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TEXTO PARA DISCUSSÃO N O 507 A Infra-Estrutura e o Processo de Negociação da ALCA Pedro da Motta Veiga AGOSTO DE 1997

A Infra-Estrutura e o Processo de Negociação da ALCA · tringe-se ao processo sub-regional do MERCOSUL e concentrou-se na área de ... vantagem comparativa para ... fatores de desvantagens

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TEXTO PARA DISCUSSÃO NO 507

A Infra-Estruturae o Processo deNegociaçãoda ALCA

Pedro da Motta Veiga

AGOSTO DE 1997

* Este trabalho foi elaborado no âmbito do Convênio

IPEA/CEPAL.** Consultor da Fundação Centro de Estudos do Comércio

Exterior (FUNCEX) e do BID.

TEXTO PARA DISCUSSÃO NO 507

A Infra-Estrutura e o Processode Negociação da ALCA*

Pedro da Motta Veiga**

Brasília, agosto de 1997

M I N I S T É R I O D O P L A N E J A M E N T O E O R Ç A M E N T OM i n i s t r o : A n t ô n i o K a n d i rS e c r e t á r i o E x e c u t i v o : M a r t u s T a v a r e s

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

P r e s i d e n t eF e r n a n d o R e z e n d e

D I R E T O R I A

C l a u d i o M o n t e i r o C o n s i d e r aG u s t a v o M a i a G o m e sL u í s F e r n a n d o T i r o n iL u i z A n t o n i o d e S o u z a C o r d e i r oM a r i a n o d e M a t o s M a c e d oM u r i l o L ô b o

O IPEA é uma fundação pública, vinculada ao Ministério doPlanejamento e Orçamento, cujas finalidades são: auxiliaro ministro na elaboração e no acompanhamento da políticaeconômica e promover atividades de pesquisa econômica aplicadanas áreas fiscal, financeira, externa e de desenvolvimento setorial.

TEXTO PARA DISCUSSÃO tem o objetivo de divulgar resultadosde estudos desenvolvidos direta ou indiretamente peloIPEA, bem como trabalhos considerados de relevânciapara disseminação pelo Instituto, para informarprofissionais especializados e colher sugestões.

Tiragem: 160 exemplares

COORDENAÇÃO DO EDITORIAL

Brasília — DF:SBS Q. 1, Bl. J, Ed. BNDES, 10o andarCEP 70076-900E.Mail: [email protected]

SERVIÇO EDITORIAL

Rio de Janeiro — RJ:Av. Presidente Antonio Carlos, 51, 14o andarCEP 20020-010E.Mail: [email protected]

SUMÁRIO

SINOPSE

1 INTRODUÇÃO 7

2 INFRA-ESTRUTURA NO BRASIL: SITUAÇÃO DAS

REDES E TENDÊNCIAS DE POLÍTICA 8

3 A INFRA-ESTRUTURA NOS PROCESSO

DE INTEGRAÇÃO 12

4 O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA 17

5 A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO

DE FORMAÇÃO DA ALCA 23

6 O SETOR EMPRESARIAL E A

INFRA-ESTRUTURA NA ALCA 25

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 27

8 ANEXO 29

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 38

SINOPSE

trabalho discute o papel da infra-estruturanos processos de integração econômica,bem como o gerenciamento do tema emdiferentes acordos regionais (União

Européia, NAFTA e MERCOSUL), à luz da oportunidadeaberta pelo inicio das negociações com vistas aconformação de uma Área de Livre Comércio dasAméricas (ALCA). A prioridade concedida pelospaíses latino-americanos ao tema da infra-estrutura deverá constituir um dos principaisincentivos para que as negociações avancem emnovas áreas, tais como o comércio de serviços e osacordos de investimentos.

O

O CONTEÚDO DESTE TRABALHO É DA INTEIRA E EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DE SEU AUTOR,CUJAS OPINIÕES AQUI EMITIDAS NÃO EXPRIMEM, NECESSARIAMENTE, O PONTO DE VISTA DO

MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO.

A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA 7

1 INTRODUÇÃO

A relevância da questão da infra-estrutura paraos processos de integração parece quase óbvia.Quando a integração envolve países contíguos —como geralmente ocorre —, o suporte infra-estrutural é o principal meio para que a geografia possa

contar e para que as preferências comerciais negoci-adas realizem plenamente seu potencial de cria-ção de comércio e, especialmente, de atração deinvestimentos.

De fato, para que uma área de livre comércio —ou uma união aduaneira — possa ser vista, por in-vestidores locais ou externos, como um mercadounificado, é fundamental que seu sistema de in-fra-estrutura confira a este espaço característicasde homogeneidade e de intercomunicação que as-segurem, ao movimento de bens e serviços, flui-dez e o mínimo possível de ruptura dos fluxos.

Para além das fronteiras políticas das áreas deintegração, estas adquirem plenamente sentidoeconômico naqueles espaços onde as infra-estruturas garantem às atividades produtivas umcontinuum físico e regulatório que contribua paraequalizar as condições de competição.

A experiência brasileira na negociação de temasde infra-estrutura em acordos de integração res-tringe-se ao processo sub-regional do MERCOSUL econcentrou-se na área de transportes. Os resulta-dos dessas negociações atestam as dificuldadespara superar não somente barreiras técnicas eburocráticas à integração das redes de infra-estrutura nacionais, mas também concepções re-gulatórias ancoradas no modelo de desenvolvi-mento protecionista dominante entre os anos 50 e80.

O início das discussões acerca da conformaçãofutura de uma Área de Livre Comércio das Amé-

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ricas (ALCA) fornece a oportunidade para que seanalisem as relações entre infra-estrutura e pro-cessos de integração, em um contexto todaviamuito mais complexo — para o Brasil — do que odo MERCOSUL. Esta complexidade adicional derivado fato de a negociação da ALCA envolver países queapresentam níveis de desenvolvimento muito su-periores ao do Brasil e que se beneficiam de redesde infra-estrutura qualitativa e quantitativamen-te superiores às disponíveis nos países latino-americanos.

Este trabalho pretende avaliar, do ponto de vistado Brasil, a relevância do tema da infra-estruturapara a conformação da ALCA, levando em conside-ração a situação atual da infra-estrutura no país,a evolução recente da regulação doméstica dessessetores, as experiências de negociação do tema emprocessos de integração e a estratégia global denegociação definida pelo MERCOSUL no processo daALCA. É a partir desses fatores condicionantes quese busca mapear as oportunidades e ameaças as-sociadas à inclusão do tema na agenda da ALCA, edefinir uma estratégia de inserção da matéria naagenda, de forma a maximizar as oportunidades eincentivos para o Brasil e a reduzir as ameaçaspotenciais existentes.

