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A Linhagem

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Londres do século XVIII. A capital da Inglaterra era um dos mais importantes centros do mundo. Vestidos pomposos, elegância e boas maneiras. Um tempo onde as posses e a reputação regiam a sociedade. A igreja possuía poder absoluto e condenava aqueles os quais pesava a suspeita de bruxaria – a arte oculta temida e repudiada pelo senso comum. Nesse cenário intimidador, surge uma mulher especial, com dons inimagináveis. E um destino grandioso...

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A linhagem

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A linhagem

CAMILA DORNAS

COLEÇÃO NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

São Paulo 2013

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Copyright © 2013 by Camila Dornas

Produção Editorial Novo Século

Assistente Editorial Nair Ferraz

Diagramação Selma Consoli - MTb 28.839

Capa Monalisa Morato

Preparação Bárbara Cabral Parente

Revisão Equipe Novo Século

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da

Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:

1. Romances : Literatura brasileira 869.93

2013

IMPRESSO NO BRASIL

PRINTED IN BRAZIL

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À

NOVO SÉCULO EDITORA LTDA.

CEA – Centro Empresarial Araguaia II

Alameda Araguaia, 2190 – 11º Andar

Bloco A – Conjunto 1111

CEP 06455-000 – Alphaville – SP

Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 2321-5099

www.novoseculo.com.br

[email protected]

Dornas, Camila

A linhagem / Camila Dornas. -- Barueri, SP : Novo Século Editora,

2013. -- (Coleção novos talentos da literatura brasileira)

1. Romance brasileiro I. Título. II. Série.

12-13417 CDD-869.93

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Para minha mãe, por compreender

quando eu me trancava horas e horas

na companhia da minha imaginação.

Te amo, baixinha.

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Primeiramente, agradeço ao meu querido amigo Fábio... Sem

você meu sonho não teria sido possível.

E é claro, a minha fã número 1: Sheyla Alves, por me inspirar

nos momentos “mulherão” das personagens, por sempre me tirar

do estresse quando eu precisava. E por acreditar em mim.

A Juliana Bottino, que foi a primeira para quem eu mostrei uma

de minhas histórias. Obrigada pelas críticas, pela emoção e pelas

horas que passava conversando sobre meus personagens comigo,

como se eles tivessem vida própria. E cá entre nós, para nós duas,

sempre tiveram.

A minha baixinha, por sempre me incentivar nessa maravilhosa

jornada que é contar histórias. E ao meu pai, porque não é preciso

estar por perto para ser uma parte de mim.

E fi nalmente, a todos aqueles que acreditaram em mim, mesmo

quando eu achava impossível. Vocês foram e sempre serão uma

fonte de inspiração.

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I

Londres - Inglaterra - 1720– Evangeline! – ouvi Morgana gritar no andar de baixo. E

ouvi passos cada vez mais urgentes nas escadas. O barulho destoante

me fazia imaginá-la correndo escada acima, as pernas curtas, uma

maior que a outra. Sentei-me na cama larga, sentindo a maciez do

tecido de linho egípcio. Esperei que Morgana entrasse. Segurei uma

risada quando ela parou na porta e vi a expressão em seu rosto. Sua

testa estava franzida, e os lábios formavam uma linha fi na, como

sempre acontecia quando ela estava furiosa.

– Lina, você nem começou a se aprontar ainda! Sabe o que seu

pai fará se você se atrasar para seu próprio noivado!

– Acalme-se, Mor, vou chegar elegantemente atrasada – falei,

dando de ombros.

O rosto dela assumiu um tom vermelho gritante, achei que ela

poderia acabar explodindo. Então estalou a língua em desaprovação

e colocou as mãos de dedos grossos na cintura.

– Dez minutos é, elegantemente, um atraso. Uma hora é um

sacrilégio!

Morgana foi até meu armário de madeira escura e antiga, in-

crustado com detalhes de prata e dourado, e o revirou até encontrar

o vestido mais pomposo e elegante. Mais uma noite sem respirar,

pensei. Ela se virou com o vestido nas mãos, mostrando-o como se

dissesse: Não é tão ruim, querida, você ainda tem um vestido incrível.

Soltei um gemido abafado quando Morgana apertou os nós do meu

espartilho até que eu mal sentisse minhas costelas. Suspirei, como

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se isso mudasse alguma coisa. Eu ainda teria que vê-lo esta noite,

ainda teria que sorrir e fi ngir que estava tudo bem.

