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A MACROFÍSICA DO PODER - GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIA PINHEIRO - 2009
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A MACROFÍSICA DO PODER
GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIA PINHEIRO
2009
2
A Michel Foucault, André Luiz de
Sousa Costa, Valdemar Menezes,
Adísia Sá, Sílvio Braz Peixoto da Silva,
Paulo Bonavides, Raimundo Bezerra
Falcão, Francisco Gérson Lima
Marques, Fayga Silveira Bedê, Maria
Vital, Luciana Dias Belchior, Rochele
Façanha e Erivaldo Jr., Erivaldo e
Graça Façanha e seus demais filhos,
Élber Bezerra de Menezes, Alberto
Cordeiro, Renata Andrade, Afro
Lourenço, Luciano dos Livros, Lucinha
da limpeza, Adriano que limpa os
carros, Martônio Mont’Alverne, Ana
Paula Araújo, Amélia Rocha, Jorge do
elevador, Carlinhos do ar-
condicionado, Judicael Sudário de
Pinho, Alcides Saldanha Lima, Agapito
Machado Jr., Luiz Gerardo de Pontes
Brígido, Mirella Aderaldo Martins
Rodrigues, Geraldo Saldanha, Eneida
Maria de Aguiar Saldanha, Edna Maria
de Aguiar Saldanha, Nakeida Maria de
Aguiar Saldanha, Virgílio Távora,
Carlos Virgílio, José de Albuquerque
Rocha, Ivan garçom, Suzana Frota,
Enilda Frota, Maestro Frota, Toinha
3
Frota, Denis Teixeira, Geraldo Gomes
de Azevedo Filho, Riane Azevedo,
Ricardo Azevedo, Dijalminha Teixeira,
Fabiana Bastos, Michelon Rodrigues,
Águeda Passos Rodrigues Martins,
José Maria de Melo, Ernani Barreira
Porto, José Arísio Lopes da Costa,
Júlio Carlos de Miranda Bezerra,
Washington Oliveira Dias, Juraci
Mourão, Tiago e Caio Asfor Rocha,
Ana May Brasil, Vicente de Paula
Aguiar, Edílson Baltazar Barreira Jr.,
Júlio César Fortaleza de Lima,
Vasconcelos “Assessôro”, Francisco
Soares Pinheiro, Pery Brasil, James
Young, Narlon Magalhães, Cléssio
Magalhães, Salete Pinheiro
Magalhães, Conceição do Xepão,
Crisóstomo Alves, Márcio Moreira,
Sany Rodrigues, João Alberto Mendes
Bezerra (e Jr), Ademar Mendes
Bezerra, Nacile Daud Jr., Ivana Carla,
Ferdinand Lassale, Emmanuel Joseph
Sieyès, Friedrich Müller, Peter
Häberle, Konrad Hesse e José
Jakcson Coelho Sampaio. Muito
obrigado.
4
TRIBUTO AOS HOMENAGEADOS
5
CALMA OU TORPOR
Nada é igual ao torpor desses trôpegos
dias quando, ao peso das cãs de antigas
invernias, o tédio, essa morna falta de
curiosidade assume as proporções da
própria eternidade.
Baudelaire
Nada em dor se assemelha ao sonho morto
não publiquei meus versos nunca fiz loucuras
nada tenho feito que de mim se fale
só escrevi mormaço inquietação segredos
toda a minha juventude foi gasta na abstrata dimensão onde rolam os
pensamentos
eu era a própria solidão personificada
era o próprio torpor de membros entanguidos
era o espaço imerso em letargia bíblica
mas subsistia o potencial da semente maltratada
a explosão do germe pela terra triste
é igual a gestação do sol pela noite
nada é igual ao langor dos dias de preguiça
nada é igual ao calor dos dias de revolta
(Um Jeito de Ver: anotações, José Jackson Coelho Sampaio)
6
I
A MICROFÍSICA DO PODER EM EXPANSÃO
7
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem
poder (não é – não obstante u mito de que seria necessário esclarecer
a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das
longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A
verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir
os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona
uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para
a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de
dizer o que funciona como verdadeiro.