Para tanto, o trabalho apresenta, no capítulo 2,alguns dados e elementos sobre a situação da in-fra-estrutura no Brasil, explicitando, ainda, asprincipais tendências de mudança no regime deregulação doméstica dos diferentes setores. Nocapítulo 3, discutem-se os principais modelos detratamento da questão da infra-estrutura em pro-cessos de integração, com ênfase na experiênciada União Européia e referências aos casos doNAFTA e do MERCOSUL. No capítulo 4, descreve-se ediscute-se o processo de pré-negociação da ALCA,nos níveis intergovernamental e empresarial. Ocapítulo 5 trata principalmente das condições ca-pazes de maximizar os incentivos positivos asso-ciados à inclusão, na agenda de negociações, do

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tema da infra-estrutura. No capítulo 6, descreve-se a participação empresarial nas negociações daALCA e no tratamento do tema da infra-estrutura.Finalmente, algumas breves conclusões são apre-sentadas no capítulo 7.

2 INFRA-ESTRUTURA NO BRASIL:SITUAÇÃO DAS REDES E TENDÊNCIAS DE

POLÍTICA

Os problemas macroeconômicos vividos peloBrasil a partir do início dos anos 80 levaram osinvestimentos à estagnação, afetando de modoparticularmente intenso as inversões em infra-estrutura, até recentemente sob responsabilidadequase exclusiva do setor público.

O investimento público como proporção do PIB (apreços correntes) reduziu-se de 7,4%, em1980/82, para 5,5%, em 1991/93 e , em todos ossetores de infra-estrutura, o incremento dos gas-tos foi insuficiente para acompanhar o cresci-mento do PIB. Em energia elétrica, os investimen-tos feitos em 1993 foram cerca de 10% daquelesefetuados em 1980 e, no setor de transportes, asinversões praticamente desapareceram desde1990 [Pinheiro (1996)].

A deterioração do quadro de infra-estrutura, noBrasil, ocorreu em um período em que se proces-sava, nesses setores, uma radical transformaçãoenvolvendo a tecnologia, os modelos organizacio-nais de gestão e operação dos serviços, as regula-ções e a estrutura de oferta dos mesmos serviços.Por exemplo, no caso dos transportes, o desen-volvimento da intermodalidade resultou no cres-cimento da escala ótima de operações, aumentou ograu de concentração da oferta nos tráfegos in-ternacionais, determinou o uso intensivo das fer-ramentas de telemática e determinou a emergên-cia de novos fatores de competitividade no setor.

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De uma maneira geral, essa transformação ge-rou, para os usuários de serviços de infra-estrutura, reduções importantes em seus custosde produção, de comercialização e de transação,de tal maneira que uma oferta adequada de infra-estrutura, em termos qualitativos e quantitativos,passou a ser identificada como uma importantevantagem comparativa para as empresas que delapossam sebeneficiar.

Em função de seu quadro de instabilidade ma-croeconômica e de um ambiente regulatório ad-verso à entrada de capitais privados na oferta deserviços de infra-estrutura, o Brasil ficou, em boamedida, à margem das transformações e emergehoje da crise, identificando, em suas diversas re-des de infra-estrutura, fatores de desvantagenscompetitivas e fontes de custos adicionais frente aseus concorrentes externos.

Esta situação não afeta de modo uniforme as di-ferentes regiões e os diversos setores da econo-mia. O déficit de infra-estrutura é particularmen-te sensível nos setores que compõem a cadeia doagribusiness, cuja articulação com os mercados inter-nacionais está no centro da dinâmica de acumula-ção de capital. Para tais setores, a logística de co-mercialização é um fator de competitividade fun-damental, e a desvantagem dos produtores crescecom a distância em relação às regiões mais des-envolvidas do país.

A reversão do quadro será lenta e difícil, nãosomente em função do volume de investimentosrequeridos (na casa das dezenas de bilhões de dó-lares), mas também porque a retomada dos inves-timentos impõe, em primeiro lugar, a superaçãodos complexos problemas relacionados à transi-ção entre regimes regulatórios radicalmente dis-tintos (modelagem da privatização, definições re-lativas à universalidade da prestação de serviços,remuneração dos operadores e regras de fixação ereajuste das tarifas, desenho das agências regu-

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ladoras, etc.) e, em segundo lugar, o equaciona-mento das questões referentes à viabilização dosnovos projetos de investimento (modelos de fi-nanciamento, mecanismos de seguro e garantia,etc.).

O Brasil vem redefinindo, ao longo dos dois úl-timos anos, o paradigma de planejamento que ori-enta a definição de projetos prioritários de infra-estrutura, bem como o modelo regulatório aplicá-vel aos seus diferentes setores. No que se refere aoprimeiro aspecto, merecem registro as iniciativasenvolvendo a construção do gasoduto Bolívia —Brasil e a utilização, no Brasil, do gás natural e deenergia elétrica produzida na Argentina, assimcomo a discussão acerca da integração energéticacom a Venezuela — que confere a este país, do pon-to de vista brasileiro, uma importante especifici-dade no contexto da negociação entre o MERCOSUL eo Pacto Andino.

Tais iniciativas sugerem a consolidação de umparadigma de investimentos em infra-estruturafundado em uma visão essencialmente geoeco-nômica, em que as fronteiras nacionais e as con-siderações de ordem geopolítica contam menos doque os critérios de eficiência dos investimentos ede busca de sinergia entre diferentes atividades eregiões.

No tocante ao segundo aspecto (modelo regula-tório), a mensagem básica do Plano Plurianual deInvestimentos (PPA) do governo federal é a “ne-cessidade de atrair o investimento privado para osetor de infra-estrutura, de forma não somente aconcluir projetos iniciados e depois descontinua-dos por falta de verbas, mas também a reduzir ocusto de implementação dos projetos de infra-estrutura, permitindo assim maior incrementodo estoque de capital para o mesmo volume depoupança” [Pinheiro (1996)].

As iniciativas do governo federal com este obje-tivo envolveram a extensão do programa de pri-vatizações aos serviços de infra-estrutura, a edi-

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ção da Lei de Concessões e das emendas constitu-cionais que eliminam monopólios estatais diver-sos (indústria do petróleo, telecomunicações, dis-tribuição de gás encanado e resseguros) e a dis-criminação contra empresas de capital estrangei-ro operando no Brasil.

