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Excelente livro de literatura latina
A LITERATURA
LATINA
Zelia de Almeida Cardoso
Licenciada em Letras Clssicas pela FFCL-
USP Doutora em Letras pela USP
Livre-docente em Literatura Latina
Professora titular de Lngua e Literatura Latina da FFLCH-USP
(Edio revista)
,1 wmfmartinsfontes
SO PAULO 2011
Copyright 2003, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
So Paulo, para a presente edio.
l.a edio 1989 (Editora Mercado Aberto)
3? edio 2011
Acompanhamento editorial
Helena Guimares Bittencourt Atualizao ortogrfica
lvani Cazarim Revises grficas
Ana Luiza Frana Maria Regina Ribeiro Machado
Produo grfica
Geraldo Alves Paginao/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Cardoso, Zelia de Almeida
A literatura latina / Zelia de Almeida Cardoso. - 3 ed. rev.
- So Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2011.
Bibliografia.
ISBN 978-85-7827-376-7
1. Literatura latina I. Ttulo.
11-00318 CDD-870.09
ndices para catlogo sistemtico:
1. Literatura latina : Histria e crtica 870.09
Todos os direitos desta edio reservados Editora WMF Martins Fontes Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325.000 So Paulo SP Brasil Tel. (11) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042
e-mail: [email protected] http://www.zumfmartinsfontes.com.
NDICE
Consideraes prelim inares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IX
PRIMEIRA PARTE
A POESIA LATINA
Origem da poesia la t in a ................................................................... 3
A poesia pica ........................................................................................ 6
A epopeia de Virglio ................................................... 10
A poesia pica ps-virgiliana ................................. 19
A poesia dramtica: a comdia .............................................. 23
As comdias de Plauto ................................................. 28
As comdias de Terncio ..................................... 34
A comdia togata e tabernaria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
A atelana .......................................................... 37
O m im o ..................................................................... 38
A poesia dramtica: a trag dia ................................ 39
As tragdias de Sneca ......................................... 41
A poesia lrica .............................................................. 49
A poesia de Catulo ....................................................... 55
A poesia lrica na poca de Augusto .......................... 59
As Buclicas de V irglio ............................................ 61
A lrica de Horcio ......................................................... 65
A poesia elegaca em R om a ......................................... 69
As elegias deTibulo: o Corpus Tibullianum . . . . . . . . . . . . . . 70
As elegias de Proprcio......................................................... 74
A obra potica de Ovdio ............................................... 80
A poesia lrica ps-ovidiana ....................................... 87
Astira latina .......................................................... 89
A stira de Luclio ..............................................91
Varro e as Stiras m en ip e ia s ......................................... 92
As Stiras de Horcio ........................................................ 93
A stira ps-horaciana: a Apocolocintose de Sneca . . 96
As Stiras de Prsio 98
A obra de Juvenal ....................................................... 100
A poesia didtica .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
A obra de Lucrcio .......................................................... 104
As Gergicas de Virglio .......................................... 109
As Epstolas de Horcio ....................................... 113
Os Fastos de Ovdio ...................................................... 115
A poesia didtica contempornea a O vdio ......... 117
As Fbulas de Fedro .............................................................. 119
SEGUNDA PARTE
APROSALITERRIA
Formao da prosa literria .................................................. 123
O romance ...................................................................... 125
O S a tir icon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
O romance de Apuleio .............................................. 129
A histria ............................................................. 131
A histria na poca de Ccero: Jlio Csar ............. 132
Salstio ................................................................. 135
A histria no sculo de Augusto: Tito Lvio ........... 139
A concepo romana de histria: Tcito .................... 143
A histria aps Tcito: Suetnio ........................ 146
Epitomadores e Histria A ugusta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
A oratria ................................................................ 150
Ccero orador .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
A oratria romana aps C cero ......................... 158
Plnio, o Jovem, e o Panegrico de T rajano . . . . . . . . . . . . . 159
Oratria crist .................................................... 159
A retrica ................................................................ 161
Ccero e a retrica ............................................ 162
A retrica na poca da dinastia jlio-claudiana:
Sneca, o Rtor ............................................ 165
A nova retrica: Quintiliano.............................. 165
Tcito e Plnio, o Jovem ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168
Filosofia, apologtica, teologia ................................ 170
A obra filosfica de Ccero .......................................... 171
O pensamento filosfico de Sneca ..................... 174
A filosofia e o cristianismo: os apologistas ............ 177
Mincio F lix ................................................. 180
Tertuliano ........................................................... 181
O segundo perodo cristo: o sculo III ................ 182
A sedimentao da doutrina: os doutores da Igreja . . 183
Aerudio ........................................................ 187
Cato ........................................................................... 188
Varro .............................................................. 190
A erudio e a dinastia jlio-claudiana .................. 191
A Histria natural de Plnio, o Velho ..................... 193
As Noites ticas de Aulo G lio ............................. 196
Macrbio ........................................................................ 197
A epistolografia .............................................................................. 199
A correspondncia de Ccero ............................. 200
Sneca epistolgrafo ....................................................... 203
As Cartas de Plnio, o Jovem ............................ 204
Epistolografia crist .......................................... 206
A herana literria latin a .......................................................... 209
Quadro cronolgico da literatura latina ............................. 213
Abreviaturas utilizadas no tex to .................................... 217
Bibliografia ......................................................................... 219
CONSIDERAES PRELIMINARES
Antes de discorrer sobre os gneros literrios que se desen-
volveram na antiga Roma, faremos algumas observaes so-
bre os principais momentos que marcaram a histria romana.
A compreenso das manifestaes culturais de um povo
pressupe o conhecimento das circunstncias em que elas se
produziram. Tudo aquilo que as civilizaes humanas criaram
resultado da combinao de fatores de diversas ordens (pol-
ticos, sociais, econmicos, ticos, religiosos, ideolgicos, edu-
cacionais, etc.), que compem, em conjunto, o amplo con-
texto que explica e justifica o produto. O estudo de uma lite-
ratura, portanto, deve ser precedido de uma coleta de infor-
maes sobre a poca em que ela nasceu e floresceu.
Costuma-se considerar como marco inicial da literatura
latina a traduo da Odisseia, feita por Lvio Andronico nas
proximidades de 240 a.C.
Esse fato exige, evidentemente, uma explicao. Roma se
tornara uma comunidade humana organizada cerca de cinco
sculos antes. A tradio estabeleceu o ano de 753 a.C. como
X | A LITERATURA LATINA
o da fundao da cidade e preservou a memria de alguns fa-
tos relacionados com essa fundao. Embora a data seja con-
trovertida e na conhecida histria de Rmulo e Remo, os su-
postos fundadores da cidade, o aspecto lendrio e mtico se
sobreponha ao histrico, sabe-se com certeza, graas contri-
buio da arqueologia, que Roma foi habitada, em meados do
sculo VIII a.C., por camponeses provenientes de Alba Lon-
ga, a ptria dos ancestrais de Rmulo, conforme a lenda.
Mais tarde, sabinos e etruscos se associaram aos albanos.
Sobre os primeiros sculos da existncia de Roma no se
tm muitas informaes. Os documentos histricos, muito
posteriores, do-nos uma viso at certo ponto confusa de um
perodo marcado por guerrilhas e guerras, vitrias e reveses,
que se estende de meados do sculo VIII a.C. ao incio do
sculo III a.C.
Durante esse longo lapso temporal, Roma era apenas um
dos muitos pequenos ncleos urbanos que formavam a Liga
Latina, sabendo-se que, provavelmente no final do sculo VI
a.C., a primitiva organizao poltica da cidade foi modifica-
da, substituindo-se por uma repblica consular o governo en-
to exercido por reis. At o incio do sculo IV a.C. Roma en-
frentou e desafiou sabinos, quos, volscos e veienses, ora ven-
cendo, ora sendo vencida, ora fazendo alianas militares e po-
lticas. A violenta invaso dos gauleses, ocorrida por volta de
390 a.C., teve como consequncia imediata a reconstruo da
cidade, que fora incendiada e pilhada. Dando-se conta de sua
fragilidade e insegurana, os romanos procuraram fortalecer-
-se, preparando-se para futuras investidas. Foi esse o ponto de
partida para a marcha expansionista da cidade. As vitrias so-
bre os samnitas (341, 326 e 304 a.C.), antigos aliados que
viviam na Itlia meridional, permitiram a ampliao do terri-
CONSIDERAES PRELIMINARES | XI
trio romano e o aumento de seu poderio. O triunfo sobre
Tarento (272 a.C.), importante centro cultural grego, locali-
zado ao sul da Pennsula Itlica, representou o incio de uma
era de vitrias e novas conquistas que iriam estender-se pelos
sculos afora, determinando a constituio do imenso imprio
romano, cujos limites definitivos s se completaram na poca
do imperador Trajano, no sculo II de nossa era.
At as vitrias sobre os samnitas e a posterior conquista de
Tarento, Roma ainda no se diferenciava grandemente de nu-
merosas outras cidades espalhadas pelo mundo mediterrneo
e no desfrutava de maior importncia poltica, militar ou cul-
tural. Os romanos falavam o latim - lngua de origem indo-
-europeia, relativamente pobre e rstica - e, embora conhe-
cessem a escrita por terem adaptado o alfabeto etrusco, so-
mente a utilizavam em inscries (algumas muito antigas, da-
tadas dos sculos VII ou VI a.C.) que tm apenas valor filol-
gico, lingustico e documental. A literatura se achava ainda
em fase embrionria, restringindo-se quase exclusivamente s
manifestaes orais.
a vitria sobre Tarento que propicia ao povo de Roma o
contato direto com a brilhante cultura grega. Comeam a sur-
gir, ento, graas a esse contato, as primeiras obras de literatu-
ra latina.
Durante a segunda metade do sculo III e o sculo II a.C.
essa literatura se desenvolve e se aperfeioa, chegando ex-
presso mais alta no sculo I a.C. Roma, nessa poca, havia
conquistado toda a Itlia meridional (meados do sculo III
a.C.), tornando-se a grande potncia do Mediterrneo, ocu-
para a Sardenha, a Siclia e a Ilria (terceiro quartel do sculo
III a.C.), bem como o vale do P e a Glia Cisalpina (final do
sculo III a.C.), vencera a Mauritnia e aliara-se Sria (incio
XII | A LITERATURA LATINA
do sculo II a.C.), anexara a Macednia (meados do sculo II
a.C.) e conseguira derrubar Cartago (146 a.C), tendo-se bati-
do duramente com a antiga colnia fencia durante as trs
longas e tumultuadas guerras pnicas (264-241; 218-201 e
149-146 a.C.).
