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A INVESTIGAÇÃO EM EDUCAÇÃO Modelos socioepistemológicos e inserção institucional

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A INVESTIGAÇÃO EM EDUCAÇÃOModelos socioepistemológicose inserção institucional*

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  • Guy Berger**

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    Defende-se a ideia que o debate epistemolgico em torno da investigao educacional temde ser referenciado s transformaes do contexto socioinstitucional onde se insere essainvestigao e as prprias prticas educativas. Numa primeira parte contextualiza-se o aparecimento da problemtica de modelos deinvestigao participada encarando-o como um fenmeno relacionado com as profundastransformaes que sofreu a insero social dos docentes e do campo educativo. Numa segunda parte prope-se uma epistemologia da escuta em oposio epistemologiado olhar em consequncia das caractersticas das prticas educativas. E, finalmente, numa terceira parte analisam-se algumas das mais importantes tendnciasda investigao educacional e reala-se a sua importncia enquanto prticas investigati-vas onde se procura articular o individual e o social e assumir-se a complexidade e multi-dimensionalidade dos fenmenos humanos.

    Introduo

    No tenho inteno de fazer uma verdadeira conferncia sobre investigao em educao,essencialmente por dois motivos. Em primeiro lugar, porque imagino que a maioria de vocs temgrande competncia neste domnio e que alguns dos que me convidaram poderiam faz-la melhor

    A INVESTIGAO EM EDUCAO Modelos socioepistemolgicos

    e insero institucional*

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    ARQUIVO

    * Este artigo resultou da transcrio, traduo e adaptao de uma conferncia proferida pelo autor na Faculdade dePsicologia e de Cincias da Educao da Universidade do Porto a convite do Centro de Investigao e IntervenoEducativas, da responsabilidade de Natrcia Pacheco e Manuela Terrasca. No trabalho de adaptao participou tambmJos Alberto Correia.Publicado originalmente em 1992 na Revista de Psicologia e de Cincias da Educao (3/4, 23-36).

    ** Universit Paris 8 (Sain Denis/Frana).

  • do que eu. Em segundo lugar, porque se quisssemos trabalhar realmente na investigao emeducao, seriam necessrias vrias semanas, visto no ser plausvel admitir-se que, numa hora, sedigam coisas fundamentais sobre investigao em educao.

    Gostaria portanto, de imprimir minha interveno um tom de conversa. Para isso sugiro queno se cobam de intervir, pr questes, fazer comentrios ou realar contradies enquanto eume exprimo, porque isso dar mais interesse ao nosso encontro, j que tambm eu tenho vontadede receber coisas, e a posio de conferencista , no fim de contas, uma posio em detrimentodaquele que fala.

    Sou professor de Cincias da Educao na Universidade de Paris VIII (Vincennes) desde 1968,ano em que foi criada. As autoridades francesas mudaram-na frequentemente de local, convenci-das de que isso a alteraria nos seus comportamentos.

    Se refiro desta forma a minha origem institucional para levantar um primeiro problema emminha opinio fundamental, que diz respeito investigao em geral, mas principalmente inves-tigao em cincias sociais. Refiro-me ao facto de o trabalho de investigao poder ser simultanea-mente encarado de duas formas substancialmente distintas. Por um lado, ele pode ser encaradoessencialmente como um trabalho crtico, isto , como um trabalho de contestao, de problemati-zao das prticas sociais. Mas, por outro lado, ele pode ser definido como um trabalho de inves-tigao na sua forma positiva, isto , como um trabalho que pretende enumerar verdades que seadmite poderem constituir instrumentos de desenvolvimento e de progresso.

    importante realar esta dimenso do trabalho de investigao, porque creio que cada vezque se fala em investigao em educao se est num permanente mal-entendido, ou seja, numaespcie de dupla posio, ora crtica, ora de ajuda ao desenvolvimento, de ajuda tomada dedeciso e, algumas vezes, de ajuda s autoridades. Na realidade, se ao investigarmos porquesomos funcionrios pblicos ou porque de qualquer forma somos pagos para o fazer tomarmosposies crticas, tramos de qualquer forma aqueles que financiam a investigao, o que, tantoem Frana como em Portugal, gera um conjunto de problemas a que no fcil de fugir e queinterferem na forma como conduzimos e nos situamos perante a investigao.

    Feita esta observao, que contextualiza a minha interveno, gostaria de colocar uma ques-to, quanto a mim fundamental, para situar a investigao em educao. Referenciar-me-ei, essen-cialmente, realidade francesa, mas deixo-vos a possibilidade de a transferirem para a situaoportuguesa, naquilo que vos parecer pertinente.

    Presso social para a produo de novos conhecimentos no campo educativo

    Assiste-se hoje, no campo da investigao em educao, ao aparecimento de uma forte pressosocial, de uma espcie de presso permanente, para que sejam produzidos novos conhecimentos,

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  • sejam descobertos novos dispositivos, ao mesmo tempo que se produz uma grande desconfiana,uma recusa quase generalizada de levar a srio os produtos das investigaes realizadas.

    Em Frana, como reflexo desta presso social, verifica-se que desde 1962 isto , desde o fimda guerra na Arglia todas as manifestaes que mobilizaram mais de 500 mil manifestantesdiziam respeito a questes educativas. Pelo emprego movimentam-se 100 mil pessoas, pela segu-rana social 30 mil, pela paz no Golfo consegue-se mobilizar 150 mil, mas quando se trata da edu-cao seja em Maio de 68, ou em 1984 a favor da escola livre, ou nas manifestaes de 1986 enas que se seguiram morte de um jovem beurre1, ou, mais recentemente, nas manifestaesrelacionadas com os acontecimentos liceais o nmero de manifestantes aumenta.

    Tem-se a sensao de que a sociedade s se junta, que, de certa forma, ela s capaz de irpara a rua, quando se trata de questes de educao.

    Trata-se de um fenmeno completamente novo e que pode ser datado. Em Frana, pelomenos, as manifestaes relativas a problemas da educao com a envergadura revolucionria queinvoquei s se realizaram a partir de 1962 e da para a frente s a educao que mobiliza aspessoas.

    Existe, portanto, uma espcie de conscincia pblica incidindo sobre grandes apostas coloca-das de uma forma crtica, mas ao mesmo tempo julgo que h uma espcie de desconfiana quepenso ter relao com algo que fundamental para o conjunto das cincias sociais.

    provvel que esteja a dizer uma banalidade, interessa no entanto real-la.

