vez em quando um
rápido olhar.
s
partituras estão lá. Mas poderiam não estar tam
bém. Se ali não estivessem nada teria mudado já que seus pensamen
tos se harmonizam e porque as partituras têm somente o papel de
simbolizar o acordo entre os pensamentos. Não poderíamos dizer
então que não há motivo para explicar a conservação das lembran-
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ças musicais através das partituras como se a memória tivesse a
necessidade de se apoiar sobre um objeto material que dura já que
precisamente as partituras deixam de desempenhar seu papel a par
tir do momento em que a lembrança é adquirida? Quando dizía
mos que os músicos e suas partituras formam um conjunto e que é
preciso considerar o todo desse conjunto para explicar a conserva
ção das lembranças não nos colocávamos no instante em que a lem-
brança ainda não existe mas no que ela se forma e o objeto ma-
terial exterior a partitura não vai desaparecer a partir do momento
em que a lembrança existe de onde depende de nós e somente de
nós evocá-la? Daí então seria necessário retornar à teoria puramente
fisiológica da memória isto é admitir que o cérebro é suficiente
para dar conta da lembrança e do reconhecimento destas lembranças.
Acreditamos entretanto que entre um músico que toca de cor
e um músico que acompanha as notas sobre uma pauta há apenas
uma diferença de grau. Observemos que antes de tocar de cor foi
necessário antes que lesse e relesse sua parte. Como a última leitura
aCOl tece no momento da execução ou algumas horas antes u alguns
dias ou mesmo por um longo intervalo o tempo que decorre entre
este e aquela não muda a natureza da ação que o sistema de sinais
exerce sobre quem o traduz. Não há sensação que não demande um
certo tempo para que dela tomemos consciência porque jamais existe
contato imediato entre a consciência e o objeto. O mais freqüente é
que a sensação não foi formada e existe somente no momento em
que seu objeto não está mais lá: pode-se dizer entretanto que o obje
to não é causa da sensação? Dissemos antes que não há razão para
distinguir a memória ativa que consiste em nos lembrarmos ou em
reconhecermos um objeto do qual não cessamos de sofrer a ação da
ressonância ou a ação retardada e contínua que um objeto exerce
ainda sobre nosso espírito ainda que um intervalo mais ou menos
longo nos separe do momento quando o percebemos. Assim o objeto
pode não estar mais lá. Mas
se a ação que ele exerce ainda dura o
sistema constituído pela representação e o objeto deixa de ser um
circuito contínuo fechado pelo objeto tão distante no tempo quanto
possa. Aqui o objeto é um conjunto de sinais. A ação que exerce
são
os
comandos que transmite ao sujeito. O músico não mais lê a
partitura. Ele se comporta entretanto como se a lesse. Não é porque
os sinais tenham passado da partitura para seu espírito como imagens
visuais. Porque não as vê
mais. Pode-se dizer que os movimentos
que executa estão ligados entre si que um mecanismo foi montado
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em seu cérebro. de tal modo que cada um deles determina automati
camente o seguinte? Sem dúvida. Mas o que é preciso explicar é
como esse mecanismo foi montado. e necessário relacioná-lo à sua
causa que lhe é exterior quer dizer ao sistema de sinais fixado pelo
grupo sobre o papel.
Consideremos um quadro de cera sobre o qual gravamos uma
seqüência
de
letras e de palavras. Ele reproduz em côncavo o que
os
caracteres representam em relevo. Deixemos de lado agora os ca
racteres. A impressão permanece e poderíamos pensar que s mar
cas deixadas pelos caracteres estão ligadas uma à outra e que cada
palavra se explica por aquela que a precede. Porém sabemos qüe
não é assim que a marca em côncavo se explica pela composição em
relevo e que a ação desta subsiste e não muda de natureza ainda
que os caracteres em relevo não sejam mais aplicados sobre sua marca.
Da mesma maneira que quando um homem esteve no seio de um
grupo ali aprendeu a pronunciar certas palavras numa certa ordem.
pode sair do grupo e dele se distanciar. Enquanto ainda usar essa
linguagem podemos dizer que a ação do grupo se exerce sobre ele.
O contato não é mais interrompido entre ele e essa sociedade do que
entre um quadro e s mãos ou o pensamento do pintor que o compôs
outrora. Não o é também entre um músico e uma página de música
que leu ou releu várias vezes ainda que até mesmo pareça prescindir
dela agora. Na realidade longe de não precisar dela pode tocar por
que a página está lá invisível mas tanto mais ativa da mesma manei
ra que nunca nos obedecem tão bem do que quando não temos neces
sidade de repetir sempre as mesmas ordens.
Podemos dizer agora onde se encontra o modelo que nos permite
reconhecer as peças musicais das quais não nos lembramos. Insisti
mos nesse exemplo porque as lembranças musicais são infinitamente
diversas acreditamos estar aqui como dizem os psicólogos no do-
mínio da qualidade pura. Cada tema cada frase cada parte de uma
sonata ou de uma sinfonia é única em seu gênero. Na ausência de
todo um sistema de notação uma memória que quisesse reter tudo o
que um músico deve tocar em uma série de concertos deveria parece
alinhar
s
impressões de cada instante uma após a outra. Que com
plicação infinita seria necessário atribuir o cérebro para que possa
registrar e conservar separadamente tantas representações e tantas
imagens?
Porém nos diz Bergson isso não é necessário. Basta que nos re-
portemos a um modelo esquemático. em que cada parte ouvida seja
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substituída por uma série de sinais. Não somos mais obrigados a reter
separadamente todos os sons sucessivos onde cada um, já o dissemos,
é único em seu gênero, mas um pequeno número
de
notas para inú- '
meros sinais musicais. Evidentemente, é preciso ainda reter
os
diver-
sos modos
de combinação desses sons, e há muitos deles, todos dife
rentes, tantos forem os diferentes trechos. Mas essas combinações
complexas
se
decompõem em combinações mais simples, as combina-
ções mais simples são mais numerosas, sem dúvida, do que
as
notas,
todavia, elas
se reproduzem sempre num mesmo trecho, ou de
um
trecho a outro. Um músico experimentado, e que tenha executado
um grande número de peças diferentes, será como alguém que leu
muito. As palavras também são mais numerosas do que as letras,
e
as
combinações de palavras são mais numerosas do que as próprias
palavras. O que há de novo em cada página, não são as palavras, nem
mesmo
os
membros da frase: tudo isto reteríamos bem depressa. O
que é preciso reter agora ou compreender, aquilo sobre o que a aten-
ção deve se concentrar, é a combinação dos temas elementares, das
combinações de notas ou de palavras já conhecidas. Assim se encon-
tra reduzida e simplificada a tarefa da memória. Compreendemos
dessa maneira que podemos aprender de cor trechos inteiros, um gran-
de número de trechos, e reconhecer, ouvindo-o, toda a seqüência de
notas que se desenvolve: basta que se tenha presente no espírito,
de
uma maneira ou de outra, um modelo que represente esquematica
mente como palavras conhecidas passam a integrar um novo modo de
combinação. Basta· se representar uma combinação de sinais.
