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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica
A interpretao na psicanlise winnicottiana
FABIANO MATOS SIPAHI
So Paulo 2006
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica
A interpretao na psicanlise winnicottiana
FABIANO MATOS SIPAHI
Dissertao de Mestrado apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de MESTRE em Psicologia Clnica, sob a orientao do Prof. Doutor Zeljko Loparic.
So Paulo 2006
1
A interpretao na psicanlise winnicottiana
AVALIADO POR:
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
DATA: ______/______/______
So Paulo 2006
2
Para Tais
3
AGRADECIMENTOS Ao Professor Dr. Zeljko Loparic, pela orientao dedicada e rigorosa. Com
certeza, o olhar do filsofo e o carter humano contriburam em muito nesta
dissertao.
Professora Dra. Elsa Dias, pela preciosa ateno dedicada. Em especial, por me
proporcionar uma segunda orientao.
Aos colegas e amigos da ps-graduao da PUC/SP e do CW, pela torcida e pelo
companheirismo.
Aos familiares e aos amigos, pelo apoio sincero e carinhoso em todos os
momentos.
Tais pela inestimvel companhia. E ainda, pelo enorme auxlio e dedicao.
4
RESUMO
Esta dissertao investiga o conceito de interpretao winnicottiana, tomando
como ponto de partida a mudana paradigmtica realizada por D. W. Winnicott na
teoria psicanaltica. Constatou-se que a alterao do problema central da
psicanlise operada por Winnicott (a substituio dos problemas edpicos pelos
problemas do beb no colo da me) e a introduo de uma nova teoria-guia (a
teoria do amadurecimento no lugar da teoria da sexualidade) acabaram por exigir
modificaes na estrutura interna da teoria psicanaltica. Como conseqncia,
ocorreu a transformao do trabalho analtico e da interpretao. De acordo com
essa perspectiva, estudamos os aspectos principais da interpretao na
psicanlise winnicottiana e o seu papel na resoluo de distrbios, no tratados
pela teoria tradicional. Tal modificao abrangente a ponto de ampliar de modo
decisivo o sentido da interpretao psicanaltica.
5
ABSTRACT
The essay investigates the concept of Winnicottian interpretation, taking as the
starting point the paradigm change carried out by D. W. Winnicott in
psychoanalysis. It was found that the change in the central problem of the
psychoanalysis performed by Winnicott (the replacement of Oedipus problems for
problems of the baby on the mothers lap) and the introduction of a new guiding
theory (the theory of maturation instead of the theory of sexuality) ended up
demanding changes in the internal structure of psychoanalytical theory. As a
consequence, the transformation of the analytical work and interpretation occurred.
According to that perspective, we studied the main aspects of Winnicottian
psychoanalysis interpretation and its role in the solution of disorders, untreated by
the traditional theory. Such modification is widespread to the extent of amplifying
the meaning of the psychoanalytical interpretation.
6
SUMRIO
Agradecimento........................................................................................................4 Resumo....................................................................................................................5 Introduo...............................................................................................................9
Objetivos......................................................................................................14 Metodologia..................................................................................................15 Justificativa...................................................................................................15
Captulo 1 A Interpretao Psicanaltica Freudiana......................................17 1.1 O Trabalho Anterior Psicanlise..........................................................17 1.2 A Teoria Psicanaltica Freudiana...........................................................19 1.3 A Interpretao Psicanaltica Freudiana................................................26
Captulo 2 A Mudana de Paradigma na Psicanlise e a Teoria Winnicottiana do Amadurecimento.................................33
2.1 Freud e o Complexo de dipo................................................................33 2.2 Winnicott e o Beb-no-Colo-da-Me....................................................35 2.3 A Teoria do Amadurecimento.................................................................38
2.3.1 Caractersticas da teoria do amadurecimento..........................39 2.3.2 Os estgios da teoria do amadurecimento...............................41
Captulo 3 O Trabalho Winnicottiano na Anlise..........................................45 3.1 Os Objetivos do Trabalho na Anlise.....................................................46
3.1.1 Recuperao do processo de amadurecimento.......................46 3.1.2 Promoo integrao.............................................................52 3.1.3 Promoo de espao potencial para o surgimento do
brincar e da criatividade..........................................................55 3.2 O Trabalho Relativo aos Grupos da Nosologia Winnicottiana:
Psiconeuroses, Psicoses e Distrbios Anti-sociais...........................57 3.2.1 Psiconeuroses..........................................................................57 3.2.2 Psicoses...................................................................................59 3.2.3 Distrbios anti-sociais ..............................................................61
3.3 As Tcnicas Envolvidas no Trabalho na Anlise...................................63
7
Captulo 4 A Interpretao na Teoria Winnicottiana.....................................70 4.1 Breve Definio da Interpretao Winnicottiana....................................70 4.2 Aspectos Gerais da Interpretao..........................................................71
4.2.1 Aspectos dinmicos..................................................................71 4.2.2 Interpretao como holding......................................................74 4.2.3 No-interpretao.....................................................................77
4.3 Interpretao Relacionada Teoria do Desenvolvimento Emocional e Nosologia Winnicottiana................................................78
4.3.1 Interpretao nas psiconeuroses..............................................80 4.3.2 Interpretao nas psicoses.......................................................84 4.3.3 Interpretao na tendncia anti-social......................................92
4.4 Os Sentidos da Interpretao na Teoria Winnicottiana..........................97 4.5 Resumo................................................................................................101
Captulo 5 Discusso.....................................................................................103 5.1 A Tcnica Winnicottiana.......................................................................103 5.2 Limites da Interpretao.......................................................................106 5.3 Diferenas e Semelhanas entre as Interpretaes em Freud e Winnicott................................................................................110
5.3.1 As concepes de interpretao............................................110 5.3.2 As interpretaes freudiana e winnicottiana referidas aos
diferentes distrbios................................................................112 5.3.3 Os sentidos das interpretaes em Freud e Winnicott...........115 5.3.4 Os aspectos gerais das interpretaes em Freud e
Winnicott...............................................................................116 Captulo 6 Concluso.....................................................................................119
6.1 Novas Possibilidades de Investigao.................................................121 Bibliografia..........................................................................................................123
8
INTRODUO Donald. W. Winnicott (1896-1971) foi uma das principais personalidades da
psicanlise britnica na gerao que se seguiu a Freud.1 Com uma formao em
pediatria, psiquiatria infantil e psicanlise, obteve uma extensa clnica que lhe
serviu como local privilegiado de trabalho e observao de situaes relacionadas
ao desenvolvimento emocional humano. Tal experincia foi fundamental no
desenvolvimento de teorias e conceitos prprios que se tornaram grandes
contribuies psicanlise. Segundo Winnicott:
A um analista no dado fazer mais do que umas setenta anlises completas. A natureza de minha prtica permitiu-me ir alm dessa dificuldade quanto ao nmero de casos atendidos, por ter tido sob meus cuidados um grande nmero de pacientes de ambulatrio, e por ter realizado um grande nmero de psicoterapias breves2 e de problemas de ajustamento.3 (1988, p. 22)
Em 1995, observando a importncia desse autor com relao psicanlise,
o filsofo Zeljko Loparic e um grupo de estudiosos4 iniciam o estudo sistemtico
da obra winnicottiana mostrando que, mais do que contribuir psicanlise,
Winnicott realiza uma mudana paradigmtica, resolvendo problemas insolveis
da psicanlise tradicional, ampliando seu corpo terico e trazendo luz novas
questes e novos objetos de pesquisa.5
1 Winnicott, Clare, 1987b, p. XIII. 2 O termo psicoterapia breve no deve ser entendido aqui como relacionado s modalidades de psicoterapias breves que vm sendo desenvolvidas nas ltimas dcadas. Existe uma dificuldade da traduo para a lngua portuguesa, e o texto torna-se mais fiel ao original se for compreendido que Winnicott se refere apenas a processos que tiveram curta durao. 3 Claire Winnicott menciona o fato de Winnicott ter tido uma experincia mdica contnua que evoluiu da pediatria tradicional para a psiquiatria infantil, atendendo a cerca de 60 mil casos (Winnicott, Clare, 1987b p. XIV). 4 Grupo de Filosofia e Prticas Clnicas (GFPP), da PUC/SP. 5 LOPARIC, Zeljko, 2002. A leitura desse texto Esboo do paradigma winnicottiano significativa para a compreenso da formulao de Loparic sobre a mudana paradigmtica da psicanlise operada por Winnicott.
9
A mudana de paradigma entendida a partir de Thomas S. Kuhn, o qual
compreende que as cincias se organizam em paradigmas voltados resoluo
de problemas. Considera, entretanto, que tais paradigmas no resolvem todos os
problemas cientficos de determinada disciplina, enfrentando algumas anomalias
que permanecem como questes insolveis. Assim, em alguns casos, os
cientistas tm a sua ateno voltada para uma dada anomalia, dedicando-se a ela
como objeto de pesquisa que acaba por exigir, para sua soluo, novas
formulaes mais eficazes que as antigas. Quando isso acontece, ocorre o
estabelecimento de um novo paradigma.
Desse modo, Loparic observa que Winnicott, ao lidar com questes que no
eram solveis pela psicanlise tradicional, tais como as psicoses, realiza a
mudana paradigmtica pela apreenso de uma relao entre doena psquica e
ambiente, compreendendo a importncia da relao inicial me-beb: (...) o
estudo das psicoses conduz o pesquisador aos momentos mais primitivos da vida
do beb. Isto tem a ver com a relao me-beb, visto que nenhum beb
desenvolve-se fora de uma relao deste tipo (1965b W9, p. 131 apud Loparic
2002, p. 45).
Loparic prope que Winnicott opera a mudana, caminhando do paradigma
freudiano do complexo de dipo para o paradigma do beb-no-colo-da-me
(Loparic 2002, p. 44). De fato, para Winnicott, o relacionamento me-beb
caracteriza o perodo no qual esto sendo constitudas as bases da personalidade,
o que lhe permite formular, a partir de seu trabalho, uma teoria do
amadurecimento pessoal que vai servir de guia prtico de compreenso dos
fenmenos da sade, bem como para a deteco precoce de dificuldades
emocionais (Dias 2003, p. 14).