Levantei-me e fi quei olhando a estante ao lado de minha cama.

Havia pequenas estatuetas e pequeninas lembranças de minhas

viagens a Paris, Índia e toda variedade de lugares. Peguei uma esta-

tueta de uma deusa indiana que ganhara de um mercador na Índia

quando ainda era criança. Eu não lembrava qual era a função da

deusa, mas ela tinha feições gentis que me fi zeram fechar os olhos

e fazer uma prece silenciosa.

Notando a minha expressão triste, Morgana se aproximou e

sentou-se ao meu lado. Tocou minha bochecha perfeita com os

dedos calejados.

– Minha querida, você deve se sentir honrada, seu pai escolheu

para você o melhor noivo da cidade. Imagine casar-se com alguém

da realeza, querida, é uma honra incomparável.

Eu estava sendo atormentada por isso nos últimos meses. Todos

se achavam no direito de me dizer o quão maravilhoso era me casar

com o primo do rei. E depois de passar tantas horas trancada na bi-

blioteca lendo poesia, eu tinha uma ideia de como minha vida deveria

ser dali em diante, e casar-me com um desconhecido não fazia parte

dela. Encarei o jornal em cima de minha escrivaninha. Uma manchete

sobre Hector Callum, meu futuro noivo, piscava diante dos meus

olhos, anunciando mais um de seus feitos de incrível diplomacia na

última reunião de Whitehall, o Ministério de Relações Exteriores.

Na foto, ele tinha um sorriso diplomático no rosto. Ultimamente, em

cada lugar em que eu ia, notícias sobre aquele homem me perseguiam.

Podia ouvir os burburinhos das criadas no corredor sempre que eu

passava; todos pareciam falar dele para mim em qualquer lugar que

eu fosse. Sentia-me torturada lentamente. Como meu aniversário de

vinte anos tendo sido há semanas, era claro que eu estava a passos

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de me tornar uma solteirona e precisava me casar com urgência,

como Eleanor, a mulher de meu pai, me lembrava, mas eu decidiria

meu futuro. Não importam quais as consequências. Encarei os olhos

castanhos de Morgana, cheia de malícia no olhar, e sorri.

– Se tudo der certo, no fi nal da noite, eu não terei noivo ne-

nhum. Não deixarei que nenhum homem decida meu futuro, Mor

– eu disse, decidida.

Morgana arregalou os olhos, realçando as rugas de expressão

por toda a testa. Com os cabelos grisalhos um pouco fora do lugar,

arrepiados, e aquela expressão que era uma mistura de preocupa-

ção, exasperação e carinho, ela se parecia exatamente como eu me

lembrava por todos esses anos. Ela cuidara de mim por toda a vida,

uma vez que minha mãe havia morrido de tuberculose quando ain-

da era uma garotinha. Morgana era a única fi gura maternal que eu

havia conhecido. Ela nunca foi do tipo falante, no entanto, também

não julgava. Tinha aqueles olhos gentis que nos faziam confi ar a ela

todos os segredos que nunca contamos a ninguém. Mesmo sendo

apenas uma criada na casa, quando ela vinha à noite e escovava meus

cabelos, enquanto me falava sobre seu dia, eu gostava de acreditar

que ela era minha mãe.

– Lina, você não está pensando em usar seus dons, está? Você

sabe o que farão se descobrirem! Você será queimada, como uma

bruxa.

– Você sabe que sou sempre cuidadosa com meus dons, mas

isso não signifi ca que eu tenha que deixar de usá-los, porque todos

dizem que tê-los é errado.

Morgana abriu a boca como se fosse protestar, mas logo a fechou

novamente e suspirou, sabendo que estava em uma batalha perdida.

– Oh, fi lha, você é especial, você tem um dom maravilhoso,

mas deve aprender a usá-lo com sabedoria.

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Morgana virou as costas e voltou a me vestir e, sem dar mais

nenhuma palavra, seus dedos ágeis trabalhavam por todos os

padrões intrincados de meu vestido. Segurei-me para não revi-

rar os olhos, odiando cada segundo de toda a responsabilidade

que residia em meus ombros por ser a fi lha de um dos homens

mais importantes da cidade. Encarei a enorme pintura envolta

em uma moldura dourada que eu mantinha bem acima de minha

cama. Era um retrato de minha mãe. Os olhos da cor de

esmeralda, exatamente como os meus, os cabelos louros quase

dourados, caindo em ondas delicadas sobre as costas, e a pele tão

alva quanto leite. Ela tinha uma expressão engraçada no rosto, um

sorriso travesso, como se escondesse um grande segredo, mas os

olhos me pareciam tristes na pintura. Sua mão pairava perto de

um medalhão de ouro com um “R” bem grande marcado na frente

e um pequeno coração de rubi como fecho. Eu me parecia muito

com ela. Não tinha nada em comum com meu pai. E, na verdade,

não queria ter.