Mas, esses sinais, de onde vêm? Esse modelo esquemático, como
nasce? Coloquemo-nos do ponto de vista de Bergson, que considera
um indivíduo isolado. Esse homem ouve várias vezes um mesmo
trecho de música. A cada audição corresponde uma seqüência de
impressões originais que não se confunde com nenhuma outra. Mas,
a cada audição produz-se em seu sistema cérebro-espinhal uma se-
qüência de reações motoras, sempre de mesmo sentido, que se reforça
de uma audição a outra. Essas reações acabam por delinear um esque
ma motor. E esse esquema que constitui o modelo fixo ao qual
com-
paramos a seguir o trecho ouvido, e que nos permite reconhecê-lo, e
mesmo reproduzí-Io. Neste ponto, Bergson aceita a teoria fisiológica
da memória, que explica através do cérebro individual e somente por
ele, essa espécie de lembrança e de reconhecimento.
Certamente, homens que têm bom ouvido não reagirão, todavia,
da mesma maneira à audição, repetida tantas vezes quantas quiser-
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mos
de um
mesmo trecho conforme o que saibam ou não saibam
decifrar os caracteres musicais. Mas entre uns e outros há somente
uma diferença de grau.
Um
músico que decifrou um trecho antes
de
ouvi-lo o decompôs. .Sua atenção se deteve
de
início sobre os
elementos representados pelas notas e em primeiro lugar ele isolou
uma da outra as reações motoras que correspondem a cada uma delas.
A repetição freqüente dos mesmos movimentos lhe deu mais maestria.
Exercitou-se em seguida em combinar esses movimentos de acordo
com as combinações de notas que ouvia e lia. l porque tem delas
uma idéia clara: sabe tudo o que elas contêm. O que há de extraordi-
. nário
em
que ele possa representar essa combinação de movimentos
com a ajuda de sinais?
Um
homem que não prestou atenção às rea
ções elementares que determinam nele
os
sons isolados ou
as
combi
nações simples de sons terá muito mais dificuldade
em
distinguir os
movimentos que executa quando ouve um trecho de música. Esses
movimentos serão mais confusos e menos precisos. Permanecerãoge
ralmente mais no estado de esboços motores. Mas não diferirão
essencialmente daquilo que seriam num músico. O que prova é que
pessoas que não aprenderam a música çonseguem todavia se lembrar
de alguns temas seja porque os tenham ouvido muitas vezes seja por
que por uma razão ou outra elas os tenham memorizado mais do
que
os
outros temas.
Os sinais musicais segundo M. Bergson não desempenhariam
então um papel indispensável. Muito pelo contrário os sinais musi
cais
só
poderiam existir· no dia em que distinguíssemos as notas ele
mentares. Mas o que seria dado seriam os conjuntos de sons fundi
dos um ao outro isto é um todo contínuo. Será necessário então
que o decomponhamos primeiro isto é que a cada som ou conjunto
elementar de sons nosso sistema nervoso responda com uma reação
distinta. Então poderemos representar esses movimentos separados
através de vários sinais. São então os movimentos do cérebro que se
transformariam em sinais e não
os
sinais que dariam otigem aos mo
vimentos do cérebro.. l aliás natural que possamos passar das notas
aos movimentos já que as notas são apenas a tradução desses mo
vimentos: mas os movimentos viriam antes como o texto antes da
tradução.
Há entretanto um fato que essa explicação não leva em conta
sem
dúvida porque não está claro quando supomos que o homem
esteja isolado. Este fato é que estes sinais resultam
de
uma conven
ção entre vários homens. A linguagem musical é uma linguagem co-
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mo as
outras isto é supõe um acordo preliminar entre aqueles que a
falam. Ora para aprender uma linguagem qualquer é preciso subme
ter-se a
um
adestramento difícil que substitua nossas reações naturais
e instintivas por uma série de mecanismos dos quais encontramos o
modelo totalmente fora de nós na sociedade.
No caso da linguagem musical poder-se-ia crer que é diferente.
Há com efeito uma ciência dos sons que repousa sobre dados natu
rais físicos e fisiológicos. Admitamos que o sistema cerebral e ner-
voso do homem seja um aparelho
de
ressonância capaz naturalmente
de registrar e reproduzir
os
sons. A linguagem musical se limitaria a
fixar sob a forma de sinais
os
movimentos desses aparelhos colocados
no meio sonoro. A convenção que indicamos estaria então fundamen
tada na natureza e existiria virtualmente por inteiro desde que
um
único desses aparelhos existisse. Mas quando raciocinamos assim
esquecemos que
os
homens e mesmo
as
crianças antes de aprenderem
a música já ouviram tantas árias cantos. melodias que seus ouvidos
e suas vozes já adquiriram muitos hábitos.
Em
outras palavras
esses
aparelhos funcionariam desde há muito tempo e entre seus movi-
mentos há somente uma diferença de grau como se uns fossem mais
sonoros do que
os
outros ou como se
as
mesmas notas fossem ali
mais distintas. Porém as notas são diferentes ou antes elas estão
com-
binadas diferentemente. A dificuldade consiste precisamente
em
fazer
com que se tomem ou voltem a ser apatelhos idênticos dos quais as
peças se movimentem da mesma maneira e é preciso então partir
de
um modelo que não se confunda com nenhum deles .
•
Não existe somente a música dos músicos. A criança é embalada
docemente pelas canções
de
sua ama
de
leite. Ela repete mais tarde
os
refrões que seus pais cantarolam junto dela. Há canções de roda
como há cantigas de trabalho. Nas ruas das grandes cidades
as
can
tigas populares correm de boca em boca reproduzidas outrora pelos
realejos hoje pelos megafones.
s
melopéias dos comerciantes ambu
lantes
as
canções que acompanham
as
danças enchem o ar
de
sons e
de
acordes. Não é necessário que
os
homens tenham aprendido
mú-
sica para que guardem a lembrança de certas canções e de certas
me-
lodias. São niúsicos por isso? Entretanto se houvesse somente
uma
diferença
de
grau entre o homem que teconhece uma canção porque
a ouviu muitas vezes e o músico que a reconhece porque a leu outrora
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intensidade diferentes. Mas acontece a mesma coisa com as pala
vras elas também não mantêm qualquer analogia com as canções que
acompanham. Deixaremos de nos surpreender se observarmos que o
ritmo do mesmo modo que as palavras lembra-nos não só os sons
mas a maneira pela qual determinamos sua sucessão. Para as pró
prias palavras é talvez o ritmo que desempenha o principal papel.