(A Microfísica do Poder-- Michel Foucault).
Ora, se quisermos saber o que é conhecimento, não é preciso nos
aproximarmos da forma de vida, de existência, de ascetismo, própria
ao filósofo. Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber
o que lê é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos
aproximar, não dos filósofos mas dos políticos, devemos compreender
quais são as relações de luta e de poder. E é somente nessas
relações de luta e de poder na maneira como as coisas entre si, os
homens entre si se odeiam, lutam , procuram dominar uns aos outros,
querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que com
compreendemos em que consiste o conhecimento”.
(A Verdade e as Formas Jurídicas, Michel Foucault).
8
Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive
com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um
intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo,
muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo
hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da
Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da
interpretação da Constituição.
(Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição, contribuição para a interpretação pluralista e
“procedimental” da constituição, Peter Härbele).
9
II
A PRODUÇÃO SOCIAL DA LOUCURA
10
Poder e narcisismo estão necessariamente interligados (Elias Canetti
fala, por seu lado, em Massa e Poder, que também poder e paranóia
são inseparáveis). Mas não só de Narciso vive a sociedade. O que os
esses autores ignoram é que para haver um inflamento narcísico em
certas individualidades é necessária a presença do outro pólo, que
praticamente fornece o pendant para sua expansão: o inflamento
superegóico. A tendência da sociedade industrial – especificamente no
pós-guerra – é marcantemente a de estimular o narcisismo dos
dominados, como forma de compensação simbólica à redução de seu
poder real e de sua importância na sociedade de massas. Diante da
insignificância do homem moderno, cujo destino, ideais de vida,
aspirações afetivas etc são já pré-traçados pela inexorável lógica do
social, o narcisismo forjado pelo consumismo e pela
pseudoparticipação política dá uma espécie de gratificação
compensatória.
(A Produção Social da Loucura, Ciro Marcondes Filho).
Todo o poder, toda a participação estão nas mãos de uma pequena
elite instruída. Essa elite é alfabetizada, educada, bem alimentada e
segura, diferindo portanto radicalmente da ampla maioria dos outros
cidadãos, praticamente uma raça diversa. As Massas reconhecem
isso e também aceitam o monopólio de poder da elite, e não ser que
algum abuso intolerável acarrete uma revolta desesperada, elas
aceitarão suas políticas. Também aceitarão uma mudança no governo,
seja pelos meios legais ou não. No fim das contas, trata-se apenas de
outro grupo de “eles” tomando o poder.
(Golpe de Estado: um manual prático, Edward Lttwak).
11
Dizem que Oscar Niemeyer, antes de transportar a estátua da deusa
Themis de Ramanonte para Brasília, tomou ciência de um fato
inusitado sobre a referida divindade, revelação feita diretamente por
um oráculo fidedigno, que também lhe assegurou que quem
arquitetasse uma cidade para Juscelino no meio do Planalto Central
viveria mais de duzentos anos.
Na verdade, o velho oráculo avisou ao Arquiteto brasileiro que
tomasse cuidado ao importar cegamente artefatos gregos, pois estes
muitas vezes estavam prenhes de vícios, que deixavam para se
manifestar na casa do importador.
Segundo o mesmo oráculo, foi assim com o jeitinho, invenção de Zeus
para atender a um pedido de seu filho Hércules e quebrar uma
condenação imutável imposta ao amigo Prometeu, mas que o povo
brasileiro acredita ter inventado.
No que dizia respeito especificamente a Themis, o oráculo lembrou a
Niemeyer que ela era um Titã legítimo, deusa muita antiga, filha do
Céu e da Terra, e que, mesmo assim, tinha permanecido alheia aos
dez anos do grande conflito político entre os seus e aquele que seria o
novo senhor dos deuses: Zeus.
Esse alheamento tinha sido tão conveniente para Zeus que este
resolvera desposar a Deusa, nunca desprezando os seus conselhos,
mesmo depois do divórcio.