Marcados por novas conquistas, por guerras civis e pro-
fundas modificaes polticas, sociais e culturais, o final do
sculo II e o sculo I a.C. presenciaram, sucessivamente, a
luta de classes, a acirrada disputa pelo poder, a agonia do sis-
tema republicano, o estabelecimento do regime imperial e o
grande desenvolvimento das artes, das letras e da vida inte-
lectual.
O perodo dominado pelo gnio polivalente de Jlio C-
sar (60-44 a.C.) aquele em que a literatura latina se firma, a
lngua literria se estabelece e as primeiras grandes figuras de
prosadores se projetam no cenrio das letras. A chamada po
ca de Augusto (43 a.C.-14 d.C.) o momento ureo da poe-
sia: surgem escritores de talento indiscutvel e a arte potica,
incentivada oficialmente, alcana seu brilho maior.
Aps a morte doprinceps (14 d.C.), o mundo romano co-
mea, lentamente, a declinar. No perodo em que exerceram
o poder os prncipes jlio-claudianos, herdeiros de Augusto
(Tibrio, Calgula, Cludio e Nero - 14 a 68 d.C.), ainda no
se pode falar exatamente em decadncia. Esta, contudo, j se
faz anunciar. O panorama cultural de Roma se modifica subs-
tancialmente com a introduo de novos valores. O orienta-
lismo- e o cristianismo como sua maior forma - se estabele-
ce no Imprio. Entre o final do sculo I de nossa era e o scu-
lo V caminha-se, pouco a pouco, para o desaparecimento do
esprito de romanidade, para os conflitos entre o Estado e a
Igreja, as novas guerras civis, a diviso do Imprio, as invases
CONSIDERAES PRELIMINARES | XIII
dos povos brbaros e, finalmente, o inevitvel e completo es-
facelamento da antiga unidade.
A literatura latina sofre, durante todo esse tempo, como
no poderia deixar de ser, o impacto das transformaes. A pe-
riodizao a que usualmente a submetemos reflete, de alguma
forma, fatos histricos relevantes. Embora saibamos que a ten-
tativa de classificar as manifestaes literrias por perodos,
pocas ou escolas arbitrria e convencional - as balizas tem-
porais se ressentem, muitas vezes, da precariedade e do artifi-
cialismo - , no caso especial da literatura latina as fases ou
pocas literrias, abaixo especificadas, correspondem a mo-
mentos distintos de uma civilizao, apresentando, portanto,
cada uma, caractersticas bem definidas:
1. Faseprimitiva: considerada como uma poca ainda pr-
literria, estende-se do aparecimento das primeiras inscries
(sculo VII a.C.) produo dos primeiros textos propria-
mente literrios escritos em latim (imediaes de 240 a.C.).
2. Fase helenstica: corresponde ao momento em que os es-
critores de Roma se exercitam na produo de textos poti-
cos, procurando imitar a literatura da Grcia; desenvolve-se a
poesia pica e a dramtica, mas a lngua literria ainda apre-
senta traos arcaicos; estende-se de cerca de 240 a.C. a 81
a.C., data que marca o primeiro pronunciamento de Ccero
como orador.
3. Fase clssica: corresponde ao perodo de maior esplendor
literrio, podendo ser subdividida em trs pocas, diferencia-
das em suas peculiaridades: a) a poca de Ccero (de 81 a 43
a.C.) - dominada, principalmente, pela figura do grande ora-
dor, o verdadeiro criador de uma lngua clssica, em Roma; b)
a poca de Augusto (de 43 a.C. a 14 d.C.) o momento em
XIV | A LITERATURA LATINA
que a poesia atinge seu apogeu, colocando-se, contudo, a ser-
vio da poltica; c) a poca dos imperadores jlio-claudianos
(de 14 a 68 d.C.) a literatura ainda floresce, mas j se pres-
sente a decadncia.
4. Fase ps-clssica: estende-se da morte de Nero (68 d.C.)
queda do Imprio Romano do Ocidente (sculo V) e cor-
responde a duas pocas distintas: a) a poca neoclssica (de 68
ao final do sculo II, abrangendo os governos dos imperadores
flavianos e antoninos), quando ainda se encontram figuras li-
terrias importantes no campo da prosa cientfica, da retrica,
da histria, da epistolografia e at mesmo da poesia; b) a poca
crist, que, iniciando-se no fim do sculo II, se estende at o
sculo V: a velha literatura pag comea a empalidecer, ceden-
do seu lugar incipiente literatura crist; a poesia assume no-
vas dimenses e surgem os primeiros textos apologticos que,
aos poucos, vo sendo substitudos pelas obras histricas, mo-
rais e teolgicas dos doutores da igreja.
No presente estudo trataremos separadamente de cada um
dos gneros literrios que se desenvolveram em Roma. Inicia-
mos pela anlise dos gneros poticos - autnticos gneros li-
terrios - e reservamos espao para a chamada prosa literria.
Apresentamos, de cada gnero, aquilo que foi considerado me-
lhor. Como a extenso da matria e as dimenses de nosso tra-
balho no permitem o aprofundamento desejvel, fornecemos
algumas indicaes bibliogrficas, no final do livro, sugerindo
ao leitor a consulta a textos complementares.
PRIMEIRA PARTE
A POESIA LATINA
ORIGEM DA POESIA LATINA
Todas as civilizaes conheceram alguma forma de poesia,
embora variem muito, de grupo para grupo, as modalidades
de composies poticas produzidas.
Entre as velhas culturas mediterrneas, de origem indo-eu-
ropeia, as mais antigas manifestaes de poesia se associam in-
variavelmente msica: so cnticos, portanto, e pelo que de-
les sabemos, por meio do exame de formas arcaicas, podemos
supor que tinham como base estrutural o verso, a unidade rt-
mica que corresponde acomodao de uma frase a um es-
quema meldico, caracterizado por certo nmero de slabas
(ou conjuntos de slabas) e pela colocao de slabas de deter-
minadas categorias em posies mais ou menos fixas.
Variaram, nas diversas civilizaes, os tipos de versos conhe-
cidos. Enquanto na Grcia, por exemplo, havia grande quan-
tidade de espcies rtmicas, adequadas aos diferentes gneros
poticos, na Itlia central, ao que se sabe, a poesia s se valia
de um nico modelo de verso em seus primrdios: o chama-
do verso satrnio.
4 | A LITERATURA LATINA
Pesado, longo e montono, o verso satrnio foi utilizado,
em Roma, nos mais antigos cnticos de que se tem notcia. Su-
pe-se que fosse constitudo, originalmente, de 14 ou 13 sla-
bas, subdividindo-se em duas partes. Alternavam-se as slabas
breves, com a durao de um tempo, e as longas, com a dura-
o de dois (no nos esqueamos de que em latim, diferente-
mente do que ocorre hoje nas lnguas romnicas, as slabas
eram caracterizadas pela durao e pela altura, e no pela in-
tensidade). Podiam-se substituir algumas das breves por lon-
gas, e vice-versa, desde que estivessem em determinadas posi-
es. Tal procedimento gerava muitas possibilidades de varia-
o rtmica, sem que se modificasse, substancialmente, o ver-
so. Da, talvez, a razo pela qual nem o romano nem os demais
povos itlicos tivessem procurado outras solues mtricas.
Com o verso satrnio foram compostos todos os cnticos
latinos produzidos na poca primitiva. Embora tais cnticos no
possam, a rigor, ser considerados como formas literrias pro-
priamente ditas - faltam-lhes para isso o status de obras escri-
tas e as caractersticas mnimas dos textos artsticos - , no
deixam de ser embries literrios, anunciando, j, os futuros
gneros: o pico, o dramtico, o lrico, o satrico e o didtico.
Esses gneros, porm, como veremos adiante, s vo desa-
brochar e produzir frutos no momento em que o romano, j
preparado para conhecer o requinte de uma literatura mais cul-
tivada, defrontar-se com a poesia que se produziu na Grcia.
A partir da, nasce a verdadeira literatura latina. Impor-
tam-se modelos que passam a ser imitados. Roma, que vinha
impondo-se perante o mundo pelas armas e pela fora, no
poderia ficar aqum de outros povos em termos de produo
artstica e literria. Tenta-se, pois, atingir o nvel dos modelos
que vm de fora, e, se possvel, super-los. A luta foi rdua
A POESIA LATINA | 5
mas, em muitos casos, a literatura latina conseguiu ser criati-
va e original. O estudo, gnero por gnero, dos principais au-
tores e das obras mais importantes que produziram, procura-
r mostrar tal fato.
A P O E S IA P IC A
Quando nos referimos poesia pica somos levados, de
imediato, a pensar no gnero a que se filiam as narrativas em
verso que tm por assunto fatos heroicos, vividos por perso-
nagens humanas excepcionais, manipuladas, de certa manei-
ra, pelo poder dos deuses. A tradio grega responsvel por
essa conceituao.
A pica, entretanto, est presente em quase todas as cultu-
ras. Raros so os povos que no tm suas histrias, que no
cultuam seus heris e no procuram preservar a lembrana
dos fatos que viveram. O registro desses fatos s foi possvel,
at bem pouco tempo, pela palavra. Como, porm, a palavra
oral se desgasta e se corrompe com freqncia, tornou-se ne-
cessrio o encontro de formas que lhe garantissem a fixao.
A escrita s apareceu tardiamente entre as civilizaes; o meio
encontrado para fixar a narrativa foi, ento, o verso. Fechado
em sua rigidez, memorizvel com facilidade graas ao ritmo
meldico de que se constitui e aos recursos mnemnicos de
que se vale, o verso assegura sua prpria permanncia e sua
quase total imutabilidade. A soluo grega de encerrar a lem-
A POESIA LATINA | 7
brana dos fatos na cadncia rtmica dos versos no exclusi-
vidade do povo helnico. So numerosas as civilizaes que,
antes mesmo de conhecerem a escrita, tiveram suas epopeias
orais em versos.
No caso particular de Roma, pouco se sabe sobre a exis-
tncia de uma pica natural, produzida no prprio corao
de sua cultura, sem ter sofrido influncias externas. Na poca
primitiva, embora tenham existido numerosas formas poti-
cas que se realizavam em cnticos, o contedo pico dessas ma-
nifestaes pr-literrias discutvel. Supe-se que nos cnti-
cos convivais (carmina conuiualia), entoados durante os ban-
quetes, fossem lembrados feitos gloriosos de Roma e velhas
lendas histricas o que teria preservado lembranas do pas-
sado, retomadas, mais tarde, pelos historiadores. So, entre-
tanto, apenas suposies. Cato - erudito romano que viveu
entre os sculos III e II a.C. - fala da existncia, na poca pri-
mitiva, de cantos heroicos, cujo assunto girava em torno das
realizaes de Rmulo, dos feitos dos primeiros reis, da vida
de Horcio, Coriolano e outras personalidades famosas. Tais
informaes, todavia, carecem de maior comprovao.