Quando cantamos de memória geralmente não deixamos de encon
trar as palavras por que não nos lembramos o ritmo? Escandíamos os
versos agrupamos as sílabas duas a duas e quando queremos acelerar
o canto ou tomá-lo mais lento mudamos o ritmo.
Se é o ritmo que definitivamente desempenha aqui o papel prin
cipal toda a questão é então saber o que é o ritmo. Ele não existe
na natureza? Não imaginamos que
u
homem isolado possa sozinho
descobrir no espaço sonoro essas divisões rítmicas? e algum fenô
meno natural lhe sugerisse o ritmo ele não teria necessidade de re
cebê-Io dos outros homens. Mas os ruídos que nos vêm da natureza
e dela somente não se sucedem segundo uma medida ou uma cadência
qualquer. O ritmo é um produto da vida em sociedade. O indivíduo
sozinho não saberia inventá-lo. As cantigas de trabalho por exemplo
resultam da repetição dos mesmos gestos porém no conjunto dos
trabalhadores: aliás estes não prestariam o serviço que deles aguar
damos se os próprios gestos em si mesmos fossem ritmados sem eles.
O canto oferece u modelo aos trabalhadores agrupados e o ritmo
vem do canto em meio aos gestos. Supõe portanto um acordo coletivo
preliminar. Nossas línguas são ritmadas. l o que nos permite dis
tinguir as partes da frase e as palavras que sem isso
se
fundiriam
uma dentro da outra e nos apresentariam apenas uma superfície con
tínua e confusa sobre a qual nossa atenção não teria poder nenhum.
Somos desde cedo familiarizados com a medida. Mas é a sociedade.
e não a natureza material que a isso nos acostuma.
Esta sociedade é verdade o m p r ~ e n d e sobretudo homens que
não conhecem música. Entre as melodias e canções que ouvem e re-
petem e as sonatas ou sinfonias executadas por boas orquestras há
sem dúvida tanta diferença como entre o ritmo dos leigos e o com-
passo dos músicos. Suponhamos que uma pessoa sem educação mu
sical assista à execução de uma obra difícil. Nada reterá dela. Ela
se
lembrará das canções que parecem feitas para serem cantadas isto
é que se aproximam mais das que conhece. l assim que dc;stacamos
de uma sinfonia de u drama lírico simplesmente uma melodia uma
ária de dança uma ária de marcha que poderiam com efeito ser
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destacadas, e que pertenceriam naturalmente ao quadro das canções
que o público compreende, guarda e adota sem grande dificuldade.
Por que guardamos somente essa seqüência de sons e não as
outras? porque dela compreendemos de imediato o ritmo. Não
so-
mente porque é simples: mas nosso ouvido ali encontra movimentos,
um ritmo, um balanço que já conhece e que lhe é quase familiar.
Uma obra prende às vezes o interesse dos homens pelo que nela há
de
mais banal e grosseiro, ou antes porqúe não era tal como o artista
a compôs e voltou a sê lo porque o público dela se apoderou. No
dia em que a Cavalgada das Valquírias passou para o programa das
canções militares, ou quando foi cantado
l Eveil
u
printemps
com
as mesmas inflexões e com o mesmo espírito do que qualquer canção
sentimental, não é culpa de Wagner
.se
os ouvintes cultos não foram
capazes senão com muito esforço de considerar estas partes do ponto
de
vista
do
conjunto e de nele localizá-las novamente. O próprio
Wagner lembrava que no tempo da ópera italiana as pessoas vinham
ao concerto sobretudo para ouvir alguns trechos de bravura, feitos
para revelar os méritos vocais de algum tenor ou de uma prima-dona.
Durante o restante do tempo, a música era somente uma espécie de
adorno. Conversava-se, não se escutava mais nada. Wagner quis, ao
contrário, que o canto fizesse frente ao desenvolvimento musical em
seu conjunto, e que a voz humana fosse apenas um instrumento entre
outros. Não pode impedir o grande público de reter sobretudo de
sua obra os fragmentos que pareciam escritos para serem cantados.
No
início do concerto, quando reina o silêncio, desde os primei
ros compassos, encontra-se delimitado um espaço, dentro do qual não
somente nenhum ruído, mas mesmo nenhuma lembrança dos ruídos
de
fora não penetram mais. Músicos e ouvintes esquecem
as
melodias
e
as
canções que bailam geralmente na memória dos homens. Para
compreender a música que ouvimos, não é mais questão de se reportar
a esses modelos convencionais que a sOl iedade, de modo geral, sem
pre traz consigo, e não cessa de nos apresentar. Mas, a sociedade dos
músicos desenrola diante de nós uma espécie de fita invisível onde
são assinaladas divisões abstratas, sem relação com os ritmos tradi
cionais e familiares. Examinemos esse ritmo particular que não é
mais o da linguagem e dela não deriva.
O papel dessas divisões seria o de fazer reaparecer na memória
do músico ou da pessoa que o escuta e que conhece a música, a se-
qüência das notas em si mesmas. Como isso seria possível? Os com
passos representam somente intervalos de tempo idênticos. São qua-
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ou a lê atualmente numa pauta poderíamos pensar que basta ter a
mem6ria repleta de cantigas e de melodias para aprender música fa-
cilmente e ao preço de um parco esforço suplementar para ver espa
lhar-se
em
notas escritas
os
sons repetidos ou ouvidos. Mas não é
nada disso. Alguém que tenha ouvido muitas canções deverá concluir
sua educação musical para estar capacitado para decifrá-las. Não con
sagrará
menos
tempo e não despenderá menos esforço do que outra
pessoa qualquer que apenas tivesse ouvido e repetido um pequeno
número de cantigas. 1 possível que aquele tenha mais dificuldade
do
que o outro em assimilar a linguagem musical porque seus antigos
hábitos vocais não desapareceram ainda. Em outras palavras há duas
maneiras de aprender a reter os sons uma popular a outra acadê
mica e não existe entre uma e outra nenhuma relação. De que modo
nos lembramos de uma canção quando não somos músicos? Conside
remos o caso mais simples e sem dúvida mais freqüente. Quando
ouvimos
uma canção que acompanha palavras nela distinguimos tan
tas partes quantas forem as palavras ou elementos da frase. 1 porque
os sons
parecem ligados
às
palavras que são objetos descontínuos.