Assim, o estabelecimento do paradigma winnicottiano tem grandes
implicaes. notvel que abre espao para novas formulaes a respeito dos
distrbios infantis, das psicoses e dos distrbios anti-sociais, como tambm
10
configura uma apreciao sobre a natureza humana, delineando o processo de
desenvolvimento emocional. Alm disso, modifica a tcnica psicanaltica,6
reconceituando o setting analtico e seus objetivos tema de interesse deste
trabalho.
Dentre as modificaes realizadas por Winnicott teoria psicanaltica,
destacamos sua classificao de distrbios. Essa fundamental para a
compreenso da transformao do trabalho e da tcnica analtica, bem como da
prpria interpretao.
Winnicott demarca trs grupos de distrbios aos quais correspondem trs
modos distintos de trabalho: psiconeuroses, psicoses e distrbios anti-sociais.7
Entre as psiconeuroses encontram-se as neuroses propriamente ditas e as
depresses reativas. Winnicott compreende que, nesse grupo, os problemas esto
relacionados s represses, ainda que nas depresses reativas no sejam
resultado da triangulao edpica como nas neuroses. Mesmo assim, o trabalho
analtico continua a usar a tcnica interpretativa clssica, com o intuito de trazer
luz o material inconsciente reprimido.
Quanto aos grupos das psicoses e dos distrbios anti-sociais, Winnicott
esclarece que esses distrbios so resultado de falhas no relacionamento com o
ambiente, provocando organizaes defensivas diferentes das represses, que
impedem ou estacionam o desenvolvimento emocional dos indivduos. Nas
psicoses, o ambiente falha nos cuidados ao indivduo em momentos primitivos,
impedindo a conquista da integrao em um eu, algo que no est dado de
antemo e resultado da realizao de tarefas bsicas no desenvolvimento
emocional. Os indivduos que sofrem tais falhas, tm seu amadurecimento
emocional prejudicado e contam com a personalidade cindida ou com
6 Ao final do trabalho, no Captulo 5, ser apresentada a modificao da concepo de tcnica realizada por Winnicott. 7 1984i
11
dissociaes graves. J nos distrbios anti-sociais, o indivduo alcana a
integrao em um eu, ou uma integrao incompleta, mas vive a experincia de
perda do ambiente sustentador. Desse modo, passa a reinvindicar o ambiente
perdido por meio dos comportamentos anti-sociais, pois o retorno do ambiente
sustentador necessrio para que recupere a continuidade de seu
desenvolvimento emocional.
Para atender os casos relativos s psicoses e aos distrbios anti-sociais, o
trabalho analtico se modificou incorporando novas tcnicas, uma vez que a
interpretao clssica, no atende s necessidades desses pacientes. Essas
necessidades dizem respeito ao relacionamento com o ambiente e no
resoluo de conflitos inconscientes.
Observamos que o trabalho analtico winnicottiano se distingue pela
considerao do ambiente. Enquanto a psicanlise tradicional limita seus estudos
aos fatores internos, considerando o acontecer humano como resultado de um
jogo de foras intrapsquicas, Winnicott tematiza a relao entre ambiente e
amadurecimento pessoal. Para ele, o ambiente fornece as condies para a
realizao de uma tendncia inata ao amadurecimento, podendo facilitar ou
prejudicar o desenvolvimento pessoal de cada um. Diz: Com o estudo da criana
em vivo no mais possvel evitar considerao do meio. De modo que, ao falar
de uma criana concretamente, deve-se mencionar dependncia e natureza do
ambiente (1965h, p. 117).
Desse modo, a tcnica psicanaltica winnicottiana se caracteriza pela
considerao do ambiente:
preciso notar que quanto mais caminhamos para trs em nosso estudo do desenvolvimento do ser humano, ficamos cada vez mais bvia e profundamente envolvidos no estudo do ambiente, o que em termos de psicoterapia significa o manejo (1988, p. 119).
12
No obstante, o ambiente fornecido pelo analista e pelo setting se torna um
dos pontos fundamentais do trabalho analtico winnicottiano, de tal forma que, em
certas situaes, o analista deve evitar possveis interpretaes:
No tratamento das pessoas esquizides o analista precisa saber tudo que se refere a interpretaes que possam ser feitas, relativas ao material apresentado, mas deve ser capaz de se conter para no ser desviado a fazer este trabalho, que seria inapropriado, porque a necessidade principal a de apoio simples ao ego, ou de holding. Esse holding, como a tarefa da me no cuidado do lactente, reconhece tacitamente a tendncia do paciente a se desintegrar, a cessar de existir, a cair para sempre (1965vd, p. 217).
Ao introduzir a questo do holding, Winnicott estabelece a me
suficientemente boa como o paradigma do analista na clnica.8 Para ele, essa me
aquela capaz de fornecer um meio ambiente onde os processos complexos
mas essenciais no eu do beb conseguem completar-se (1948b, p. 236).
No processo de anlise, ele prope que o analista garanta ao paciente um
ambiente semelhante ao que a me suficientemente boa fornece ao filho. Em um
comentrio sobre o tratamento de psicticos, diz: Creio que na anlise de
psicticos e nas ltimas fases da anlise de pacientes normais o analista ir
encontrar-se numa posio comparvel da me de um beb recm-nascido
(1949f, p. 286).
Ainda, quanto ao tratamento de psicticos:
O analista deve dispor de toda a pacincia, tolerncia e confiabilidade da me devotada ao beb. Deve reconhecer que os desejos do paciente so necessidades. Deve deixar de lado quaisquer outros interesses a fim de estar disponvel e ser pontual e objetivo. E deve parecer querer dar o que na verdade precisa ser
8 Dias 2003, p. 133.
13
dado apenas em razo das necessidades do paciente (1949f, p. 287).
Os diferentes tipos de trabalho analtico referidos por Winnicott no fazem
oposio entre si. Isto , Winnicott prope que junto ao trabalho interpretativo
existe um trabalho relativo ao contexto analtico que referido como manejo, o
qual busca atender s necessidades dos pacientes relativas a falhas no processo
de amadurecimento.
Como observamos, Winnicott estabelece novas modalidades de trabalho
clnico que ampliam a tcnica psicanaltica, para responder a situaes insolveis
da psicanlise tradicional. Nesse contexto, interessa saber se a interpretao em
si sofre transformao na teoria winnicottiana. primeira vista, podemos
argumentar que ela deixa de ter o status que encontra na teoria psicanaltica
freudiana, na qual entendida como o prprio trabalho analtico. Em Winnicott,
no apenas a interpretao de importncia fundamental, como tambm outras
modalidades tcnicas tais como o holding. Entretanto, cabe verificar se a
ampliao da tcnica analtica e o uso da teoria do amadurecimento pessoal
realizados por Winnicott no modificam tambm a prpria interpretao, j que o
trabalho analtico no se presta mais a ter como nico objetivo o acesso aos
contedos inconscientes.
Objetivos
Este projeto prope pesquisar a interpretao clnica na teoria winnicottiana, a
partir da mudana de paradigma realizada pelo autor na psicanlise e luz da
teoria do amadurecimento pessoal. Configura-se como um estudo dos principais
aspectos e dos sentidos da interpretao na clnica winnicottiana.
Para tanto, ser necessrio realizar as seguintes tarefas:
14
Explanao da interpretao psicanaltica clssica como proposta por Freud.
Explanao da teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott. Investigao do trabalho na anlise na teoria winnicottiana. Investigao da interpretao em Winnicott, explicitando seus principais
aspectos e sentidos.
Metodologia
Esta pesquisa ser realizada a partir da leitura e anlise dos textos tericos da
obra de Winnicott, relativos e referentes ao estudo em questo.
Utilizaremos, tambm, textos de estudiosos da obra winnicottiana, que
auxiliem a compreenso de sua teoria e seus fundamentos cientficos e filosficos.
Por ltimo, utilizaremos algumas passagens clnicas de Winnicott, para
ilustrar o uso da interpretao em sua teoria.
Justificativa
A presente pesquisa procura fazer um recorte sobre a interpretao winnicottiana,
explicitando suas caractersticas prprias e possibilidade de uso na situao
analtica.
Como j dito anteriormente, Winnicott resolve problemas insolveis da
psicanlise tradicional, de modo que o estudo da sua tcnica e sua relao com a
teoria permite nova ao na resoluo de questes clnicas, referidas ao contexto
do processo de amadurecimento pessoal.
15
Portanto, a investigao da interpretao winnicottiana deve revelar seus
principais aspectos e sentidos, com o propsito de facilitar aos analistas sua
utilizao clnica de modo rigoroso e eficaz.
16
Captulo 1
A INTERPRETAO PSICANALTICA FREUDIANA
Com o objetivo de pr em relevo a interpretao psicanaltica como formulada por
Freud, ser feita uma breve apresentao da teoria, a qual serve de fundamento
para a interpretao propriamente dita. Apenas por motivos didticos, este
captulo ser dividido em trs sees: o trabalho anterior psicanlise, a teoria
psicanaltica freudiana e a interpretao psicanaltica freudiana.
1.1 O Trabalho Anterior Psicanlise
Segundo Freud, a primeira grande influncia sobre a psicanlise advm do uso da
hipnose para tratamento de distrbios no final do sculo XIX. Com a hipnose,
percebe-se que algumas alteraes somticas so resultado de influncias
psquicas, sugerindo ainda a existncia de processos anmicos inconscientes. O
inconsciente era, de h muito, como conceito terico, objeto de discusso entre
os filsofos; porm nos fenmenos do hipnotismo tornou-se, pela primeira vez,
corpreo, tangvel e objeto de experimentao (Freud 1910, p. 68).