Assim sendo, o primeiro texto pico, propriamente dito, a
surgir em Roma, em latim, no uma epopeia natural, ema-
nada das razes culturais do povo. a traduo da Odisseia,
feita por um grego tarentino, Lvio Andronico (Liuius Andro-
nicus 285?-204? a.C.).
No se conhece a data exata em que se realizou tal traba-
lho, mas tudo indica que a traduo foi feita nas proximi-
dades do ano 240 a.C.
J nos referimos, anteriormente, vitria de Roma sobre
Tarento, em 272 a.C., e j lembramos o fato de ter sido essa
cidade um dos muitos ncleos irradiadores da cultura helni-
8 | A LITERATURA LATINA
ca. Entre os prisioneiros de guerra, levados ento para Roma,
havia um adolescente cujo nome era Andronico. Tornando-se
escravo da famlia Lvia, adotou o nome de seus senhores em
combinao com o seu, como era habitual. Desde cedo Lvio
Andronico se ocupou da educao de meninos, mas, na con-
dio de preceptor e mestre de primeiras letras, esbarrou em
uma primeira dificuldade: a falta de textos adequados para o
ensino. A educao grega, em sua primeira fase, exige o ma-
nuseio de textos literrios. por meio deles que se procede
alfabetizao da criana e que se ministram a ela as primeiras
noes de histria, geografia, tica, mitologia e religio. A no
existncia de textos para esse fim levou Lvio Andronico a tra-
duzir a Odisseia. Em seu trabalho de traduo, ele se utilizou
do grosseiro e primitivo verso satrnio, to diferente dos so-
noros versos gregos, e teve de lutar tambm, certamente,
com a pobreza de um vocabulrio no afeito ao tratamento
literrio.
A traduo de Lvio Andronico, entretanto, por medocre
e rudimentar que fosse, ao lado de tornar o poeta conhecido
da sociedade, colocou o romano em contato direto com um
texto literrio grego, embora traduzido, e propiciou o apare-
cimento de outros poemas picos.
E as epopeias latinas comearam a surgir.
Nvio (Naeuius ?-201 a.C.), contemporneo de Lvio
Andronico e natural da Campnia, onde nasceu em data ig-
norada, no tardou a seguir os passos do escravo de Tarento,
escrevendo A guerra pnica (Poenicum bellum), o primeiro
poema pico composto originalmente em latim. Utilizando-
-se ainda do verso satrnio e extraindo o assunto de fatos reais
- a guerra travada entre romanos e cartagineses, de 264 a 241
a.C. - , Nvio soube mesclar a histria mitologia, atribuindo
A POESIA LATINA | 9
causas sobrenaturais aos acontecimentos. Pelos fragmentos
que restam de Aguerra pnica - algumas dezenas de versos -
podemos observar certa irregularidade no estilo do poeta: gran-
dioso nos trechos mitolgicos, pobre e rido nos trechos his-
tricos. No se pode negar-lhe, contudo, o mrito de ter sido
um inovador.
nio (Quintus Ennius 239-169 a.C.) prossegue no cami-
nho iniciado por Nvio e compe alguns anos mais tarde o
poema Anais (Annales), usando pela primeira vez o hexmetro
grego - verso apropriado para a poesia pica - e ampliando o
vocabulrio potico com a criao de neologismos construdos
moda helnica. O poema de nio era bastante extenso, com-
pondo-se de dezoito livros, nos quais o poeta procurou contar
toda a histria de Roma. Como Nvio, nio deteve-se em
consideraes sobre a origem mitolgica da cidade, reservan-
do os seis primeiros livros para explorar histrias lendrias, re-
ferentes poca dos reis. Nos demais, com a preciso - e a
aridez, poderamos acrescentar - de um pontifex que registra
fatos at certo ponto corriqueiros, nio relatou, minuciosa-
mente, acontecimentos que marcaram, de alguma forma, a his-
tria romana.
Pelos fragmentos do poema que chegaram at nossos dias
- cerca de 600 versos - , pode-se verificar algumas das caracte-
rsticas do poeta: o gosto pelo epteto (herana da epopeia ho-
mrica), o emprego de comparaes, o cuidado com o colori-
do descritivo e a vivacidade de certas cenas.
Depois de nio, a poesia pica romana s vai encontrar
um grande momento cerca de cento e cinquenta anos mais
tarde, com Virglio, j nos dias de Augusto. A que se manifes-
tou na primeira metade do sculo I a.C. tem pouca significa-
o: poemas mitolgicos como Io (Ios), de Licnio Calvo, ou
10 | A LITERATURA LATINA
Argonutica (Argonautica), de Varro de tax, e poemas hist-
ricos como Aguerra sequnica (Bellum Sequanicum), do mes-
mo autor, no chegaram a ter grande importncia, nem sequer
na poca em que foram escritos.
A epopeia de Virglio
Virglio (Publius Vergilius Maro - 70-19 a.C.) o pico la-
tino por excelncia, o poeta nacional do Imprio. Era j bas-
tante conhecido nos meios artsticos e intelectuais de Roma
quando, por solicitao de Augusto, se disps, em 29 a.C., a
encetar a empresa gigantesca de escrever uma epopeia gran-
diosa que pudesse ombrear com os poemas homricos. Alm
de alguns trabalhos poticos escritos na juventude, Virglio j
havia composto, por essa poca, as duas grandes obras que lhe
asseguraram a fama de poeta de primeira linha: as Buclicas,
coletnea de poemas pastoris, e as Gergicas, poema didtico
elaborado por solicitao de Mecenas.
Conhecendo suas qualidades e sabedor de que o poeta se
dispunha a operar como porta-voz da poltica imperial, Au-
gusto o incumbiu da nova misso. Durante dez anos - de 29 a
19 a.C. - , Virglio trabalhou na composio de sua epopeia,
a Eneida (Aeneis). No chegou, todavia, a dar-lhe o ltimo
polimento.
Diz a tradio que o poeta, percebendo a proximidade da
morte e sabendo que no haveria tempo para dar ao poema a
forma final, recomendou que o texto fosse destrudo. Augus-
to, entretanto, no permitiu que o desejo do poeta fosse satis-
feito. De um lado, a Eneida j era conhecida do pblico: du-
rante o longo perodo de tempo em que se processou a com-
A POESIA LATINA | 11
posio, partes isoladas foram sendo divulgadas, lidas, prova-
velmente, em sesses literrias particulares e pblicas. De outro
lado, no se justificava a destruio. Mesmo no estando ter-
minado definitivamente, no se pode dizer que seja um texto
inconcluso. Faltam-lhe apenas os ltimos retoques: substitui-
o, talvez, de uma ou outra palavra, complementao de al-
guns versos incompletos. No mais, o poema est pronto, per-
feito. E apresenta a grandiosidade das obras-primas que se su-
perpem ao tempo, resistindo-lhe s investidas e no se subor-
dinando aos caprichos ocasionais das modas literrias.
Compondo-se de doze cantos, ou livros, num total de
9.826 versos, a Eneida , a um tempo, um poema mitolgico
e uma ufanista homenagem ao Imprio que se formava. A
lenda narrada no correr do texto - a histria da acidentada
viagem de Eneias, prncipe troiano salvo da guerra para fun-
dar a nova Troia, e das duras lutas que travou no Lcio - um
pretexto para a exaltao de Roma e de Augusto, para a valo-
rizao do romano e de seus feitos remotos e recentes, para a
sntese das correntes filosficas ento difundidas em Roma,
numa demonstrao da vasta erudio do poeta em todas as
reas do conhecimento.
Baseando-se nas epopeias homricas, mas utilizando-se de
vrias outras fontes - os trgicos gregos, a lrica alexandrina, a
histria e a epopia latinas - , Virglio comps um texto em que
se aliam a grandeza da poesia da Grcia clssica e a sofistica-
o das formas literrias modernas, desenvolvidas no requinte
do ambiente cultural de Alexandria.
Assim se desenrola o assunto lendrio nos doze cantos que
compem a obra:
Canto I - Atingidos por violenta tempestade provocada
por Juno, a deusa inimiga de Troia, os navios de Eneias e de
12 | A LITERATURA LATINA
seus companheiros so arremessados s praias do norte da fri-
ca. Dido, a rainha da Cartago, acolhe os nufragos e lhes ofe-
rece um banquete de boas-vindas durante o qual, graas a um
estratagema de Vnus, se apaixona por Eneias.
Canto I I - Por solicitao de Dido, Eneias relata a histria
da guerra de Troia, enfatizando os episdios que lhe determi-
naram o fim: o aprisionamento do grego Sino, instrudo por
Ulisses para enganar os troianos, a introduo do cavalo de
madeira na cidade, a sada dos soldados escondidos na calada
da noite, a batalha noturna, o incndio, o ataque ao palcio do
rei e a vitria dos gregos.
Canto III- Continuando a narrao, Eneias relata rainha
as peripcias que marcaram a viagem dos troianos: as escalas
na Trcia e em Creta, a partida para a Itlia, o encontro com
as harpias, a chegada ao Epiro e Siclia e a morte de Anqui-
ses, seu velho pai.
Canto IV- Violentamente apaixonada por Eneias, Dido
se vale de um encontro aparentemente casual, durante uma
tempestade, para entregar-se ao chefe troiano. Censurado por
Jpiter, que lhe envia Mercrio como emissrio, Eneias aban-
dona Cartago, disposto a cumprir a misso para a qual fora
preservado. Dido, desesperada, suicida-se.
Canto V- Chegando novamente Siclia, Eneias realiza
jogos fnebres em homenagem ao primeiro aniversrio da
morte de Anquises.
Canto VI - Fazendo uma escala em Cumas, Eneias con-
sulta uma sacerdotisa de Apolo. Toma cincia do que o espe-
ra, no futuro, e obtm permisso para fazer uma visita ao rei-
no dos mortos, onde se encontra com Anquises.
Canto VII- Eneias chega regio do Tibre, envia embai-
xadores ao rei Latino e este oferece ao chefe troiano a mo de
A POESIA LATINA | 13
sua filha, Lavnia. Amata, a rainha, se enfurece com a aliana,
o mesmo ocorrendo com Turno, chefe rtulo a quem a moa
fora prometida em casamento.
Canto VIII- Eneias procura fazer aliana com o rei Evan-
dro enquanto Vnus solicita a Vulcano armas para o troiano.
Canto IX - Eclode a guerra. Turno ataca os acampamen-
tos de Eneias e dois jovens troianos, Niso e Euralo, tm opor-
tunidade de mostrar seu valor, embora encontrando a morte.