As palavras desempenham aqui um papel ativo. Com efeito acontece
freqüentemente que podemos r ~ p r o u z i r uma canção sem pensar nas
palavras que a acompanham. A canção não evoca as palavras. Em
compensação é difícil repetir as palavras
de
uma canção que conhe
cemos
bem sem
cantarolar interiormente. l provável aliás que
no
primeiro caso quando reproduzimos uma canção que antes cantáva
mos com
a letra
as
palavras estejam lá e sua ação
se
exerça ainda
que não as pronunciemos: cada grupo
de
sons correspondendo a uma
palavra forma um todo distinto e a canção é em seu conjunto como
uma frase.
Mas as
palavras em
si
mesmas e
as
frases resultam
de
convenções sociais que delas fixam o sentido e o papel. O modelo
segundo o qual analisamos está sempre fora de n6s.
Lembramo-nos por outro lado das canções ou melodias das
quais jamais escutamos a letra. Desta vez a canção e a melodia
fo-
ram analisadas segundo as divisões assinaladas pelo ritmo. Se alguém
bate com o dedo sobre a mesa de modo a reproduzir o ritmo de uma
canção que conhecemos podemos achar estranho que isto seja sufi
ciente às vezes para nos lembrarmos dela. Isto não passa no fundo.
da lembrança de uma melodia por meio das palavras que a acompa
nham. As batidas separadas por intervalos mais ou menos longos.
aproximados e precipitados isolados ou redobrados produzem sons
idênticos. Entretanto. eles evocam uma seqüência de sons de tom e
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dros vazios.
e
preciso que a seqüência dos sons seja estabelecida e
ela o é seja na pauta onde
as
notas são inscritas seja na canção atra
vés da qual chegam ao público através dos músicos.
Mas
também
é preciso que saibamos reproduzir esses sons ou entendê-los
de acor-
do com o compasso. Não basta para isso seguir
com os
olhos a
batuta do maestro ou imprimir a alguma parte de nosso corpo um
movimento rítmico. E preciso
se
exercitar preliminarmente
em
adap
tar a um compasso
as
combinações
de
notas mais freqüentes
ou
a
decompor cada seqüência de notas e nela encontrar
as
divisões
do
compasso conforme o que
se
executa ou o que se ouve.
Mas
nem
uma nem outra dessas operações é natural porque esse ritmo
em
si
mesmo e esse compasso não o são. O ritmo dos músicos
com
efeito
nada tem de comum com
os
outros ritmos. Estes correspondem a
ações que não são essencialmente musicais: como a marcha a dança
e mesmo a palavra que tem por objeto principal comunicar pensa
mentos e não reproduzir sons. O ritmo musical supõe pelo contrário
um espaço que é apenas sonoro uma sociedade
de
homens que
se
interessa somente pelos sons.
Dentro
do
espaço puramente sonoro homens
com
sensibilidade
auditiva muito desenvolvida distinguiriam nos sons muitas nuanças
e entre os diversos sons muitas relações que nos escapam. omo uma
das qualidades essenciais do som do ponto de vista musical é sua
duração e também a duração do intervalo que o separa
do
outro
se-
riam sensíveis a diferenças
de
tempos que não percebemos. Suponha
mos
que
os
seres assim dotados e que
se
interessam todos principal
mente pelos sons
se
aproximem e
se
associem para compor
execu-
tar e ouvir obras musicais. Para ser admitido nessa sociedade será
preciso ser capaz de aplicar instrumentos
de
medida
de
extrema sen-
sibilidade a todas
as
combinações de sons que podem ser encontradas
quer seja em relação à altura ao timbre à intensidade seja quanto
à rapidez de SQa sucessão e de sua duração. O ritmo e o compasso
serão submetidos dentro de um meio assim a regras muito mais res-
tritas do que nas demais sociedades onde
as
sensações musicais per-
manecem estreitamente ligadas e associadas
às
outras. Não há
moti-
vo aliás para objetar que essa diferença entre o ritmo popular e o
ritmo dos músicos é então apenas ue grau e não
de
natureza já que
aqui e lá medimos tempos e intervalos. Lá onde o compasso passa
para o primeiro plano pode haver outra diferença
do
que quanto
ao
grau de precisão que comporta e que
se
lhe impõe?
e
porque os .
ritmos aos quais nos acomodamos quando
se
trata da palavra e dos
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I
I
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movimentos não bastam
ao
músico. Ele vai procurar o ritmo não
fora dos fenômenos sonoros mas dentro da própria matéria musical
quer dizer nos sons que são percebidos apenas pelos músicos. Con-
venção fecunda e legítima sem dúvida que procura seguir de perto
a natureza já que as leis dos sons tais como eles
as
formulam têm
um fundamento físico mas convenção original já que não se guia
somente pelos dados naturais tais como são percebidos pelos homens
que não fazem parte da sociedade dos músicos.
Ainda que a música esteja assim completamente dominada por
convenções ela se inspira com freqüência é verdade na natureza. O
ruído do vento nas folhas o borbulhar da água o tonitroar do trovão
o ruído que faz um
e x ~ r i t o
em marcha ou uma multidão em movi-
mento
as
tonalidades que pode assumir uma voz humana
as
canções
populares e exóticas todos os abalos sonoros produzidos pelas coisas
e pelos homens passaram para as composições musicais. Mas o que
a música empresta
dos
meios naturais e humanos ela os transforma
segundo suas leis. Poderíamos crer que se a arte imita assim a na
tureza é porque dela retira uma parte
de
seus efeitos. Não é verdade
que algumas obras se construam sobre temas que não são propriamente
musicais
como
se
quiséssemos reforçar o interesse da música pela
atração do drama? Os títulos de tais composições permitem supor
que o autor quis despertar em seus ouvintes emoções de ordem poéti
ca evocar na imaginação deles imagens e representações.
Mas
isso
decorre talvez
do
fato de que a sociedade dos músicos não consegue
às vezes isolar-se da sociedade em geral e que a ela esteja sempre
ligada. Alguns músicos são mais exclusivistas e é entre eles que é
preciso procurar o sentimento daquilo que poderemos chamar de
música pura.
Analisemos então a hipótese de que o músico não deixa o círculo
dos músicos. Que se passa quando ele introduz um tema emprestado
à natureza ou à sociedade em uma sonata ou uma sinfonia? Primeiro
se esse motivo o deteve lá onde o encontrou é devido
às
suas quali
dades propriamente musicais. Ao passo que um leigo foi sensibilizado
por uma passagem numa sonata porque poderia ser cantada um mú-
sico
fixará sua atenção sobre uma canção numa festa popular porque
poderia ser adotada e figurar como tema numa sonata ou numa com-
posição orquestrada. O leigo isola a melodia da sonata. Inversamen
te o músico separa a canção das outras canções ou numa mesma can
ção separa a melodia das palavras e mesmo alguns compassos da
melodia inteira. Assim separada despojada desfalcada
de
parte
de
177
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sua substância a melodia vai ser agora levada para sociedade dos
músicos e logo se apresentará sob novo aspecto. Associada a outras
seqüências de sons fundida talvez a um outtO conjunto seu valor o
valor de suas partes será determinado por sua relações com esses
elementos musicais que lhe eram estranhos até então. e fizer o papel
de tema será desenvolvida conforme as regras puramente musicais
quer dizer dela será extraído o que estava sem dúvida oculto
mas
que somente um músico ali poderia descobrir.
e
desempenhar o pa-
pel do tema dará uma cor original a todas as partes da peça em que
aparecer e ele mesmo por sua vez será transformado mas de mudo
diferente por exemplo se for o refrão de uma canção que adquire
um sentido diferente segundo as palavras da estrofe que acaba de ser
cantada. Da alma musical assim extraída desse corpo é necessário
que dela se guarde apenas a marca que a evoque e faça pensar nela .