O processo de privatização está praticamenteconcluído no setor de transporte ferroviário, asprimeiras concessões rodoviárias já foram lici-tadas e a modernização dos portos segue em ritmolento, mas avançou o suficiente para estimularuma saudável competição entre eles. Na área deenergia, o Congresso definiu os elementos essen-ciais da nova estrutura de regulação do setor elé-trico (a Agência Nacional de Energia Elétrica —ANAEEL) e há várias modalidades possíveis de par-ticipação do setor privado em novos investimen-tos. Encontra-se em análise no Congresso o subs-titutivo do Senador Eliseu Resende ao projeto doExecutivo para a flexibilização do mercado de pe-tróleo. Em telecomunicações, o Executivo apro-vou sua proposta de lei geral, definindo as caracterís-ticas da agência regulatória, redefinin-do/reclassificando os serviços, estabelecendo ascondições de interconexão e concorrência na redebásica, conceituando serviço universal e definin-do os mecanismos de seu financiamento, reorga-nizando a TELEBRÁS e prevendo sua posterior priva-tização. A lei estabelece, ainda, a possibilidade deo Executivo restringir a participação do capitalestrangeiro nas empresas prestadoras de servi-ços de telecomunicações.

Embora a lei geral não tenha estabelecido prazospara a privatização e não tenha fornecido elemen-tos acerca do modelo de estrutura setorial que sepretende implantar, recentemente o Ministro dasComunicações deu duas indicações sobre seusplanos e objetivos nessas áreas: foi criada, juntoao Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-mico e Social (BNDES), uma comissão de supervi-são do processo setorial de privatização, e definiu-

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se que o primeiro bloco de empresas de telefoniaseria privatizado ainda em 1997. Afirmou o mi-nistro, ainda, que às empresas vencedoras das li-citações não será concedido prazo para o usufrutode situação de monopólio, uma vez que — após aprivatização — será lançada licitação para a con-cessão de serviços de telefonia comercial nasmesmas áreasleiloadas.

No campo das negociações multilaterais, o Bra-sil participou das tratativas para o estabelecimen-to de um acordo sobre serviços de telecomunica-ções e tornou-se um dos seus 68 signatários, com-prometendo-se — a partir de julho de 1999 — aeliminar quaisquer restrições à participação dire-ta de investidores estrangeiros no capital das em-presas que irão operar em telefonia celular (ban-da B) e em exploração de satélites.

Esse conjunto de iniciativas visa tão-somenteestabelecer as precondições para a atração de in-vestimentos privados em infra-estrutura: estabi-lidade e transparência de regras, definição dasfunções do Estado e estabelecimento de limites àssuas intervenções, e níveis adequados de rentabi-lidade para os investidores. A tradução dessas medi-das em novos investimentos e em ampliação deoferta de serviços de infra-estrutura ocorrerá deforma lenta, ao longo dos próximos cinco a dezanos.

O novo modelo de gestão da infra-estrutura representa nítida ruptura com uma tradição

marcada pelos seguintes elementos:

· a preocupação com a dimensão geopolítica dainfra-estrutura, dentro de uma visão de auto-suficiência da oferta doméstica e de afirma-ção do Estado nacional vis-à-vis a de seus vizi-nhos;

· a baixa prioridade em relação a questões comoa eficiência dos investimentos e seu custo, oque se traduz, antes de mais nada, na prefe-rência por novos investimentos, em detrimento da manutenção e até da operação

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da infra-estrutura existente [Villela e Maciel(1996)];

· a superposição, em empresas públicas, de fun-ções regulatórias e de operação dos serviços; e

· a aversão à competição e ao capital privado,doméstico ou externo, na oferta de serviços deinfra-estrutura.

É interessante e relevante para os objetivos des-te trabalho observar que, com maior ou menor in-tensidade, tanto o diagnóstico de deterioração dasredes de infra-estrutura, quanto as tendências derevisão do modelo de regulação e operação dessesserviços — ambos aqui referidos ao Brasil — tam-bém se aplicam aos demais países do MERCOSUL e daAmérica do Sul.

A abertura dos mercados de infra-estrutura aosinvestidores privados, inclusive estrangeiros, é,para estes países, o mecanismo essencial para re-cuperar o atraso — comum a praticamente toda aAmérica Latina — em matéria de modernizaçãodos serviços de infra-estrutura, esforço que re-quererá, para o período de 1996/2001, investi-mentos anuais equivalentes a US$ 60 bilhões[Batista da Silva (1996)].

3 A INFRA-ESTRUTURA NOS PROCESSOSDE INTEGRAÇÃO

A inclusão do tema da infra-estrutura na agenda de processos de integração tem uma fun-

cionalidade que é, no mínimo, tripla, conforme descrito a seguir.

· Em primeiro lugar, se um dos efeitos potenci-ais dos esquemas de liberalização preferencialentre países contíguos é fazer a geografia contar, a suaconcretização depende da superação dos obs-táculos físicos, técnicos e regulatório-institucionais à movimentação de bens e ser-viços entre tais países. A integração das redes

A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA 15

de infra-estrutura aparece como condição es-sencial para a realização do objetivo.

· Em segundo lugar, em espaços economica-mente integrados, a existência de assimetriasentre países e regiões, em termos de quantida-de e de qualidade de serviços de infra-estrutura, se traduz imediatamente em dife-renciais de competitividade e de atratividadepara novos investimentos. Nesse sentido, a in-tegração pode reforçar — e não atenuar — asdisparidades de níveis de desenvolvimentoentre países e regiões, ao desencadear lógicascumulativas de polarização dos investimen-tos e ao potencializar os efeitos de aglomera-ção [Bliss e Braga de Macedo (1990) e Le Ca-cheux (1996)]. No entanto, um tratamentoadequado do tema da infra-estrutura nos pro-cessos de integração pode contribuir para queseus efeitos dinâmicos se dêem no sentido defacilitar a convergência entre os desempenhosreais das economias, incentivando o catching up

das indústrias das regiões periféricas ou, pelomenos, reduzindo os riscos de que se ampliemas disparidades entre países e regiões dentroda área de integração — o que significa dizerque o tema da infra-estrutura tem sua funcio-nalidade vinculada, nos processos de integra-ção, à lógica das políticas compensatórias e àspreocupações com a coesão econômica e social dos proces-sos. Tal dimensão é particularmente relevantenos processos de integração fortemente mar-cados por assimetrias entre os países-membros, em termos de níveis de desenvol-vimento, como é o caso da ALCA.