Julian Bennett era o tipo de homem que você não consegue

imaginar como uma criança risonha. Ao longo dos meus vinte anos,

nenhuma vez sequer ouvira uma palavra gentil de sua boca. Ele era

o grande marquês de Winchelsea. Ocupava uma cadeira importante

na Câmara dos Lordes e um posto de respeito como conselheiro do

rei. Não havia nada que importasse a ele, a não ser sua reputação

impecável e uma fortuna incalculável.

Ele havia se casado novamente depois da morte de minha mãe.

Sua nova esposa, Eleanor, não era nada mais que uma desconhecida

para mim, apesar de tomar café da manhã com ela todos os dias.

Ela não era mais que uma presença pálida na mesa. Sempre se en-

colhendo a qualquer palavra de Julian. Não queria imaginar minha

mãe parecida com aquilo.

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A pintura em minha parede era a única de minha mãe na casa

inteira. Tive que salvá-la de uma fogueira, onde Julian queimou

todos os seus pertences, e, mesmo assim, meu quarto era o único

lugar onde meu pai permitia que eu colocasse seu retrato. Sempre

quis saber onde estava o pequeno medalhão, mas desconfi ava que

ele estivesse perdido para sempre com as lembranças de minha mãe

que Julian enterrara.

– Minha pequena estrela-guia, você está deslumbrante! – Mor-

gana falou, tirando-me de meus devaneios.

Dirigi-me ao enorme espelho em meu quarto, observando

meu refl exo. Um longo vestido caía, como um lago negro sob o céu

da meia-noite, sobre meu corpo cheio de curvas, o tecido pesado

e delicado destacava minhas belas formas; um lindo colar, incrus-

tado com pequenos rubis, pendia entre meus seios fartos, combi-

nando com a cor rubra de meus lábios, destacados como sangue

sobre a pele muito pálida. Grandes olhos verdes como esmeraldas

me encaravam desgostosos de volta ao espelho, e, por fi m, meus

cabelos dourados caíam em ondas delicadas e perfeitas até a cintu-

ra, entretanto, grandes olheiras chamavam atenção em meu rosto,

resultado das noites sem dormir por causa dos pesadelos.

Tudo em que eu conseguia pensar era que trocaria aquilo: a

riqueza, os criados; tudo para ser normal, nem que eu tivesse que ser

uma simples camponesa. Nem que eu tivesse que trocar a perfeição

pálida de minha pele por uma castigada pelo raro sol de Londres.

Tirei os olhos do espelho. Eu sabia como ninguém que lamentar-se

nunca adiantara, então por que fazê-lo?

– Vamos. Estou pronta.

Morgana sorriu para me encorajar, os olhos castanhos brilhando

como os de uma menina. Era até fácil esquecer o quão velha ela era.

Apoiei-me nos braços dela e respirei fundo, preparando-me para a

noite que seguiria.

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Desci as escadas para o grande salão, onde meu pai sempre fazia

seus bailes luxuosos, nos quais eu era obrigada a comparecer. Todos

os rostos se voltaram para mim. Desde homens elegantemente ves-

tidos, que me encararam com desejo, a mulheres com seus vestidos

de milhões de camadas, que me encararam com inveja. Burburinhos

se fi zeram ouvir sob o som da orquestra. As mulheres, sempre um

passo atrás de seus maridos, sussurravam umas com as outras e

exibiam seus modos perfeitos.

O salão estava decorado com mil candelabros, uma longa mesa

no centro servia um banquete, com sofi sticados pratos parisienses.

A luz suave conferia ao ambiente um ar de mistério. As sombras se

projetavam na parede de pedra e formavam padrões intrincados.

Músicos tocavam uma canção suave para que vários casais danças-

sem com graça. Alguns dos homens admiravam as obras de arte

pelo salão, fazendo comentários como: “o artista realmente captou

a alma apaixonante da modelo”, que deveriam provar que eles eram

inteligentes e cultos, mas não provavam nada além de hipocrisia.

