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A letra litoral1
Heloisa Caldas
Palavras chave: Letra; objeto; literatura; psicanálise.
A psicanálise tem pouco mais de um século de vida e dois nomes: Freud e Lacan.
São dois nomes significativos que já suscitaram a produção de pilhas de textos, teses,
biografias. Acrescento mais uma dessas iniciativas, mas ressalto, de saída, o nome próprio
desses homens, seu caráter de letra, de signo de outra coisa, do que não se esgota na
significação. Vou tomá-los pelo viés do enigma do criador, do inventor, daquele que viu o
que não se via antes, pensou e disse o que ainda não se tinha pensado ou ouvido e deixou,
às gerações futuras, um legado de uma riqueza inesgotável.
Antes de Freud não havia isso que se chama psicanálise, inconsciente, desejo no
sonho. O Outro de Freud2, seu paradigma, era a ciência e foi em seu nome que ele
descobriu a razão inconsciente; pois para ele se tratava de uma descoberta.
Lacan, que nasceu e viveu contemporâneo à descoberta freudiana, não foi apenas
mais um seguidor do mestre, um entre outros a sustentar a teoria. Ele inventou o que Freud
descobrira. Pelo que indica sua produção, foi o estatuto do saber da psicanálise, sua posição
junto à verdade, o que funcionou como Outro para Lacan. Seu desejo passeou inicialmente
pela reinvenção dos conceitos freudianos até alcançar a construção de um saber Outro,
distinto da ciência, mais próximo da arte, uma psicanálise Outra daquela dos pós-
freudianos.
Falar em descoberta é crer, como na ciência, que há coisas que são e estão aí para
serem encontradas, de um real prévio ao discurso. Falar em invenção é radicalmente
diferente: coisas são criadas a partir de um vazio, como na conhecida metáfora do vaso e do
oleiro3. O vaso, uma vez criado, não pode mais ser chamado de ficção, ele é verdadeiro.
1Trabalho produzido como parte da pesquisa do curso de doutorado no Instituto de Psicologia da UFRJ, área de concentração de Psicologia Social e da Personalidade, sob orientação da Prof. Dra. Vera Lopes Besset e apresentado em mesa redonda no Colóquio Cem anos de Jacques Lacan, organizado pela UFRJ e EBP-Rio em 12/12/01. 2 Freda, H. “O adolescente freudiano”, Adolescência: o despertar, Org. Heloisa Caldas. Rio de Janeiro: Contracapa livraria, 1997. 3 Reugnault, F. Em torno do vazio – a arte à luz da psicanálise. Rio de Janeiro: Contracapa livraria, 2001.
Mas de que verdade foi feito? Qual era a verdade do vaso antes do vaso ter sido feito? Era
do oleiro a verdade do vaso? Ou o oleiro só encontra sua verdade depois que lhe sai das
mãos o vaso?
A psicanálise é esse vaso e dessa olaria celebramos aqui seu século de verdade. A
verdade de Lacan, não apenas como leitor de Freud, mas do Lacan inventor que criou a
psicanálise para um novo tempo – uma psicanálise mais irmã da arte do que filha da
ciência. Nessa minha contribuição vou me deter na conjunção e disjunção da psicanálise
com uma das formas de arte – a literatura.
A literatura foi muito apreciada por Freud a julgar pelo lugar de destaque que teve
na teoria servindo, inclusive, de material para demonstração de muitos conceitos. No
entanto, o tratamento que Freud deu à literatura em articulação à teoria difere muito do de
Lacan. Freud usava o texto literário como um texto ao qual se podia aplicar a interpretação
psicanalítica. Ele fazia corresponder a criação literária às formações do inconsciente
propondo que o artista promoveria com sua obra, assim como em um sonho, o retorno do
recalcado e a realização de um desejo4. Essa perspectiva colocava o texto literário como
pretexto de outro texto, cuja verdade era para ser traduzida, descoberta, além de permitir
que se interpretasse o desejo do autor. Há contrapontos dessa posição de Freud como
quando ele atribui à criação um enigma e ao artista um saber que o cientista trabalha para
demonstrar5 . No entanto, predomina na psicanálise freudiana a análise do artista, o
deciframento da fantasia na criação, a promoção de uma psicologia do autor. Constata-se
assim um esforço de explicar a arte pela psicanálise, uma psicanálise aplicada à arte como
ressalta François Regnault6.