· Em terceiro lugar, dadas as característicasdos investimentos em redes de infra-estrutura — volume, indivisibilidades, gera-ção de externalidades, entre outras —, rara-mente o espaço ótimo de planejamento se confunde com asunidades nacionais e a lógica geopolítica dosEstados nacionais deve dar lugar à logica geo-econômica, mais permeável a projetos supra-

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nacionais.

A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA 17

A experiência da União Eu-ropéia — reunindo países geo-

graficamente pequenos — é certamente a maisrica, em termos de gestão da infra-estrutura den-tro da agenda de processos de integração.

Até 1985, a infra-estrutura não era tema priori-tário na agenda da Comunidade Européia. A úni-ca exceção era a precoce preocupação comunitá-ria com os transportes terrestres, identificadoscomo elemento crítico na definição das condiçõesde concorrência entre os países-membros.

De maneira geral, prevalecia o modelo de gestãopública das redes de infra-estrutura, onde empre-sas estatais monopolistas asseguravam a regula-ção e a provisão de serviços. Quando a Comuni-dade adotou, entre 1971 e 1976, as primeiras dire-trizes de abertura dos mercados públicos, os seto-res de energia, de transportes e de telecomunica-ções foram excluídos das regras de liberalização.

Foi somente a partir de 1985, com a retomadado processo de construção do mercado unificado,que os temas infra-estruturais se integraram àagenda de negociações entre os países da Comu-nidade, sob impulso da Comissão (órgão executi-vo da Comunidade) e, sobretudo, das decisões daCorte de Justiça das Comunidades Européias[Stoffaes (1995)]. A integração à Comunidade depaíses de menor nível relativo de desenvolvimen-to — como Portugal, Grécia e Espanha — constitu-iu um poderoso incentivo para que o tema da in-fra-estrutura ganhasse prioridade na agenda denegociação, associando-se seu tratamento e o demecanismos comuns de financiamento a projetosinfra-estruturais ao objetivo de integração das re-giões periféricas ao centro dinâmico do bloco re-gional.

Três têm sido os vetores de desenvolvimento do tema no processo de integração europeu,conforme sumariado adiante.

3.1 A União Européia

18 A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA

1. A liberalizacão dos mercados de serviços deinfra-estrutura —trata-se de, gradualmente,desfazer “situações monopolistas julgadasexcessivas e abolir direitos exclusivos ou es-peciais que os Estados-membros outorgarama certas empresas” [Stoffaes (1995)]. Esseprincípio geral de liberalização conviveu comdiferentes modelos nacionais de relaciona-mento entre o setor público, as empresas ope-radoras e os consumidores, bem como comvariados ritmos de liberalização dos merca-dos, conforme dados do Instituto Europeo-Latinoamericanas (IRELA (1994)). Enquanto otransporte rodoviário de mercadorias foi pro-fundamente liberalizado, os setores de gás eeletricidade não haviam sido, até 1994, objetode qualquer posicionamento comum por partedo Conselho da União Européia. Entretanto, aadoção do princípio geral de liberalização nãoexcluiu a manutenção de “dispositivos de sal-vaguarda relativos à provisão e ao financia-mento dos serviços universais”.

2. A harmonização de normas e padrões, neces-sária para tornar efetivas a abertura dos mer-cados e a interoperação das redes nacionais, aqual teve como objeto as especificações técni-cas para equipamentos (telecomunicações etransporte ferroviário), os princípios de tari-fação dos serviços (fornecimento de eletrici-dade às empresas), a fiscalização e as disposi-ções relativas à organização profissional e àscondições de trabalho (transporte rodoviáriode carga), e às condições de outorga de autori-zação para operar e fornecer serviços em de-terminados setores (telecomunicações).

3. A preocupação central com a preservação dosinteresses coletivos afetados pelas redes deinfra-estrutura, que se traduz na centralidadedas noções de obrigação de serviço público e de serviço universal,consagradas pela jurisprudência da Corte deJustiça européia.

A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA 19

O Tratado de Maastricht sobre a União Euro-péia — em vigor a partir de novembro de 1993 —prevê o estabelecimento e o desenvolvimento deredes de energia, de transportes e de telecomuni-cações transeuropéias, o que requer a concretiza-ção da interoperação das redes existentes e financiamento de novas infra-

estruturas de interesse comum e, em especial, aquelasligando as regiões periféricas às áreas centrais daComunidade [Lafay e Unal-Kesenci (1994); Sto-ffaes (1995)].

Foi instituído, pelo Conselho da União, um fundo de

coesão, a fim de contribuir financeiramente para arealização de projetos nos campos do meio ambi-ente e das redes transeuropéias de transportes. Ofundo recebeu uma dotação de 15 bilhões de ecuspara o período até o ano 2000, e os Estados ditosperiféricos da União serão os principais benefici-ários dos projetos financiados.

A experiência da União Européia combina, por-tanto, uma diretriz genérica de liberalização, ele-vada capacidade para lidar com diferentes mode-los de gestão e ritmos de abertura dos mercadosnacionais, bem como permanente preocupaçãocom a redução das assimetrias entre países e re-giões, no que se refere à dotação de recursos de in-fra-estrutura.

Embora, com o passar do tempo, as diretrizeshorizontais de liberalização e de harmonizaçãovenham se impondo frente às condicionalidadessetoriais, o ritmo das negociações ainda variamuito entre os setores e se admitem, na prática,numerosas exceções a uma aplicação estrita dasregras comunitárias de concorrência.

Nesse quadro, o papel de instituições suprana-cionais dotadas de razoável poder de enforcement juntoaos Estados nacionais — caso da Comissão e daCorte de Justiça — é fundamental para assegurara coerência global do processo de liberalização dosmercados e para estabelecer regras de convivên-cia entre diferentes estruturas regulatórias e mo-

20 A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA

delos de articulação entre os Estados e os opera-dores.

No NAFTA, o tema da infra-estrutura é tratado essenci-almente nos acordos horizon-tais sobre investimentos e so-

bre serviços. É curioso observar, no entanto, queboa parte dos setores de infra-estrutura foramexcluídos das negociações de comércio e de inves-timentos.

De fato, energia e transportes ferroviários fo-ram excluídos por iniciativa mexicana, os trans-portes marítimos por iniciativa dos EUA, os servi-ços básicos de telecomunicacões por decisão doCanadá e do México, e os transportes aéreos porconsenso. A rigor, a liberalização do comércio edos investimentos nos setores de infra-estruturano NAFTA somente alcançou o transporte rodoviá-rio de carga — abrindo o mercado mexicano — eserviços não básicos de telecomunicações[UNCTAD/BIRD (1994)]. As negociações levaram,ainda, o México a flexibilizar em alguma medidasua posição tradicional no que se refere aos inves-timentos externos na indústria petroquímica e àparticipação de capitais dos EUA e do Canadá emprojetos de infra-estrutura ferroviária [OCDE

(1996)].