Honestamente, eu passara uma semana em uma academia de arte

com uma querida amiga, que estudara comigo no período do in-

ternato, contra a vontade de meu pai, é claro, e trouxera a pintura

comigo como uma lembrança. Gostaria de saber o que os homens,

analisando a pintura em questão, achariam dela, caso soubessem o

que Genevieve realmente queria dizer quando a fez.

Morgana me soltou e lançou uma de suas caretas irritadas, que

expressavam mais do que uma pessoa normal conseguiria dizer em

uma frase inteira.

– Não faça nada do que possa se arrepender depois, Lina.

Ela tocou meu rosto de leve e suspirou com um ar de “não sei o

que fazer com você, Lina”, e foi para a cozinha antes que eu pudesse

dizer qualquer coisa. Nem mesmo Morgana poderia me convencer

a ser alguém que eu não era.

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Eu ainda estava presa em meus devaneios quando senti a mão

de alguém em meu ombro. Um homem me chamava para dançar.

Tentei conter um gemido. Era baixinho e franzino, e me estendia

a mão. Sua careca reluzia de um jeito estranho. Tinha um rosto

extremamente infantil, considerando a idade avançada.

– Srta. Bennet, conceda-me o prazer desta dança – o homen-

zinho falou, mostrando os dentes pontudos.

Aceitei com relutância e coloquei minha mão na sua, arrependi-

-me no mesmo instante; a palma da mão suada e os dedos grossos

me davam uma sensação de mal-estar. E o fato de o homem ter a

metade da minha altura era inquietante, principalmente conside-

rando que sua cabeça estava à altura exata do meu busto. Como se

isso não fosse o sufi ciente, ele gabava-se incansavelmente de seus

negócios por toda a cidade. Parei de ouvir mais ou menos quando

ele chegou à parte onde contava sobre seu vinhedo na França. Ten-

tei me lembrar de quem ele era. Tinha a impressão de já tê-lo visto

antes conversando com meu pai. Acho que se chamava Sr. Evans.

– Administrar um vinhedo não é uma tarefa fácil, tenho sempre

que estar por perto para monitorar a qualidade das uvas e certifi car-

-me de que estão fazendo um bom trabalho com o vinho...

Balbuciei alguma coisa brilhante como “Humpf ” e ele pareceu

fi nalmente desistir de puxar assunto.

Depois do Sr. Evans, vários outros se aproximaram, alguns eram

bons dançarinos, outros educados, e tinha ainda os que esmagavam

meus pés a cada passo. Não me dei ao trabalho de lembrar o nome

de todos eles. Simplesmente obriguei meus pés a se moverem no

ritmo da música.

Em seguida, um homem me chamou para dançar, mordi a

língua para evitar alguma resposta rude. Deixei uma desculpa na

ponta da língua. Virei-me para ver quem era. Os olhos âmbar bri-

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lhavam travessos, os cabelos castanhos perfeitamente alinhados, o

nariz meio torto por já ter sido quebrado várias vezes. Ele sorria

para mim. Desta vez, tive que me conter para não colocar os braços

em volta de seu pescoço em um abraço apertado.

– Albert! – exclamei.

O rosto familiar que me encarava me trazia inúmeras recor-

dações da infância. A cicatriz embaixo do lábio inferior me fazia

lembrar o outono, quando o desafi ei a uma corrida nas margens do

rio Tâmisa; além de uma derrota, ele ainda sofreu uma queda no

porto, onde quase perdeu dois dos seus dentes. Até mesmo sua forma

esculpida e o peito largo me faziam lembrar de quando ele era fran-

zino e magrelo, e eu conseguia bater nele sempre que queria; agora,

com uma cabeça a mais de altura que eu, ele quase não se parecia

com aquele garotinho. Eu quase não conseguia me recordar da mi-

nha vida antes de conhecê-lo. Devido aos negócios que nossos pais

faziam juntos quando éramos crianças, eu convivia com ele desde

então, mas se há algo do qual posso ter certeza é que Julian odiaria

saber que somos bons amigos até hoje. Nem mesmo todo o dinhe iro

que a família de Albert tinha (que ele vivia perdendo em jogatinas

em mesas de pôquer por todo o país), nem mesmo isso faria Julian

aceitar que eu quebrasse uma regra muito importante: nunca fi car

sozinha com homens com os quais não pretendo me casar um dia.