12
Para bom entendedor meia palavra basta, mas, Niemeyer, alegando
estar cumprindo ordens de um certo poder invisível, mandou colocar a
estátua da deusa Themis em plena praça dos Três Poderes, mesmo
sabendo que ela encerrava uma propensão genética a se mostrar
alheia aos grandes conflitos políticos.
Narram os entendidos que a influência dessa estátua foi sentida em
toda a América Latina, principalmente quando, em 1964, se instalou
no País uma terrível ditadura militar, que sufocou a democracia das
quatro cores vivas com os tufos de sangue que saíam da juventude
torturada.
Para manter suas origens gregas, a estátua de Themis não se insurgiu
contra o golpe de Estado, ficando os passarinhos que a rodeavam em
absoluta liberdade para vivenciar o pluralismo intelectual sempre tão
conveniente aos deuses, mandando às favas os escrúpulos dos
outros.
Contam os mais experientes que o chefe da falseta golpista foi
pessoalmente visitar a respeitada estátua, justamente para lhe
assegurar vitaliciedade em troca de seu genético alheamento,
providência que lhe tinha sido recomendada expressamente por um
professor de Georgetowm, autor de um dos imprescindíveis manuais
práticos de golpe de Estado lidos por todos os candidatos a ditador do
mundo conhecido.
13
Numa evolução tupiniquim das tendências da estátua grega, assistiu-
se no País à mais bem elaborada representação de normalidade de
que já se teve notícia em todos os tempos, pois o grego deixou-se
tomar pelo partido das fardas verde-oliva e dos paletós escuros e
passou até a libertar os filhos de generais presos, só para provar que
os pais deles estavam prendendo mesmo qualquer um, legitimando
com sua conduta o sistema implantado na marra, exatamente como
recomendava um dos manuais há pouco referenciados, cuja edição foi
proibida por Adolf Hitler na Alemanha, por ser muito perigosa até para
ele próprio.
Foi um descalabro anunciado, pois, afinal, Niemeyer tinha trazido a
estátua sabendo de seus defeitos íntimos. Em sua defesa, o Arquiteto
invocou novamente as ordens de um tal poder invisível, que ele dizia
existir na mesma praça dos Três Poderes erguida no centro de
Brasília.
O tempo passou e uma doença do esquecimento tomou conta de
todas as gerações seguintes ao alheamento da estátua grega, que
retomou todo o seu prestígio, sem precisar sair do lugar, simplesmente
esperando a chuva terminar de cair.
Essa chaga terrível do esquecimento, entretanto, foi tão avassaladora
que a própria deusa Thémis se esqueceu de recolher a barra de sua
imensa toga de concreto, fato que foi suficiente para ensejar um
fenômeno típico da modernidade política do País, o estacionamento
de Hilux.
14
Com efeito, lá para as bandas do Ceará, um Estado repleto de
vaidades que priorizam exclusivamente os veículos da Toyota, um
jovem cheio de vazio existencial, feliz por já ter alcançado os seus
maiores objetivos na vida, que eram possuir uma Hilux e um
apartamento de grife, duvidou de um velho professor de Processo Civil
que lhe havia assegurado que no País tinha existido um regime de
sangue apoiado pelo alheamento da estátua de Themis.
O preocupante jovem feliz, embriagado com a sua essência hiluxiana,
sempre tão imponente e refrigerada, duvidava mesmo até da
existência do holocausto, dado ao incontável número de sites na
internet assegurando que o massacre dos judeus não tinha passado
de uma montagem fotográfica dos Aliados. Imagine, então, o que
pensava da psiquê de uma estátua de concreto, que nunca tinha saído
do lugar.
Para o jovem feliz, estátuas não eram capazes de atitudes políticas de
alheamento, nem mesmo de imparcialidade, pois não passavam de
projeções de concreto e aço, sem nenhuma interferência na realidade,
a não ser estética, que, intimamente, era a única que lhe despertava
interesse no momento.