Ao longo das negociações e como contrapartidaà inclusão —por pressão dos EUA — de dois side agreements

sobre meio ambiente e direitos trabalhistas, le-vou-se adiante a idéia de instituir um banco dedesenvolvimento norte-americano, voltado para ofinanciamento de projetos infra-estruturais deinteresse comum do México e dos EUA.

No MERCOSUL, os esforços de negociação de temasde infra-estrutura concentraram-se nos segmen-tos de transportes. Os resultados podem ser con-siderados bastante limitados, não somente por-

3.2 Outros Processos deIntegração: NAFTA eMERCOSUL

A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA 21

que persistem obstáculos burocráticos, mas tam-bém porque permanecem em vigor restrições téc-nicas e regulatórias à liberalização do mercadosub-regional para os operadores locais [Castro eLamy (1996)]. O crescimento exponencial dosfluxos de comércio intra-MERCOSUL, nos últimosanos, tem evidenciado a insuficiência dos esfor-ços de integração no plano das infra-estruturas,tanto no que refere à integração física, quanto noque tange à obtenção de um grau mínimo de libe-ralização do acesso aos mercados nacionais paraos operadores dos Estados-membros e de harmo-nização de normas e procedimentos que permitareduzir de forma expressiva os custos de trans-portes dentro da sub-região.

O MERCOSUL evidencia as dificuldades de imple-mentação de diretrizes de liberalização de merca-dos e de harmonização de regras e padrões nacio-nais em processos de integração institucional-mente estruturados segundo uma lógica de nego-ciações setoriais e com escassos mecanismos deestabelecimento e de enforcement de disciplinas supra-nacionais vis-à-vis das normas nacionais preestabe-lecidas. O resultado é um evidente descompassoentre, de um lado, a liberalização tarifária do co-mércio de bens dentro do bloco e, de outro, a per-sistência de inúmeros entraves infra-estruturaisà circulação de mercadorias (barreiras não-tarifárias?) e de restrições à liberalização dosmercados de prestação de serviços.

O Banco Interamericano de Desenvolvimento(BID) fez recentemente um inventário dos projetosde integração de infra-estrutura no MERCOSUL — aíincluídos Chile e Bolívia —, que se encontram emum nível de, no mínimo, estudo de pré-viabilidade[BID (1996)]. O trabalho do BID identificou 32 pro-jetos de interesse de pelo menos dois países dobloco, com valor total estimado em cerca de US$28 bilhões. O quadro 1 a seguir apresenta os in-vestimentos previstos para cada modalidade deprojeto.

22 A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA

QUADRO 1

Projetos de Integração de Infra-estrutura noMERCOSUL

Transporte rodoviário entre US$ 5 e US$ 6,5 bilhõesTransporte ferroviário US$ 1,23 bilhãoHidrovias US$ 660 milhõesProjetos hidrelétricos US$ 14,5 bilhõesInterconexões elétricas US$ 830 milhõesGasodutos US$ 4,1 bilhões

Os principais investimentos em curso ou emprocesso de licitação para concessão envolvem aconstrução de gasodutos e de redes de intercone-xão elétricas, tornada prioritária em função dasperspectivas de escassez de energia no Brasil, emfuturo próximo. A fim de dar suporte regulatórioaos esforços de interconexão energética entre Ar-gentina e Brasil, os presidentes dos dois paísesfirmaram, em abril de 1997, na Declaração do Riode Janeiro, o compromisso “de definir normasque permitam transações de energia elétrica e degás natural livremente contratadas entre empre-sas dos dois países, obedecendo ao princípio desimetria no tratamento, bem como à outorga deautorizações, licenças ou concessões de operaçãoe exploração de gasodutos e redes de transporte deenergia elétrica necessárias para as atividades deexportação e importação, evitando-se práticasdiscriminatórias”. A mesma Declaração prevê anecessidade de ajustes regulatórios para a con-cessão a capitais privados da construção, opera-ção, manutenção e comercialização da energia doempreendimento de Garabi, na fronteira dos doispaíses.

Tais compromissos têm, como marco de refe-rência, o Protocolo de Intenções sobre Coopera-ção e Interconexão Energética, assinado peloBrasil e pela Argentina no início de 1996, e apon-tam para a necessidade de harmonizar regras enormas nacionais de forma a viabilizar empre-endimentos de infra-estrutura de escopo supra-nacional. Nessa área, os resultados do MERCOSUL

são ainda incipientes. De fato, há apenas dois

A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA 23

acordos quadripartites assinados em áreas de in-fra-estrutura, e ambos estão em estágio inicial deimplementação, como se vê a seguir.

— Acordo de Transporte Multimodal: o Brasil foi o primeiro paísdo MERCOSUL a implantar a expedição de manifes-tos de carga para o transporte multimodal, a par-tir de setembro de 1996. O Uruguai já incorporouo Acordo à sua legislação interna e está se prepa-rando para implementá-lo, ao passo que, na Ar-gentina e no Paraguai, encontram-se em debateprojetos de lei para internalizar o Acordo, emtermos regulatórios.

— Acordo sobre Serviços Aéreos Sub-regionais: o Acordo foi assinadoem Fortaleza, em dezembro de 1996, pelos quatropaíses do MERCOSUL, além do Chile e da Bolívia, eregulamentará os serviços aéreos regulares depassageiros, de carga e correio, que não estão in-cluídos no escopo dos acordos bilaterais entre ospaíses do bloco, e que continuarão vigentes. Aconcessão de direitos às empresas interessadasem operar novas rotas estará a cargo dos Estados-membros, e novos aeroportos serão habilitadospara operações internacionais, possibilitando ou-tras conexões e alternativas para o transporte aé-reo.

Para enfrentar, ainda que parcialmente, o desa-fio do financiamento dos projetos supranacionaisde integração das infra-estruturas, o MERCOSUL re-solveu criar, também em Fortaleza, no mês de de-zembro de 1996, um comitê especial integradopor representantes dos governos dos cinco paísesda chamada Cuenca del Plata (os quatro países doMERCOSUL e a Bolívia) para elaborar uma propostatécnica com o objetivo de transformar o Fondo Financiero

para el Desarrollo de la Cuenca del Plata (FONPLATA) em um meca-nismo financeiro de desenvolvimento e integra-ção, voltado essencialmente para projetos de in-fra-estrutura. Em fevereiro deste ano, a decisãode transformar o FONPLATA em uma instituição oumecanismo financeiro foi oficialmente anuncia-

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da pelos países-membros, discutindo-se atual-mente o modelo institucional a ser adotado.