Com os estudos de Charcot e Janet, a hipnose demonstra ser um valioso
instrumento para a compreenso das neuroses. A partir dela, Janet caracteriza a
histeria como uma suposta incapacidade constitucional de manter em conexo os
processos psquicos, da qual resultava uma dissociao da vida anmica (Freud,
1910, p. 69). Por volta de 1881, Breuer, com o auxlio da hipnose, consegue
estudar e curar uma jovem histrica. Segundo Freud:
Conseguira-se (...), pela primeira vez, elucidar um caso de to enigmtica neurose, e todos os fenmenos patolgicos demonstraram possuir um sentido. (...) Tais circunstncias indicavam como etiologia dos sintomas histricos a efetividade e o
17
dinamismo das foras psquicas, e estes dois pontos de vista esto hoje de p. (Freud 1910, p. 70)
Breuer equipara os motivos da gnese dos sintomas aos traumas de
Charcot, considerando que os motivos traumticos ficavam perdidos para a
memria do paciente, restando seus efeitos: os sintomas. Sua teraputica
consistia em levar o paciente, por meio da hipnose, a recordar os traumas
esquecidos reagindo com intensas manifestaes de afeto e assim eliminando
seus sintomas.
Em 1895, Breuer e Freud escrevem Estudos sobre a histeria, em que
expem a compreenso terica sobre o tema:
Esta teoria afirmava que o sintoma histrico surgia quando o afeto de um processo anmico intensamente afetivo era desviado da elaborao consciente normal e encaminhado por uma rota imprpria. No caso da histeria esse afeto se resolvia em inervaes somticas no habituais (converso), podendo, porm, ser dirigido noutro sentido e descarregado por meio da revivescncia do sucesso correspondente durante a hipnose (derivao por reao). A este processo demos o nome de catarse (limpeza, liberao do afeto represado). (Freud 1910, p. 71)
Depois da publicao do texto, Freud e Breuer interrompem a colaborao
e Freud d seguimento aos estudos para tratamento de doentes nervosos. Nisso,
ele abandona o uso da hipnose por dois motivos principais: no conseguir
hipnotizar muitos pacientes e no se satisfazer com os resultados obtidos,
considerando-os pouco duradouros e dependentes da relao mdico/paciente.
Outro fator de importncia para o abandono da hipnose foi a percepo de que, na
gnese do sintoma, havia a participao de uma srie de impresses e no
apenas de uma: Porm este simples esquema da interveno teraputica se
complicava em quase todos os casos, pois na gnese do sintoma no participa
uma s impresso (traumtica), e sim toda uma srie delas (Freud 1904, p. 176).
18
Com a renncia da hipnose, Freud abriu caminho para a criao da
psicanlise como teoria e mtodo teraputicos. Entretanto, podemos perceber
que, antes mesmo da constituio da psicanlise, j estavam presentes algumas
concepes como: a noo de inconsciente, o conceito de trauma, a existncia de
sentido para os fenmenos patolgicos e a concepo dinmica de foras
psquicas.
1.2 A Teoria Psicanaltica Freudiana
Abandonado o hipnotismo, em razo de sua ineficincia, Freud pe em uso um
novo mtodo ao qual d o nome de associao livre. Esse mtodo consiste em:
(...) obrigar o indivduo a prescindir de toda reflexo consciente e abandonar-se num estado de serena concentrao ao curso de suas recordaes expontneas (involuntrias). Tais recordaes deviam ser relatadas ao mdico, mesmo que em seu foro ntimo surgissem objees contra tal comunicao (...). (Freud 1910, p. 72)
Diferente da hipnose, o material obtido por meio da associao livre no
continha os elementos esquecidos pelo paciente, mas claras aluses aos
mesmos, de modo que o mdico podia adivinh-los (reconstru-los) com o auxlio
de certos complementos e determinadas interpretaes (Freud 1910, p. 72).
Desse modo, com a associao livre, nasce a psicanlise, caracterizando-se como
uma nova cincia e tambm como uma transformao do mtodo catrtico de
Breuer. Com ela, surge a tcnica interpretativa, que se orienta, nesse primeiro
momento, a revelar os elementos esquecidos pelos pacientes na constituio dos
sintomas apresentados.
Esta psicanlise era, em primeiro lugar, uma arte da interpretao, apresentando-se-lhe o trabalho de aprofundar a primeira das
19
grandes descobertas de Breuer, ou seja a de que os sintomas neurticos eram uma substituio plena de sentido de outros atos psquicos elaborados. Tratava-se agora de utilizar o material que assomava das recordaes do paciente como se apontasse a um sentido oculto e adivinhar por ele tal sentido. A experincia mostrou em seguida que o melhor e mais adequado que o mdico analista podia fazer era abandonar-se a sua prpria atividade mental inconsciente, conservando-se num estado de ateno; evitar no possvel toda reflexo e toda produo de hipteses conscientes; no querer fixar especialmente na sua memria nada do ouvido, e apreender deste modo, com seu prprio inconsciente, o inconsciente do analisado. Mais adiante observamos, quando as circunstncias no eram de todo desfavorveis, que as recordaes do doente iam aproximando-se como aluses e tacteios, a um tema determinado, de modo que nos bastava arriscar um pequeno passo para adivinhar o que a ele mesmo ocultava e comunicar-lho. Esta arte de interpretao no podia, desde logo, concretizar-se em regras fixas, e deixava amplo lugar ao tato e habilidade do mdico (...). (Freud 1910, p. 94)
Em 1900, com A interpretao dos sonhos, Freud desenvolve suas teorias
a respeito do inconsciente, mostrando que o dinamismo da produo onrica o
mesmo que atua na produo de sintomas (Freud 1910, p. 98). Refere-se luta
entre duas tendncias: uma inconsciente e reprimida, que tende a conseguir
satisfao (cumprimento de desejos), e outra pertencente ao Ego, que repele e
reprime, tendo como resultado um produto, seja o sonho ou o sintoma, no qual as
tendncias encontram uma expresso incompleta. Nos sonhos, a tendncia
inconsciente reprimida visa obter o cumprimento de um desejo, porm, por conta
da represso a que se submete, deforma o contedo das idias de modo a ser
possvel sua expresso mesmo com a ao de instncia restritiva e crtica. O
resultado obtido apresenta-se como o contedo onrico manifesto, o qual pode
revelar as idias onricas latentes por meio da interpretao.
20
Outro objeto de interesse de Freud refere-se aos chamados atos falhos.
Com seu estudo, ele demonstra que atos psquicos freqentes de homens
normais se equiparam aos sintomas dos neurticos, possuindo um sentido
ignorado e podendo ser descoberto pelo trabalho analtico. Com isso, amplia o
permetro da determinao psquica e diminui a distncia entre funcionamento
psquico normal e patolgico.
Quanto aos processos patognicos, Freud compreende que as recordaes
esquecidas pelos pacientes (cenas patognicas) esto prontas a ressurgir,
entretanto, uma poderosa fora se ope a isso, obrigando-as a permanecer
inconscientes. Essa fora que mantm os estados mrbidos recebeu o nome de
resistncia. Alm disso, sob a forma de resistncia, no apenas impede ao doente
que o esquecido se torne consciente, como tambm produz o esquecimento e
expulsa da conscincia os acontecimentos patognicos, em um processo
denominado represso. Com o estudo comparativo de casos, Freud percebe que
a origem da represso est na existncia de um desejo contrrio aos demais
desejos do indivduo, tornando-se intolervel s suas aspiraes ticas e
estticas.
Originava-se assim um conflito, uma luta interior, cujo desfecho era que a representao surgida na conscincia, trazendo consigo o desejo inconcilivel, sucumbia represso, sendo expulsa da conscincia e esquecida juntamente com as lembranas a ela correspondentes. (Freud 1910, p. 135)
A aceitao do desejo inconcilivel ou a perpetuao do prprio conflito
produziriam um intenso desprazer que evitado pela represso, revelando-a
como um dispositivo protetor da personalidade anmica. Entretanto, esse desejo
perdura no inconsciente reprimido e quando encontra oportunidade se apresenta
por meio de disfarvel formao substitutiva. Este (o sintoma) fica protegido da
instncia crtica, mas produzindo intenso sofrimento. Com ele, restam sinais de
deformao, analogia da idia reprimida. O tratamento analtico, ento, visa
21
reconduzir o sintoma pelos mesmos caminhos at a idia reprimida, superando as
resistncias e reintegrando o reprimido atividade consciente normal, de modo a
encontrar uma melhor soluo para o conflito do que a represso.
Existem vrias destas solues apropriadas que pem um termo feliz ao conflito e neurose e que, em casos individuais, podem muito bem combinar-se entre si. Pode convencer-se personalidade do enfermo de que repeliu injustificadamente o desejo patognico e faz-lo aceitar no todo ou em parte; pode tambm orientar-se este desejo para um fim mais elevado e, portanto, irrepreensvel (sublimao do desejo), e pode, por fim, reconhecer-se totalmente justificada sua reprovao, substituindo, porm, o mecanismo automtico e, portanto, insuficiente da represso por uma condenao executada com a ajuda das mais altas funes espiriturais humanas, isto , conseguir seu domnio consciente. (Freud 1910, p. 139)
Aos poucos, observa-se uma mudana de foco na psicanlise freudiana. Se, no
incio, acreditava-se que a produo de sintomas era resultado de uma
experincia traumtica esquecida pelo doente, em um segundo momento, o foco
repousa nas idias conflitantes com a moral. Ou seja, a ateno orienta-se para a
vida psquica do indivduo em detrimento da observao da realidade exterior. A
superao deste erro foi conseguida ao descobrir o papel extraordinrio que na
vida psquica dos neurticos desempenhava a fantasia, francamente mais decisivo
para a neurose que a realidade exterior (Freud 1910, p. 101).
Alm disso, o desenvolvimento das investigaes analticas levam ao
estudo da evoluo da funo sexual, colocando em relevo a sexualidade infantil e
o conceito de libido (manifestao econmica na vida anmica do instinto sexual).
Freud teoriza que, na evoluo sexual dos indivduos, partes dos instintos
permanecem detidas nos estgios sexuais produzindo as fixaes da libido, sendo
importantes como disposies a posteriores transgresses das tendncias
reprimidas no desenvolvimento de neuroses e perverses.
22
Com o complexo de dipo, evento considerado de mxima importncia
para a estruturao definitiva da vida ertica, em que o menino escolhe a me
como objeto sexual assumindo atitude de hostilidade e rivalidade para com o pai,
Freud estabelece o problema e a soluo exemplar da psicanlise, os quais
influenciam todos os outros aspectos da teoria9 (Loparic, 1997a). Ele compreende,
ainda, que, ao homem normal, h a superao do complexo, enquanto o neurtico
permanece vinculado a ele.