A guerra prossegue.
Canto X - Jpiter procura conciliar Juno e Vnus, a fim
de que a guerra chegue ao fim. A violncia, entretanto, conti-
nua. H perdas importantes de ambos os lados.
Canto XI- Faz-se uma trgua para que se enterrem os mor-
tos; cogita-se numa proposta de paz; os exrcitos inimigos,
todavia, se defrontam. A carnificina terrvel e morre Cami-
la, rainha dos volscos, aliada de Turno.
Canto XII Vendo o exrcito desanimado, Turno se dis-
pe a enfrentar Eneias num duelo; firmam-se as condies,
mas o tratado violado; uma seta fere Eneias e Vnus o cura. O
exrcito troiano chega at os muros da cidade e Amata se sui-
cida. Trava-se o combate singular entre Eneias e Turno. O che-
fe troiano vence o inimigo e o sacrifica.
No decorrer da narrativa, a todo momento, Virglio en-
contra oportunidades para exaltar Roma, expressando o sen-
timento nacionalista. Nos versos iniciais do poema j se per-
cebe a inteno do poeta. Na primeira referncia feita a Juno,
no incio do Canto I, Virglio explica a razo do dio que a
deusa nutria pelos troianos e, sobretudo, por Eneias. Dispos-
tos a fundar a nova Troia - ou seja, Roma - , os remanescentes
da guerra no hesitaram em enfrentar os mares e os perigos de
14 | A LITERATURA LATINA
uma longa viagem. Juno, porm, em sua oniscincia divina,
sabia que a cidade a ser fundada pelos descendentes dos troia-
nos seria, no futuro, a causa da queda de Cartago e esta era
consagrada deusa e por ela amada com especial carinho. Da
as tentativas que faz para alterar a ordem das coisas, procuran-
do impedir Eneias de realizar seus desgnios: suborna olo,
deus dos ventos, fazendo-o provocar a tempestade que levaria
os navios troianos ao naufrgio; auxilia Vnus a maquinar o
encontro amoroso de Eneias e Dido; instiga Amata a comba-
ter o troiano. Nada, porm, surte o efeito desejado. Eneias su-
pera todos os obstculos e assegura a fundao de Roma, a fu-
tura senhora do mundo.
No correr do Canto I, h mais um momento em que o na-
cionalismo se exalta: quando Jpiter procura tranqilizar V-
nus no tocante ao futuro dos troianos e lhe fala dos dias vin-
douros, da glria de Roma e dos feitos grandiosos de Augusto:
Nascer de uma nobre origem, descendente da famlia Jlia
que tirou seu nome do grande Iulo, um Csar troiano que esten-
der seu imprio at as guas ocenicas e sua fama at os astros.
Tu, tranqila, o recebers um dia, no cu, carregado com o esp-
lio do Oriente; e ele tambm ser invocado com votos.
(Verg. Aen. I, 286-289)
No Canto VI, quando Eneias encontra seu pai Anquises
no reino das sombras e o ancio o acompanha por algumas das
regies infernais, aparece novamente a marca do nacionalis-
mo. No ltimo setor do mundo dos mortos, o velho troiano
mostra ao filho as almas que aguardavam o momento de reen-
carnar-se e apresenta-lhe os futuros heris do povo romano:
Augusto, Numa Pomplio, os Dcios, os Drusos, Csar, Pom-
peu, Paulo Emlio, Cato. As palavras que Anquises pronun-
A POESIA LATINA | 15
cia ao apresentar a Eneias os espritos dos Marcelos correspon-
dem exaltao do povo de Roma, naquilo que ele tinha de
grandioso e peculiar:
Outros povos trabalharo com mais delicadeza os bronzes que
parecem respirar - assim creio eu - e tiraro do mrmore rostos
que parecem vivos, discursaro melhor em suas causas, descreve-
ro com o compasso o espao do cu e discorrero sobre os astros
que surgem. Quanto a ti, romano, lembra-te de governar os ou-
tros povos com o teu poder. Esta ser a tua arte: impor as condi-
es de paz, poupar os vencidos, destruir os soberbos.
(Verg. Am. VI, 847-853)
No Canto VII, ao relatar o episdio da chegada dos troia-
nos ao Lcio, Virglio faz referncias ao rei Latino, soberano da
regio, e consulta feita por ele ao orculo de Fauno. Nas pa-
lavras profticas da divindade, h nova aluso ao valor do futu-
ro romano:
No procures unir tua filha a um esposo latino, meu filho, e
no confies no casamento combinado. Viro de fora os genros que,
por sua prognie, elevaro nosso nome at os astros; os descenden-
tes dessa raa vero que a seus ps se curva, deixando-se dominar,
tudo aquilo que o sol ilumina ao percorrer seu caminho entre os
dois oceanos.
(Verg. Am. VII, 96-100)
Finalmente, no Canto VIII, a descrio do escudo que Vul-
cano forja para Eneias, a pedido de Vnus, mostra-nos que ali
se achavam esculpidos, em artsticos relevos, os feitos grandio-
sos que iriam marcar o destino de Roma.
Muitas vezes a Eneida foi considerada como uma espcie
de decalque das epopeias homricas. Trata-se, a nosso ver, de
16 | A LITERATURA LATINA
uma postura que no faz justia arte e s qualidades de Vir-
glio. O poeta romano inspira-se nos textos gregos, indiscu-
tvel. E tal procedimento dificilmente poderia ser diferente,
uma vez que a moda literria da poca preconizava essa ati-
tude: se havia modelos perfeitos, a perfeio deveria ser imita-
da. A Eneida, porm, no pode ser considerada como cpia
vulgar dos poemas homricos. Mantendo pontos que haviam
sido explorados na poesia da Grcia, Virglio soube ser origi-
nal e, sobretudo, romano. Alguns dos trechos mais belos da
Eneida testemunham essa originalidade: a histria da trgica
paixo de Dido (Canto IV); o sonho de Eneias comTiberino,
divindade personificadora do Tibre (Canto VIII); o passeio
feito por Eneias em companhia de Evandro no local em que
seria fundada a futura Roma (Canto VIII); o desespero da me
de Euralo ao saber da morte do filho (Canto IX); a descrio
da morte de Camila, rainha dos volscos (Canto XI).
Mesmo nos trechos inspirados em obras de outros auto-
res, Virglio consegue mostrar sua criatividade e seu poder de
inovar. Assim ocorre, por exemplo, no Canto VI, quando o
poeta relata a viagem de Eneias ao mundo dos mortos. Se na
Odissia encontramos um relato semelhante - o do contato
de Ulisses com o reino de Hades - , os detalhes que compem
tais narrativas so diferentes. O relato homrico linear: aber-
tas as portas da manso subterrnea, o rei de taca v o desfi-
lar das almas pretexto, talvez, para a evocao de velhas
lendas. O de Virglio complexo, permeado de solues no-
vas. O poeta romano no s introduz o pormenor do enig-
mtico ramo de ouro (passaporte para a entrada na casa dos
espritos) e a presena de uma sibila que conduz o troiano,
como opta por um mundo infernal dividido em setores distin-
tos, cada um com sua peculiaridade. Na pintura desse mundo
A POESIA LATINA | 17
no se detm apenas na referncia a episdios mitolgicos;
vale-se da oportunidade para aludir a algumas das teorias filo-
sficas que se ocuparam da ps-morte: a platnica, a pitagri-
ca, a neoplatnica, a rfica; aproveita dados da doutrina estoi-
ca e encontra o momento adequado para exp-los; funde na
mesma realidade o mito e a histria; compe uma narrativa
em que se evidencia, acima de tudo, o simbolismo alegrico.
O mesmo se pode dizer do trecho em que descrito o es-
cudo de Eneias: Virglio se inspira em Homero, mas modifica
os pormenores. Aquiles, na Ilada, possui, certo, um escudo
de fabricao divina, onde h a reproduo de cenas da vida
cotidiana. O de Eneias, porm, apresenta esculpidos os gran-
des momentos da futura histria romana.
Os deuses de Virglio so diferentes dos de Homero. Tm
uma contextura mais humana, submetem-se ao Destino e s
leis que comandam o universo. As personagens humanas so
construdas com mais complexidade e revelam, por vezes, ca-
ractersticas tipicamente romanas.
Dido uma criao inesquecvel, quer no momento em
que exibe sua personalidade de rainha organizadora e realiza-
dora, quer nos dias em que trava terrvel luta interior, bata-
lhando, impotente, entre o pudor e a paixo, quer quando,
desesperada e j decidida a cometer suicdio, amaldioa o
amante que parte, com palavras candentes em que se extrava-
sam, simultaneamente, o dio e o amor:
Nem uma deusa tua me, prfido, nem Drdano o ances-
tral de tua gente. O rido Cucaso te gerou, em suas penedias s-
peras, e as tigresas da Hircnia te ofereceram as tetas. Por que devo
dissimular? Para que coisas maiores me reservo? Acaso sofre ele
com meu pranto? Acaso baixa o olhar? Acaso, comovido, verte l-
grimas ou tem compaixo de quem o ama?
[...]
18 | A LITERATURA LATINA
Vai, segue para a Itlia com os ventos. Alcana teu reino pelas
ondas. Espero, entretanto, se as pias divindades podem algo, que
sofras as maiores desventuras no meio dos rochedos e que Dido
seja invocada muitas vezes por seu nome. Embora ausente, eu te
acompanharei com negras tochas e quando a plida morte hou-
ver separado meus membros do esprito estarei presente, como
sombra, em todos os lugares. Sofrers teu castigo, perverso, e dis-
so eu saberei: a Fama vir at mim, nas profundezas dos manes.
(Verg. Am. IV, 365-370/381-387)
A prpria personalidade de Eneias - que para alguns se afi-
gura como inexplicvel e contraditria - compreensvel em
suas caractersticas. Nos primeiros livros, o chefe troiano no
deixa entrever seu lado heroico. Mero joguete dos deuses,
apenas obedece a ordens, sem praticamente agir. Aps o retor-
no do Inferno, transmuda-se, adquirindo os contornos do ver-
dadeiro heri. Parece que a atitude do poeta intencional nessa
complexidade de construo: o poema, com seu tom nacio-
nalista e seu carter de obra a servio da poltica imperial,
procura valorizar as virtudes cultuadas pelos romanos dos ve-
lhos tempos, sobretudo a piedade - apietas - , ou seja, a cons-
ciente submisso aos deuses, a resignao com a prpria con-
dio, o profundo senso do dever.