    Cincias sociais e experincias sociais

    Creio que a diferena essencial entre a investigao nas cincias fsicas, qumicas, biolgicas,etc., e a investigao nas cincias sociais no incide apenas nas metodologias utilizadas, mas fun-damentalmente na relao que temos com estas cincias, ou melhor, na relao entre elas e anossa experincia pessoal. Assim, se eu no aprendi o que a estrutura de um tomo ou a estru-tura de uma onda luminosa, se no me ensinaram, ou no fui informado de que existem sistemasa que chamam o big bang ou mesmo se no me ensinaram que a Terra que anda volta doSol, eu no terei deste conjunto de saberes nenhuma experincia pessoal.

    Ora, tudo o que as cincias sociais dizem e fazem reenvia-nos em geral para qualquer coisade que j temos uma experincia. Mesmo que nunca tenhamos lido Freud, sabemos o que umsonho, como sei, vagamente, que se a minha namorada no veio ao encontro, porque no tinhamuita vontade de vir. Mesmo que nunca tenha estudado Sociologia, sei perfeitamente que o com-portamento de um adolescente diferente conforme ele seja oriundo de uma classe dominante ou

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    1 Designao dada pelos franceses a algum que de origem magrebina nascido em Frana.

  • do proletariado. Mesmo que nunca tenha estudado Economia, tenho algumas ideias sobre o que o mercado, o que um sistema de produo, um sistema de distribuio, etc.

    A investigao em cincias sociais tende, pois, a ser sempre um trabalho de reelaborao, dereinterpretao de um conjunto de fenmenos que todos ns experienciamos. A me ou o pai, opatro com um aprendiz, o irmo ou a irm mais velha de uma outra criana, ou mesmo os agen-tes policiais, tm conscincia do significado de um certo nmero de gestos e de actuaes educa-tivas, que os leva a sentirem-se, de qualquer forma, como especialistas em Cincias da Educao. este um dos motivos porque a investigao nestas cincias surge sempre como uma certa forma-lizao dum saber tendencialmente j constitudo que gera uma relao simultaneamente deexpectativa e de rejeio.

    Um economista que, num municpio, procura explicar ao presidente da Cmara algumas dasleis da economia, ou um investigador em Cincias da Educao que, numa escola, faz um dis-curso sobre o que o professor faz, com um ar de saber mais sobre a prtica deste do que aquiloque a sua experincia pessoal lhe diz, induzem sempre uma situao vivenciada como conflituosa.

    Modelos de abordagem nas cincias sociais

    Pode admitir-se a existncia de dois modelos globais de abordagem do saber no domnio dascincias sociais, em geral, e no domnio das Cincias da Educao em particular.

    O primeiro modelo tributrio do modelo dominante das cincias fsicas, das cincias natu-rais. Situamo-nos numa posio de algum capaz de saber o que os outros no sabem sobre a suaprpria prtica, produzindo um olhar exterior sobre comportamentos considerados como cegos edesprovidos de saber sobre eles prprios. , de qualquer forma, esta a posio, por exemplo, deBourdieu, que, quando analisa habitus dos grupos sociais, afirma que o que o caracteriza ofacto de esse grupo social no saber que o tem, cabendo ao socilogo descobri-lo.

    No segundo modelo admite-se, pelo contrrio, que a tarefa do investigador, a tarefa de cons-truo do saber, precisamente ir buscar junto daqueles que sabem, o discurso de que so por-tadores. Para darmos um exemplo extremo, apontaramos o discurso da etnometodologia ondese considera que o verdadeiro socilogo o cidado, que o verdadeiro educador o professor,o orientador, o pai de famlia, e que o trabalho do socilogo profissional face ao socilogo a quechamaremos profano , de certo modo, ajud-lo a clarificar, a dar conta este termo de darconta bastante forte daquilo a que Garfinkel chama os etnomtodos, ou seja, das prticassociais que so, elas prprias saberes sobre a sociedade. O papel das cincias sociais e, em parti-cular, o das Cincias da Educao seria, em ltima anlise, o trabalhar o saber de que as pessoasso portadoras, e no o de produzir saberes sobre as pessoas coisificadas que elas no seriamcapazes de saber...

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  • A caracterizao breve que fizemos destes dois modelos remete-nos, pois, para um conjuntode questes incidindo sobre a ambiguidade do trabalho de investigao, nomeadamente sobre aambiguidade das relaes que este trabalho mantm com o trabalho dos outros. Ser que,enquanto investigadores, nos situamos numa relao de ajuda, num processo reflexivo com outrosactores, visando evidenciar o que fundamental na sua prtica? Ou ser que, pelo contrrio, nosdefinimos como investigadores do tipo dos investigadores das cincias positivas, que consideramos prticos como objectos de estudo e, consequentemente, desenvolvem sobre eles um saber quesupostamente eles desconhecem?

    Ora, o aparecimento dos prticos-investigadores e o desenvolvimento da investigao tantoem Frana, como em Portugal ou nos Estados Unidos, um fenmeno que, tendo implicaesprticas, metodolgicas e epistemolgicas, tem fundamentalmente um significado social. O pro-blema da participao na investigao, da produo da investigao corresponde de facto a umarevolta de uma espcie de classe mdia no domnio das prticas sociais que se recusa a ver elabo-rar sua margem um saber que a esmaga, que a trata como objecto, e que, em consequnciadesta revolta, procura transformar-se em investigadora de si prpria.

    Tendo-se desenvolvido quer no seio dos trabalhadores sociais, quer entre os enfermeiros, querentre os professores, este fenmeno tende a tornar-se num verdadeiro desafio para a investigao.Um desafio onde intervm tambm um terceiro parceiro o poder poltico que procura jogar opapel de rbitro entre as duas partes definindo, os papis de quem sabe e de quem tem direito aoproduto do conhecimento.

    O confronto entre os dois modelos atrs descritos no , pois, apenas um confronto entre doisprocessos de produo de conhecimentos. Para a sua compreenso, torna-se imprescindvel saber--se em que medida esta produo interfere na forma como esta nova classe mdia que sofreutransformaes importantes procura tomar o poder sobre si prpria.