4 O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA

a) As negociações intergovernamentais

No Plano de Ação aprovado na Cúpula de Mia-mi, além de fixarem em 2005 a data para a con-clusão das negociações, os chefes de Estado docontinente admitiram, conforme colocado nestetrabalho, que o processo da ALCA avançaria em duas

vias, e estabeleceram um cronograma de reuniõespara acompanhar o programa de trabalho defini-do.

Em Denver, em junho de 1995, os ministros deComércio reafirmaram a coerência da ALCA com asregras da Organização Mundial de Comércio(OMC) e com os princípios do regionalismo aberto.Foram criados sete Grupos de Trabalho (GTs),prevendo-se o estabelecimento de outros quatrona reunião de Cartagena (março de 1996).1

Definiu-se, ainda, que o Acordo incluiria temascomerciais e os chamados novos temas da Rodada Uru-guai, além de política da concorrência. A adesãoao Acordo seria necessariamente feita para o con-junto de direitos e obrigações, sob a forma de single

undertaking.

Ao iniciar-se o ciclo brasileiro de reuniões — inaugura-do em Florianópolis, em setembro de 1996 — aALCA já tinha definido uma data-limite para a con-clusão das negociações (o ano de 2005), os ele-mentos básicos de seu escopo de abrangência (os

1 Os onze GTs tratam do seguintes temas: acesso a mercado,

regras de origem e procedimentos aduaneiros, normastécnicas, medidas sanitárias e fitossanitárias, serviços,investimentos, política de concorrência, agricultura,subsídios, anti-dumping e direitos compensatórios, direitos depropriedade intelectual e economias menores. Na reuni-ão ministerial de Belo Horizonte, foi criado o GT sobre so-lução de controvérsias.

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temas dos GTs), alguns princípios fundamentais(decisões por consenso, competitividade com aOMC e single undertaking), e o embrião de uma sistemáticade negociação (as reuniões de ministros e vice-ministros do Comércio) e da estrutura organiza-cional de apoio (os GTs e o Comitê Tripartite Orga-nização dos Estados Americanos — OEA/Banco In-teramericano de Desenvolvimento—BID/Comissão Econômica para a América Latina eCaribe — CEPAL). Ademais, admitia-se que aparticipação dos países nas negociações e suaadesão à ALCA ocorressem de forma individual, oucomo membros de grupos sub-regionais (oMERCOSUL, por exemplo).A integração em duas vias, definida desde Miami, resguar-dava os interesses dos países do MERCOSUL, envol-vidos em um projeto de união aduaneira, mastambém preservava, para os EUA, a viabilidade daestratégia de extensão do NAFTA, inclusive comoelemento de pressão durante o processo negocia-dor.

Contudo, não se chegou a um consenso quanto àdata de início das negociações efetivas, bem comoem relação à natureza e profundidade dos compromissos da ALCA (Lan-de, 1996), que os negociadores dos EUA sugeriamdever ser necessariamente OMC — plus e, idealmente,NAFTA — plus.

A reunião vice-ministerial de Florianópolismarcou uma ruptura na história da ALCA: por ini-ciativa do MERCOSUL, abriu-se o debate sobre o pro-cesso de negociação a ser concluído em 2005. Deacordo com a proposta do MERCOSUL, o processo denegociação seria conduzido em três etapas suces-sivas, vinculando-se indissociavelmente a cadaetapa um conjunto de temas.

Assim, a primeira etapa visaria à concretizaçãode acordos de facilitação de negócios, em camposcomo procedimentos aduaneiros, medidas sani-tárias, etc. A segunda etapa incluiria temas cujanegociação exigisse mais do que acordos de facili-tação de negócios, sem implicar, no entanto, tro-cas de concessões em termos de acesso a mercado.

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Estas estariam reservadas à terceira etapa — a seiniciar em 2003.

Inaugurada a discussão em torno do processode negociações, mais cinco propostas se agrega-ram à do MERCOSUL, durante as reuniões de Recife(fevereiro de 1997) e Rio de Janeiro (abril de1997): as dos EUA, do Canadá, da Comunidade doCaribe (CARICOM), do Grupo Andino e do Chile. Oanexo apresenta detalhadamente o conteúdo decada uma dessas propostas.

As propostas do MERCOSUL e dos EUA previam ne-gociações em etapas: três, no caso do MERCOSUL, eduas, no caso dos EUA. Posteriormente à reuniãode Recife, os EUA adotaram o modelo de negociaçãosimultânea de todos os temas. Como visto, o qua-dro que se consolidou às vésperas da reunião deBelo Horizonte apresentava algumas importan-tes divergências e convergências.

No plano das divergências, a mais importanteopunha a proposta do MERCOSUL a todas as demais eenvolve o ritmo e a seqüência das negociações. Deum lado, o MERCOSUL defendia que a cúpula presi-dencial, prevista para março de 1998, em Santia-go, marcasse o anúncio do lançamento das negociações,ao passo que, nas demais propostas, esse eventomarcaria o início efetivo das negociações. De ou-tro lado, somente a proposta do MERCOSUL prevê ne-gociações por etapas e vincula o tratamento decertos temas a determinadas etapas. Todas as de-mais propostas defendem o tratamento simultâ-neo de todas as áreas de negociações.

Menos explícita, mas também relevante, é a di-vergência entre as propostas norte-americanas(EUA e Canadá) e a do MERCOSUL quanto ao nível deabrangência do Acordo: enquanto os primeirosidentificam a montagem de arranjos comerciais ede disciplinas hemisféricas ao estabelecimento denormas OMC — plus, o MERCOSUL rejeita uma adesão ge-ral a esse tipo de compromisso.

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Finalmente, a inclusão de temas trabalhistas eambientais na agenda hemisférica — proposta pe-los EUA — é rejeitada pelo MERCOSUL, que condicionaa inclusão de novos temas à comprovação de suavinculação ao comércio e ao amadurecimento de seu tra-tamento, no plano multilateral.