A perspectiva de Lacan é diferente. O objeto de arte não pode ser interpretável pois
seu criador não se situa no mesmo lugar de discurso que o analisando na experiência
analítica – o lugar daquele que fala e espera ouvir. A interpretação psicanalítica sobre o
sujeito não cabe, portanto, fora da autorização da fala endereçada a um sujeito suposto
saber, de onde se espera o eco do que se produziu. Ou seja, as condições que determinam a
ética da interpretação psicanalítica não se aplicam à obra. Ainda que a arte alcance um
público, no caso da literatura o leitor, este não constitui um lugar de endereçamento que
4 Freud, S. Escritores criativos e devaneios (1907), ESB, vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 5 S. Freud, Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen (1907), ESB, vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 6 Reugnault, F. Em torno do vazio – a arte à luz da psicanálise. Rio de Janeiro: Contracapa livraria, 2001.
obedeça às mesmas balizas que as da psicanálise. Dessa forma, Lacan opera uma inversão e
propõe que não se aplique a psicanálise à arte, mas, ao contrário, que devemos aplicar a arte
à psicanálise. Privilegiando de Freud a postura de que os artistas sabem e precedem o
analista, ele pretende que a arte possa ensinar à psicanálise7. Em psicanálise o analista é o
lugar do sujeito suposto saber. Na arte, o artista é o sujeito suposto saber que pode ensinar
ao psicanalista sobre seu saber fazer com a linguagem. O psicanalista pode assim comentar
o objeto de arte mas será ele quem receberá, nesse próprio comentário, sua interpretação8.
Essa inversão não se dá por um mero jogo de posições na lógica discursiva. É uma
inversão conseqüente às elaborações lacanianas de significante, letra, sentido, fora do
sentido e, em especial, gozo. São concepções que podem ser destacadas na natureza dupla
da letra: por um lado suporte para a mensagem, por outro lado sua natureza de objeto,
dejeto sem outra função do que a de receber um destino. A letra pode produzir sentido e
permite a significação, a ficção, mas a letra também é puro objeto de gozo, sem mais
utilidade que a de fazer gozar, ao cabo do quê ela é resto. Desta forma, a letra serve de
suporte e funciona como objeto, a duas modalidades de gozo: o gozo do significante, do
sentido, gozo que parasita a mensagem e se serve da cadeia em seu endereçamento. E gozo
da letra, da diferença que se registra pelo traço; a letra como litura (rasura).
Em sua trajetória teórica Lacan parte da letra em seu aspecto de endereçamento e
criação de subjetividade. O escrito “A carta roubada”, que abre sua coletânea Escritos, é o
exemplo clássico dessa abordagem9. Mas no curso de seu pensamento outra concepção vem
revolucionar a letra/carta de endereçamento. A invenção do conceito de objeto a alcança o
próprio significante ao revelar que este também se presta ao gozo e não se limita à tentativa
de dizer sobre esse gozo. De forma mais radical, em “L’Étourdit” 10, Lacan propõe que o
aparelho da linguagem é aparelho de gozo e, em “Lituraterre”11 que a letra é litoral entre o
sujeito e o objeto, dois campos heterogêneos e indissociáveis. A produção de sentido, o
endereçamento não desaparecem, mas sua causa se desloca da dialética do desejo para se
subordinar ao gozo.
7 Lacan, J. “Hommage fait a Marguerite Duras, du ravissemente de Lol. V. Stein”, Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. 8 Miller, J.A. “Sept remarques sur la création”, Lettre Mensuelle. Paris: ECF, n°68, avril, 1988. 9 Lacan, J. “ A carta roubada”, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1998. 10 Lacan, J. “ L’étourdit”, Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. 11 Lacan, J. “Lituraterre”, Autres écrits. Paris: Seuil, 2001.
Aos tradicionais objetos oral, anal e genital freudianos, Lacan acrescentou o olhar, a
voz e a letra. Voz e letra se imbricam: a voz do lado da ressonância que se precipita, que cai
do significante como suporte fônico, e a letra do lado do traço de escrita12. Como objetos
podemos situar a voz na articulação da fala por suas ênfases e modulações, na ressonância
da poesia, na musicalidade dos efeitos sonoros. Um objeto de gozo mais próximo à
produção de sentido – o sentido gozado. A letra como objeto fica do lado do puro traço da
escrita, no desenho, na caligrafia; mais independente da voz e da fala portadora de sentido.