    Tomemos, com efeito, e a ttulo de exemplo o caso da enfermagem que me parece ser tpico.Uma enfermeira, e digo enfermeira deliberadamente no feminino, era na maior parte dos pases

    uma rapariga sada da pequena burguesia ou mesmo das classes populares, que terminava os seusestudos ao nvel da escola mdia por volta dos 15, 16 anos, fazia uma formao e ia trabalhar commdicos, que em geral eram homens, sados da burguesia ou mesmo das camadas mais altas eque faziam sete ou dez anos de estudos aps o bac2. Neste contexto era, do ponto de vista socio-lgico, um fenmeno perfeitamente explicvel o facto de estas enfermeiras aceitarem ser as exe-cutoras das prescries produzidas pelos machos burgueses e sabedores, pelos mdicos. Ora, aprofisso de enfermeiro sofreu importantes transformaes. Em parte como consequncia da criseeconmica, ela masculinizou-se, ao mesmo tempo que a profisso mdica, em particular nos hos-pitais, se feminizou. Para alm disso, as enfermeiras geralmente acabam os seus estudos secund-

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    2 Bac = bachalaurat, nvel de estudos correspondente ao 12 ano.

  • rios, por vezes comeam mesmo estudos superiores, e fazem uma formao de enfermagem dedois ou trs anos. No caso francs, estas enfermeiras frequentam, para alm do bac, mais cincoanos de escolaridade, enquanto que os mdicos frequentam mais sete anos.

    evidente que perante a atenuao dos smbolos sociais distintivos da profisso de enfer-meiro e da profisso de mdico, se torna insuportvel que os primeiros aceitem ser meros execu-tantes das prescries dos mdicos.

    No ensino passa-se uma situao semelhante. O nvel de formao de um professor, o nvelde formao de um prtico, cada vez mais o universitrio ou ps-secundrio; ou seja, em termosde durao e estatuto, um professor passa por formaes semelhantes s daqueles que se arrogamo poder de serem investigadores e sabedores. No pode, pois, deixar de ser contestado o poder,quer directo quer atravs das instituies, que estes procuram exercer sobre aqueles que ensinam.

    Os modelos de investigao em cincias sociais constituem-se, pois, como modalidades dife-renciadas destas se relacionarem com o pblico e de se integrarem numa espcie de batalha quese trava entre um saber j pr-construdo e um saber erudito. O aparecimento de um saber pro-fano que se contrape a um saber erudito resulta de importantes transformaes sociais que setraduzem por uma reduo da distncia entre os que sabem e os que agem e, consequente-mente, pelo acentuar da luta em torno da posse da produo do saber e do reconhecimento dosaber que se possui3. neste contexto que se deve entender a grande importncia atribuda squestes metodolgicas, j que em torno delas que a investigao procura proteger-se e elasparecem constituir a nica maneira de distinguir o investigador do prtico. O domnio dos mto-dos ganhou pois uma espcie de valor, uma espcie de sobreavaliao, porque, como diriaBourdieu, ele um instrumento de distino entre o investigador e as pessoas sobre as quais eleinvestiga.

    A investigao, o Estado e o pblico

    Particularmente importante no caso da investigao em educao e nos pases que, comoPortugal e Frana, tm a velha tradio de estarem dependentes do ensino pblico, ou seja, tm ohbito de considerarem o ensino pblico como essencial em detrimento dos diferentes ensinosprivados, o segundo conjunto de observaes que interessava fazer incide sobre a natureza dasrelaes que se estabelecem com aqueles que decidem.

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    3 No campo da educao este fenmeno tem-se traduzido nomeadamente pelo facto de a produo didctica tender aser mais profcua entre os professores que agem no terreno do que nas instituies universitrias. neste domnio,efectivamente, que os professores se sentem mais seguros e podem afirmar a sua competncia face aos discursos uni-versitrios e dos centros de pesquisa que lhes parecem falaciosos.

  • Uma das caractersticas mais importantes da investigao em Cincias da Educao o factode ela ser construda para se dirigir em primeiro lugar para aqueles que tm o poder de decidir,dado que ela s poder tornar-se operatria se estiver ligada a um sistema institucional que atransforme em instrues oficiais, normas, programas ou em sistemas de formao. Estabelece-seassim uma relao muito prxima e forte entre os sistemas de investigao em educao e o apa-relho de Estado que a distingue da investigao de outras cincias sociais, como a Sociologia e aPsicologia, e das cincias fsicas. Com efeito, praticamente, no conheo nenhum colquio cient-fico, no domnio educativo, que no conte com a participao de pelo menos um representantedo Ministrio, ao contrrio do que se passa nos colquios de fsicos, socilogos ou especialistasde Bioqumica.

    Embora exagerando um pouco, creio no me afastar completamente da verdade se afirmarque a investigao em educao mantm uma relao extremamente forte com o aparelho deEstado. A importncia desta relao pode explicar-se pelo facto de ela no se poder apoiar noutrosgrupos sociais ou econmicos.

    Se analisarmos, com efeito, a forma como por exemplo se divulga o conhecimento no dom-nio da Medicina, verificamos que, tanto em termos de divulgao dos saberes fundamentais,como de divulgao dos saberes instrumentalizados, ou dos saberes-fazer, os laboratrios farma-cuticos, ou seja, outras estruturas econmicas que no as estatais, desempenham um papel fun-damental. Eles tm interesse em retomar as produes da investigao para produzirem tecnolo-gias de aco, razo pela qual a investigao tanto em Fsica, como em Biologia ou Agronomia,embora estabelea relaes com o Estado, tambm as estabelece com sistemas econmicos eindustriais, que tendo, num certo sentido, todo o interesse em ignor-la, tm tambm todo o inte-resse em a reutilizar e revalorizar. Dir-se-ia que as empresas, sejam elas de produo agrcola ouindustrial, tm um conjunto de expectativas relativamente ao produto desta investigao.

    A relao quase pura e directa que os investigadores em educao tm com os decisoresministeriais, comea a sofrer algumas transformaes, ou, melhor, comeam a desenhar-semudanas nestas relaes que se traduzem por um maior envolvimento, por um aumento docompromisso tanto com a sociedade pblica como com a sociedade civil. Este fenmeno parti-cularmente visvel nos domnios da introduo das novas tecnologias no ensino e da formaoprofissional.

    Talvez uma das grandes diferenas entre as prticas desenvolvidas nestes domnios e o con-junto das restantes prticas educativas resida no facto de a sua continuidade no estar depen-dente apenas dos aparelhos de Estado e dos sistemas de opinio pblica, mas tambm de umconjunto de foras sociais, de foras sociais reais, que no se confundem com os sistemas pbli-cos e os sistemas ideolgicos e que desempenham tambm um papel importante na investigaoa desenvolvida.