Às convergências alcançadas nas reuniões an-teriores, o ciclo brasileiro de negociações agregou, até areunião ministerial de Belo Horizonte:

· a admissão da necessidade de uma estruturade suporte permanente às negociações, embo-ra ainda houvesse divergência quanto às fun-ções específicas e à organização dessa estru-tura; e

· o consenso sobre a relevância da participaçãodo setor empresarial no processo de negocia-ção, sancionada pela intensa mobilização pri-vada em torno da preparação da reunião deBelo Horizonte.

A reunião ministerial de Belo Horizonte (maiode 1997), marcada por uma retórica de conflito eoposição entre os EUA e o Brasil, mais uma vez ra-tificou as convergências alcançadas. As contribu-ições específicas da reunião ao processo parecemse concentrar em quatro aspectos, descritos a se-guir.

— Primeiro, concentraram-se em um definiçãomais precisa da data de início das negociações: osministros concordam que as negociações “deve-riam iniciar-se em Santiago, em março de 1998, e[recomendarão] aos (...) Chefes de Estado e de Go-verno que assim o façam naquela oportunidade”.Embora esta não seja uma afirmação taxativa, afórmula usada deixa pouca margem de dúvidaquanto à data de início das negociações. Para tan-to, os ministros de Comércio dos países do conti-nente formularão, na reunião de San José da Cos-ta Rica, em fevereiro de 1998, “como se procederáàs negociações, inclusive aspectos como seus ob-jetivos, enfoques, estrutura e localização”.

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— Segundo, definiram-se estruturas organizacionais de transição

entre a fase de pré-negociação e a etapa negociado-ra: os vice-ministros terão três reuniões na CostaRica, para preparar a reunião ministerial de fe-vereiro de 1998, antecedente à cúpula presiden-cial de Santiago, em março. Paralelamente, osvice-ministros passam a constituir um ComitêPreparatório coordenando e dirigindo as ativida-des dos Grupos de Trabalho e recomendando aosministros o modo de reconfigurar os GTs em grupos denegociação. Aos GTs — agora acrescidos do Gruposobre Solução de Controvérsias — caberá subme-ter aos vice-ministros, em sua segunda reuniãosob a presidência da Costa Rica, “diferentes al-ternativas técnicas no tocante a possíveis ques-tões e enfoques de negociação em suas respectivasdisciplinas”. Finalmente, o Comitê Tripartite con-tinuará a apoiar tecnicamente os GTs e realizaráestudo de viabilidade “para o estabelecimento deuma secretaria administrativa de caráter tempo-rário para prestar apoio às negociações da ALCA”.

— O terceiro aspecto reside em uma ênfase re-forçada às necessidades específicas das economi-as menores, em termos de “políticas internas ade-quadas, assistência técnica e cooperação, a fim defacilitar a participação efetiva daquelas economi-as no processo da ALCA”.

— Em quarto e último lugar, vale registrar a con-tribuição da reunião ministerial de Belo Horizon-te quanto à qualificação feita à coexistência daALCA com os acordos bilaterais e sub-regionais en-volvendo países do continente. Uma vez que pre-valece o princípio de single undertaking como modelo deadesão ao Acordo, a coexistência será possível“na medida em que os direitos e obrigações assu-midos nesses acordos ou não estejam previstosnos direitos e obrigações da ALCA, ou não os ultra-passem”. Tal qualificação sugere que tenha sidointroduzido no processo de negociação um prin-cípio de ordenamento das relações entre a ALCA e osdemais acordos de integração no continente, em

A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA 29

todos os campos contemplados pelo acordo he-misférico. A definição desse princípio de orde-namento, baseado na prevalência das disposiçõesda ALCA sobre as dos demais acordos em áreas co-muns, responde ao reconhecimento pragmáticodas dificuldades para gerar disciplinas hemisfé-ricas, a partir das diversas regras e normas bila-terais e sub-regionais, estabelecidas pelos acordosfirmados nos últimos anos no continente. Alémde responder a uma necessidade prática, a decisãoconfere à ALCA status político privilegiado enquantomecanismo de estabelecimento de disciplinas vis-à-

vis os demais acordos.

A divergência quanto à seqüência das negocia-ções não foi superada e o tema deverá concentraras atenções dos vice-ministros em suas próximastrês reuniões, na Costa Rica.

Além disso, enquanto a importância da partici-pação empresarial não suscita dissensões entreos países, a integração dos sindicatos de trabalha-dores às negociações criou nova clivagem. Assim,Brasil e EUA foram permeáveis às demandas sin-dicais de participação, mesmo se, no caso do Bra-sil, não houver qualquer interesse em discutir ostemas de relações trabalhistas, vinculando-os aocomércio, e se, no caso dos EUA, o objetivo dessaposição tiver sido neutralizar críticas domésticasao processo de negociação. México, Peru, CostaRica, Colômbia se opuseram às propostas de par-ticipação trabalhista.

Na Declaração Ministerial, os temas trabalhis-tas e de meio ambiente receberam pouca ênfase,referenciando-se o seguimento desses temas, naALCA, à evolução dos trabalhos em âmbito multila-teral.

b) A participação do setor privado

A mobilização empresarial em torno da prepa-ração da reunião de Belo Horizonte consolidou aparticipação do setor privado como um elemento

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central do processo de negociação da ALCA. A in-tensa participação empresarial começou a produ-zir uma dinâmica de negociação com razoávelgrau de autonomia em relação às negociações in-tergovernamentais e com elevada taxa de convergência en-tre as diferentes propostas nacionais (ou sub-regionais).

O caso brasileiro exemplifica as diferenças en-tre as posições empresarial e governamental. Osdocumentos empresariais do Brasil, preparadospara o Fórum de Belo Horizonte, têm duas carac-terísticas essenciais:

a) ratifica-se a proposta governamental de umaabordagem escalonada da negociação, masavança-se na direção de um modelo em que avinculação etapa-tema só é essencial para ocaso das negociações de acesso aos mercados— que ocorreria necessariamente na terceiraetapa —, perdendo relevância no restante dostemas; e

b) a proposta do setor privado diferencia-se dagovernamental, ao defender a inclusão, nasprimeiras etapas de negociação, de temas cir-cunscritos, na visão do governo, à terceiraetapa: serviços, investimentos e compras go-vernamentais, entre outros.