Esse aspecto duplo da letra que, por um lado, produz sentido mas por outro é opaca à
significação permite uma via dupla de acesso à obra literária: podemos localizar suas
coordenadas inconscientes de discurso e, a partir desses termos, um sujeito e um saber, se
tomamos a letra na produção de sentido. Ao contrário, a literatura como uma escrita pura,
da letra em seu impossível de significar torna-se uma escrita Outra do sentido que toma seu
valor do real. A letra é assim o próprio limite entre o gozo do sentido e o gozo fora do
sentido. De um lado veicula um gozo que se pode articular ao Outro na cadeia significante,
um gozo de mensagem e uma mensagem de gozo. Por outro lado é o ponto limite do que se
pode endereçar, dizer do gozo, é a borda de um campo no qual o gozo permanece
impossível ao saber. A essa dupla função da letra Lacan chama de letra litoral levando em
conta que cada letra funda sua face de real.
A literatura como objeto de arte apresenta os dois aspectos, mas pode deixar
prevalecer um ou outro. Na obra de Joyce, Lacan ressaltou a caráter letra de gozo, da letra
lixo da qual Joyce faz pouco caso (faire litière) atirando ao mundo sem cultuar nenhum
respeito ao sentido13. Em outras obras, no entanto, podemos verificar uma pregnância do
aspecto mensagem da letra. De qualquer forma, independente da vertente que predomina na
literatura, seu caráter de objeto nos leva a não tratar os significantes apenas como
operadores da verdade ficcional, mas como signos de gozo.
Esse aspecto duplo da letra também pode ajudar a distinguir uma produção de
objeto na arte neurótica ou psicótica. Do lado da neurose uma produção mais comprometida
com o vazio da falta-a-ser, da castração; uma produção que procura dar lugar e conter esse
12 Miller, J. A. “ Le réel est sans loi”, L’obscur de la jouissance, Revue de la Cause freudienne. Paris:ECF, n°49, novembre 2001. 13 Lacan, J. “Joyce le Symptôme”, Autres écrits. Paris: Seuil, 2001.
vazio. Do lado da psicose um recurso ao imaginário para suprir a falta de um significante
da falta do Outro, que opere a significação fálica não inscrita para esse sujeito14.
A arte assim pode ser aplicada à psicanálise e ensinar sobre as modalidades de saber
fazer com o fazer do simbólico. Lacan situa o inconsciente como esse saber fazer do
simbólico que não cessa de não escrever o encontro faltoso, e assim a arte é considerada
por ele como um saber fazer com esse saber fazer do inconsciente. Um saber fazer elevado
a segunda potência15.
Ora o que se quer de uma análise? Da psicanálise?
Para Freud dizer de um recalcado, descobrir o desejo oculto, e por isso talvez, para
ele, a arte importou como o dizer do artista, sua formação inconsciente; para Lacan um
saber fazer com o gozo, com o impossível de dizer. Logo a arte importa pelo que cria de
objeto, trabalha a letra, inventa para ela usos e sentidos, mas inexoravelmente lhe dá o
destino de resto a ser jogado fora.
Neste sentido, Lacan não deixou de atribuir aos artistas uma posição frente ao seu
gozo que sua arte aplicada à psicanálise ensinou. Gide, Rousseu, Joyce são alguns
exemplos. Porém, ao contrário de Freud, que queria tornar a psicanálise uma ciência, Lacan
tomou a arte não só como bússola, chegou ao ponto de aproximar a psicanálise da arte.
Alguns pontos atestam essa homologia entre arte e teoria psicanalítica: 1) uma semelhança
entre a ressonância da poesia, seu gozo, e a alíngua do traumatismo da linguagem, a marca
de um desencontro contingente, cujos efeitos circunscrevem um campo libidinal; 2) a
criação literária na tensão entre a tradição e o que escapa ao já dito com o conceito de
inconsciente estruturado como uma linguagem, mas uma estrutura que permite um furo, do
qual nasce o lapso, o witz; 3) a mentira da ficção como a única forma possível da verdade;
4) o aparelho da linguagem como um aparelho de gozo; 5) o estilo na transmissão da
psicanálise e na extração da diferença pura que transforma um analisando em analista; 6)
finalmente, na própria concepção de onde se chega em uma análise, para quê ela pode
servir, quando Lacan propõe a transformação do sintoma, o que apela ao sentido, em
sinthome, o que se sabe fazer com o sentido mentiroso que o inconsciente não cessa de
produzir. Laurent chama essa exigência do sintoma de “fazer poético” operando assim sua
14 Miller, J.A. “Sept remarques sur la création”, Lettre Mensuelle. Paris: ECF, n°68, avril, 1988. 15 Lacan, J. Seminário 24 (1976-77). Aula de 18/01/77. Inédito