O estilo de Virglio puro e elegante. O vocabulrio
rico, preciso e pitoresco. A frase suave e harmoniosa. A versi-
ficao correta. O ritmo, variado em suas limitaes, ade-
quado ao assunto explorado a cada momento. Belas imagens
ponteiam o texto, no qual figuras retricas de todos os tipos
se apresentam com naturalidade, sem provocar a impresso
de sobrecarga.
Apreciado por seus contemporneos, considerado modelo
no Baixo Imprio, lido e admirado na Idade Mdia, Virglio
A POESIA LATINA | 19
inspirou a epopeia renascentista. Dante e Cames so os pi-
cos modernos que, mais de perto, se deixaram influenciar pelo
autor da Eneida.
A poesia pica ps-virgiliana
Nenhum poeta latino, aps Virglio, teve condies de
compor uma epopeia que se nivelasse com a Eneida. Nos dias
de Augusto, outros escritores se dedicaram a obras picas:
Vrio Rufo escreveu Sobre a morte (De morte), epopeia de
cunho filosfico; Domcio Marso comps um poema mito-
lgico, A guerra das amazonas (Amazonides); Albinovano
Pedo, alm de uma epopeia mitolgica, Teseida ( Theseis),
comps um poema histrico sobre as guerras no Reno, em
homenagem a Germnico. Tambm se dedicaram pica
histrica Rabrio, com A guerra do Egito (Bellum Aegyptia-
cum ), e Cornlio Severo com A guerra scula (Bellum Sicu-
lum ), cujo heri Otvio. Nenhum desses poemas logrou
atingir a posteridade; de alguns temos pequenos fragmentos,
conservados por outros autores.
Na poca de Nero, um jovem poeta se disps, novamente,
a enfrentar a epopeia histrica: Lucano (Marcus Annaeus Luca-
nus - 39-65). Conhecido por seu talento potico desde a pri-
meira juventude, autor de numerosas outras obras - perdidas,
infelizmente Lucano teve a audcia de abandonar a tradio
virgiliana, ao escrever seu poema pico Farslia (Pharsalia) sem
se utilizar de elementos mitolgicos.
Embora seja uma obra inacabada, os dez livros que chega-
ram a ser escritos permaneceram at nossos dias. Neles o poe-
ta narrou a guerra civil travada entre Jlio Csar e Pompeu e
20 | A LITERATURA LATINA
considerada como causa da queda do regime republicano em
Roma. Lucano inicia o texto fazendo uma invocao a Nero.
Depois de traar o perfil dos dois generais inimigos, o poeta
relata o episdio do Rubico (Livro I). Nos demais livros en-
contramos narrativas do cerco de Brundsio, quando as tropas
de Csar sitiaram as de Pompeu, obrigando-o a refugiar-se na
Grcia (Livro II), do cerco de Marselha e das campanhas de
Csar na Espanha (Livros III e IV), do cerco de Dirrquio (Li-
vros V e VI), da campanha da Tesslia e da batalha de Farslia
(Livro VII), do assassnio de Pompeu no Egito (Livro VIII),
dos feitos de Cato na frica (Livro IX) e da guerra de Alexan-
dria (Livro X).
Criativo e sensvel, Lucano soube dar um sopro pico a
seu poema, embora desprezasse os recursos comuns da epo-
peia, tais como as intervenes divinas e as mquinas picas.
Vivendo num momento em que a pureza clssica comeava a
ser substituda pela bizarria das formas, pela sobrecarga de
elementos ornamentais e retricos e pelo abuso da nfase, Lu-
cano no fugiu aos hbitos da poca: a Farslia repleta de fi-
guras, de efeitos artificiais e de preciosismos.
Dominando a arte de escrever, recheando seu texto de be-
las descries, de oraes, retratos, digresses e narrativas de
sonhos e prodgios, Lucano no soube, entretanto, conservar
a uniformidade de tom no correr dos livros. Nos trs primei-
ros, publicados durante a vida do poeta, nota-se certa iseno
no que diz respeito crtica ao sistema poltico ento vigente.
Nos ltimos, escritos aps um desentendimento com Nero -
desentendimento que determinou a proibio da publicao
dos livros finais, a ruptura com o imperador, a participao
do poeta na conjurao de Piso e sua condenao morte ,
percebe-se nitidamente a posio de Lucano diante do regi-
A POESIA LATINA | 21
me: exaltando o esprito republicano, encarnado em Pompeu
e, sobretudo, em Cato, valorizando as virtudes que haviam sido,
no passado, o apangio do romano, o poeta combate o despo-
tismo, a ambio e a crueldade de que Nero, sem dvida, re-
presentava o exemplo.
Aps Lucano so poucos os poetas picos latinos dignos
de meno. Na poca de Vespasiano (69-79), Valrio Flaco,
retomando a antiga lenda de Argo, escreveu Argonutica (Ar-
gonautica), no chegando, entretanto, a completar o poema;
Slio Itlico, inspirando-se em Tito Lvio e utilizando recursos
j explorados por Virglio, comps, sem muito brilho e regu-
laridade, a epopeia Pnica (Punica), poema histrico em que
narra fatos ocorridos durante a segunda guerra travada entre
romanos e cartagineses.
Nesse perodo, o poeta pico mais importante Estcio
(Publius Papinius Statius - 40?-96), autor de duas epopeias:
a Tebaida ( Thebais) e a Aquileida (Achilleis). Na primeira,
composta de dezessete cantos, Estcio retoma o tema da guer-
ra que se travou entre os filhos de dipo; na segunda, inaca-
bada, pretendeu explorar os feitos grandiosos de Aquiles.
Embora Estcio fosse capaz de escrever com brilho, re-
velando simultaneamente sensibilidade e conhecimento de
recursos de retrica, as epopeias se ressentem de falhas de com-
posio.
Aps Estcio, a poesia pica latina praticamente desapa-
rece. H quem considere epopeias crists a Psicomaquia (Psi-
chomachia) de Prudncio (348-410?), na qual vcios e virtu-
des travam um combate alegrico, os Feitos da histria espiri-
tual (Libelli de spiritalis historiae gestis), de Santo Avito (scu-
lo V), poema sobre a criao do mundo, e a Vida de So
Martinho (Vita Sancti Martini), de So Fortunato (sculo
22 | A LITERATURA LATINA
VI), poema escrito ao alvorecer da Idade Mdia, quando o
Imprio Romano j se fragmentara, perdendo a antiga uni-
dade poltica.
Nesses textos, o carter didtico e o moralismo superam,
de muito, o legtimo sopro pico.
A P O E S IA D R A M T IC A : A C O M D IA
Embora sejam relativamente poucas as informaes que
temos sobre a existncia de formas embrionrias de teatro, em
Roma, no perodo ainda considerado pr-literrio, no se
pode afirmar que o romano s tenha tido contato com as ati-
vidades dramticas a partir do estreitamento de suas relaes
com a Grcia. certo que as manifestaes literrias de um
teatro culto, representadas pelas comdias e pelas tragdias,
comearam a surgir em Roma na segunda metade do sculo
III a.C., como imitao da arte helnica. Antes disso, porm
- e talvez muito antes , os romanos, como de resto os povos
mediterrneos em geral, haviam desenvolvido artes elementa-
res de representao cnica, que se manifestavam sobretudo
em atividades de carter religioso. Nas prprias cerimnias ri-
tuais que se mantiveram at a poca imperial, e das quais te-
mos farta documentao, h elementos evidentes de represen-
tao teatral. Os sacrifcios, a liturgia do matrimnio e o ceri-
monial fnebre so alguns exemplos do uso de tais elementos.
Por outro lado, os antigos romanos realizavam procisses reli-
24 | A LITERATURA LATINA
giosas nas quais se danava e se cantava - como as dos Slios
e dos Arvais, de que nos ocuparemos mais adiante - e entoa-
vam, em ocasies especiais (banquetes de npcias, comemo-
raes sazonais, festas populares), cantos dramatizados, de ca-
rter licencioso e grosseiro, denominados fesceninos.
Muitos pretendem ver nesses cantos - que chegaram a ser
proibidos em algumas oportunidades, em virtude de seu tom
injurioso e agressivo - uma provvel origem etrusca, uma vez
que a palavra fescenino parece provir de Fescennia, nome de
uma cidade toscana situada em territrio falisco. A Etrria era
bastante afeita ao teatro, s representaes mgico-religiosas e
s danas. Afrescos etruscos encontrados em velhas tumbas
mostram figuraes de coreografias; palavras como histrio (his-
trio, ator) e persona (mscara), incorporadas ao vocabulrio
latino, so de provvel origem etrusca; danarinos etruscos es-
tiveram em Roma, em 364 a.C., segundo relata Tito Lvio, a
fim de realizarem, a pedido das autoridades, uma cerimnia
propiciatria.
Essa cerimnia foi de grande importncia para o desen-
volvimento das atividades teatrais. Grassava, nessa poca, uma
epidemia e, sem saberem o que fazer para debelar a doena, os
cnsules instituram jogos cnicos a fim de que fosse invoca-
da a proteo dos deuses. Os danarinos etruscos foram con-
vidados a realizar uma sesso de danas gestuais, acompanha-
das de msica de flauta. Aps o espetculo, os jovens romanos
passaram a imitar os danarinos, mesclando cantos e brinca-
deiras satricas a danas gestuais. Nasceu, ento, a satura, pos-
sivelmente a primeira manifestao do teatro romano pro-
priamente dito.
Para que se chegasse, porm, produo dramtica liter-
ria que caracterizou a segunda metade do sculo III a.C. e a
A POESIA LATINA | 25
primeira metade do sculo II, foi necessrio que Roma to-
masse contato com as farsas tarentinas - pardias obscenas re-
presentadas por atores mascarados, das quais a pintura em
vasos nos d uma ideia - , com a comdia siciliana, o mimo e,
finalmente, os textos trgicos da antiga Grcia e a chamada
comdia nova.
O teatro literrio se inicia em Roma, ao que se sabe, em
240 a.C. Alguns anos antes, durante os Jogos Romanos que
se realizavam anualmente em honra de Jpiter, no comeo de
setembro, os romanos haviam tido oportunidade de assistir a
um drama grego, representado por ocasio da visita do rei
Hiero I. S em 240 a.C., porm, ao comemorar-se o primei-
ro aniversrio da primeira guerra pnica, com a vitria dos
romanos sobre os cartagineses, que o povo vai ter a possibi-
lidade de assistir a uma pea representada em latim.
Para que isso se desse, foi preciso que os edis responsveis
pelo espetculo encomendassem a Lvio Andronico - que tra-
duzira anteriormente a Odissia - a traduo de um texto dra-
mtico a ser representado durante a realizao de Jogos co-
memorativos. No se sabe qual foi o texto traduzido, nem ao
menos a que gnero dramtico se prendia. Sabe-se, porm,
que a pea foi coroada de xito e que o poeta, transformando-
-se num verdadeiro homem de teatro, passou a acumular fun-
es de ator, diretor de cena e autor e traduziu (ou adaptou,
talvez), a partir desse momento, vrios outros textos gregos
trgicos e cmicos.