Ao formular a segunda tpica do aparelho psquico, Freud descreve as
relaes entre as instncias id, ego e superego. O id configura-se como o local
das pulses de vida e de morte (silenciosa), as quais pedem satisfao, de modo
que o que rege aqui o princpio do prazer. O ego parte modificada do id que
nasce do contato com a realidade, tendo tambm a caracterstica de ser
responsvel pela mobilidade corporal. Este formado de identificaes que
tomam o lugar de catexias abandonadas pelo id e responsvel por satisfazer o
id, mas regido pelo princpio da realidade. O superego, por sua vez, caracteriza-se
como herdeiro do complexo de dipo, resultado da primeira identificao, a qual
efetuou-se enquanto o ego ainda era fraco e andava s voltas com o complexo
paterno, ou seja, mantm a lembrana de antiga fraqueza e de dependncia do
ego, sujeito dominao. O superego mantm proximidade com o id, ficando
distante da conscincia ainda que dele se tenha notcia. Outro aspecto do
superego o que se chamou Ideal do Ego, o qual se constitui como a expresso
dos mais poderosos impulsos e vicissitudes libidinais do id.
Nessa organizao do aparelho psquico, os conflitos resultam da posio
ocupada pelo ego em relao ao id, ao superego e realidade externa:
De outro ponto de vista, contudo, vemos este mesmo ego como uma pobre criatura que deve servios a trs senhores e,
9 Este ponto ser aprofundado no Captulo 2, com a apresentao do complexo de dipo como o paradigma da teoria freudiana.
23
consequentemente, ameaado por trs perigos: o mundo externo, a libido do id e a severidade do superego. Trs tipos de ansiedade correspondem a esses trs perigos, j que a ansiedade a expresso de um afastar-se do perigo. Como criatura fronteiria, o ego tenta efetuar mediao entre o mundo e o id, tornar o id dcil ao mundo e, por meio de sua atividade muscular, fazer o mundo coincidir com os desejos do id. De fato, ele se comporta como o mdico durante um tratamento analtico: oferece-se, com a ateno que concede ao mundo real, como um objeto libidinal para o id, e visa ligar a libido do id a si prprio. Ele no apenas um auxiliar do id; tambm um escravo submisso que corteja o amor de seu senhor. Sempre que possvel, tenta permanecer em bons termos com o id; veste as ordens Ics. do id com suas racionalizaes Pcs.; finge que o id est mostrando obedincia s admonies da realidade, mesmo quando, de fato, aquele permanece obstinado e inflexvel; disfara os conflitos do id com a realidade e, se possvel, tambm os seus conflitos com o superego. (Freud 1923b, p. 61)
Freud tambm d nfase especial relao objetiva do paciente com o
mdico, que se estabelece no curso do tratamento e que ultrapassa a medida
racional, variando desde o abandono carinhoso at a hostilidade mais tenaz,
tomando as peculiaridades de atitudes erticas inconscientes anteriores. Chama a
isso transferncia, a qual se manifesta em suas formas negativa ou positiva,
considerando-a um poderoso instrumento do analista. A transferncia surge
espontaneamente em todas as relaes humanas, da mesma forma que no
doente com o mdico; , em geral, o verdadeiro substrato da ao teraputica e
atua com tanto maior energia quanto menos se suspeita de sua existncia (Freud
1910, p. 167).
Em outra passagem: Esta transferncia, que (...) entra a servio da
resistncia, se converte, nas mos do mdico, no meio auxiliar mais poderoso do
tratamento e desempenha no dinamismo do processo de cura um papel de
extrema importncia (Freud 1910, p. 104).
24
Com o conceito de transferncia modifica-se o locus da ao do analista.
Se anteriormente ele procurava intervir no paciente, agora o trabalho se d
prioritariamente na relao transferencial deste com o analista. na relao
transferencial que o analista entra em contato com a organizao psquica do
paciente e com suas defesas. Para a cura analtica, o analista precisa descobrir os
caminhos empreendidos pela libido (suas fixaes) e torn-la acessvel
conscincia, de modo a coloc-la a servio da realidade.
Alm disso, com a transferncia, Freud tambm estabelece o campo de
atuao de excelncia da psicanlise configurado no atendimento das neuroses
de transferncia. Nesse tipo de distrbio, vai encontrar as condies propcias
para o trabalho psicanaltico, ou seja, a situao na qual os pacientes trazem
amostras do passado, da realidade psquica e dos relacionamentos objetais,
expondo-as na relao transferencial com o analista. Desse modo, o trnsito
transferencial proporciona ao analista a oportunidade de compreenso dos
conflitos psquicos e o acesso aos contedos reprimidos.
Finalizando esta seo, cabe dizer que, na formulao da psicanlise,
Freud estabelece uma diferenciao nosolgica, observando limites de atuao do
tratamento psicanaltico. Cr, que a psicanlise se presta ao tratamento das
neuroses e conta com restries em relao s psicoses. Em texto de 1910, ele
afirma:
No tardou em estabelecer-se a diferenciao geral entre as chamadas neuroses de transferncia e as afeces narcisistas, sendo as primeiras (histeria e neurose obsessiva) o objetivo propriamente dito da teraputica psicanaltica, enquanto as outras, as neuroses narcisistas,10 se bem que passveis de investigao com ajuda da anlise, opem dificuldades fundamentais ao teraputica. (Freud 1910, p. 82)
10 Freud inclui nessa denominao as psicoses funcionais.
25
Mesmo assim, Freud entende a psicanlise como uma cincia jovem que,
em seu desenvolvimento, pode trazer novas compreenses. Diz, com relao s
psicoses: Comea-se a compreender (...) que somente o estudo psicanaltico das
neuroses pode fornecer a preparao necessria a uma compreenso da psicose,
(...) (Freud 1910, p. 83).
1.3 A Interpretao Psicanaltica Freudiana
No Vocabulrio da Psicanlise, Laplanche e Pontalis apontam dois sentidos
principais para o termo interpretao:
A) Destaque, pela investigao analtica, do sentido latente nas palavras e nos comportamentos de um sujeito. A interpretao traz luz as modalidades do conflito defensivo e, em ltima anlise, tem em vista o desejo que se formula em qualquer produo do inconsciente. B) No tratamento, comunicao feita ao sujeito, visando dar-lhe acesso a esse sentido latente, segundo as regras determinadas pela direo e evoluo do tratamento. (Laplanche 1967, p. 245)
Uma nota completa a definio, dizendo que: A interpretao est no
centro da doutrina e da tcnica freudianas. Poderamos caracterizar a psicanlise
pela interpretao, isto , pela evidenciao do sentido latente de um material
(Laplanche 1967, p. 245).
Em outras palavras, a interpretao freudiana compreendida como o cerne do
trabalho psicanaltico freudiano, o qual visa realizar uma comunicao ao paciente
que revele o conflito defensivo e o desejo (recalcado) formulado em uma produo
26
do inconsciente.11 Entretanto, tal definio, embora precisa, no apresenta o
sentido da interpretao na psicanlise tradicional, bem como a evoluo da
tcnica interpretativa e importantes aspectos ligados a ela.
Para Freud, os distrbios psquicos so compreendidos em termos do
inconsciente recalcado, ou, em outra linguagem, como as lacunas nas cadeias de
atos conscientes. Para ele, o homem conta com um lado fsico e outro psquico,
ambos fazendo parte de uma mesma realidade (natural), a qual tem seus
constituintes conectados por relaes temporais e causais contnuas. As lacunas
so indcios de que os elos de ordens temporal e causal, que so as
representaes psquicas, foram suprimidos da conscincia por fatores dinmicos
(Loparic 1999c, p. 339). Portanto, o analista freudiano tem como tarefa recuperar
os elos temporais e causais perdidos, geradores de sintomas a serem eliminados.
Faz isso a partir de indcios do inconsciente recalcado, local dos estados psquicos
originados pela represso. A cura consiste no restabelecimento da boa ordem e
da continuidade temporal e causal nas cadeias psquicas mediante o
preenchimento, na situao especfica da transferncia, das lacunas pelos elos
inconscientes que faltavam (Loparic 1999c, p. 340).
Podemos ainda dizer que a teoria freudiana repousa sobre um princpio de
representabilidade dos estados da conscincia (Loparic 1999c, p. 342),
compreendendo que os atos da conscincia e os objetos desses atos so
representveis. Podemos destacar, resumidamente, as representaes por
11 importante citar outra modalidade do trabalho analtico em Freud, chamada construo. Segundo Laplanche e Pontalis, construo vem a ser o: Termo proposto por Freud para designar uma elaborao do analista mais extensiva e mais distante do material que a interpretao, e essencialmente destinada a reconstituir nos seus aspectos simultaneamente reais e fantassticos uma parte da histria infantil do sujeito (Laplanche 1967, p. 97).
O uso da construo, segundo Freud, legitima-se pela dificuldade em alcanar o objetivo do tratamento quando h a necessidade de uma rememorao total com a eliminao da amnsia infantil, de modo que o analista seja levado a elaborar construes propondo-as ao paciente que, quando precisas, podem fazer ressurgir contedos ou fragmentos de contedos recalcados. Mesmo quando no alcana esse resultado, a construo tem importncia teraputica ao fazer surgir uma firme convico de sua verdade, em uma anlise bem conduzida, adquirindo o mesmo valor de uma lembrana reencontrada. (Laplanche 1967, p. 98). Em outras palavras, quando a interpretao que alcana o contedo recalcado no possvel, o analista pode fazer uso da construo visando o mesmo objetivo da interpretao: lanar luz sobre o que foi reprimido, reconstituindo e at mesmo construindo a histria do analisando.
27
imagens, pertencentes ao sistema Inc., que seriam um complexo associativo das
diversas impresses visuais, acsticas, tteis, cinestsicas e outras; e as
representaes por palavras, pertencentes ao sistema Prc., as quais se
aproximam de conceitos e abstraes e introduzem qualidades adicionais entre os
objetos que representam. Dessa forma, os atos conscientes contam com uma
conexo das representaes por imagens e das representaes por palavras. No
caso dos recalques, essa conexo entre as representaes foi desfeita por meio
da censura: Esse trnsito (Verkehr) entre palavras e imagens est livre na vida
normal, como se v bem no exemplo dos sonhos. O mesmo no ocorre quando
existem distrbios psquicos, de modo que estes podem ser caracterizados pelo
tipo de interrupo deste trnsito, (...) (Loparic 1999c, p. 345).