    , pois, singular a forma como a investigao em educao se insere no sistema socioecon-

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  • mico. O facto de ela se dirigir essencialmente opinio pblica em geral ou ao poder poltico(mesmo quando pretende contest-lo) induz uma certa estrutura no prprio discurso cientfico4.

    Mas, a grande transformao que se produz actualmente na investigao em educao, talvezno seja uma mudana da investigao, mas a sua descentralizao e o aumento da importnciaadquirida pela escola. Em consequncia destas transformaes produzem-se novos tipos de regula-o que tendem a relacionar directamente o investigador com o prtico introduzindo modificaesquer na linguagem, quer nas caractersticas, quer nos contedos das investigaes desenvolvidas. EmFrana, e creio que em Portugal tambm, as mudanas dos modos de funcionamento dos aparelhosde Estado tm consequncias espantosas na forma como se concebe a investigao em educao.

    Uma ltima considerao sobre a especificidade da insero sociolgica da investigao emeducao deriva do facto de serem os professores aqueles que, maioritariamente, podem vir ainteressar-se por aquilo que se faz e por aquilo que se escreve neste domnio.

    O que parece ser caracterstico do mundo dos professores o facto de eles terem um estatutoprofissional forte, geralmente o estatuto de um funcionrio pblico que contrasta com uma defini-o profissional frgil, se entendermos por definio profissional o conjunto de conhecimentosespecficos (saberes-fazer) e de gestos profissionais que caracterizam o grupo enquanto grupoprofissional. O estatuto tende, no entanto, a autonomizar-se relativamente ao trabalho realizado:um professor no deixa de o ser mesmo que exera muito mal a sua profisso, ou seja, o facto deser um mau professor (utilizo este termo de uma forma vaga) no muda em nada o seu estatuto jque, em princpio, ele no ser demitido por isso nem progredir mais lentamente na carreira.Ora, se a investigao em educao uma investigao que s pode incidir sobre a profisso doprofessor, sempre que ela produz novos conhecimentos ou chega a resultados tende a fragilizar oestatuto do professor.

    Creio que um dos paradoxos da situao educativa que, num certo sentido, a investigao recebida de forma muito ambivalente no mundo dos professores, porque, por um lado, ela tendea fragilizar o seu estatuto e, por outro, pode contribuir para a definio da profisso. Em minhaopinio, um dos maiores problemas mas sei que na Universidade do Porto trabalham sobre isso que se est a construir uma nova identidade profissional dos professores que no se define peloseu estatuto, mas atravs de um efectivo profissionalismo, isto , atravs dos saberes e operaesespecficas que permitiriam caracteriz-los.

    Embora tenhamos conscincia de que aquilo que dissemos sobre a insero social da investi-gao em educao parcial e discutvel, procuramos evidenciar que no se pode falar de investi-

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    4 Gosto de dizer, de uma forma um pouco simplista, que em Frana, a investigao em educao foi terica porque eracentral, dirigia-se ao centro, e era central porque era terica. O discurso de Bourdieu, para dar exemplo, no se dirigeaos prticos ou, se se lhes dirige, para funcionar como ideologista, e funcionando como ideologia pode dirigir-se aosdecisores polticos.

  • gao se no se procurar compreender onde que ela se insere, como que ela percebida erepresentada, a que tipos de valores sociais ela se veicula num dado universo social.

    A identidade da investigao em educao

    Procurarei agora referir-me problemtica interna da investigao em educao para eviden-ciar outras das suas caractersticas.

    A primeira e a mais evidente distino que interessa fazer e aquela a que o mundo universit-rio particularmente sensvel aquela que se estabelece entre investigao sobre educao einvestigao em Cincias da Educao.

    A investigao sobre educao constituda por um conjunto disperso de prticas investigati-vas e de conhecimentos. Os mdicos, por exemplo, fazem de qualquer forma investigao emeducao quando realizam trabalhos sobre os problemas do sono, da aprendizagem ou da terapiae tratamento de indivduos com dificuldades. Tambm os informticos realizam investigao emeducao quando produzem programas lgicos. H pouco referi Bourdieu que, enquanto soci-logo, no aceitaria que se dissesse que realizava investigao em Cincias da Educao.

    A investigao em Cincias da Educao desenvolve-se num pequeno gueto universitrio quese define em funo da universidade e que, de qualquer forma, ao mesmo tempo que procuradistinguir-se e dotar-se de uma identidade, s subsiste porque existem todos aqueles que fazeminvestigao sobre educao.

    O problema da identidade da investigao em educao, que tem consequncias importantesna definio das Cincias da Educao, atravessa todo este dispositivo de investigao. Na reali-dade, quando procuramos definir as Cincias da Educao fazemo-lo, em geral, a partir das disci-plinas, ou seja, a partir de uma investigao que integra o conjunto de trabalhos desenvolvidos apartir de quadros disciplinares reconhecidos, como a Economia, a Sociologia, a Psicologia, certasespecializaes da Biologia, etc. A investigao sobre educao integra pois o conjunto de traba-lhos produzidos a partir destas disciplinas, a partir dos conceitos, metodologias e campos tericospor elas definidos. Sabemos bem a influncia que teve a Economia e a Teoria do Capital Humanono desenvolvimento de um conjunto de trabalhos respeitantes, por exemplo, formao profissio-nal. Em ltima anlise, esta investigao constri-se na aplicao de contribuies de uma disci-plina ao estudo das prticas desenvolvidas num campo social definido, razo pela qual as Cinciasda Educao aparecem como tecnologias. Trata-se de tecnologias especficas ligadas Economia,Sociologia ou Psicologia, ou a outros tipos de aparelhos cientficos que se exprimem e objectivamem aparelhos sociais e materiais que definem o campo das prticas que lhe so caractersticos.Socilogos como Bourdieu, Boudon ou Touraine (que tero equivalentes aqui, em Portugal), bemcomo determinados psiclogos cognitivistas ou certos psicanalistas, fazem investigao sobre edu-

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  • cao. A educao constitui o seu campo de anlise a partir do qual vo produzir um conjunto deconhecimentos e de saberes mais ou menos operatrios.