Preocupado com o alheamento do jovem feliz acerca do alheamento
da estátua grega, o velho professor propôs um desafio ao estudante,
que intimamente também lucubrava ingressar na magistratura para
15
assegurar a manutenção de sua obra, composta por uma Hilux e um
apartamento de grife.
Foi, então, que o Velho Mestre, sabedor da tendência natural do ser
humano de abusar do poder, sugeriu uma viagem do jovem feliz até
Brasília, para que este estacionasse a sua Hilux bem na barra na toga
da estátua da deusa Themis, só para ver como a vaidade do titã ia se
manifestar muito além do alheamento político.
De bom coração, como o são todos os jovens antes de se tornarem
arbitrários pelo exercício vazio do poder, o estudante rumou para o
Planalto Central e, literalmente, estacionou a sua Hilux sobre a barra
da toga da estátua de concreto, que, sem pensar duas vezes, sacou
de sua espada e decepou a orelha direita do jovem feliz, pois reputou
inadmissível a bravata de quem lhe tinha sujado as vestes da
imparcialidade.
O desespero do jovem feliz foi tão grandemente divulgado que um
famoso pintor holandês chegou a cometer o mesmo ato de mutilação
só para se solidarizar com o sofrimento do brasileiro.
Uma vez devidamente socorrido, o jovem, que até então era feliz pôde
verdadeiramente acreditar na existência da psiquê e na força das
estátuas, o que o fez questionar no meio da praça dos Três Poderes a
razão de tão severo castigo para um simples delito de trânsito.
16
Então, a estátua da deusa Themis, transformada pela culpa e pelos
muitos anos de chuva e sol do Brasil, contou-lhe a mais
impressionante história que já se ouviu da boca de uma escultura de
concreto, acerca de um poder invisível que tinha se alojado bem
debaixo de sua saia.
Segundo a estátua, bem antes de sua chegada ao Brasil, Alexander
Graham Bell, grato a Dom Pedro II por este o ter ajudado na Filadélfia
a propagar a invenção do telefone, inventou uma máquina de observar
os outros sem ser visto, que o Imperador logo mandou instalar no
Brasil e resolveu chamar de poder moderador.
A invencionice era muito interessante, pois permitia a Dom Pedro II
controlar todas as intimidades políticas do Império de dentro de uma
sala secreta na Quinta da Boa Vista, sem que sequer fosse notado por
alguém.
E foi assim durante muitos anos, até o inevitável dia em que uma
escrava anônima foi mandada inocentemente pela princesa Isabel
para limpar os controles da máquina de observar oculta no palácio,
numa dessas viagens de Dom Pedro II, em que o Imperador se viu
obrigado a explicar por carta à Princesa o funcionamento do poder
moderador, revelando o segredo até então bem guardado, em prol da
pacificação política do País e do bom êxito da interinidade de sua filha.
Impressionada com a visão que tivera sobre todo o mundo político, a
curiboca, parente legítima da epilepsia de Machado de Assis, copiou
17
minuciosamente os mecanismos da engenhoca onipresente,
entregando as suas anotações a um ascendente de Darcy Ribeiro,
que teve de passar uns dez anos enfurnado numa tribo amazônica só
para ver se conseguia entender a letra da nativa, que também era
médica.
Quando Dom Pedro II descobriu, porém, que tinha sido copiado, deu
fim a todo o equipamento sofisticado que lhe garantia onipresença,
fato que não foi suficiente para aplacar a sede de poder do Marechal
Deodoro, que, sem povo nenhum, sozinho, resolveu proclamar a
república e banir o imperador do Brasil.
Não se tem notícia de que os republicanos tenham operado
novamente os olhos do moderador, mas sabe-se que os rabiscos da
índia escrava anônima foram decifrados por uns hackers negros da
República dos Palmares, que resolveram nunca mais permitir que na
política um só olhasse todos sem ser visto.