Então sempre que podia (ou quando não estava caindo de bêbado

em algum lugar), Albert vinha me ver escondido ou acompanhava

seu pai, lorde Heron, em suas visitas para que conversássemos por

horas a fi o. Afi nal, quem suporta as conversas intermináveis de

nossos pais sobre a monarquia? E ainda dizem que são as mulheres

que falam demais.

– Dar-me-ia o prazer dessa dança? – ele disse com uma forma-

lidade fi ngida, que usávamos em público, e sorriu.

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– Mas é claro – estendi minha mão para ele em um fl oreio

desnecessário.

Misturamo-nos à multidão de pessoas que dançava. Pela pri-

meira vez na noite não desejei que a música acabasse logo.

– Eva, você deveria colocar um sorriso em seu rosto ou logo

vão achar que está aprontando alguma coisa.

Ele piscou para mim.

Eu sorri. Albert sempre sabia o que se passava em minha cabeça.

– Eu, tramando alguma coisa? Até parece que não me

conhece – ri.

Ele levantou uma sobrancelha indagadora, mas mantive meus

lábios selados. Se ele tivesse sorte, poderia ver minha pequena

performance de “noiva perfeita” em primeira mão esta noite. Ao

perceber que eu não diria nada, Albert logo mudou de assunto.

– Vi você com aquela linda camponesa ontem, você deveria

me apresentá-la.

Ele olhava para uma linda garota de cabelos castanhos, que

acompanhava um comerciante riquíssimo, e que se mantinha sempre

a dois passos de sua senhora, parecendo assustada por estar cercada

de tantas pessoas. Eu sorri.

– Você pretende se casar com ela, Albert? – disse brincando.

Albert fez uma careta, ele achava casamentos um desperdício

de tempo e vitalidade. Mas tinha um dom natural para corromper

garotas aparentemente inocentes. Revirei os olhos. Decidi que, por

via das dúvidas, era melhor tentar mantê-lo longe da pobre dama

de companhia.

– Logo você é quem estará casada – ele disse, olhando-me

piedoso e me girando em mais um rodopio.

– Não se esta noite ocorrer como planejado. Eu serei tão odiável

que a ideia de passar a vida comigo será repugnante para ele – disse.

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Ele apenas me olhou debochado.

– Eva, ele não vai ligar para o quanto você é insuportável en-

quanto você tiver esses traços angelicais.

É o que veremos, pensei.

Dançamos por mais algum tempo, falando sobre coisas frívolas.

Até que senti aquela sensação incômoda que vinha me perseguindo

nos últimos meses. Um frio na espinha que fez os pelos do meu braço

se eriçarem. Eu podia jurar que alguém me observava. Percorri o

salão com os olhos, procurando. Percebi um homem entre os pilares,

observando-me com olhos insondáveis. Ele estava parcialmente

escondido nas sombras, mas eu ainda podia ver o quanto ele era

bonito. Seu queixo fi no e bem defi nido, os lábios rosados e perfeitos

e cabelos negros, contrastando com toda a sua palidez; os olhos eram

acinzentados, como o céu logo antes de uma tempestade. Ele vestia

uma capa preta, que o fazia se misturar às sombras. Sorriu para mim,

causando um arrepio em minha nuca. Meus pés se moveram em

sua direção, quase sem que eu notasse, mas em apenas um piscar de

olhos, ele desapareceu nas sombras, tão rápido que cheguei a pensar

se ele não era apenas um fruto de minha imaginação.

– Você está bem? – Albert perguntou.

– Sim, estou ótima – respondi distraída, mas minha resposta

não convenceu nem a mim mesma.

– Tem certeza quanto a isso? A última vez que a vi tão distante

foi quando roubou aquele anel de safi ra de sua irmã? Lembra-se

disso?

Eu estava distraída, os olhos de tempestade do homem gravados

em minha mente, olhos estes que podiam ou não ser uma alucina-

ção. Por isso, não ouvi realmente o que Albert dizia e nem notei a

aproximação de minha irmã – leia-se cobra traiçoeira.

– Oi, irmãzinha – uma voz fria me cumprimentou.

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Eu me virei e dei de cara com minha irmã mais nova, Margaret.

Ela vestia um longo vestido cor-de-rosa, os cabelos tinham o mesmo

tom dourado que os meus, mas os olhos não eram esverdeados e

grandes, mas sim da cor da terra, como os do pai. A pele era um

pouco mais bronzeada. E ela me encarava como se pudesse arrancar

minha cabeça a qualquer instante.