Das tragdias que ele comps h um ou outro escasso frag-
mento; das comdias nada permaneceu: os prprios ttulos
so incertos; hesita-se entre Virgus (Avarinha) e Virgo (Adon-
zela) e entre Ludius (O danarino) e Lydius (O homem da Li-
dia); apenas em relao a Gladiolus (A espadinha) no parece
26 | A LITERATURA LATINA
haver maior dvida: ao que tudo indica, tratava-se de uma co-
mdia inspirada numa obra de Filemo, cujo assunto girava
em torno de um dos clebres soldados fanfarres, to freqen-
tes na comdia helnica.
Ccero e Horcio criticam com certo rigor a comdia de
Lvio Andronico. Foi ele, entretanto, um desbravador de ca-
minhos que abriu possibilidades a numerosos sucessores: N-
vio, nio, Plauto, Ceclio e Terncio, entre outros.
Da obra dramtica de Nvio e nio tambm no h mui-
ta coisa a ser dita. H alguns fragmentos das tragdias que es-
creveram; das comdias, porm, s restaram ttulos. Nvio es-
creveu 33 peas cmicas, entre as quais A mocinha de Tarento
( Tarentilla) e O charlato (Ariolus). Quanto a nio, sabe-se
apenas que comps uma comdia intitulada Opequeno alber-
gu e (Caupuncula).
Como seus continuadores, Lvio Andronico, Nvio e nio
se inspiraram na comdia nova, modalidade teatral que se de-
senvolveu na Grcia a partir das trs ltimas dcadas do scu-
lo IV a.C., tendo como principais representantes Menandro,
Dfilo e Filemo.
A comdia nova tem por assunto fatos corriqueiros e en-
graados, ocorridos entre pessoas pertencentes s mais varia-
das classes sociais. uma comdia de costumes, que explora,
sobretudo, o amor contrariado que, aps algumas peripcias
vividas pelas personagens, consegue triunfar, num final feliz.
Distingue-se da comdia antiga, que, desenvolvendo-se no s-
culo V a.C., teve Aristfanes como principal representante e
cujas caractersticas eram a agressividade, a stira pessoal, os
ataques a figuras conhecidas da sociedade, o tom poltico; di-
ferencia-se tambm da comdia mdia, cultuada por Antfanes
e Alxis, no incio do sculo IV a.C., e caracterizada pela uti-
lizao de temas mitolgicos.
A P O E SIA LA TIN A | 2 7
Baseando-se nos textos compostos pelos autores que se de-
dicaram comdia nova, os comedigrafos romanos pratica- ram no raro a contaminao (contaminatio), fundindo nu- ma nica pea duas ou mais obras gregas.
As histrias desenroladas nas comdias latinas se passam,
em geral, em cidades da Grcia; as personagens tm nomes
gregos e as prprias roupas utilizadas pelos atores imitavam as
vestes helnicas. Da o qualificativo de paliata (palliata) con-
ferido a tal espcie de comdia: o plio (pallium), usado pelos atores principais, era uma espcie de manto, muito comum
na Grcia.
Os tipos freqentes na comdia romana representam tam- bm uma herana grega: a jovem raptada por piratas e subme-
tida explorao de um mercador-proxeneta (leno); o soldado que parte para o Oriente e retorna com incrveis histrias; o
parasita que se apega a um protetor e passa a viver a expensas
deste; os escravos estrangeiros, as flautistas, os msicos.
As comdias latinas tm estrutura interna semelhante
das helnicas, mas no possuem coros; apresentam partes fa-
ladas (diuerbia), geralmente em metros jmbicos, e partes
cantadas (cantica), nas quais os versos deveriam ser adequa-
dos melodia, o que talvez seja herana da satura primitiva. Embora houvesse, usualmente, um prlogo, as comdias no
eram divididas em atos, s vindo a sofrer tal diviso muito
mais tarde.
Dessa poca, chegaram at nossos dias as comdias de Plau-
to e as de Terncio. Perderam-se as de Ceclio, escritor gauls
que viveu em Roma no incio do sculo II a.C., delas restan-
do apenas cerca de quarenta ttulos.
2 8 | A LITERATURA LATINA
As comdias de Plauto
A exemplo de Lvio Andronico, Plauto (Titus Maccius Plautus - 250?-184? a.C.) foi tambm um verdadeiro homem de teatro, desempenhando simultaneamente todas as funes
relacionadas com a arte cnica.
Atribuiu-se a ele a autoria de mais de cem comdias - o
que jamais veio a ser comprovado. Vinte e uma resistiram at
nossa poca, conservando-se quase na ntegra e tendo, at
hoje, alguma atualidade: Anfitrio (Amphitruo), Os burros (Asinaria), A marmita (Aulularia), As Bquides (Bacchides), Os prisioneiros (Captiui), Csina (Casino), O cofre (Cistellaria), O gorgulho (Curculium), Epdico (Epidicus), Os Menecmos (Me- naechmi), O mercador (Mercator), O soldado fanfarro (Miles gloriosus), Ofantasma (Mostellaria), Opersa (Persa), Psudolo (Pseudolus), A corda (Rudens), Estico (Stichus), O trinumo ( Tri- nummus), Truculento (Truculentus), A valise (Vidularia) e O cartagins (Poenulus).
Anfitrio, Os Menecmos e A marmita esto entre as mais conhecidas.
Em Anfitrio, Plauto se vale da lenda mitolgica que en- volve o nascimento de Hrcules, construindo uma trama em
que Jpiter, apaixonado por Alcmena, esposa de Anfitrio,
adquire as feies do marido ausente e seduz a bela mulher. O
resultado uma srie de engraadas confuses. Mesclam-se na
comdia cenas burlescas e srias, conferindo-lhe foros de tra-
gicomdia. So numerosos os trechos cantados. Desfrutando
de grande popularidade, graas, em parte, ao erotismo impl-
cito, a pea de Plauto serviu de modelo para Cames (Auto dos Enfatries), Molire (Anfitrio), Antonio Jos da Silva (Anfi- trio ouJ piter eAlcmena) e Guilherme Figueiredo ( Um deus dormiu l em casa), entre muitos outros.
A POESIA LATINA | 2 9
Os Menecmos uma comdia em que tambm se explora a confuso provocada pela semelhana de pessoas: Menecmo,
um jovem de Siracusa, chega a Epidano aps ter percorrido
toda a Grcia procura de um irmo gmeo, desaparecido na
infncia, em Tarento. Ao desembarcar em Epidano, onde vivia
o irmo, comea a ser confundido com ele pelas pessoas que
ali residiam (a amante do irmo, a esposa, o parasita). H uma
srie de engraados quiproqus que levam, finalmente, ao co-
nhecimento da verdade. Nessa pea se baseou Shakespeare ao
escrever A comdia dos erros.
A marmita , simultaneamente, uma comdia de intriga e de personagem. a histria de um velho avarento, Euclio,
que encontra na lareira de sua casa uma marmita cheia de
moedas de ouro, ali escondida anos atrs por seu av. Euclio
oculta seu achado no templo da Boa-F, mas a marmita des-
coberta pelo escravo de Licnides, jovem rico e de boa famlia
que seduzira, alguns meses antes, a filha do avarento. Ao saber
que seu prprio tio pedira a moa em casamento, Licnides
resolve reparar seu erro, desposando-a. O escravo devolve a
marmita a Euclio e este a oferece aos jovens namorados. Em-
bora algumas partes estejam perdidas, a comdia revela o vir-
tuosismo de Plauto no manejo dos mais diversos recursos c-
micos: ao, gestualidade, linguagem, quiproqus, etc. A mar-
mita inspirou a conhecida pea de Molire, O avarento, bem
como O santo ea porca, de Ariano Suassuna. Alm dessas comdias - importantes em si mesmas e tam-
bm pela influncia que exerceram sobre a dramaturgia pos-
terior -, algumas outras devem ser mencionadas pelas qualida-
des que apresentam.
O cofre, A corda, A valise e O gorgulho so peas curiosas nas quais jovens raptadas na infncia descobrem a identida-
3 0 | A LITERATURA LATINA
de graas a elementos indicadores, tais como joias e outros
objetos; Estico e Psudolo pem em realce as figuras de escra- vos espertos e trapalhes, mas devotados a seus jovens amos;
O soldadofanfarro - comdia que inspirou A iluso cmica, de Corneille - extrai sua comicidade das cenas em que um
militar a servio do rei da Sria se v enganado por seus com-
panheiros.
Opersa tem aspectos que lembram os mimos: uma co- mdia movimentada, cheia de cantos e danas exticas; em-
bora o enredo seja comum (um escravo disfarado em orien-
tal vende uma moa livre a um mercador e este obrigado a
arcar com o prejuzo), Plauto se utiliza de grande quantidade
de expresses burlescas e injuriosas, que provocam, evidente-
mente, o riso. A comdia Osprisioneiros se diferencia das de- mais pela ao, pelas personagens e pela linguagem: no h
intriga amorosa e cenas de maroteira, nem personagens-tipo,
freqentes nas outras obras, tais como mercadores de escra-
vas, parasitas e soldados fanfarres. A linguagem sbria, sem
os trocadilhos grosseiros que caracterizam outras comdias. O
enredo gira em torno da figura de Hegio, pai de um jovem
que fora aprisionado na guerra da Etlia. O velho compra dois
escravos para troc-los pelo jovem prisioneiro. Um deles, en-
tretanto, outro filho de Hegio, que fora raptado por pira-
tas, na infncia.
Muitos so os mritos de Plauto, como dramaturgo. Ape-
sar de no dispormos dos textos gregos que lhes serviram de
modelo - quase nada da comdia nova resistiu ao impacto do tempo -, h elementos indiscutivelmente originais nas
peas. certo que os assuntos e os cenrios so gregos; h,
porm, um processo de romanizao nas comdias: costu-
mes romanos so evocados a todo momento; deuses latinos
A POESIA LATINA | 31
coexistem com divindades gregas; algumas personagens tm
os ntidos traos de personalidade que caracterizam o povo
romano. Temos, em A marmita, exemplos excelentes desse processo: o prlogo recitado pelo deus Lar, a divindade
protetora da famlia romana, sem similar na teogonia hel-
nica; h referncias ao costume romano de distribuir-se, na
cria, moedas de prata aos cidados pobres; a marmita con-
tendo ouro escondida no templo da Boa-F, outra divin-
dade autenticamente latina; uma das personagens, a velha
Eunmia, tem a energia e a autoridade de uma tpica matro-
na romana.