    Para alm daqueles que fazem investigao sobre educao, existem outros, entre os quais eume incluo, que dizem que o seu trabalho em Cincias da Educao e que afirmaro fazereminvestigao em educao. Eles fazem-na no a partir de um saber constitudo do exterior, masporque pertencem a este universo que simultaneamente o seu objecto, o seu sistema de per-tena, ao mesmo tempo que se constitui como o sistema de finalidades a que se ligam: a suadependncia institucional.

    A investigao em Cincias da Educao, a investigao em educao est assim menosdependente das disciplinas j constitudas e define o seu objecto a partir do conjunto de prticasque dizem respeito ao acto educativo, sejam elas prticas familiares, prticas de ensino ou prticasinstitucionais.

    Para alm desta distino entre investigao sobre educao e investigao em educao, inte-ressava proceder a outro tipo de distines.

    Se lermos os textos produzidos em Frana pelo Ministrio da Educao, verificamos que elesj quase no falam de Psicologia, de Sociologia ou de Economia da Educao, mas procuram esta-belecer uma distino entre anlises macroeducativas e anlises microeducativas. Esta distino,cada vez mais dominante, parece ser inclusivamente seguida nos bacharelatos e nas licenciaturasem Cincias da Educao.

    Existe, pois, uma tendncia para definir as Cincias da Educao j no por referncia a cam-pos tericos, mas atravs de dois tipos de relao com a prtica: relativamente s prticas imedia-tas dos actores (na relao do pedagogo ou do formador com o formando, na relao entre edu-cador e educando, naquelas que num estabelecimento determinado, numa classe determinada enum momento determinado se estabelecem com um objecto determinado), ou, pelo contrrio,relativamente s prticas macrossociais. Nesta noo de macro incluem-se, por exemplo, tanto ainvestigao psicolgica, vista como universal, como a Psicologia Cognitiva, que ser definidacomo to macroeducativa como a Macrossociologia de Bourdieu ou de Boudon.

    A abordagem clnica de um psicanalista, pelo contrrio, ser definida como microeducativa,situando-se ao mesmo nvel que, por exemplo, a anlise das interaces uma sala de aula, dasinteraces entre dois indivduos ou a anlise do que se passa num estabelecimento aqui e agora.Penso ser muito importante ter em conta desta evoluo que, em ltima anlise, consiste em afir-mar que as Cincias da Educao tm um sentido na medida em que as podemos situar por refe-rncia a diferentes nveis de prticas sociais. A entrada para as Cincias da Educao j no sefaria atravs da Psicologia, Sociologia ou Medicina, mas pelo tipo de objecto de anlise escolhido.

    Ao mesmo tempo que redefine o sistema de referncia das Cincias da Educao, esta tendn-cia levanta um outro problema, que todos sentimos de forma intensa. Referimo-nos ao facto deque se o nosso objecto uma prtica seja ele uma prtica de Estado, a prtica de dois actores

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  • individuais ou mesmo a prtica de um indivduo isolado , ento a investigao em educaoarrisca a transformar-se numa praxiologia, isto , no uma investigao que produz conhecimen-tos no sentido clssico do termo, mas uma investigao que produz conhecimentos sobre umcerto tipo de aces. Resulta daqui um outro tipo de ameaas para as Cincias da Educao.

    Recorde-se que o primeiro tipo de ameaas resultava da tendncia para a sua dissoluo emdisciplinas. Ora, quando se coloca o problema ao nvel das prticas, creio que se torna muito dif-cil distinguir o que da ordem da pesquisa do que da ordem do estudo ou da produo deconhecimentos visando a tomada de decises por parte de actores, que tanto podem ser prticosno terreno, como ministros.

    O problema o de se saber onde se situa exactamente a investigao por referncia a umaatitude de se estar em investigao, que uma atitude caracterstica do prtico e do educador.Este, com efeito, seja ele pai ou me de famlia, professor ou formador de adultos, no se limita aaplicar de forma reprodutora um certo nmero de procedimentos, de mecanismos recebidos umavez por todas, mas tambm, em certo sentido, um produtor de mudanas, inovaes, etc. , porexemplo, muito difcil distinguir investigao do estudo quanto mais no seja pelas razes quej invoquei, quando falei das relaes com o Estado e com os poderes pblicos , pois muitofacilmente o investigador em educao se transforma em perito, em consultor, intervindo naescola e implicando-se, nomeadamente, na investigao-aco. Ele tende a afirmar-se simultanea-mente como consultor e investigador do grupo em actividade.

    Um outro problema com que se debate a investigao em educao diz respeito sua pureza.Esta referncia justifica-se pela importncia que no campo cientfico atribuda a esta problem-tica. No , com efeito, obra do acaso a distino que se estabelece entre as cincias puras e cin-cias aplicadas, onde estas se consideram como impuras por se misturarem com problemas sociais.A noo de pureza da cincia remete-nos, pois, simultaneamente para a ideia de conhecimentoque no depende de expectativas e efeitos sociais e para a ideia de pureza disciplinar, isto , paraa exigncia de que a escolha de um corpo de postulados e de mtodos especficos a cada objectono seja poluda ou alterada por noes e conceitos exteriores.

    De acordo com esta definio, pode afirmar-se que em educao no h investigao pura.Em primeiro lugar, porque na investigao em educao, ao contrrio da investigao sobre a edu-cao, nunca nos encontramos num processo exigindo a escolha de um s referente disciplinar,como por exemplo o referente econmico ou sociolgico. Em segundo lugar, porque ela nunca sedesenvolve num processo independente dos sistemas de valores e de aco dos actores interve-nientes numa prtica educativa. Esta dupla mestiagem da investigao em educao levantanecessariamente o problema da definio do estatuto dos conhecimentos produzidos, sendo esteproblema tanto mais importante quanto sabemos que estes conhecimentos se no assemelham aosconhecimentos cientficos tradicionais, dado no serem cumulativos. H, evidentemente, conheci-mentos e dispositivos que nos ajudam a compreender, que nos permitem explicar e que se

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  • apoiam sobre sistemas de validao, mas sabemos bem que, frequentemente, quando se produzum novo conhecimento, muda-se de sistema de referncia. No podemos, por exemplo, adicionaros conhecimentos que seriam produzidos a partir de uma determinada metodologia do ensino doIngls e junt-los com um simples sinal de + a consideraes resultantes da gramtica generativa.No fundo, como a nossa experincia nos mostra constantemente, um determinado conhecimentotem sentido quando integrado num determinado sistema de referncias, razo pela qual na inves-tigao em educao nos encontramos frequentemente numa espcie de relao de oposio deconhecimentos com conhecimentos que no so adicionveis.