Na verdade, os negros de Palmares inverteram os pólos da tecnologia
do Imperador e criaram uma sala de observação democrática para o
povo, que, confortavelmente postado num sofá, em praça pública,
podia se sentar em frente a quatro aparelhos de televisão e monitorar
simultaneamente o Senado, a Câmara, o Supremo Tribunal e a
Presidência da República.
A nova invenção foi um sucesso imediato, mas não demorou muito
para o povo perceber que realmente todos os segmentos políticos
18
podiam ser observados diretamente por meio da invenção invertida,
exceto o Poder Executivo, cuja tela da televisão ficava sempre cheia
de chiados e riscos, sem nenhuma imagem real, nunca se sabendo ao
certo o que o Presidente da República estava fazendo de verdade, já
que não havia câmeras do gabinete dele. Parece que só os plenários
é que são verdadeiramente democráticos.
O povo percebeu que deputados, senadores e juízes se expunham em
praça pública para defender seus posicionamentos e acordos políticos,
embora muitas vezes fossem eles extremamente questionáveis ou
simplesmente sem fundamentação nenhuma, peste impossível de se
curar no coração dos arbitrários e dos irresponsáveis.
A Presidência da República, contudo, não se deixava ser vista em
seus movimentos, pois nenhuma tecnologia moderna conseguiu
publicar ao vivo os segredos e as companhias dessa distinta senhora.
Lá os olhos do povo não entravam, os radares não captavam sinais de
transparência, já que só era possível enxergar o que lhe era
volitivamente dado a ver, mesmo assim depois dos artifícios de uma
equipe inteira de maquiadores.
Confrontado com essa realidade inexorável e verdadeira, o Poder
Executivo, matreira e hipocritamente, veio se esconder numa caixa-
preta que ele mesmo trouxe e colocou debaixo de minha toga de
concreto, explicou a estátua incomodada, tentando desde então
influenciar minhas condutas, mas sem querer ser visto, exercitando
escondidamente a sua capacidade eterna de exercer domínio sobre
19
todos os demais poderes da República, fingindo que só controla o
dinheiro dela.
Foi essa presença incômoda, invisível e renitente por debaixo de
minha toga de concreto que me fez cortar a sua orelha direita, meu
prezado jovem, para que você jamais se esqueça de que o essencial
continua sem ser visto pelos olhos e que o peso de sua Hilux pode
comprometer o futuro de novas gerações desavisadas, que não
acreditam em estátuas que falam, têm remorso e cortam a carne dos
despolitizados.
(Do Severo Castigo Aplicado Ao Jovem Feliz Que Estacionou Uma
Hilux Na Barra Da Toga Da Deusa Themis Em Plena Praça Dos Três
Poderes E De Como Um Poder Invisível Lá Foi Descoberto, Gustavo
Henrique de Aguiar Pinheiro).
20
III
O HOLOCAUSTO E O DESAPARECIMENTO DO POVO
21
Se é pelo dedo que se conhece o gigante, podemos dizer que há um
modo empírico de Deus se fazer conhecido, que é o próprio mundo
por Ele criado (senão, quem conheceria para aquém das esferas da
pura espiritualidade ou do colmos angelicais?). Por igual, há um modo
jurídico de o povo se fazer conhecido, que é a Constituição por ele
criada, início lógico de todo o Direito Positivo.
Para fundar o universo, Deus faz o que é próprio da potência em que
Ele consiste: impõe a Si mesmo as próprias condições de “trabalho”
(evidente que o vocábulo trabalho é usado por analogia com as
empreitadas humanas de edificação de algo a partir de um imaginário
ponto zero). Para fundar o Direito, o povo,na mesma pegada, se
autoimpõe as coordenadas de atuação legiferante. É assim que se
movimenta ou se materializa a potência, que não precisa mais do que
sua própria realidade para instaurar as relações que pretender.
(Teoria da Constituição, Carlos Ayres Britto).
Mas quem é o povo?
Quem desesperadamente clama por justiça, ou por saúde? Ou
somente aquele que reclama por sua dignidade?
Seriam ambos um só povo, cuja autonomia foi mitigada e dominada
para que ele não tivesse chance de eleger o seu próprio deus?