A cura analtica, portanto, caracteriza-se pelo restabelecimento desse
trnsito. Nas neuroses, isso se far pela reativao das representaes por
imagens atravs de sua conexo com as representaes por palavras. Trata-se de
uma traduo em palavras das representaes por imagens, e aquelas no
formuladas em palavras permanecero recalcadas no Inconsciente Dinmico
(Loparic 1999c, p. 346).
Nesse ponto, possvel dizermos algo sobre o sentido da interpretao
freudiana. Vemos que, para Freud, o homem considerado como possuidor de
uma psique, local das representaes. Na conscincia ou no pr-consciente,
essas representaes organizam-se em cadeias de atos psquicos conectadas em
relaes temporais e causais. Quando por ocasio de conflitos psquicos (censura
interna), essas cadeias so interrompidas e alguns contedos so dirigidos ao
inconsciente recalcado pela quebra da conexo entre as representaes por
imagens e por palavras, ocasionando lacunas nas cadeias de atos psquicos.
Desse modo, a interpretao visa recuperar a conexo das representaes e
trazer o material recalcado conscincia, traduzindo as imagens em palavras.
Aqui torna-se claro o sentido da interpretao, que pode ser enunciado como
28
instrumento de soluo de enigmas.12 como se o distrbio psquico fosse um
enigma a ser solucionado mediante a recuperao dos sentidos dos sintomas. A
interpretao, nesse caso, o trabalho de resolver o enigma. A palavra d sentido
s imagens enigmticas, solucionando os mistrios do analisando e curando-o de
seus sofrimentos. A verdade revelada pela soluo do enigma constitui a biografia
do analisando, a qual pode ter carter real ou fictcio (fantasia), permitindo sua
continuidade em melhor uso das foras libidinais, liberadas pela cura analtica
(Loparic 1999c, p. 352).
Outro aspecto a ser ressaltado o de que, para Freud, o inconsciente
recalcado verbalizvel, de modo que a interpretao vai constituir uma
verbalizao dos contedos inconscientes. por essa razo que a regra
fundamental psicanaltica do tipo diga tudo que lhe passa pela cabea, pois
supe que o inconsciente dizvel e isso significa, nesse caso, verbalizvel
(Loparic 1999c, p. 341).
Apresentado o sentido principal da interpretao freudiana como
instrumento de soluo de enigmas, podemos nos voltar para outros de seus
aspectos. Um importante aspecto diz respeito ao carter de luta e combate da
teoria. Freud entende a patologia como algo a ser combatido, e essa
compreenso se mostra na escolha dos termos da teoria, tais como defesa,
resistncia ou conflito. Nesse contexto, a interpretao considerada parte do
arsenal do analista para combater as defesas (resistncias) patolgicas. Em texto
de 1912, Freud afirma que: Esta luta entre o mdico e o paciente, entre o
intelecto e o instinto, entre o conhecimento e a ao desenrola-se quase toda no
terreno dos fenmenos da transferncia. Neste h de ser conseguida a vitria,
cuja manifestao ser a cura da neurose (Freud 1912, p. 233).
Alm disso, podemos perceber que a tcnica interpretativa traz em si
aspecto ligado ao carter dinmico da teoria. Assim, ao surgir na substituio do
12 O termo enigma sugerido aqui no deve ser confundido com o uso que Laplanche faz dele.
29
hipnotismo pela regra da associao livre, a interpretao carrega consigo o
carter catrtico da hipnose, isto , a liberao dos afetos. No entanto, com o
desenvolvimento da teoria, este substitudo pela liberao da libido aps
resoluo de conflito defensivo, na revelao do desejo recalcado. Ou seja, a
interpretao libera a libido para voltar-se realidade, renunciando organizao
defensiva. Nesse ponto, abrem-se ao paciente trs possibilidades de uso da libido
liberada, resolues que se dirigem cura analtica: realizao do desejo
revelado, sublimao do desejo com orientao da libido liberada para fins mais
elevados ou, ainda, a condenao consciente do desejo.
tambm importante observar o que se torna, na teoria freudiana, objeto
da interpretao. De incio a interpretao visava revelar um acontecimento
traumtico esquecido. Posteriormente, com o desenvolvimento da teoria, passa a
buscar revelar um desejo recalcado, como tambm a resistncia, a qual
resultante das mesmas foras que atuaram no recalcamento. Assim, a tarefa da
interpretao tanto a revelao do desejo recalcado como a revelao da
resistncia.
A mudana do objeto da interpretao acompanha ainda uma mudana
com relao ao universo de ao da interpretao. A princpio, a interpretao
buscava revelar um acontecimento esquecido pelo indivduo, ou seja, a memria
de determinado evento na sua relao com a realidade. Em seguida, Freud d
nfase fantasia na organizao psquica, de modo que a importncia da relao
com a realidade externa diminua e os conflitos passem a ser compreendidos como
resultantes do embate de foras intrapsquicas. No entanto, com a formulao da
transferncia, Freud modifica o campo de atuao do analista, situando-o agora
na relao transferencial do paciente com o mdico. Segundo Freud: As relaes
tomam assim a direo de uma situao em que todos os conflitos ho de ser
combatidos j sobre o terreno da transferncia (Freud 1912, p. 228).
30
Ainda sobre esse ponto importante ressaltar outro aspecto: com o objetivo
de revelar os desejos recalcados e as resistncias e atuando sobre o campo da
transferncia, a interpretao psicanaltica freudiana trabalha no universo das
relaes triangulares, resultantes do complexo edpico. Isso quer dizer que o
analista deve identificar e revelar, no material apresentado pelo paciente,
referncias aos conflitos da situao triangular.
Cabe ainda dizer que nas neuroses de transferncia que se encontram
todos os elementos necessrios ao trabalho psicanaltico, de tal forma que essa
categoria de distrbio eleita por Freud como o campo principal de atuao da
psicanlise.
Com relao interpretao em si, Freud a considerava uma arte, na qual o
analista, com uso de seu prprio inconsciente e com sua habilidade, descobre os
conflitos inconscientes do paciente e os comunica (Freud 1910, p. 95). 13 Essa
comunicao, no entanto, deve ser cuidadosa, a fim de levar a cabo a tarefa de
combater as resistncias do paciente, em vez de fortalec-las. Para tanto, Freud
sugere que sejam observadas duas condies, sem as quais a comunicao no
deve ser realizada. A primeira se refere preparao do doente de modo que este
tenha conseguido aproximar-se suficientemente do reprimido; e a segunda a de
que o paciente esteja ligado ao mdico (transferncia), de forma que essa relao
afetiva impossibilite uma fuga: Somente a estrita observncia destas duas
condies torna possvel descobrir e dominar as resistncias que conduziram
represso e ignorncia (Freud 1910, p. 212).
Freud sugere ainda uma postura de frieza de sentimentos em relao ao
paciente, de modo a criar as condies mais favorveis ao tratamento e assegurar
ao analista proteo de sua prpria vida afetiva. Assim, recomenda uma atitude de
13 Deve ficar claro que, ao propor que o analista faa uso do prprio inconsciente no trabalho analtico, Freud est se referindo ao inconsciente dinmico do analista e no ao inconsciente recalcado. Em artigo de 1912, ele sugere que o bom uso do inconsciente do analista como um instrumento na anlise tem como condio uma anlise prvia do mesmo, para que seus complexos no perturbem a apreenso do material fornecido pelos analisados (Freud 1912, p. 241).
31
interesse srio e carinhoso, que agrega ao mdico uma das imagens daquelas
pessoas pelas quais (o paciente) estava habituado a ser benquisto (Freud 1913,
p. 266).
32
Captulo 2
A MUDANA DE PARADIGMA NA PSICANLISE E A TEORIA WINNICOTTIANA DO AMADURECIMENTO
O objetivo deste captulo mostrar que Winnicott introduz elementos que no
estavam presentes na teoria tradicional, operando uma mudana paradigmtica
(como previsto por Kuhn) na psicanlise, ou seja, a transformao de seus
elementos centrais: seu problema bsico e sua soluo exemplar.
Essa mudana paradigmtica tal que acaba por modificar o trabalho
analtico e a prpria interpretao, como veremos nos captulos seguintes. Para
tanto, faz-se necessrio apresentar brevemente a teoria do amadurecimento que
serve como fundamento para o trabalho winnicottiano.
2.1 Freud e o Complexo de dipo
A psicanlise freudiana encontrou no mito edpico a formulao do problema
bsico sobre o qual se constituiu a teoria psicanaltica. Na situao triangular,
Freud pde observar a relao conflituosa na qual, em sua forma exemplar, o
menininho disputa com o pai seu desejo pela me. Nessa situao, encontra os
elementos necessrios para a compreenso das questes clnicas com as quais
trabalhava: situao triangular, conflito, desejo, ameaa etc. Alm disso, o mito
edpico permitiu o desenvolvimento da teoria sexual, na qual o complexo de dipo
representa o ponto culminante da sexualidade infantil, exercendo influncia
decisiva sobre a sexualidade adulta (Loparic 1997a).
O complexo de dipo tornou-se, portanto, a principal referncia para a
psicanlise. Sobre ele repousam todas as dimenses da teoria e o
desenvolvimento do trabalho analtico tradicional. Sua abrangncia observada
33
na concepo da teoria sexual, na estruturao do sujeito, na compreenso das
neuroses e das doenas psquicas, e na compreenso da ordem cultural humana:
Em primeiro lugar, ele o fenmeno principal da vida sexual, por isso elemento essencial da vida sexual. Toda a teoria da funo sexual concebida como preparao ou como decorrncia da situao edpica. Em segundo lugar, a estrutura do sujeito concebida em termos de antecedentes ou de derivaes do complexo. Em terceiro lugar, o complexo de dipo o complexo nuclear das neuroses e, de modo geral, das doenas psquicas. Em quarto lugar, o complexo de dipo est na origem da ordem cultural, isto , da religio, da moral, da socialidade, da historicidade, da arte, da ordem humana em geral. (Loparic 1997a, p. 377)
Por ser a referncia central de toda a teoria, o complexo de dipo pode ser
considerado o elemento principal do paradigma psicanaltico tradicional. Ele traz
em si o problema central da teoria (os conflitos na ordem do desejo) e sua soluo
exemplar (a teoria da sexualidade) constitui a parte prioritria da psicanlise
freudiana, servindo tanto ao desenvolvimento e institucionalizao da teoria
psicanaltica, como prpria anlise individual (Loparic 1997a).