•
Para que a música isole assim os sons de todos os outros dados
sensíveis imaginamos às vezes que ela nos desligue do mundo exte
rior. Certamente os sons têm muito da realidade material. São fenô
menos físicos. Mas permaneçamos com
as
sensações auditivas porque
o músico não vai além delas. e a música vem de fora nada nos
obriga a levá-la em conta. Ela apresenta esta particularidade
en-
quanto as cores as formas e as outras qualidades da matéria estão
ligadas aos objetos os sons musicais se encontram em relação somen
te com outros sons. Como nada do que existe na natureza
se
asseme
lha às obras musicais logo imaginamos que elas escapam às leis do
mundo exterior e que são o que são em virtude do poder do espírito.
mundo para onde a música nos transportaria seria tão-s6 para o
mundo interior.
Porém examinemos isto mais de perto. Uma combinação ou
uma seqüência de sons musicais não nos parece desligada de todo o
objeto porque ela mesma é um objeto. Esse objeto existe é verdade
somente para o grupo dos músicos. Porém quem nos garante
..iempre
a existência de um fato de um ser de uma qualidade a não ser o
acordo que se estabelece a seu respeito entre
os
membros de uma
sociedade quer dizer entre os homens a que isto interessa? Não é o
indivíduo que tira de si e somente de si um tema novo uma com-
binação de sons que seu espírito criou do nada. Mas ele o descobre
dentro do mundo dos sons que a sociedade dos músicos é a única a
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explorar; é porque aceita suas convenções, e até mesmo porque delas
se compenetrou mais do que os outros membros, que é capaz de alcan
çá-las. A linguagem musical não é um instrumento inventado depois,
com vistas a fixar e comunicar aos músicos aquilo que um dentre
eles imaginou espontaneamente. Ao contrário, é essa linguagem que
criou a música. Sem ela não haveria socíedade musical, de músicos,
não haveria nem mesmo músicos, da mesma maneira que sem leis
não haveria cidade, não haveria cidadãos. Longe de nos isolar na
contemplação de nossos estados internos, a mú ica nos faz sair de nós.
Ela nos coloca numa sociedade bem mais exclusiva, exigente e disci
plinada do que todos os outros grupos que nos compreendem. Mas
isto é natural, porque
se
trata de dados precisos, que não comportam
nenhuma flutuação e que devem ser reproduzidos ou apreendidos com
total exatidão.
Schopenhauer, criticando a definição que Leibniz deu à música:
exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi lite
ralmente: uma operação de aritmética oculta feita
p r
um espírito
que ignora que conta , reconhece que ela é exata; porém acrescenta:
isto é apenas aparência, a vestimenta, o exterior da arte dos sons.
2
Po
deríamos do mesmo modo· objetar-nos que descrevemos exatamente a
memória do músico, no que diz respeito à técnica, mas que é preciso
distinguir entre a lembrança dos movimentos ou dos sinais, até mes
mo entre a lembrança dos sons enquanto que podem ser produzidos
por esses movimentos ou representados p r esses sinais, por um lado,
e a impressão determinada em nós pelos sons, seja porque os produ
zimos, seja porque os ouvimos, por outro lado. Tudo o que disse
mos
se aplicaria ao primeiro caso destes dois aspectos somente, e
pode-se admitir que para tudo o que supõe essencialmente o conheci
mento e a prática das regras da música, nossa memória depende, com
efeito, da sociedade dos músicos. Mas o sentimento musical, e mes
mo os sentimentos que aJllúsica desperta em nós, são completamente
outra coisa: ora, se não ocupam todo o espaço na lembrança de uma
audição ou de uma execução, passam ao primeiro plano; em todo o
caso, não podemos negligenciá-los, sob pena de reduzir a música, quer
se
toque ou
se
ouça, a uma atividade automática.
Quando um músico toma seu lugar numa orquestra, e encontra
diante de
si
uma partitura, a qual leu com freqüência, podemos dizer
que nada mudou, e que s mesmas notas serão reproduzidas na m s ~
m ordem e com a mesma rapidez: acrescentemos também que seu
desempenho será quase o mesmo, e que as gravações que registraram
179
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a primeira e a última execução não poderão facilmente se distinguir.
Diremos que ali temos propriamente o tipo da lembrança musical?
Mas ele compreende e somente compreende aquilo que dentro
da
memória refere-se a um mecanismo material o que pode ser fixado
sobre o papel ou na substância nervosa. Tudo isso
se
conserva
como
uma impressão ou um desenho como tudo o que é material e está
inerte. Mas a memória não retém nada além disso?
Quer
se
leia quer
se
execute não basta compreender
os
sinais:
um artista os interpreta à sua maneira inspirando-se em suas
dispo-
sições afetivas do momento ou de sempre. Tem seu próprio
tempe-
ramento ainda que em suas impressões puramente musicais como
em sua execução entre uma questão
de
originalidade e disso ele se
dá conta: como não evocaria por ocasião desta obra
ou
daquela
pas-
sagem as disposições particulares dentro das quais a ouviu ou a
executou e as sutilezas que deveria distinguir suas sensações musi-
cais das demais? Não será isolando-se dos músicos esquecendo que
faz parte de seu grupo e que obedece a suas normas que encontrará
a lembrança
dos
instantes em que esteve em contato com a maior
intimidade possível com um mundo que a música fazia por lhe tor
nar acessível?
Nada prova entretanto que a sensibilidade musical
em
suas
sutilezas aparentemente as mais pessoais isole-nos dos outros e nos
encerre em nós mesmos. A sociedade
dos
músicos se repousa sobre -
normas compreende homens. e uma sociedade de artistas; ela
se
interessa tanto ou talvez mais pelos dons musicais de
seus
membros
assim como pela técnica de sua arte. Ela bem sabe que as regras não
substituem o gênio.