Consultórios, hospitais, gabinetes, assembléias e tribunais se
assemelham até nisso?
22
O povo é uma espécie de “paciente político”, as regras da medicina e
do direito dominam a sua ordem, em seu corpo social, exatamente
como o poder médico se lança sobre o individuo, corpos (social e
individual) de uma mesma identidade, sujeitos que não podem se
deixar fazer objetos, pois o sangue da democracia corre nas veias da
autonomia.
(Escritos de Psicologia Política, Gustavo Henrique de Aguiar Pinheiro,
Texto ainda não publicado).
A idéia fundamental de democracia é a seguinte: determinação
normativa de um tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo. Já
que não se pode ter o autogoverno, na prática quase inexeqüível,
pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes
com base na livre competição entre opiniões e interesses, com
alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento
político. Todas as formas da decisão representativa, arredam a
imediatidade. Não há nenhuma razão democrática para despedir-se
simultaneamente de um possível conceito mais abrangente de povo:
do da totalidade dos atingidos pela norma: one man one vote. Tudo o
que se afasta disso necessita de especial fundamentação em um
Estado que se justifica como “demo”cracia.
(Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia, Friedrich
Müller)
23
IV
O COMPORTAMENTO GLOBAL DA MULTIDÃO DE
MOLÉCULAS DO CORPO MICROFÍSICO
24
O poder oculto é um problema que sempre me atormentou. E, no
entanto, é um problema que a literatura acadêmica subestima. Chamei
a atenção de meus amigos cientistas políticos sobre isso inúmeras
vezes. O poder tende a esconder-se. O poder é tanto mais potente
quanto menos se deixa ver. Deus é tanto mais potente quanto mais
invisível for. É aquele que vê e não é visto; que vê a todos e ninguém
o vê. Pense no Panopticon, de Bentaham, ou seja, na idéia de um
edifício no qual o guarda que está no centro tudo via e não podia ser
visto. Esta idéia de poder ver ser visto é certamente o emblema do
poder de Deus.
(...)
A tendência do poder para imitar a potência de Deus sempre existiu.
Pense no que é a democracia em relação à autocracia. A democracia
é a tentativa de tornar o poder visível a todos; é, ou deveria ser, “poder
em público”, ou seja, aquela forma de governo em que a esfera do
poder invisível está reduzida ao mínimo. Como poderiam ser eleitas
pessoas que não se deixam ver? A autocracia não pode dispensar o
“gabinete secreto”, que é exatamente o lugar no qual o poder é o
menos visível possível. As decisões devem ser tomadas em segredo,
porque o povo não deve conhecer, não deve saber.
(...)
25
As decisões de poder devem ser secretas, ainda que o poder, para ser
poder, deva de algum modo manifestar-se. Pense nas grandes festas,
nos arcos do triunfo, na pompa ostentada, na carruagem real que
passa em meio à multidão. O poder se esconde e ao mesmo tempo se
manifesta para tentar atrair a atenção, para seduzir o povo com a
pompa e o fausto. È invisível, mas tem necessidade de se fazer ver.
Com o segredo, o poder busca inculcar temor, com a pompa e o
fausto, o poder tenta seduzir.
(Direito e Deveres na República: os grandes temas da política e da
cidadania, Norberto Bobbio e Maurizio Viroli).
Kant afirma que o Iluminismo consiste na saída do homem do estado
de menoridade que ele deve imputar a si mesmo e que na base do
Iluminismo a mais simples de todas as liberdades, a liberdade de fazer
uso público da própria razão: “O público uso da própria razão dever
ser livre (...), e apenas ele pode realizar o Iluminismo entre os homens
(Kant). Conduzindo às lógicas conseqüências essa afirmação,
descobre-se que são derrubada as interdições tradicionais impostas
como proteção dos arcana imperii . Para o homem que saiu da
menoridade, o poder não tem, não deve mais ter, segredos. Para que
o homem que chegou à maioridade possa fazer uso público da própria
razão é necessário que ele tenha um conhecimento pleno das
questões de Estado. Para que ele possa ter pleno conhecimento das
questões de Estado, é necessário que o poder aja em público. Cai por
terra uma das razões do segredo de Estado: a ignorância do vulgo,
que fazia Tasso dizer a Torrismondo: “Os segredos dos reis ao néscio
vulgo bem confiados não estão”. Cabe a Kant o mérito de ter exposto
26
com máxima clareza o problema da publicidade do poder e de ter-lhe
dado uma justificação ética.
(Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos,
Norberto Bobbio).
EPÍLOGO PROVISÓRIO
A escola italiana de Ciência Política com as obras de V. Pareto, G.
Mosa, e R. Michels trazem para a ribalta da Ciência Política a
pertinência das explicações psicológicas e psicossociais. O
organicismo e o darwinismo social, com nomes como H. Spencer, P.
Lilienfield, A. Schaffle, R. Worns, J. Novicov e ainda I. Gumplowicz, G.
Ratzeenhofer, A.W Small, E. Oppennheimeir, bem como a escola
antrorracial com J. A. Ammom e V. de Lapouge, de entre outros,
troxeram a implicação biopssicológica pra o domínio da explicação
política. Houve nestes primórdios excesso de confiança e óbvios
entorse nas aparências e nas <demonstrações> pretendidas, contudo
a relção entre o mundo psíquico estava lançada.
A Etologia, de êxito grademente tributário às obras do Dr. Desmond
Morris, reabilita esta relação pelo prisma do comparativismo
comportamental de espécies distintas, chamando do limbo a relação
entre a política e as vidas biológica e psicológica para o qual havia
sido postergada, na II Guerra Mundial, pela derrota do nazismo que
servira criminosamente daquela orientação acadêmica.
27
As obras sobre Psicologia Social de Gabriel Tarde, sobre as leis das
imitação, de F. E. Giddings, de A. W. Smal, de E. A. Ross e da grande
maioria dos sociólogos norte-americanos consagraram este estudo,
unindo de sobremaneira as investigações da psicologia colectiva e da
sociologia.
A célebre obra de Gustave Lê Bom, A Psicologia das Multidões, foi
livro de cabeceira de Lenine, Trotski, Staline, Hitler, Mussolini, Salzar,
Mão e De Gaulle, tornando-se um clássico de referência. Da
Psicologia Colectiva (v.g. Pierre Manoni) passa-se à Psicologia
Política que se ocupa do estudo em áreas relativas a mecanismos de
governação, comunicação de massas, marketing político e eleitoral,
liderança política, religião e política, contracultura e violência política,
dinâmica de grupos, entre tantos mais.
A obra psicoanalítica de Sigmund Freud criou uma verdadeira escola
de Psicologia (com nomes como A. Adler, C.G. Jung, M. Klein, E.
Fromm, H.S. Sulivam, D.W Winnicott) gerando, entre outras
novidades, os estudos de psico-história de reconstrução do <eu
interno> de grandes personagens políticas da humanidade, de forma a
expor, a par de sua biografia evidente, a respectiva biografia latente.
Não tendo ainda conquistado, em absoluto, lugar ao sol no elenco das
ciências políticas, a Psicologia Política para lá se encaminha a passos
acelerados, até porque a transformação do marketing político numa
disciplina vital para a continuidade das democracias liberais do século
XXI assim o obriga.
28
A persistência das suas análises e síntese fará com que, a breve
trecho, se transforme num domínio fundamental de explicação para o
estudo do comportamento político e, portanto, das ideologias, quer ao
nível individual, quer colectivo.
(Ciência Política: Estudo da Ordem e da Subversão, Antonio de Sousa
Lara).
29
30
]
Gustavo Henrique de Aguiar Pinheiro
Mestre em Direito Constitucional/UFC.
Especialista em Saúde Mental/UECE.
Coordenador Geral da Escola Popular de Formação em Direito,
Psicologia, Sociologia e Política.