– Como vai, Sr. Gray? – O olhar de nojo para ele foi dez vezes pior.

Albert lhe deu um sorriso amarelo.

– Estou ótimo, adorável, Srta. Bennett. É sempre um prazer

revê-la. – O olhar no rosto dele dizia que ele também não hesitaria

em cortar a cabeça dela.

Margaret o ignorou, mesmo quando ele se abaixou e sussurrou

em meu ouvido.

– A louca chegou, como sempre a tempo de acabar com qual-

quer diversão. Eu costumava me perguntar por que ela não cedia às

investidas de um homem como eu, mas logo notei sua insanidade,

então tudo passou a fazer sentido.

Albert não se deu ao trabalho de falar isso baixo o sufi ciente

para que Margaret não o ouvisse; ela, no entanto, agiu como se ele

não houvesse dito nada. Faria o mesmo efeito provocar uma porta.

– Seu noivo está procurando por você – ela informou.

Esforcei-me para não fazer uma careta. Estava prestes a pergun-

tar onde estava Willian, o marido dela, mas não me dei ao trabalho.

Eu quase nunca via Willian, desde que ele se casou com Margaret.

Ele estava sempre no centro, cuidando de algum negócio, não que

eu me importasse. Willian era exatamente o tipo de homem que

agradava a Margaret, ou seja, não lhe dava valor algum; era rico,

pomposo e egocêntrico. A única coisa que me incomodava nisso era

que quanto mais ausente Willian fi cava, mais as visitas de Margaret

se tornavam constantes, e fi car muito tempo ao lado dela podia

causar danos a minha sanidade. Albert se inclinou até meu ouvido.

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– Vá conhecer seu noivo, eu vou falar com aquela linda cam-

ponesa ali.

Observei quando Albert se aproximou da garota com movimen-

tos suaves, aquele sorriso presunçoso que era sua marca. A garota

corou violentamente quando ele se aproximou e a convidou para

dançar. Revirei os olhos. Coitadinha. Antes que ele terminasse seu

jogo, Margaret estava me arrastando baile adentro.

– Você não precisava ser tão rude.

– E você não deveria passar tanto tempo dançando com um

homem que não é seu noivo. Vai acabar envergonhando a família

se continuar a se comportar como uma meretriz.

Senti a raiva borbulhar em meu âmago e desejei não estar no

meio de tantas pessoas, pois gostaria de fazer com minha irmã o

que ela merecia. Senti uma onda de ar frio percorrer o salão, e logo

depois uma bandeja caiu. Respirei fundo e tentei me acalmar, a

última vez em que fi quei furiosa quase destruí a casa.

– Minhas companhias não são da sua conta – disse.

Margaret me olhou com desprezo, e depois me ignorou com-

pletamente. Fiquei feliz em seguir seu exemplo.

Ela parou em um canto mais isolado do baile, onde um homem

alto virado de costas me esperava. Aproximei-me em passos fi rmes,

tentando mostrar, com minha postura, que eu não seria um objeto

de sua diversão. Ele observava uma pintura que demonstrava a úl-

tima caça às bruxas na cidade há mais de um século. Uma mulher

deformada, com chifres e presas, queimava em meio a chamas de

um amarelo exagerado, enquanto dúzias de cidadãos erguiam tochas

com os olhares famintos fi xos na fogueira. A pintura era a ideia que

Julian fazia de um aviso silencioso, e eu estaria mentindo se dissesse

que não me causava arrepios.

Margaret murmurou alguma coisa sobre ir procurar por Willian

e foi embora.

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O homem se virou. Os olhos negros como um abismo me en-

cararam com um brilho malicioso e faminto no olhar. De repente,

senti frio.

– É um prazer fi nalmente conhecê-la, Srta. Bennett.

A voz dele era fria como aço. Os cabelos louros criavam um

grande contraste com seus olhos negros, tinha uma pele macilenta e

um nariz aristocrático; mesmo sendo levemente franzino, ele emitia

uma aura de poder que me dava calafrios. Havia em seu peito várias

medalhas expostas com orgulho sobre uma faixa vermelha. Usava

um casaco com botões de ouro e um tecido rico, ajustado exatamente

para ele. Vendo que eu não respondi nada, ele disse:

– Eu sou Hector Callum.