    A importncia deste fenmeno no to evidente no domnio das chamadas cincias duras,to-pouco no domnio de uma cincia to impura como a Medicina. O progresso destas, comefeito, parece construir-se atravs da acumulao de saberes, embora, como refere Kuhn, amudana de paradigmas desempenhe um papel importante. No campo da Medicina, por exemplo,embora a Medicina orgnica se tenda a opor Medicina tradicional e tenda a ser contestada peloaparecimento da psicossomtica (que se traduz por um regresso s chamadas medicinas leves),a verdade que, mesmo nestes casos, existem fenmenos de acumulao de conhecimentos.

    Ora, a partir do momento em que nos damos conta de que tudo o que produzimos comoconhecimento est intimamente ligado aos instrumentos utilizados e que, em certo sentido, osconhecimentos produzidos so resultantes da abordagem utilizada, ento os conhecimentos nuncapodem ser considerados como evidncias, como verdades.

    Para mostrar a amplitude deste problema, vou socorrer-me de um exemplo muito preciso.Em Frana desenvolve-se actualmente um debate muito importante sobre o ensino e aprendi-

    zagem da leitura onde se confrontam dois modelos. Por um lado, encontramos os defensores deum modelo de leitura a que poderamos chamar tradicional, isto , os defensores de um sistemade leitura que assenta na capacidade que um sujeito tem de transformar um grafema num fonema,atravs de um sistema de oralizao, utilizando, em seguida, mtodos alfabticos, silbicos, ouglobais. Este modelo ope-se a uma escola representada em Frana, principalmente, porFoucambert, que insiste no facto de a leitura se realizar, de alguma forma, atravs da oralizao designos grficos, sendo, portanto, imediatamente leitura do sentido. Se ler ler o sentido dos sig-nos, ento, a passagem pela oralizao pode constituir um obstculo leitura, um retardamento dasua aprendizagem que pode provocar um conjunto de dificuldades. O que interessante nestedebate que a leitura nunca encarada como uma prtica natural, mas como uma prtica ensi-nada, e que, quando analisamos os dispositivos e resultados experimentais produzidos pelas duasescolas, damo-nos conta de que eles confirmam sempre as teorias dos seus defensores. Se funda-mento a leitura na oralizao, constato que h uma correlao permanente entre o facto de saberler e a capacidade de discriminar sons, razo pela qual se afirma ser a discriminao sonora acondicionar a capacidade de leitura. Mas, se analiso as experincias feitas pela escola deFoucambert, constato que h uma forte correlao entre a capacidade de ballayage visual e,

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  • portanto, da velocidade de percurso perceptivo de um certo nmero de signos e a capacidade deleitura, o que permite admitir que estas duas operaes se desenvolvem simultaneamente.

    No vamos aprofundar esta questo, porque a leitura constituiu apenas um pretexto para mos-trar at que ponto os tipos de conhecimentos que podemos produzir so sempre conhecimentossituados, fazendo parte de totalidades tericas, por vezes prticas, ticas, etc., que fazem com quea confrontao dos resultados da pesquisa seja, muitas vezes, e mesmo na maioria das vezes, umaconfrontao de vises do mundo e de concepes de educao e no um confronto de resulta-dos. Creio que nos confrontamos com um problema extremamente complexo, responsvel pelofacto de os debates em Cincias da Educao no serem, muitas vezes, debates que ponham emrelao conhecimentos, de tal forma que um novo conhecimento infirme um outro, de modo pro-gressivo. A problemtica da falsificao de Popper parece funcionar bastante mal no campo dasCincias da Educao, onde se est mais prximo daquilo que Popper designa por ideologias, isto, de conjuntos coerentes, que se podem opor a outros conjuntos tambm eles coerentes, masentre os quais no se pode cruzar as coerncias.

    De resto, uma coisa que me choca que, sempre que se debate a educao, no h grandediferena entre a forma como a debatem os investigadores e como a debatem os professores, oseducadores ou o homem da rua. Ao fim de algum tempo, damo-nos conta de que se argumenta,de opinio em opinio, de viso do mundo em viso do mundo, e no opondo o conhecimento ignorncia, os factos comprovados aos factos discutveis.

    Esta situao no nos deve, no entanto, conduzir a retirar concluses demasiado pessimistassobre a investigao em educao. Ela constitui um indcio importante de um conjunto de proble-mticas quase inevitveis e incontornveis pelas quais toda a pesquisa em educao no podedeixar de passar. Vejamos algumas delas.

    Da epistemologia da explicao epistemologia da implicao

    A primeira problemtica que gostaria de assinalar uma consequncia do facto de em educa-o no ser possvel falar em investigao sem nos referirmos a esse dispositivo de pesquisa que constitudo pelo prprio investigador. A investigao em educao no se reduz questo dosmtodos e exige um trabalho srio sobre a questo da implicao entendida no no sentidoestrito do comprometimento, isto , do desejo ou da vontade de produzir um determinado conhe-cimento ou de defender determinada legitimidade, mas resultante do facto de em educao nosenvolvermos simultaneamente numa implicao a que alguns chamam libidinal (h o desejo deeducar, o desejo frente ao outro, que nos remi) numa implicao de tipo institucional (onde equando se faz a investigao, a partir de que perspectiva desenvolvida) e, evidentemente, numaimplicao nas prprias metodologias utilizadas.

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  • A problemtica da implicao desenvolvida de uma forma particularmente aprofundada einovadora pelo etnopsiquiatra Georges Devereux. Ele mostra como em toda a investigao que sedesenvolve no domnio daquilo a que ele designa por cincia do comportamento, e que de umaforma mais global abrange o domnio das cincias antropossociais, uma das funes desempenha-das pelas metodologias5 (que integram desde a grelha de observao de aulas, passando peloinqurito por questionrio e respectivo tratamento estatstico) , precisamente, a de construir umaaparelhagem que vai, ao mesmo tempo, proteger o investigador do transfert que o outro faz sobreele. O objecto observado no , de facto, apenas um objecto que se deixa observar ou que res-ponde s questes, mas que ao responder a uma sondagem sobre o leo alimentar ou sobre assenhas do metro responde perguntando-se antes de mais O que que ele quer que eu diga?, isto, o objecto observado pode potencialmente interpelar o observador acerca do prprio processode observao. A resposta que ele d sempre uma interpretao da resposta esperada, o que fazcom que ele aceite essa resposta ou a conteste, razo pela qual ela no apenas a expresso deuma opinio ou de uma interpretao.