Dessa forma, o complexo de dipo foi aplicado na psicanlise, alcanando
a soluo de muitos problemas e permitindo compreender um grande nmero de
temas diversos sob uma nova tica. Aos poucos, entretanto, surgiram problemas
que o paradigma edipiano deveria resolver, porm permaneceram no-solveis,
tornando-se anmalos (Loparic 1997a). Entre eles, Winnicott encontrou dificuldade
em compreender os distrbios infantis luz da teoria psicanaltica tradicional, ou
seja, a partir do complexo edpico e da teoria da sexualidade. Precisou, portanto,
pensar as questes clnicas com uso de novos elementos, observando a
importncia dos momentos iniciais do indivduo na constituio da personalidade e
formulando uma teoria do amadurecimento pessoal. Com isso, reformulou a teoria
psicanaltica, incluindo novas bases cientficas que terminaram por proporcionar
uma mudana paradigmtica.
34
Mesmo assim, importante ressaltar que Winnicott confirma o complexo de
dipo, considerando-o correto mas insuficiente (Loparic 2002, p. 33). Portanto ele
foi mantido na teoria winnicottiana, mas no da forma central, como na teoria
freudiana. Alm disso, a teoria sexual perdeu sua importncia paradigmtica, com
o desenvolvimento da teoria winnicottiana do amadurecimento que, na nova teoria,
exerce o papel de guia para a compreenso do desenvolvimento emocional e para
a classificao dos transtornos emocionais.
2.2 Winnicott e o Beb-no-Colo-da-Me14
O exame detalhado da teoria winnicottiana revela que as questes levantadas por
Winnicott, enquanto estabelece sua clnica, fazem com que introduza novos
elementos na teoria psicanaltica. Esses elementos terminam por configurar uma
mudana paradigmtica na psicanlise, como apresentada pelo filsofo Loparic
(Loparic 2002).
Assim, a busca por cuidar de crianas psiquiatricamente doentes e a
insuficincia da teoria tradicional, levaram Winnicott a prestar ateno na relao
inicial me-beb, que se torna o elemento central do novo paradigma. Para ele,
nessa relao que se constituem os alicerces de uma vida saudvel do ponto de
vista do desenvolvimento emocional. Alm disso, ao elaborar uma teoria na qual
tm lugar a observao das vrias etapas do amadurecimento individual e os
fenmenos clnicos, Winnicott encontra novas solues para o tratamento das
patologias de ordem emocional. Em texto publicado somente em 1986, Winnicott
afirma que sua principal questo era: (...) muito simplesmente o tratamento de
crianas psiquiatricamente doentes, e a construo de uma teoria do crescimento
emocional do indivduo humano que fosse melhor, mais precisa e mais til
(1986a, p. 84).
14 Essa expresso de autoria do filosfo Zeljko Loparic.
35
Desse modo, com a observao da relao inicial me-beb e a teoria do
desenvolvimento emocional, Winnicott revoluciona a psicanlise, modificando toda
a sua estrutura interna. Por exemplo, se na teoria tradicional o complexo de dipo
lanava luz compreenso da formao do aparelho psquico como atrelada a
uma relao triangular, em Winnicott v-se a constituio e o desenvolvimento da
entidade psique-soma desde uma relao dois-em-um15 (relao inicial me-
beb), passando por uma relao dual (relao me-beb posterior aquisio de
um eu integrado) e chegando relao triangular (a partir da ocorrncia do
estgio edpico). Ou seja, onde havia a constituio do sujeito a partir da
supremacia de um nico evento (o complexo de dipo), h o amadurecimento
individual; onde havia a formao de um aparelho psquico, h o desenvolvimento
de uma unidade psique-soma; onde havia uma relao triangular, h a experincia
de outros modos de relao at alcanar a relao triangular; onde havia a
predominncia de questes intrapsquicas, h uma relao com o ambiente que
se inicia em uma relao dois-em-um me-beb.
Assim, a relao inicial me-beb (o-beb-no-colo-da-me) o problema
central da psicanlise winnicottiana e a teoria do amadurecimento sua soluo
exemplar.
Tambm vale ressaltar que, dentre as modificaes realizadas por
Winnicott na psicanlise, a questo ambiental de grande importncia para o
presente trabalho. Diferente de Freud, que, em certa altura, ps a realidade
psquica em um plano prioritrio em relao realidade factual, Winnicott recupera
o observao do ambiente como fundamental no desenvolvimento individual. Para
ele, o ambiente no qual o indivduo se desenvolve facilita ou prejudica seu
amadurecimento, sendo decisivo para que atinja seu potencial pessoal ou para
que, do contrrio, sofra das conseqncias de um ambiente que no satisfaz suas
necessidades. Dito de outro modo, Winnicott mantm em sua teoria as questes
15 Winnicott compreende que, no incio, o beb experimenta o ambiente como parte do prprio self, mesmo que, do ponto de vista de um observador externo, a relao se d entre duas pessoas: beb e me.
36
dos conflitos sexuais censurados, mas considera que: os sofrimentos realmente
mais graves so aqueles que derivam das necessidades [do indivduo] no
atendidas [pelo ambiente] (Loparic 2002, p. 53).16
A importncia do ambiente pode ser observada na relao me-beb. Para
Winnicott, nessa relao, atravs de uma maternagem suficientemente boa, a me
oferece ao beb um ambiente no qual ele pode se desenvolver tanto do ponto de
vista fsico quanto do emocional:
(...) os xitos se manifestam em termos do desenvolvimento pessoal que os recursos ambientais bem-sucedidos tornaram possvel. Pois o que a me faz, quando o faz suficientemente bem, facilitar os processos de desenvolvimento do beb, tornando-lhe possvel, at certo ponto, realizar o seu potencial hereditrio (1968d, p. 90).
Outro importante aspecto da teoria com relao ao ambiente, est no fato
de que o ambiente fornecido pela relao me-beb o modelo de excelncia
para a relao analista-paciente, pelo qual o analista deve estabelecer um
ambiente de sustentao e confiana:
O analista deve dispor de toda a pacincia, tolerncia e confiabilidade da me devotada ao beb. Deve reconhecer que os desejos do paciente so necessidades. Deve deixar de lado quaisquer interesses a fim de estar disponvel e ser pontual e objetivo. E deve parecer querer dar o que na verdade precisa ser dado em razo das necessidades do paciente (1949f, p. 287).
16 Grifo nosso.
37
2.3 A Teoria do Amadurecimento17
A importncia da teoria do amadurecimento reside no fato de ela se configurar
como teoria guia da prtica winnicottiana. Com esta, Winnicott explicita as tarefas
que cada pessoa deve realizar no incio e ao longo da vida para a consolidao de
um viver saudvel e de existir como si mesmo sentindo-se real (1967c, p. 161);
explicita tambm as possveis conseqncias da no-realizao das mesmas
tarefas.
Portanto, faz-se necessrio expor as principais caractersticas e tarefas
envolvidas no amadurecimento, desde o incio at o final da vida dos indivduos.
Assim, apresentaremos as fases iniciais que abarcam o perodo que demarca o
incio da vida at a conquista da integrao em um eu-unitrio, perodo este
relativo ampliao da tcnica winnicottiana, visto que anterior s relaes
triangulares que se formam a partir do complexo de dipo. Tambm sero
apresentados os estgios posteriores integrao em um eu-unitrio, para que o
leitor tenha acesso a uma compreenso global da teoria.
importante ressaltar ainda que o processo de amadurecimento ocorre
durante toda a vida dos indivduos, e, para no perdemos isso de vista,
utilizaremos aqui, como material ilustrativo s sees desenvolvidas no captulo,
uma sucinta descrio desse processo, apresentada por Winnicott na Introduo
da Parte I do livro Natureza humana:
Optando pela abordagem que estuda o desenvolvimento como a mais capaz de focalizar os diversos pontos de vista, espero deixar claro [como] inicialmente, a partir de uma interao primria do indivduo com o ambiente, surge um emergente, o indivduo que procura fazer valer seus direitos, tornando-se capaz de existir num mundo no desejado; ocorre ento o fortalecimento do self como
17 Recomendamos a leitura de A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott de autoria de Elsa Oliveira Dias (2003), que explicitou de modo extremamente claro e rigoroso a teoria winnicottiana do amadurecimento, com suas caractersticas e fundamentos.
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uma entidade, uma continuidade do ser onde, e de onde, o self pode [emergir] como uma unidade, como algo ligado ao corpo e dependente de cuidados fsicos; e ento advm a conscincia (awareness) (e conscincia implica a existncia de uma mente) da dependncia, e a conscincia quanto confiabilidade da me e de seu amor, que chega criana sob a forma de cuidados fsicos e adaptao necessidade; ocorre ento a aceitao pessoal das funes e dos instintos e seus clmaxes, o gradual reconhecimento da me como um outro ser humano, e junto a isso a mudana da ruthlessness em direo ao concern; e ento h o reconhecimento do terceiro, e do amor complicado pelo dio, e do conflito emocional; e esse todo enriquecido pela elaborao imaginativa de cada funo, e pelo crescimento da psique juntamente com o do corpo; e tambm a especializao da capacidade intelectual, que depende da qualidade dos atributos cerebrais; e de novo, em paralelo a isso tudo, surge um desenvolvimento gradual de independncia em relao aos fatores ambientais, levando com o tempo socializao (1988, p. 25).
2.3.1 Caractersticas da teoria do amadurecimento
Winnicott pressupe a existncia de trs fatores fundamentais no processo de
desenvolvimento emocional: a hereditariedade, o ambiente e o prprio indivduo.