Ao
mesmo tempo que as obras lembra aqueles
que
as
enriqueceram com acentos e modalidades novas e delas
au-
mentaram a substância musical seja porque tenham reencontrado
nelas a inspiração do autor seja porque tenham penetrado mais pro
fundamente em sua significação. Os músicos se observam
um
ao
outro comparam-se concordam com certas hierarquias sobre as admi-
rações e entusiasmos: há deuses da música santos sumo sacerdotes.
A mem6ria dos músicos está então repleta de dados humanos
mas de todos aqueles que estão em
relação com
os
dados musicais.
Não imaginemos que para elevar-se ou aprofundar-se o sentimento
musical deva separar-se da técnica e se
isolar de tudo aquilo que
se
passa dentro da sociedade dos músicos. Se o observarmos e reconhe
cermos se apreciamos e admiramos o temperamento ou o talento
de
um músico é porque em sua sensibilidade e
seu
desempenho encon
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tramos um dos modelos sempre presentes no pensamento daqueles
que
se
interessam pelos sons, e que realiza melhor, encarna com maior
sensibilidade as tendências do grupo. Ele é considerado como se esti
vesse acima dos demais por seu gênio musical, porém, é como se esti
vesse possuído por um demônio invisível, cujo espírito
se
apodera de
todos os músicos, mas que
se
deixa prender e dominar somente por
um pequeno número. Onde encontrá-lo, a não ser no coração do
grupo? Agora todos podem vê-lo, e reconhecê-lo, e reconhecer-se nele.
Beethoven, atingido pela surdez, produziu entretanto suas mais
belas obras. Será suficiente dizer que, vivendo dali em diante de
suas lembranças musicais, estivesse encerrado num universo interior?
Isolado, ele estava, todavia, apenas na aparência. Os símbolos da
música nele
se
conservavam, em sua pureza, os sons e as combinações
dos sons. Mas ele não os havia inventado. Era a linguagem do grupo.
Estava, na realidade, mais engajado do que nunca, e do que todos os
outros, na socIedade dos músicos. Jamais esteve s6. E é esse mundo
. pleno de objetos, mais real do que o mundo real, que ele explorou,
foi nele que descobriu, para os que o habitavam, regiões novas, mas
que nem por isso faziam parte do domínio deles, e on4e
se
instalaram
de imediato com pleno direito.
Porém, talvez, tenhamos da música uma concepção um pouco
limitada. Apesar de tudo, não é necessário ser iniciado nas regras
dessa arte, ser capaz de ler à primeira vista as notas,
p r
sentir pra
zer num concerto. Perguntemos a um músico o que ele imagina, e no
que pensa, quando ouve o desenrolar dos temas sinfônicos. Talvez
responda que· não pensa em nada, que lhe basta ouvir, que está per
petuamente no presente, e que todo o esforço de pensamento o dis
trairia daquilo que importa somente, isto é, a música.
E
o que nos
dirá também um ouvinte que acompanha um trecho que ouve sobre
a partitura. Mas há muitas outras pessoas que gostam de ouvir mú
sica porque lhes parece que podem pensar então mais livremente so-
bre qualquer assunto que as ocupe, quando então, sua imaginação
está mais ativa, quando estão menos distraídas em sua meditação ou
em
seu sonho. Stendhal dizia: para mim, a melhor música é aquela
que posso ouvir pensando naquilo que me faz mais feliz . E, ainda:
meu termômetro é este: quando uma música me alça a pensamentos
elevados sobre o assunto que me ocupa, qualquer que seja, essa mú
sica
é
excelente para mim. Toda música que me permite pensar n
músic é medíocre para mim.
3
Tristeza, alegria, amor, projetos, espe
ranças, qualquer que seja nossa disposição interior, parece que toda
8
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música
em
certos momentos pode mantê-la aprofundá-la aumentan
do sua i n t e n s i d a d ~ Tudo se passa como se a sucessão dos sons nos
apresentasse uma espécie de matéria plástica que não
tem
significa
ção definida mas que está prestes a receber aquela que nosso espírito
estivesse disposto a dar-lhe.
Como se explica esse desdobramento singular e que enquanto
nosso ouvido percebe os sons e o ritmo
do
compasso nosso espírito
possa insistir numa meditação ou uma imaginação interior que pare
ce desligada da terra? Será por que a música desviando nossa aten
ção de todos os objetos exteriores cria em nosso espírito uma espécie
de vazio de modo que todo pensamento que
se
apresenta a nós en
contre o campo livre? Será ainda por que as impressões músicais
se
sucedem como uma corrente contínua que nada pode deter e
nos
oferece o espetáculo de uma criação sempre renovada de tal modo
que nossos pensamentos são arrastados nessa corrente que temos a
ilusão que nós também poderíamos criar e que nada
se
opõe a nossa
vontade ou nossa fantasia? Esse sentimento original
de
livre criação
imaginativa explicar-se-ia antes pelo contraste entre os meios aquele
onde se
exerce geralmente a atividade
e
nosso espírito e aquele
onde nos encontramos agora.
O pensamento e a sensibilidade dizíamos
em
um músico que é
somente músico são obrigados a atravessar caminhos às vezes estrei
tos
e devem permanecer num espaço definido.
Os
sons obedecem
com efeito a um conjunto de leis singularmente precisas. Não pode
mos
compreender e sentir a música como músico a não ser na condi
ção de nos sujeitarmos a essas leis. Que
se
vá pelo contrário ao
concerto para experimentar esse prazer particular de pensar e
imagi
nar livremente: bastará que nos sujeitemos às leis da música apenas
para que tenhamos o sentimento de ter mudado de ambiente isto
é
para que nos deixemos embalar e envolver pelo ritmo. Escapamos en
tão pelo menos das convenções que pesavam sobre nós em outros
grupos que refreavam o pensamento e a imaginação. Fazemos parte
ao mesmo tempo de duas sociedades porém há entre elas
um
con
traste tal que não sentimos a pressão nem de uma
nem
de outra.
e necessário ainda que possamos nos manter nessa posição
de
equilí
brio que nos preocupemos demais com a música que façamos
um
esforço muitas vezes mal recompensado para compreendê-la ou en
tão estando assistindo a um concerto
que-
não possamos esquecer
suficientemente os aborrecimentos que queríamos deixar no grupo es
tranho à sociedade dos músicos
do
qual acabamos de chegar então
182
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perdemos este sentimento
de
liberdade. a mesma música que você
ouviu outrora, mas ela não produz mais o mesmo efeito sobre você,
e comparando sua lembrança com a impressão atual. você diz:
Era
só issol .
Haveria então dois modos de ouvir música, a atenção se concen
trando nos sons e suas combinações, isto é, sobre os aspectos e objetos
musicais, propriamente ditos, ou o ritmo e a sucessão de notas sendo
apenas um acompanhamento de nossos pensamentos que arrastam
em
seu movimento.