    Devereux chama a ateno para o facto de a metodologia utilizada num trabalho de investiga-o, ao mesmo tempo que protege o investigador do transfert, ter sobretudo por funo proteg--lo do contra-transfert, isto , da forma como ele reage atravs de rejeies, aceitaes, satisfaesou angstias quando o objecto de investigao o interpela. Os instrumentos de investigao,mesmo quando so de tipo quantitativo, vo de qualquer forma criar uma relao de distanciaoque o protege contra essa espcie de dupla relao que ele mantm com o objecto, seja ele umanimal ou um sujeito humano, em situao de aprendizagem. Ao mesmo tempo que se consti-tuem num sistema de proteco, estes instrumentos so simultaneamente um sistema de deforma-o da relao do investigador com o objecto educativo, isto , do transfert e contra-transfert quese estabelece na relao entre dois sujeitos. Aniquila-se, portanto, o reconhecimento de que omeu objecto um sujeito, um sujeito que me fala e a quem eu falo, algum que produz umcerto nmero de contra-reaces da minha parte e que reage frente a mim, isto , no fundo, ani-quila-se aquilo que deveria ser analisado enquanto objecto da prtica educativa. tambm dotransfert e contra-transfert que eu me protejo quando utilizo uma aparelhagem metodolgicafechada, tal como o psicanalista que, ao cortar a sesso ao final de 45 minutos, ou posicionando odiv de forma a no olhar para o paciente, cria um dispositivo de proteco do sujeito, limitando-o num dado quadro material, temporal e econmico definido para a situao analtica. A implica-o no , pois, exterior investigao, mas um dos seus elementos constitutivos que deve sertrabalhado como tal.

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    5 Quer se trate da grelha com que observamos uma aula, do espelho transparente ou de um inqurito por questionrioe respectivo tratamento estatstico, etc.

  • Da epistemologia do olhar epistemologia da escuta

    Um segundo aspecto que gostaria de focar o facto de, por definio, o objecto da investiga-o em educao ser sempre um processo caracterizado pela sua temporalidade. Quer incidanuma aprendizagem, num percurso individual retirado de uma histria de vida ou das interacesestabelecidas num grupo, o nosso objecto inscreve-se sempre numa ordem temporal. Esta tem-poralidade permite-nos evidenciar estarmos perante um tipo de epistemologia que designarei como ttulo de epistemologia da escuta.

    O que caracteriza a maior parte das metodologias utilizadas na cincia, nomeadamente as quese inscrevem em modelos hipotticos-dedutivos ou em processos de verificao de sistemas dehipteses, que elas se inscrevem num quadro espacial onde o domnio da situao pertence,essencialmente, quele que est em posio de investigar, observar, inspeccionar. Vejamos umexemplo simples: quando entro nesta sala e procuro tomar conhecimento dela, esta tomada deconhecimento est totalmente minha disposio posso olhar o grupo que vocs constituem,indo da direita para a esquerda, posso aproximar-me de vs para ver melhor um ou outro rosto,afastar-me para ter uma viso panormica, posso fixar um entre vs, e depois um outro, numaordem que a ordem das minhas operaes de cognio e que constitui, de certa forma, o dispo-sitivo de conhecimento que eu utilizo numa actividade de inspeco. Nesta relao de conheci-mento, que se inscreve numa epistemologia do olhar, evidente que o sujeito aquele que olha,sendo o objecto aquele que visto. H, de resto, belos textos de Sartre, no seu livro Ltre et leNant, sobre o problema do Voyeur (o mirone) e do Voyeur-vu (o mirone observado) que setorna no objecto daquele que o v, naquilo a que Sartre chama nantisation, anulao.

    Quando nos colocamos numa posio de escuta, envolvemo-nos na temporalidade dos fen-menos, ou seja, envolvemo-nos na ordem do aparecimento e desenvolvimento dos fenmenos aque nos tornmos sensveis. Trata-se de uma ordem que no produzida por aquele que escuta,que ele no domina, de uma ordem irreversvel que o faz assistir ao desenvolvimento progressivode um conjunto de acontecimentos. Um exemplo simples permite-nos evidenciar as diferenasentre a escuta e a observao. Podemos, por exemplo, escutar ou observar o desenvolvimento deum beb. Na escuta no tanto o som que importante, mas mais a forma de nos relacionarmoscom a realidade. No a mesma coisa elaborar um dispositivo experimental com a inteno de,por exemplo, inspeccionar a motricidade do beb ou de numa atitude de escuta o observar nafrescura contnua dos seus gestos, preso a uma temporalidade que no domino.

    O que se passa na escuta pode ser evidenciado pela situao em que nos encontramos agora.O sujeito sou eu, aquele que fala, enquanto que vocs, numa posio de escuta, se envolvemnuma relao de conhecimento e de investigao que no uma relao de um sujeito conhece-dor perante um objecto conhecido, mas o encontro de dois sujeitos onde aquele que tem o dom-nio sobre o aparecimento e o desenvolvimento dos fenmenos precisamente aquele que o

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  • objecto do conhecimento. Na relao analtica, na relao de entrevista, ou, de uma forma aindamais evidente, no encontro de dois indivduos, esta relao particularmente clara. No fundo, seeu escuto, porque um outro fala e responsvel pelo aparecimento, pela emergncia de umgesto, de um sentido, de uma significao, de uma palavra. Ao contrrio da observao cujo ideal o espelho transparente que permite ver sem ser visto, a escuta no existe sem uma relao, semuma ligao entre dois sujeitos. Aquele que escuta tambm est presente na escuta e, mesmoquando pode gravar um discurso e escut-lo no gravador, ele est sempre presente face a algum.

    evidente que h uma diferena muito profunda, em termos epistemolgicos, entre o modeloda epistemologia do olhar e por exemplo a anlise etnogrfica, que um procedimento dinmico,sobretudo entre os etnometodlogos que procuram compreender como os outros produzem osentido, produzem as prticas e os gestos. A epistemologia do olhar vai procurar os seus instru-mentos ao domnio das chamadas cincias positivas que se fundamentam na ideia de que oobjecto no reconhecido como sujeito.