2.3.1.1 Hereditariedade: a tendncia inata integrao
Por hereditariedade, Winnicott entende ser na maior parte, (...) a tendncia
inerente do indivduo a crescer, a se integrar, a se relacionar com objetos, a
amadurecer (1965h, p. 125). Inata e hereditria, essa uma tendncia que pode
se confirmar ou no a partir das condies do indivduo e do ambiente. Quando
tudo corre bem, o indivduo alcana a condio de um eu-unitrio no qual pode
construir uma personalidade no padro da continuidade existencial (1965n, p.
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59), ou seja, como algum que realiza a continuidade de ser, bem como seus
desdobramentos e riscos, a partir de uma personalidade autntica e integrada.
Quando no, experimenta a ocorrncia de interrupes na continuidade de ser
que resulta, muitas vezes, na organizao de distrbios psquicos. importante
ressaltar que, desde sua origem, o indivduo carrega consigo essa tendncia
integrao, a fim de chegar e permanecer durante sua vida como um eu-unitrio.
2.3.1.2 O ambiente
Para Winnicott, o ambiente de natureza fundamental para o desenvolvimento do
ser humano, criando e fornecendo as condies para isso. Winnicott faz uma clara
distino entre ambientes possveis, nomeando de facilitador (ou suficientemente
bom) aquele que fornece as condies para o desenvolvimento saudvel do
indivduo. Um ambiente facilitador o que atende de modo suficiente s
necessidades do indivduo, e tais necessidades se modificam de acordo com o
momento no qual este se encontra no processo de amadurecimento. Ao contrrio,
um ambiente no suficiente aquele que no atende s necessidades
maturacionais do indivduo, de modo que no consiga se organizar de maneira
saudvel, desenvolvendo distrbios de ordem emocional.
Por ambiente, Winnicott entende ser aquilo que sustenta o indivduo no
tempo e no espao. De incio o corpo da me, depois os braos da me, o lar
proporcionado pelos pais e assim por diante.18 Ou seja, o mundo, mas no o
mundo como o conhecemos quando adultos e, sim, o mundo que a me e
apresentado pela me em pequenos fragmentos que vo se ampliando a cada
nova experincia.19
No comeo, logo aps o nascimento, as necessidades do beb em relao
ao ambiente dizem respeito tcnica do cuidar normalmente praticada pela me, 18 1965r, p. 81.
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a qual alimenta, segura, balana, mantm aquecido e confortvel, d banho e
chama pelo nome.20 O cuidado do incio deve ser incessante para possibilitar a
continuidade do crescimento emocional.21 Nesse momento, o ambiente adequado
permite ao beb a experincia de iluso que vai permitir o contato entre psique e
ambiente.22
2.3.1.3 O indivduo
Para Winnicott, o ser humano uma amostra-no-tempo da natureza humana
(1988, p. 29). Isso quer dizer que cada ser humano, ainda que se assemelhe aos
outros seres humanos nas caractersticas da espcie e nas tarefas que tem por
realizar, vive a cada vez de um jeito pessoal e realiza um caminho existencial
temporal prprio que resultado de seu encontro com o ambiente que o cerca.
Esse caminho nico a cada vez: O indivduo (...) vai constituindo o si-mesmo,
como um caminho (Dias 2003, p. 100).
2.3.2 Os estgios da teoria do amadurecimento
Winnicott classifica didaticamente quatro grandes estgios em sua teoria do
amadurecimento: dependncia absoluta, dependncia relativa, rumo
independncia e independncia relativa. Cada um desses estgios conta com uma
srie de tarefas que, na sade, devem ser realizadas pelo indivduo em
desenvolvimento.
A seguir, apresentaremos brevemente esses estgios com suas tarefas e
principais defesas, utilizadas nas ocorrncias de problemas que interrompem ou
19 1949m. 20 1945d, p. 224. 21 1953a, p. 306. 22 1953a, p. 311.
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dificultam o amadurecimento.23 Entretanto, vale lembrar que, para Winnicott, a
demarcao dos estgios do desenvolvimento didtica e artificial. Ele entende
que nos encontramos sempre em todos os estgios, havendo porm, a cada
momento, a dominncia de um em especfico: A dissecao das etapas do
desenvolvimento um procedimento extremamente artificial. Na verdade, a
criana est o tempo todo em todos os estgios, apesar de que um estgio pode
ser considerado dominante (1988, p. 52).
2.3.2.1 A dependncia absoluta e a dependncia relativa: do incio integrao em um eu-unitrio
Winnicott entende que, no incio, o beb se encontra em um estado no-integrado,
no qual experimenta pequenos instantes de integrao. Nessa fase todos os
acontecimentos so experimentados como no primrdio de um self, no havendo
diferenciao entre esse self inicial e o mundo externo. Desse modo, pode-se
dizer que o ambiente inicial incorporado ao self inicial. Ainda no h um sentido
de eu, o que vir apenas a partir da integrao em um eu-unitrio. Ele identifica
tambm, importantes tarefas (as tarefas bsicas) a serem iniciadas e realizadas
pelo beb na dependncia absoluta: a integrao no tempo e no espao, o
alojamento da psique no corpo: personalizao, o incio do contato com a
realidade: as relaes objetais, a constituio do si-mesmo primrio.
Na dependncia relativa, o beb passa por novos estgios que permitiro
alcanar a conquista de um eu-unitrio. So eles: o estgio de desiluso,
desmame e incio das funes mentais; a transicionalidade; o estgio do uso do
objeto; o estgio do EU SOU. Nesse ltimo, aps os sucessivos episdios de
integrao, a realizao das tarefas bsicas, a passagem pelos estgio de
desiluso, transicionalidade e uso do objeto, a criana alcana a condio de
integrao em um eu-unitrio, aproximadamente com 1 ou 1,5 ano.
23 A apresentao das defesas aqui importante para a continuidade do trabalho nos captulos posteriores.
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Nesses dois estgios: dependncia absoluta e dependncia relativa, as
principais defesas realizadas a partir da ocorrncia de problemas que interrompem
ou dificultam o amadurecimento, so a ciso e a dissociao. Tais defesas so
relacionadas aos transtornos psicticos, na nosologia winnicottiana.
2.3.2.2 Rumo independncia
Alcanando a integrao em um eu-unitrio, a criana se v com um eu e um no-
eu, um dentro e um fora, de modo que passa a lidar com questes relativas a uma
relao dual: beb/me.
Com o incio da relao dual, tambm se v s voltas com a tarefa de
integrar a instintualidade no estgio do concernimento. Integrar a instintualidade
significa integrar na personalidade o instinto amoroso incompadecido, ou seja, os
impulsos amorosos acompanhados de sua agressividade. Alm disso, a criana
aprende a lidar com a culpa resultante da destruio provocada por seus
impulsos, tornando sua personalidade mais interessante e profunda.
Nesse estgio, a principal defesa utilizada na ocorrncia de problemas a
represso e a inibio dos instintos, relativas aos transtornos das depresses
reativas.
2.3.2.3 Independncia relativa
Na independncia relativa, pela primeira vez a criana se encontra como pessoa
inteira capaz de relacionar-se com pessoas inteiras (Dias 2003, p. 259). Agora,
inteira, com seus instintos integrados e responsvel pelos efeitos de seus
impulsos instintuais, ela entra no estgio edpico, alcanando a (...) experincia
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das dificuldades inerentes vida instintual no quadro das relaes triangulares e
interpessoais (Dias 2003, p. 272).
Com a continuidade do desenvolvimento emocional e com a bagagem
adquirida nos estgios anteriores, seguem-se os estgios da puberdade,
adolescncia e da vida adulta, cada um com suas caractersticas prprias, para,
por fim, chegar ao momento final do amadurecimento quando deve integrar o
morrer: A meia-idade chega na poca certa, com outras mudanas igualmente
adequadas, e finalmente a velhice vem desacelerar os vrios funcionamentos at
que a morte natural surge como a derradeira marca da sade (1988, p. 30).
No estgio independncia relativa, a principal defesa utilizada a
represso, relativa aos transtornos neurticos.
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Captulo 3
O TRABALHO WINNICOTTIANO NA ANLISE24
A mudana de paradigma realizada por Winnicott tem uma abrangncia muito
maior do que pode parecer a um primeiro olhar. Ele introduz a relao inicial me-
beb como o elemento principal da constituio da personalidade do indivduo,
inaugurando uma nova fundamentao cientfica (considerao da relao
indivduo-ambiente) e um novo quadro terico (teoria do amadurecimento
emocional) que, juntos, vo modificar toda a psicanlise, ainda que permaneam
muitos elementos da linha tradicional.
Assim como a teoria, tambm o trabalho na anlise sofre grandes
modificaes. Em Freud, consistia em revelar o inconsciente reprimido, a fim de
desmanchar as solues de compromisso e tornar a libido livre para novas
relaes de objeto. J em Winnicott, o trabalho extrapola essa perspectiva,
modificando-se pelo fato de se orientar pela necessidade do paciente. Dessa
maneira, configura-se como o estabelecimento de uma relao que se destina a:
(1) recuperar o processo de amadurecimento; (2) promover integrao e (3)
promover um espao potencial para o surgimento do brincar e da criatividade.
Winnicott tambm demarca diferentes tipos de trabalho para cada grupo de
distrbios, de forma que a compreenso do tipo de distrbio apresentado pelos
pacientes determine a conduta analtica.
Portanto, este captulo discutir: o trabalho na anlise, com destaque sua
tripla finalidade recuperao do processo de amadurecimento, promoo da
integrao e promoo do espao potencial para surgimento do brincar e da
criatividade ; o trabalho relativo a cada grupo de distrbios da nosologia
24 Esse termo foi utilizado porque, como veremos adiante, Winnicott fala de um modo de trabalho no-analtico.
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winnicottina: psiconeuroses, psicoses e distrbios anti-sociais; e uma breve
apresentao das tcnicas envolvidas, com exceo da interpretao.
3.1 Os Objetivos do Trabalho na Anlise 3.1.1 Recuperao do processo de amadurecimento A partir de sua experincia clnica, Winnicott sente a necessidade de usar novas
tcnicas de modo a atender pacientes que no se beneficiavam do trabalho
psicanaltico tradicional. Ciente da diferena entre possveis modos de trabalho,
Winnicott afirma:
Se nosso objetivo continua a ser verbalizar a conscientizao nascente em termos de transferncia, ento estamos praticando anlise; se no, ento somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasio. E por que no haveria de ser assim? (1965d, p. 155).