Este sentimento de liberdade, de expansão,
de
poder criador,
es
treitamente ligado ao movimento musical e· ao ritmo sonoro, podemos
ainda descrevê-lo em termos gerais. Mas nasce somente em ouvintes
sensíveis à música em si mesma. Certamente, estes, ao mesmo
tem
po que os músicos, ao menos em potencial, são homens, assim como
os músicos que compõem e que executam. natural que a emoção
que lhes é comunicada pelas seqüências e combinações de sons, tra
duza-se,
às
vezes, em seu espírito, em sentimento e concepções huma
nas comuns aos artistas músicos, aos outros artistas, e mesmo
ao
conjunto de homens sensíveis ou não, a tal arte. Leiamos novamente
o que escrevia sobre esse assunto Schumann, em
a
difícil questão de
saber
-até
onde a música instrumental tem· o direito de ir na repre
sentação
de
pensamentos e acontecimentos 4. Nós nos enganamos
certamente se acreditamos que os compositores pegam sua pena e o
papel com a modesta intenção de expressar isto ou aquilo, descrever,
pintar. Mas, não façam pouco das influências contigentes e das im
pressões exteriores. Geralmente, ao lado da fantasia musical, atua
inconscientemente uma idéia,
ao
lado do ouvido, o olhar, e este órgão,
com atividade constante, mantém entre os tons e os sons alguns con
to:nos que podem, à medida em que se desdobra a música, condensar
se e desep.volver-se em determinadas formas. Mais os pensamentos.
ou as formas, evocadas em nós ao mesmo temp.' que os sons, conte
nham elementos aparentados à música, mais a expressão da composi
ção será poética ou plástica E, ainda: Por que Beethoven não
ficaria sutpreso, em meio a suas fantasias, pelo pensamento da imor
talidade? Por que a memória de um grande herói vencido não lhe ins
piraria uma obra? A Itália,
os
Alpes, a visão do mar, uma ·aurora de
primavera, a música não teria realmente nada para nos dizer deles li.
Mais adiante: Na origem, a música podia expressar somente os esta
dos simples da alegria e da dor (maior e menor). As 'pessoas pouco
cultas têm dificuldade em imaginar que ela é capaz de traduzir as
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paixões mais especiais, e é isto o que lhes torna tão penosa a com
preensão de todos os mestres individuais (Beethoven, Fr. Schubert).
Mas acrescenta: "I penetrando mais profundamente nos misté
rios da harmonia que a música se tornou capaz de expressar
s
nuan
ças mais delicadas do sentimento . Diremos, do sentimento, sem mais,
ou de
um
sentimento tal que não possa senti-lo e expressá-lo, a não
ser
um
músico? Porque, repetimos, os músicos são homens também:
mas então, que eles possam passar
do
plano técnico ao plano huma
no, o essencial é que permaneçam dentro do mundo musical. I o que
deixa a entender, ainda, Schumann, Um músico culto estudará uma
Madona de Rafael com tanto efeito quanto
um
pintor uma sinfonia
de Mozart. Mais ainda:
para um
escultor, todo ator se torna uma es-
tátua imóvel,
para um
pintor todo poema é
um
quadro, e o músico
transmuta todo quadro em sons . Diremos, do mesmo modo, que as
concepções e os sentimentos se transmutam: como os evocaríamos
mais tarde, quer façamos parte
do
círculo dos músicos, seja por que
nos lembramos de ter penetrado e permanecido ali, senão reconsti
tuindo em torno de nós, pelo menos
em
pensamento, essa mesma
sociedade, com sua técnica, suas convenções, e também seus modos
de julgar e de sentir?
Voltemos à observação que foi nosso ponto de partida. Ela se
reportava ao papel dos sinais dentro
da
memória do modo como a
expusemos à luz no exemplo da música. Para aprender a executar,
ou
a ler à primeira vista, ou, mesmo apenas
para
aprender a reconhe
cer
e a distinguir os
s o n ~
seu valor e seus intervalos, os músicos têm
necessidade de evocar uma quantidade de lembranças. Onde se en
contram essas lembranças, e sob que forma elas se conservam? Di
zíamos que, se examinássemos seus cérebros, ali encontraríamos uma
quantidade de mecanismos, porém, que não se formaram espontanea
mente. Não bastaria, com efeito,
para
que aparecessem, deixar o mú
sico isolado em face das coisas, deixar agir sobre ele os ruídos e os
sons naturais.
Na
realidade, para explicar esses dispositivos cerebrais,
é necessário colocá-los
em
relação com mecanismos correspondentes,
simétricos ou complementares, que funcionem em outros cérebros, em
outros homens. Bem mais, uma tal correspondência não pode ser
con
cretizada somente porque se estabeleceu
um
acordo entre estes ho
mens mas uma afinidade assim supõe a criação convencional de um
84 ·
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sistema de símbolos ou sinais materiais, cuja significação
é
bem de-
finida.
sses sinais representam as tantas ordens dadas pela sociedade
dos
músicos a seus membros. São bastante numerosas, já que há uma
quantidade considerável
de
combinações
de
sons, e uma vez que essas
combinações formam elas próprias conjuntos, onde cada parte tem
um
lugar bem definido e determinado
no
tempo. Ora, os músicos po
dem
se
lembrar, depois de exercícios satisfatórios, das ordens elemen
tares.
Mas
a maioria dentre eles não poderia fixar
em
sua memória
as ordens complexas, aquelas que se compõem de uma seqüência mui
to complexa e extensa de sons. l por isso que eles têm necessidade
de ter sob os olhos folhas de papel onde todos os sinais e sua sucessão
se
encontram materialmente fixadas. Toda uma parte
de
suas
lem-
branças se conserva somente dessa forma, quer dizer, fora deles, den
tro da sociedade daqueles que, como eles, se interessam exclusiva
mente pela música. Porém, mesmo as lembranças que estão neles, lem-
branças das notas,
dos
sinais, das normas, encontram-se em seu cére
bro e em seu espírito somente porque fazem parte dessa sociedade,
que lhes permitiu adquiri-las; eles não têm nenhuma razão de ser
senão
em
relação
ao
grupo dos músicos, e
as
lembranças então
se con-
servam neles apenas porque fazem ou fizeram parte dele.
l
por isso
que podemos dizer que
as
lembranças dos músicos
se
conservam nu-
ma memória coletiva que se estende. no espaço e no tempo. tão longe
quanto sua sociedade.