    Se nos interrogarmos sobre a especificidade da investigao em educao, entendida comopesquisa que incide e construda numa relao com o sujeito, verificamos que uma reflexo emtorno daquilo que esboamos como sendo uma epistemologia da escuta fundamental para adefinio da sua diferena, para a distinguirmos dos modelos, mais clssicos, dos modelos daobservao.

    Da epistemologia da objectividade epistemologia do sentido

    O terceiro aspecto cuja importncia interessava realar est intimamente ligado noo desituao. Seja qual for o objecto sobre o qual se trabalha uma operao cognitiva, a relaome/filho, um processo de transformao de atitudes e de condutas no possvel aprend-loseno atravs destas coisas (utilizo deliberadamente este termo) que designamos por situaes. Seme encontro perante um conjunto mais ou menos articulado de acontecimentos onde esto sujei-tos e actores reagindo uns com os outros e que estabelecem interaces com elementos contex-tuais, se uma situao educativa se desenvolve tanto no tempo como no espao e se, simultanea-mente, o que a caracteriza o facto de ela no ser s o que se me d a mim a ouvir ou a ver, mastem tambm um sentido para aqueles que nela esto envolvidos, ento, o sentido da situao um dos elementos que devo apreender para que eu prprio seja capaz de lhe dar sentido. Noposso, por exemplo, analisar uma formao profissional sem trabalhar ao mesmo tempo sobre osentido que esta formao tem para aqueles que se formam, para aqueles que os formam, para osque os vo empregar ou para aqueles que financiam a formao. Embora possa no constituir omeu objecto, este sentido um elemento fundamental da situao que estou a analisar. Tenhosempre de completar ou de mediatizar a minha abordagem com as significaes que lhe do os

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  • actores e que devero ser apreendidas, pois elas so elementos constitutivos de todas as situaeseducativas, sejam elas complexas ou aparentemente mais simples. O objecto das Cincias daEducao , com efeito, repleto de complexidade. Uma complexidade que no se confunde comqualquer coisa de complicado, com qualquer coisa que, a curto ou mdio prazo, espero vir a des-dobrar em elementos simples, mas uma complexidade radical, uma complexidade primeira, comoa descreve Edgar Morin e que irredutvel a todas as anlises parcelares que eu dela possa fazer.O objecto das Cincias da Educao caracteriza-se, de facto, pela multidimensionalidade.

    Embora com prudncia j que sempre possvel um retrocesso, pode admitir-se que asCincias da Educao, depois das tentativas de se definirem a partir das disciplinas, vivem hojeuma situao que no de retorno, mas talvez de regresso ao que poderamos considerar comouma fenomenologia entendida como uma tentativa de descrever o fenmeno educativo de umaforma mais modesta, mas o mais rica possvel. Este regresso exprime-se atravs de um conjuntode tendncias, dentre as quais procuraremos referenciar as que consideramos mais significativas.

    A primeira a tendncia para o desenvolvimento e reconhecimento no campo das Cincias daEducao dos trabalhos de Etnografia da Educao que, embora nunca estivessem estado ausen-tes, eram considerados como derivados ou secundrios. A Sociologia da Educao inglesa ao reto-mar os trabalhos da Escola de Chicago, bem como os trabalhos de Drouet e Sirota em Frana,mostra que h uma tendncia para que o olhar etnogrfico ocupe uma posio central.

    A segunda tendncia (embora admita que a importncia que lhe atribuo resulte mais da minhaevoluo e da minha implicao) a de que, depois de uma espcie de desvio por um objecti-vismo que se queria positivo e eficaz, se assiste hoje a um regresso aos procedimentos clnicos.Este regresso, que creio estar intimamente ligado com um importante fenmeno de centrao dainvestigao no insucesso escolar ou nos problemas do desvio, faz com que se admita que aszonas marginais do sistema educativo so capazes de esclarecer o que se passa no centro.

    Finalmente, assiste-se actualmente ao reforo de uma tendncia para uma mudana do objectode investigao. Tm surgido, com efeito, um conjunto de trabalhos, no s em Frana como nosEUA ou na Alemanha e suponho que em Portugal, que no incidem nem no macro nem nomicrossistema, mas ao nvel do estabelecimento de ensino. Nestes trabalhos, o estabelecimento deensino no encarado apenas como um lugar onde se estabelecem interaces mais intensasentre o meio e as prticas educativas, mas tambm como um espao de interaces onde se impli-cam os diferentes actores: educadores, educandos, pais, etc. Trata-se de um fenmeno que traduzum esforo de compreenso da complexidade, apreendida, de qualquer forma, na oposio como macrossocial (que foi durante muito tempo o objecto da Sociologia da Educao) e o microsso-cial (durante muito tempo objecto da Psicologia da Educao). Este nvel intermedirio parececonstituir hoje um dos nveis privilegiados de anlise.

    Os desafios destas mudanas metodolgicas e desta nova centrao do objecto de investigaoparecem ser centrais quer nos estudos etnogrficos quer naqueles que tomam a escola como

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  • objecto de investigao, na medida em que, em ltima anlise, eles incidem sobre o espao ondese constri o sujeito na articulao entre o sujeito individual e o sujeito social. Penso mesmo quese um dia as Cincias da Educao produzissem um conhecimento fundamental (no sentido cls-sico do termo), seria pelo facto de elas constiturem o lugar onde, de uma forma mais visvel, seprocura articular aquilo que estava separado. Actualmente as Cincias da Educao procuram,com efeito, articular o campo da Sociologia com o campo da Psicologia. O primeiro tinha, eviden-temente, concepes psicolgicas implcitas, mas ignorava que fazia do sujeito psicolgico umsujeito cego que repetia e reproduzia habitus de que no tinha conscincia. O segundo, de qual-quer forma, sem reconhecer a autonomia do social, encarava-o como um simples produto dasinteraces entre os sujeitos.

    Creio que, no campo das Cincias da Educao, se constri hoje a articulao entre o social eo psicolgico6 atravs da apreenso de trajectrias simultaneamente individuais e colectivas, enca-radas simultaneamente como uma histria colectiva e como uma histria individual. E nesta arti-culao entre o individual e colectivo que se colocam os desafios mais importantes s cinciassociais e humanas.

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    6 Realce-se que j Castoriadis e Gilbert Durand, entre outros, trabalharam sobre o smbolo e o imaginrio social.