Os prlogos de Plauto so originais. Alm de haver ele con-
cebido um tipo de prlogo que podemos considerar didti-
co", no qual se oferecia ao pblico um resumo da pea a ser
representada, para melhor entendimento, temos neles, por
vezes, interessantes informaes. Em O cartagins, por exem- plo, o ator que recita o prlogo faz referncias ao pblico que
freqentava o teatro:
Estou com vontade de imitar o Aquiles de Aristarco: Vou usar o mesmo comeo daquela tragdia:
Faam silncio, calem-se e prestem ateno:
quem ordena que vocs ouam o rei de Histri...onice. Sentem-se em seus bancos com boa disposio de esprito:
tanto os que no comeram como os que esto de barriga cheia. Os que comeram, agiram com a cabea;
Os que no comeram, que se fartem, agora, com a comdia.
Quem tinha o que comer, puxa vida!
foi burrice ter vindo sem comer. Vamos, anunciador, mande o pessoal prestar ateno.
Faz horas que estou esperando que voc faa a sua parte.
Use sua voz; ela que lhe d meios de vida e comida.
Se voc no falar, morrer de fome, calado.
[...]
3 2 | A LITERATURA LATINA
E vocs, agora, observem minhas ordens: que nenhuma prostituta se sente aqui na frente,
[...] que os escravos no ocupem o lugar dos homens livres,
[...] que as amas cuidem das crianas pequenas em casa,
em vez de traz-las para verem o espetculo; assim elas no precisam sentir sede, as crianas no morrem de fome
e no berram aqui, como cabritos desmamados; que as senhoras vejam o espetculo em silncio, que
riam silenciosamente,
e que saibam moderar, aqui, o rudo de suas vozes esganiadas;
que elas tagarelem em casa para que, ao menos aqui,
no irritem os homens como fazem quando esto em casa.
(Pl. Poen. 1-35)
Plauto no se descura de nenhum dos recursos que pos-
sam produzir hilaridade, provocando gargalhadas. A intriga
engraada, havendo comdias, como A marmita, Epdico, O
trinumo, em que duas intrigas se cruzam. A ao dramtica cuidada, cheia de surpresas e reviravoltas. O cmico de gestos
insinuado constantemente, sobretudo nas cenas de correria
e pancadaria. As palavras que o escravo Estrobilo dirige ao ve-
lho avarento, em A marmita, sugerem os gestos que acompa- nham as falas:
Que loucura esta? O que que eu tenho com vocs?
Por que maltratar-me desse jeito?
Por que voc me puxa? Por que me bate?
(Pl. Aul. 632-633)
As personagens muitas vezes so construdas especialmen-
te para produzirem o riso; da seu carter frequentemente ca-
A POESIA LATINA | 3 3
ricatural. Os escravos merecem especial ateno do escritor.
Embora exageradas, as figuras de Plauto tm personalidade
prpria. Por essa razo estranha-se que em Csina os figuran- tes se assemelhem a fantoches - fato explicvel, no entanto, se
considerarmos a obra em questo como uma espcie de stira
contra a obscenidade.
A linguagem de Plauto extremamente trabalhada como
recurso cmico em si. Manejando a lngua, o escritor se vale
de todas as oportunidades para demonstrar sua capacidade de
comedigrafo hbil em fazer rir. Os nomes das personagens so
muitas vezes estranhos e engraados: Filoplemo, Engsilo, Es-
talagmo (Os prisioneiros); Terapontgono (O gorgulho); Ago- rstocles, Anterstila, Antemnides, Colibisco, Sincerasto (O
cartagins); Arttrago, Pirgopolinice (O soldado fanfarro). Neologismos e helenismos ponteiam o texto, provocando efei-
tos engraados. Em O cartagins, Plauto insere numerosas fra- ses em idioma pnico, provavelmente desconhecido, mas ex-
celente como recurso cmico, graas presena de combina-
es fnicas inusitadas.
Grande parte desses recursos se perde na traduo. Difi-
cilmente podem ser mantidas, em outro idioma, as aliteraes
colidentes, as repeties cheias de comicidade, os trocadilhos
espirituosos, maliciosos, muitas vezes, responsveis por expres-
sivo nmero de confuses.
Todos esses elementos, combinados, garantiram a Plauto
a popularidade e o sucesso de que desfrutou, o renome que
veio a ter mais tarde e a fama duradoura que o acompanhou,
estendendo-se posteridade.
3 4 | A LITERATURA LATINA
As comdias de Terncio
Bastante diferentes das de Plauto, as comdias de Terncio
(Publius Terentius Afer 185?-l59 a.C.) so mais sutis, mos- trando que foram escritas para um pblico refinado e culto.
Embora fosse Terncio um estrangeiro - seu prprio nome
revela origem africana -, embora tivesse vindo a Roma como
escravo e se iniciasse muito cedo na vida literria, com menos
de vinte anos, as seis comdias que escreveu testemunham sua
habilidade e talento. Como Plauto, Terncio se inspira na co-
mdia nova, praticando a contaminatio com certa liberdade;
como Plauto, dedica-se composio de palliatae e assume, tambm, no trabalho teatral, as funes mltiplas de autor,
ator e diretor de cena. As caractersticas das peas dos dois au-
tores, todavia, so bastante diferentes. Enquanto Plauto escre-
ve comdias movimentadas, cheias de correrias, atropelos e
cenas de pancadaria, Terncio d preferncia a uma ao mais
tranqila; no faltam, porm, em suas comdias, peripcias
dramticas e aventuras galantes. Os prlogos de ambos se di-
ferenciam em sua prpria estrutura: os de Plauto contm,
quase sempre, um resumo da pea a ser representada (necess-
rio, evidentemente, dado o nvel cultural do pblico a que se
destinava); os das comdias de Terncio so verdadeiros ma-
nifestos pessoais, no se tendo certeza se teriam, realmente,
sido escritos pelo comedigrafo. O estilo e a linguagem dos
dois escritores tambm apresentam peculiaridades inconfun-
dveis. A lngua de Terncio se aproxima da de Plauto no que
diz respeito presena de traos arcaizantes, mas no se ob-
servam nas obras daquele a superabundncia de recursos c-
micos obtidos a partir de uma utilizao especial de signifi-
cantes e significados. Apesar de um pouco maneiroso, o estilo
A POESIA LATINA | 35
de Terncio polido e elegante. Os vulgarismos e trocadilhos
que arrancavam gargalhadas dos espectadores das comdias de
Plauto so substitudos, nas peas de Terncio, por figuras de
estilo freqentes, mas que no chegam a comprometer o tom
coloquial da linguagem.
No que se refere s personagens, Terncio trabalha com as
figuras tradicionais da comdia nova: velhos, jovens, escravos, cortess, mercadores. Consegue, porm, dar-lhes caractersti-
cas prprias, analisando-as psicologicamente e afastando-se
dos tipos meramente convencionais.
O tom romano que impregna as comdias de Plauto desa- parece em Terncio, cujas peas so helenizadas ao extremo.
Os prprios ttulos das comdias so em grego: Andria (A moa de Andros), Adelphoe (Os irmos), Hecyra (A sogra), Eu-
nuchus (O eunuco), Heautontimoroumenos (O autopunidor), Phormion (Frmio). As intrigas so pouco variadas. A predile- o de Terncio recai sobre histrias de belas escravas pelas
quais se apaixonam jovens de boa famlia, contra a vontade
dos parentes. Aps algumas peripcias, descobre-se que as mo-
as so livres e realiza-se o casamento.
A histria, entretanto, muitas vezes apenas um ponto de
partida para reflexes de diversas ordens que conferem ao tex-
to um tom moralizante. o caso de Os irmos, por exemplo, comdia considerada pela crtica como uma das melhores do
autor, com a intriga bem conduzida, o dilogo vivo e a lin-
guagem variada. No decorrer dos episdios que a compem,
tomamos contato com dois velhos irmos, um dos quais en-
tregara ao outro um de seus dois filhos, para que ele o criasse.
Os velhos encaram a educao de forma totalmente diferente.
O pai dos jovens vive no campo e d ao filho que permaneceu
com ele uma educao severa e rgida; o outro velho, soltei-
3 6 | A LITERATURA LATINA
ro, vive na cidade e educa o sobrinho com extrema liberali-
dade. O rapaz, que mantinha relaes com uma moa pobre,
ajuda o irmo a raptar uma citarista, assume a responsabilida-
de do ato e desentende-se, por essa razo, com os familiares
da namorada. As coisas se esclarecem com a ajuda do tio e a
pea, como no podia deixar de ser, termina bem. Comdia si-
multaneamente de costumes, de caracteres e de intriga, Os ir-
mos mostra-nos, ao lado de cenas engraadas, momentos em que a amizade sincera - capaz at mesmo de censurar - se une
delicadeza de sentimentos e comicidade. O monlogo abai-
xo, no qual o velho Micio se dirige ao filho adotivo, procu-
rando faz-lo ver os erros cometidos e aconselhando-o, mostra-
nos o bom senso do ancio que sabe agir com firmeza, mas tam-
bm com carinho e amor:
Eu conheo seu bom carter, mas estou com medo de que voc seja relaxado demais.
Em que cidade voc pensa que vivemos? Voc abusou de uma moa na qual no tinha o direito de tocar. Foi um erro grave, mas errar humano. Outros j fizeram isso e eram honestos. J que a coisa est feita, tudo bem.
Mas voc chegou a refletir sobre isso? Chegou a questionar-se
sobre o que fazer, como fazer? Se voc ficou com vergonha
de falar comigo, como eu poderia ficar sabendo? Enquanto ficou hesitando dez meses se passaram. Voc enganou sua prpria pessoa, essa infeliz e a criana, que dependiam de voc. O que isso? Voc pensou que os deuses iriam preparar tudo, enquanto voc dormia?
E que ela iria para sua casa, sem que voc fizesse nada? Eu no gostaria de ver voc continuar assim, desligado de tudo.
Mas voc tem bom corao. Vai casar-se com ela.
(Ter. Ad. 684-896)
A POESIA LATINA | 3 7
A comdia togata e tabernaria
Terncio foi o ltimo comedigrafo importante que se de-
dicou palliata. Na sua poca vinha-se desenvolvendo, em
Roma, um novo tipo de comdia, de assunto romano - a co-
mdia togata, assim denominada porque nela as personagens
masculinas de nvel social mais elevado se vestiam com a toga,
a indumentria, por excelncia, do romano. Entre os princi-
pais representantes dessa modalidade de comdia podemos
lembrar Titnio e Afrnio, escritores que viveram no sculo II
a.C. e de cujas obras h alguns fragmentos.