– Sei quem você é – disse, com a voz fria e indiferente.

Hector não se deixou abalar pelo meu comportamento e fez

uma reverência, estendendo a mão para uma dança. Com relutância,

misturamo-nos aos casais que dançavam pelo salão.

– Estou feliz em tê-la como minha noiva – ele disse devagar,

como que esperando que eu absorvesse as palavras e pulasse de

alegria.

– Eu não posso dizer o mesmo.

Ele mais uma vez ignorou. Hector segurava minha cintura

de um jeito possessivo, prendendo-me em seu abraço. Sentia-me

como um animal que acabava de ser preso em uma armadilha. Es-

tava prestes a empurrá-lo para longe quando notei meu pai com os

olhos grudados em nós dois, em alerta. O rosto severo e marcado

pelo tempo, a barba longa começando a fi car grisalha e os olhos

cor de terra eram cruéis, mesmo quando ele conversava com lady

Marshall e fi ngia-se encantador. Eu quase sentiria pena da esposa

de meu pai, Eleanor, se ela não fosse uma cobra.

– Você é ainda mais linda do que eu imaginava. Posso dizer que

os rumores sobre sua beleza são fi éis à verdade.

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Os olhos de Hector pareciam novamente famintos.

– E no fi nal, isso é tudo o que importa, não é mesmo? – eu

disse insolente.

Hector não deu nenhum sinal de irritação, continuava com

um sorriso falsamente estampado no rosto bonito. Soltei-me de

seu abraço com esforço.

– Tenho que cumprimentar os outros convidados.

E me virei para ir embora, mas Hector agarrou meu pulso com

fi rmeza. E quando o olhei novamente, ele não sorria mais. O rosto

assumira traços cruéis. E os olhos estavam em chamas.

– Não é educado deixar seu futuro marido falando sozinho,

Srta. Bennett.

– Também não é educado ignorar os convidados, Sr. Callum.

Ele fi cou ainda mais furioso, deixando-me com um frio incô-

modo na barriga.

– Você não precisa deles. A partir de hoje, você é minha.

Essas palavras me encheram com uma fúria sem controle, eu

odiava ser tratada como propriedade de quem quer que fosse. A raiva

toldou minha visão e deixou minha respiração irregular. As chamas

de todos os candelabros se apagaram e logo depois acenderam no-

vamente. Um ruído agudo indicava que mais partes do banquete

estavam caindo no chão. Senti o poder pulsando em mim, prestes

a me consumir. Eu sabia que se não me controlasse, logo causaria

uma tempestade no salão. Ou até mesmo um incêndio.

– Não sou um objeto para pertencer a ninguém.

Soltei-me de seu aperto, deixando-o perplexo. Observei a reação

das pessoas ao meu redor como se tudo estivesse estranhamente

lento. Em um momento, as pessoas dançavam, conversavam e riam,

e então, vagarosos, perceberam que havia algo terrível acontecendo.

Várias pessoas começaram a correr e a gritar, desesperadas; algumas

ainda pareciam confusas, mas tudo que eu via era a curiosidade

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fria e furiosa de Hector. Corri para um canto atrás de um pilar, o

vento batia forte em meu rosto como se eu estivesse no olho de um

furacão. Tentei me acalmar, enquanto meu pai gritava, tentando

conter os convidados.

Com muito esforço, e depois de quebrar praticamente toda a

louça, consegui parar o fl uxo de energia que corria pelas minhas veias.

Mas o salão ainda mostrava bandejas de prata caídas no chão e um

candelabro de vidro quebrado em mil pedacinhos. Os convidados

pareciam confusos e perdidos. E isso era apenas o começo de uma

tempestade; se eu não me controlasse, não sabia o que restaria da

tão preciosa mansão de Julian. Acima de todo o barulho, ouvi meu

pai gritar.

– As janelas foram fechadas, podemos voltar ao baile!

Era possível que só eu tivesse ouvido a falsa calma no tom cal-

culado que Julian escolhera? Somente eu podia notar o nervosismo

com que ele olhava de um lado para o outro, buscando no rosto das

pessoas se elas acreditaram nele ou não? Mas é claro que eu era a

única. Se havia alguma coisa que eu poderia ter em comum com

Julian era que ambos éramos muito bons em guardar um segredo.

No meio de toda a confusão, avistei um homem charmoso que

me encarava novamente com lindos e insondáveis olhos acinzentados.