O que isso quer dizer exatamente? Quer dizer que, em sua clnica,
Winnicott encontrou pacientes com problemas diversos daqueles encontrados por
Freud. Nestes, constatou que falhas dos cuidados do ambiente os levaram a
desenvolver diferentes distrbios, tornando-se necessrio o uso de novas tcnicas
na anlise para o cuidado de tais situaes.
A classificao das diferentes classes de distrbios em Winnicott tambm
resultado da elaborao da teoria do desenvolvimento emocional, a teoria do
amadurecimento, na qual Winnicott localiza as diferentes tarefas que o indivduo
realiza em seu desenvolvimento normal. Nela, ele apresenta sua compreenso da
natureza humana, como uma tendncia ao amadurecimento que, se realizada em
um ambiente favorvel, permite a aquisio de recursos emocionais cada vez
mais complexos que mediam a relao com o ambiente: O indivduo herda um
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processo de amadurecimento, que o faz progredir na medida em que exista um
meio ambiente facilitador e somente na medida em que este exista (1974, p. 71).
Ele entende ainda que os problemas relativos a um ambiente desfavorvel no
incio da vida podem estacionar o processo de amadurecimento, impedindo o viver
de maneira saudvel e criativa, colocando em relevo, dessa forma, sua noo de
trauma e organizao de defesas patolgicas.
Trauma, para Winnicott, vem a ser a experincia de uma interrupo
imprevisvel na continuidade de ser ocasionada por um evento para o qual o
indivduo no est capaz de conter em sua organizao pessoal. Esse evento
pode ser tanto o surgimento de algo no tolervel (por exemplo, uma crise
psictica vivida pela me), bem como a ausncia de algo aguardado: o no-
acontecido (por exemplo, a me que no atende s necessidades de
amamentao do filho). Assim, para se proteger de novos eventos traumticos, o
indivduo organiza defesas que no obedecem s suas necessidades pessoais,
mas ao impedimento de um novo perigo externo:
Um trauma aquilo contra o qual o indivduo no possui defesa organizada, de maneira que um estado de confuso sobrevm, seguido talvez por uma reorganizao de defesas, defesas de um tipo mais primitivo do que as que eram suficientemente boas antes da ocorrncia do trauma. (...) Em outras palavras, [os bebs] experienciaram trauma, e suas personalidades tm de ser construdas em torno da reorganizao de defesas que seguem os traumas (...) (1970b, p. 201).
So as organizaes defensivas que vo produzir os distrbios emocionais.
Quando atingido por uma intruso (algo do ambiente no esperado e no
suportvel ou algo aguardado que no aconteceu), e protegendo-se atravs de
organizaes defensivas contra novas ameaas, tem-se que tais organizaes
acabam por impedir um desenvolvimento saudvel, pois obedecem a uma defesa
e no ao desenvolvimento natural da personalidade e do self pessoal, congelando
o amadurecimento:
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(...) ocorreu em certo perodo ou fase do desenvolvimento uma falha real de apoio ao ego que deteve o desenvolvimento emocional do indivduo. Uma reao nesse indivduo a esse distrbio tomou o lugar do desenvolvimento, simplesmente. O processo de maturao ficou contido por causa de uma falha no ambiente facilitador (1965ve, p. 187).
Quanto mais cedo ocorrem traumas no processo de amadurecimento, mais
graves sero as conseqncias, j que o grau de integrao da personalidade
menor. Com relao s psicoses, Winnicott afirma:
O ponto principal que estas falhas so imprevisveis; no podem ser consideradas pelo lactente como projees, porque este no chegou ainda ao estgio de estrutura do ego que torna isto possvel e o resultado o aniquilamento do indivduo. A continuidade de sua existncia interrompida (1963a, p. 231).
Portanto, o trabalho na anlise se destina a criar uma condio
especializada, na qual a pessoa acometida por problemas poder retomar seu
processo de amadurecimento. Nesse tipo de trabalho, antes de encontrar boas
interpretaes, o paciente deve encontrar um ambiente que substitua o ambiente
desfavorvel, para que possa retomar seu processo de amadurecimento pessoal.
Comentando um caso clnico, Winnicott diz:
Nessa experincia parecia-me ver uma criana re-vivendo experincias infantis precoces, corrigindo, a partir de alguma necessidade interna, o seu fracassado encontro inicial com o mundo. Ele estava nascendo de novo. Eu via um ambiente substituindo o outro. Mais adiante a anlise atravs de interpretaes verbais tornou-se ento no apenas possvel, mas urgentemente necessria. Na etapa que descrevi, porm, minha funo era fornecer um certo tipo de ambiente, e assim permitir que o menino fizesse o trabalho (1948b, p. 246).
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Para que isso seja feito, necessrio que o trabalho na anlise possa
propiciar as condies que faltaram nos momentos das falhas ambientais
impedindo o amadurecimento, levando em considerao que cada estgio do
amadurecimento requer condies diferentes. Assim, o trabalho analtico
winnicottiano se modifica de acordo com a necessidade do paciente, relativa ao
ponto em que seu amadurecimento estacionou, por falta de recursos pessoais
(imaturidade) e ms condies ambientais. Winnicott d a essa nova modalidade
do trabalho o nome de anlise modificada: E quanto anlise modificada? Eu me
dou conta de trabalhar como um analista ao invs de realizar anlise padro
quando me defronto com certas condies que aprendi a reconhecer (...) (1965d,
p. 154).
Para saber qual tipo de trabalho deve realizar: o trabalho psicanaltico
tradicional ou a anlise modificada, ele se baseia em diagnsticos, realizados no
incio e na continuidade dos tratamentos, buscando para cada paciente aquilo que
ele precisa a cada momento:
O fato essencial que baseio meu trabalho no diagnstico. Continuo a elaborar um diagnstico no continuar do tratamento, um diagnstico individual e outro social, e trabalho de acordo com o mesmo diagnstico. Neste sentido, fao psicanlise quando o diagnstico de que este indivduo, em seu ambiente, quer psicanlise. Posso at tentar estabelecer uma cooperao inconsciente, ainda quando o desejo inconsciente pela psicanlise esteja ausente. Mas, em geral, anlise para aqueles que a querem, necessitam e podem toler-la. Quando me defronto com algum tipo errado de caso, me modifico no sentido de ser um psicanalista que satisfaz, ou tenta satisfazer, as necessidades de um caso especial. Acredito que este trabalho no-analtico pode ser melhor feito por um analista que versado na tcnica psicanaltica clssica (1965d, p. 154).
No trecho descrito acima, Winnicott observa que esse trabalho no-
analtico, porque no est relacionado ao trabalho interpretativo ou analtico ou at
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mesmo mental do analista, mas principalmente atitude deste. Quando algum
sofre de falhas ambientais graves que resultam em srios distrbios emocionais,
precisa encontrar no analista um ambiente favorvel que possa ser curador, no
sentido de permitir abandonar sua organizao defensiva. Desse modo, a criao
desse ambiente pelo analista se relaciona sua postura e atitude e no anlise
do inconsciente. Encontrando no analista um ambiente confivel, o paciente pode
reviver as situaes traumticas sem necessidade das organizaes defensivas
patolgicas e retomar o processo de amadurecimento. Winnicott compara esse
trabalho ao modo da me adequada, que realiza as condies necessrias para
seu filho se desenvolver de maneira saudvel:
O analista deve dispor de toda a pacincia, tolerncia e confiabilidade da me devotada ao beb. Deve reconhecer que os desejos do paciente so necessidades. Deve deixar de lado quaisquer outros interesses a fim de estar disponvel e ser pontual e objetivo. E deve parecer querer dar o que na verdade precisa ser dado apenas em razo das necessidades do paciente (1949f, p. 287).
Vale notar que Winnicott fala em necessidades como prioritrias aos
desejos. O fato que, at alcanar o estgio edpico, o principal no se d em
termos de desejos ou desejos conflituosos, ainda que o beb tenha experincias
com impulsos instintuais; mas sim com necessidades que so atendidas por uma
me suficientemente boa, permitindo o desenvolvimento de modo sadio. Portanto,
o trabalho relativo aos problemas relacionados sustentao pelo ambiente diz
respeito ao atendimento das necessidades dos pacientes: Preocupa-nos aqui,
portanto, no apenas a regresso a pontos bons ou maus nas experincias
instintivas do indivduo, mas tambm pontos bons ou maus na adaptao s
necessidades do ego e do id na histria do indivduo (1955d, p. 380).25
Esse tipo de trabalho relacionado atitude do analista, tendo como modelo
a me suficientemente boa, compreendido como manejo, ou seja, tudo aquilo
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que o analista faz quando no interpreta. Por exemplo, ao comentar o atendimento
de pacientes psicticos, Winnicott diz: A respeito desse terceiro grupo, a nfase
recai mais freqentemente sobre o manejo, e por vezes passam-se longos
perodos em que o trabalho analtico normal deve ser deixado de lado, o manejo
ocupando a totalidade do espao (1955d, p. 375).
No manejo, Winnicott denomina holding o conjunto das tcnicas envolvidas,
palavra que pode ser traduzida por sustentao. A idia central que o paciente
precisa de uma sustentao efetiva, tanto para poder abandonar suas
organizaes defensivas, como para poder retomar o processo de
amadurecimento. Esse holding se modifica a partir das necessidades do paciente
em seu desenvolvimento emocional, porm, no cuidado das falhas relativas ao
incio da vida, o que deve ser sustentado a prpria existncia do paciente, em
extremo risco:
No tratamento das pessoas esquizides (...) a necessidade principal a de apoio simples ao ego, ou de holding. Esse holding, como a tarefa da me no cuidado do lactente, reconhece tacitamente a tendncia do paciente a se desintegrar, a cessar de existir, a cair para sempre (1965vd, p. 217).
Segundo Winnicott, a psicanlise tradicional e a anlise modificada no so
excludentes, mas complementares. Ele entende que a primeira colabora com a
segunda e vice-versa