Porém, insistindo ainda sobre o papel que desempenham os sinais
na memória musical, não esqueçamos que poderíamos fazer observa
ções do mesmo gênero para muitos outros casos. Os livros impressos.
com
efeito, conservam a lembrança das palavras, das frases, das
se-
qüências de frases, como as partituras fixam a lembrança dos sons
e das seqüências de sons. Numa Igreja, o padre e os .fiéis. ainda que
não cantem, lêem alto ou baixo conforme determinada ordem, os ver
sículos, frases e partes das frases que são como perguntas e respostas.
No teatro, os atores têm seus papéis como os músicos suas partituras,
e estes tiveram que aprendê-las de cor com ajuda de notas impressas;
se
as
palavras escritas não estão sob seus olhos eles as recordaram re-
centemente, talvez no curso das apresentações anteriores: aliás, o pon
to do teatro está lá, quer dizer, um representante da sociedade dos
atores, que lê no lugar deles e pode suprir a cada instante sua memó-
ria falha. Nesses dois casos, por razões diferentes, o objetivo da
s
ciedade não seria atingido se as palavras não fossem repetidas literal-
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mente se as respostas não seguissem as perguntas se os chistes não
interviessem no momento determinado.
No mais a linguagem da Igreja e do teatro é mais convencionàl
do que a linguagem comum: ela está podemos dizer elevada à
segun-
da potência. Porque não poderia ser inventada nem pelo homem iso-
lado nem pelo indivíduo da sociedade em geral. Não falamos na rua
nem mesmo na vida cotidiana como os artistas em cena ou os fiéis
numa assembléia de orações. Sem dúvida expressões emprestadas
de
diversos meios podem passar para a linguagem dramática ou cômica;
da mesma maneira acontece que em meio aos textos tradicionais
in-
troduz-se orações que têm outro caráter orações na ocasião de um
novo acontecimento orações locais orações para uma pessoa e quan-
do falamos por um momento a linguagem da nação da província ou
da família: Mas é necessário que tudo isso tome forma literária ou
edificante e tudo se passa como se no lugar de emprestar à sociedade
em geral novos meios
de
expressão o teatro e a igreja ali tivessem
simplesmente encontrado e retomado alguma coisa dos seus que es
tivesse extraviado. Por todas essas características a sociedade dos ato-
res como a dos fiéis se parece ao grupo dos músicos e descrevería-
mos da mesma maneira a memória coletiva aqui e lá.
Essa semelhança
se
relaciona em parte naquilo que mesmo
se
não ouvirmos no momento em que estamos nem cantos nem instru
mentos na Igreja nem no teatro a música teve entretanto e tem ainda
um grande papel nesta espécie de agrupamentos. Na realidade e
ape-
sar dessas analogias por mais reais e importantes que sejam há uma
grande diferença entre a sociedade dos músicos e todas as outras co-
munidades que utilizam sinais também e que exigem de seus
mem-
bros que eles repitam literalmente
as
mesmas palavras. Quando
as-
sistimos a uma peça de teatro por que perguntamos aos atores re-
produzem exatamente o texto impresso? e porque é o texto o autor
mais adaptado ao pensamento dele isto é; aos personagens que quis
colocar em cena dos caracteres e paixões nos quais nos quis fazer
entrar.
As
palavras
os
termos
os
sons aqui não têm
um fim
em
si
mesmos: são as vias de acesso ao sentido aos sentimentos e às idéias
expressas ao meio histórico ou
às
imagens delineadas quer dizer
àquilo que mais importa.
e
nisso que nosso pensamento
se
prende
isso que evocamos quando nos lembramos de ter assistido a essa
peça. Mas então não será necessário que lembremos das próprias pa-
lavras que ouvimos. Temos outros meios
de
conservar através da me-
mória a lembrança daquilo que então experimentamos.
Em
outras
pa
186
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NOTAS DE REFERtNCI
Prefácio (Notas do Autor)
1.
Acrescentemos também, o nome de Robert Hertz, morto na guerra
de
1914, cuja "Contribution à un l tude sur la Répresentation Collective dela
Mort" ("Contribuição a um estudo sobre a representação coletiva
da
morte")
(L année sociologique,
1905-1906)
abria uma pesquisa análoga.
2. Ver sobre
esse
assunto o nosso
Durkheim
(Presses Universitaires
de
France).
3
Georges Gurvitch, La
vocation actuelle de la sociologie (A ocação
atual da Sociologia); voI. (Presses Universitaires
de
France).
4. Mas é também muito
interessante
saber por que razão a experiência
(a experiência dos intelectuais) é
em
certos momentos levada a procurar sua
verdade
em
uma identificação da existência na linguagem. Essas estreitezas
são aquelas mesmas da experiência que
se
limita e
se
reduz "aos seus míni
mos".
5. E possível que o "jargão" filosófico tenha sido
um
protesto contra
a miséria conceptual da filosofia francesa: as críticas de Yvon Belaval e
J.
F. Revel são pertinentes e fundamentadas.
6. Cf. George Gurvitch, Dialectique et sociologie (Flammarion, edit.).
Ed.
Bras. Dialética e Sociologia. São .Paulo, Vértice, 1988.
7. Gilles Deleuze viu muito bem que, em Proust, a lembrança era antes
uma angústia diante daquilo que estava perdido e que não se podia
mais
reviver,
se
não
em
imagem:
Proust et les signes
(Presses Universitaires
de
France).
8. Henri Lefebvre esboçou uma pesquisa desse gênero
em
sua
Critique
de la
vie quotidiene (Critica da Vida Cotidiana).
Introdução (Notas
J. M.
Alexandre)
1. Foi, desde 1932, correspondente da Academia das Ciências Morais e
Políticas. Desde 1935, membro
do
Instituto Internacional
de
Estatística. Desde
1938,
presidente
do
Instituto Francês
de
Sociologia. Desde
1943,
vice-presidente
da Sociedade de Psicologia Participou em Genebra no B.I.T.,
em 1936,
como
delegado à Conferência dos Estatisticos do Trabalho;
em
1937, no S.D.N.,
como especialista no Comitê misto sobre a alimentação dos trabalhadores, etc.
Em
1944, alguns meses antes de sua deportação, veio a ser nomeado professor
de
psicologia social no College
de
France.
88
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MEMÓRI COLETIV
MAURICE HALBW ACHS
Este livro póstumo traz um acento que ultrapassa a socio
logia 'clássica', porque nele encontramos os elementos de uma
sociologia da vida quotidiana ou mais precisamente, as pressu
posições que permitiriam à análise sociológica examinar
as
si-
tuações concretas nas quais se acha implicado o homem de cada
dia na trama da vida coletiva.
Essas situações não são simples recortes dentro
da
expe
riência: elas colocam em causa os papéis sociais e reativam o
dinamismo parcial dos 'meios efervescentes'. Retirando do tem
po e da memória) seu privilégio de
dado
imediato'
dá
cons
ciência, despojando-o de sua 'essência' platônica, a sociologia