A comdia togata, no final do sculo II a.C., cede o lugar
a uma forma inferior, a comdia tabernaria, que explora acon-
tecimentos passados em tabernas, freqentadas por pessoas de
classes sociais humildes. A tabernaria pode ser considerada como a ltima manifestao da comdia latina. Seu lugar vai
ser ocupado por outras modalidades teatrais que, vindas do
passado, assumem dimenses literrias no sculo I a.C. e re-
sistem at a poca imperial: a atelana e o mimo.
A atelana
Originria, ao que tudo indica, da cidade osca de Atela, a
atelana era, no incio, uma espcie de farsa popular, vivida por
personagens fixas, burlescas e caractersticas: Maccus, o comi- lo de orelhas grandes, sempre infeliz em seus casos de amor;
Bucco, o parasita tagarela; Pappus, o velho namorador; Dosse-
nus, o corcunda espertalho. Aparentada com o drama satrico, com a hilarotragdia e
com a farsa tarentina, a atelana era representada por persona-
3 8 | A LITERATURA LATINA
gens mascaradas - os ancestrais, por assim dizer, da famosa
commedia dell'arte. Vazada, inicialmente, em linguajar rsti- co, a atelana se intelectualiza, aos poucos, assumindo dimen-
ses literrias no comeo do sculo I a.C., quando Nvio e
Pompnio compem textos para as representaes.
O mimo
Originrio da Grcia, o mimo se desenvolveu na Itlia e
foi considerado como uma das primeiras formas do primitivo
teatro latino. Caracterizando-se pela presena do gesto mmi-
co, da expresso corporal e da dana - elementos com os quais
se representam aes caricaturadas -, o mimo encontrou ex-
presso literria no sculo I a.C., com Labrio e Publlio Siro,
tornando-se, na poca de Augusto e durante toda a primeira
metade do sculo I de nossa era, uma das principais formas de
entretenimento teatral do romano.
Contribua grandemente para isso a licenciosidade dos di-
tos e as danas lascivas executadas sobretudo por mulheres, al-
gumas vezes completamente nuas. A nudatio mimarum (desnu- damento das mimas) era frequentemente exigida pelo pblico.
As cenas mais escabrosas eram tambm as mais aplaudidas.
O mimo d origem a duas outras formas teatrais que, na
poca imperial, acabam por substitu-lo: a pantomima, repre-
sentada por atores mascarados e versando sobre assuntos mi-
tolgicos ou extrados da realidade, cmicos ou srios, e o ar-
quimimo, espetculo grandioso e imponente, no qual se re-
presentavam histrias complexas, com grande nmero de per-
sonagens, e cuja parte musical ficava a cargo de um coro e uma
orquestra.
A POESIA DRAMTICA: A TRAGDIA
Assim como ocorreu com a epopeia e com a comdia, a
tragdia latina tambm se originou da grega, baseando-se em
um modelo que se constitua no produto final de uma longa
evoluo.
Muito j se discutiu sobre a origem da tragdia helnica.
Em que pese o fato de diversas opinies em torno desse as-
sunto se controverterem, no se tem mais dvida de que a tra-
gdia grega, de cunho acentuadamente religioso, represente a
transformao e o aperfeioamento do ditirambo - cntico
coral entoado por grupos, durante certas festividades em hon-
ra dos deuses. A alternncia entre um cantor nico e o coro
marcou, provavelmente, o aparecimento do primeiro embrio
de tragdia - embrio que ganhou estatura prpria no momen-
to em que, em certas passagens, um ator substituiu o cantor,
recitando um texto e representando por meio de gestos e mo-
vimentos. Com o passar do tempo, a tragdia se fixou em sua
estrutura formal. Desenvolvendo temas mitolgicos e, vez por
outra, histricos, apresentando um enredo em que se desen-
4 0 | A LITERATURA LATINA
rola e progride uma ao, a tragdia passou a constituir-se de
episdios vividos por atores, alternados ou mesclados com
cnticos corais. No sculo V a.C., a tragdia grega atingiu
seu apogeu com os textos de Esquilo, Sfocles e Eurpides.
No sculo IV a.C., ao escrever a Potica, Aristteles comps uma verdadeira teoria da tragdia, definindo-lhe os traos es-
senciais.
Em Roma, como j se disse, at 240 a.C. nada fora pro-
duzido que se assemelhasse ao que a Grcia j havia feito em
matria de teatro. Nesse ano, os romanos foram brindados
com um espetculo teatral que consistiu na apresentao de
uma pea - no se sabe se tragdia ou comdia - traduzida do
grego.
Lvio Andronico, o liberto tarentino que traduzira a Odis- sia, se encarregou desse mister, divulgando em Roma, na pr- tica, os princpios que norteavam o teatro helnico. Aps esse
primeiro trabalho, dedicou-se inteiramente ao teatro. Tradu-
ziu ou adaptou comdias e tragdias, restando destas ltimas
alguns fragmentos de pouca importncia. A linguagem de L-
vio Andronico pouco harmoniosa e seu estilo desigual. Suas
tragdias, porm - Aquiles (Achilles), Andrmeda (Androme-
da), jax (Aiax), Dnae (Danae), O cavalo de Troia (Equus
troianus), Egisto (Aegisthus), Hermone (Hermione), Ino (Inos)
e Tereu (Tereus) -, puseram os romanos em contato com o tea- tro grego e abriram portas para seus sucessores.
Embora tivessem sido muitos os escritores latinos que se
dedicaram produo de tragdias nesse perodo literrio, ne-
nhuma permaneceu, na ntegra, at nossos dias; os fragmen-
tos suprstites, porm, permitem que se faam algumas obser-
vaes sobre elas. Por meio deles sabemos que o estilo de N-
vio deixa entrever certa rudeza primitiva; que os textos de
A POESIA LATINA | 41
nio se caracterizam pelo tom declamatrio e filosfico; que
Pacvio (220-130 a.C.) se utilizava da linguagem solene e
grandiosa, buscando, com frequncia, efeitos patticos, en-
quanto cio (170-86 a.C.) possua grande capacidade descri-
tiva e explorava amide temas de herosmo a terror.
Da poca de Ccero (80-43 a.C.) e da de Augusto (43 a.C.-
14 d.C.), embora numerosos escritores tivessem composto
peas trgicas - Cssio, Quinto Ccero, Balbo, Vrio Rufo, Ov-
dio, Mamerco Escauro, Pompnio Segundo -, pouca coisa se
preservou para a posteridade: versos esparsos, uma ou outra
notcia, alguma referncia curiosa. No sculo I d.C., em com-
pensao, surge em Roma um punhado de tragdias que no
apenas conseguem atravessar os sculos, perdurando at hoje,
como vo exercer profunda influncia sobre a literatura dra-
mtica que se produzir depois. So as tragdias de Sneca, o
filsofo, a figura mais significativa das letras latinas da poca
dos prncipes jlio-claudianos.
As tragdias de Sneca
Dotado de grande talento, dono de invejvel formao
cultural, sensvel e brilhante, Sneca (Lucius Annaeus Seneca - 4 a.C.?-65 d.C.) comps tragdias inspiradas em modelos he-
lnicos, sobretudo nas peas de Eurpides. Uma delas, Asfen-
cias (Phoenissae), encontra-se incompleta. provvel que o prprio autor no tenha chegado a termin-la. Talvez os dois
longos fragmentos que restam - aos quais se atribuiu o ttulo
- nem sequer fizessem parte do mesmo texto, uma vez que
no existe nenhuma seqncia entre eles: no primeiro h um
dilogo entre dipo, que fugia da ptria, e Antgona, que pro-
4 2 | A LITERATURA LATINA
cura consol-lo; no segundo Jocasta expe a uma das filhas o
penoso drama que vive: prepara-se para presenciar a luta de
morte que se travar entre seus dois filhos.
As demais tragdias conservaram-se praticamente na n-
tegra. Hrcules no Eta (Hercules Oetaeus), texto atribudo a Sneca, no qual se focaliza o cime de Dejanira e a morte de
Hrcules, no monte Eta, tem sido objeto de controvrsias em
relao autoria. A loucura de Hrcules (Hercules furens) ex- plora o enlouquecimento do heri e a trgica e cruel morte
de seus filhos e da esposa, por ele executados.Trs tragdias se
ocupam de lendas avulsas, mas bastante exploradas pela lite-
ratura: dipo (Oedipus), inspirada no dipo-Rei de Sfocles e bastante prxima da fonte grega, relata a desgraa que aco-
mete o rei de Tebas quando este se cientifica dos crimes he-
diondos que cometera involuntariamente; Fedra (Phaedra) nos coloca diante da rainha cretense, violentamente apaixo-
nada pelo enteado, causando-lhe a perdio e a morte; Me- deia (Medea) mostra-nos o desvario da princesa-feiticeira que, desprezada pelo amante, dele se vinga assassinando os filhos.
As trs restantes focalizam histrias que tm por personagens
membros da amaldioada famlia do Pelpidas: Tiestes (Tyes- tes) narra-nos uma lenda brutal - a do terrvel Atreu, que, para punir o irmo, mata-lhe os filhos e lhe serve a carne das
crianas num macabro banquete de "confraternizao; As
troianas (Troades) e Agammnon (Agamemnon) se valem do material lendrio oferecido pela chamada saga troiana: em As troianas acompanhamos a srie de infortnios enfrentados pelas sobreviventes de Troia, ao terminar a guerra; em Aga-
mmnon nos defrontamos com a histria do rei de Micenas, que, ao retornar ao lar, encontra a morte, planejada pela pr-
pria esposa.
A POESIA LATINA | 4 3
Por vezes se atribui tambm a Sneca a composio de
Otvia (Octavia), a nica tragdia romana de assunto histrico a ter subsistido at hoje. A crtica, todavia, geralmente a con-
sidera como obra apcrifa.
Sneca o ltimo autor dramtico romano a desfrutar de
importncia literria, embora suas tragdias, escritas talvez mais
para a leitura do que para a representao, se ressintam de cer-
ta falta de teatralidade.
No sculo I de nossa era, o teatro nos moldes clssicos j
no atraa tanto o espectador. Os mimos, com sua leveza e ale-
gria, com danas, msica, presena de mulheres e cenas de nu-
dez, eram muito mais apreciados do que as antigas comdias e
as austeras tragdias. Alm disso, os espetculos circenses,
grandiosos e violentos, expandiam-se cada vez mais, disputan-
do com o teatro a preferncia do pblico.
Sneca escreveu peas possivelmente para serem lidas em
sesses pblicas, freqentadas por uma elite familiarizada com
os velhos mitos e habituada com textos em q