É possível identificar na proposta empresarialbrasileira o esforço para aproveitar a oportunidade ALCA

para enfrentar questões relacionadas ao custo Brasil.Mesmo na área de acesso a mercados — a maissensível, do ponto de vista brasileiro —, a propostaempresarial prevê uma série de iniciativas que,sem exigir o início do processo de troca de concessões, dãoum conteúdo substantivo à primeira e à segundaetapa do processo negociador. Assim, por exem-plo, cabe à segunda etapa “fixar regras básicas dofair play a nível do hemisfério, contemplando, no en-tanto, mecanismos, procedimentos e regras para otratamento de assimetrias ou de impactos capazesde inviabilizar a integração regional”. É impres-

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cindível, ainda, para o empresariado brasileiro,que nessa segunda etapa, a preferência hemisférica assuma ostatus de objetivo político. Nesse sentido, dispositi-vos nacionais considerados incongruentes em re-lação às regras da OMC, bem como mecanismos denatureza unilateral, deveriam ser abolidos entreos integrantes da ALCA. Mais ainda, segundo dadosda Conferência Nacional da Indústria (CNI), a pre-ferência hemisférica deveria orientar os atosadministrativos de todos os órgãos envolvidos nointercâmbio regional.

A convergência dessas duas características naproposta empresarial sugere que o respaldo à pos-tura de negociação do governo, embora inalteradono que respeita à idéia de somente discutir con-cessões de acesso a mercado na última fase dasnegociações, recebe agora uma qualificação. Defato, os documentos da CNI sugerem a viabilidade— e o interesse — de uma estratégia de densificação dasduas primeiras etapas de negociação e de minimi-zação das restrições impostas pela posição do go-verno a determinados temas e áreas de negocia-ção.

As conclusões dos workshops empresariais autorizam dois comentários:

· a divergência quanto à seqüência das negocia-ções — em etapas não simultâneas — tambémse manifestou entre os empresários; nessecaso, a posição favorável às negociações emetapas agregou não só os representantes doMERCOSUL, mas também os do Chile e do GrupoAndino; e

· a elevada taxa de convergência em áreas não estrita-mente comerciais, como investimentos e polí-ticas de concorrência, onde há consenso quan-to à necessidade e viabilidade de se avançarrapidamente na direção de acordos hemisfé-ricos abrangentes.

Mais recente, a participação do setor sindicalnas discussões se deu a partir do Fórum Sindicaldos Trabalhadores das Américas, reunido em

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Belo Horizonte. O Fórum pleiteia sua integraçãoformal ao processo de negociações e defende a in-clusão futura no Acordo de cinco cláusulas sociais: o com-bate ao trabalho escravo; o combate ao trabalhoinfantil; o combate à discriminação racial; o direi-to de organização sindical; e o direito de organiza-ção coletiva dos trabalhadores (cf.Gazeta Mer-cantil, 13 de maio de 1997).

Dois anos e meio de processo ALCA lograram produzirum conjunto importante de convergências sobrepontos fundamentais de negociação. Além disso, oprocesso dá sinais crescentes de irreversibilida-de, e a intensa agenda de negociações intergover-namentais e de reuniões empresariais assegurauma permanente mobilização dos agentes públicose privados em torno da ALCA.

Embora o componente conflitivo, presente emtoda negociação, continue a influenciar mais doque seria desejável as posições dos EUA e do Brasilem relação à ALCA, a evolução recente do processoautoriza expectativas otimistas quanto à despolarização

das negociações e a uma ênfase crescente na di-mensão cooperativa, nas futuras discussões.

Pelo menos três fatores contribuem para validar tais expectativas:

1) a participação crescentemente ativa de países,como o Canadá e o Chile, e de grupos de países,como o CARICOM e o Pacto Andino, ampliando onúmero de atores relevantes nas discussõesintergovernamentais;

2) a importância cada vez maior das propostas edas negociações do setor privado, caracteriza-das por um elevado grau de convergência; e

3) os efeitos que a própria dinâmica de negocia-ções complexas e multi-temáticas geram sobrea formação das posições nacionais e de coali-zões entre países e blocos, induzindo o surgi-mento de diversas posições nacionais dentro de cadapaís e de coalizões temáticas e setoriais entrepaíses e blocos.

A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA 33

A convergência dos três fatores tende a criar umquadro favorável à superação de situações de im-passe e de polarização, típicas de processos nego-ciadores onde há poucos atores relevantes.

5 A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DEFORMAÇÃO DA ALCA

Na atual configuração dos Grupos de Trabalhoconstituídos no âmbito inter-governamental paraa discussão da ALCA, não há nenhum foro específi-co sobre o tema da infra-estrutura. No entanto, otema recorta vários dos GTs estabelecidos, com ênfasenos Grupos de Serviços e de Investimentos — otema da infra-estrutura também atravessa os GTsde economias menores, compras governamentaise política de competição.

A prioridade concedida pelos EUA aos temas deserviços e de investimentos e a experiência doNAFTA sugerem que as posições daquele país favo-recem um tratamento horizontal dessas questões,provavelmente nos marcos de um acordo abran-gente sobre investimentos, no qual seriam previs-tas exceções setoriais. A dimensão compensató-ria que o tema da infra-estrutura adquire no pro-cesso europeu não parece merecer, na visão dosEUA, um lugar prioritário e capaz de conferir aotema o privilégio de ser tratado como questão au-tônoma nas negociações e como objeto de um GT

específico.

Para os países do MERCOSUL, em contraste, a con-cessão de prioridade, na agenda de negociações daALCA, ao tema da infra-estrutura parece se justifi-car plenamente, na medida em que pode contribu-ir para gerar, nesses países, incentivos positivospara a integração. Isso somente ocorrerá se forematendidos alguns pressupostos para o tratamentodo tema nas negociações:

· é preciso reconhecer que esquemas de inte-gração podem conviver com a diversidade de

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ambientes regulatórios e de ritmos de liberali-zação dos mercados, cabendo tão-somente de-finir a priori os limites dessa diversidade e algu-mas disciplinas quanto à concessão de ajudaspúblicas aos operadores dos serviços de infra-estrutura;

· deve-se dar destaque à agenda de business facilitation

em infra-estrutura, não como uma estratégiade postergação das negociações ditas substan-tivas, mas em função de sua relevância para arealização do potencial de expansão de comér-cio associado à integração; por medidas de busi-

ness facilitation deve-se entender os procedimentosaduaneiros, as medidas de harmonizaçãopara facilitar a difusão da intermodalidadenos transportes, a convergência de padrões enormas técnicas visando à compatibilização ea interoperação dos sistemas, etc; e

· é fundamental reconhecer e priorizar a di-mensão compensatória da inclusão do tema dainfra-estrutura na agenda da integração, res-saltando a importância do seu desenvolvi-mento na América Latina como meio de ate-nuar as assimetrias de competitividade exis-tentes no continente, e de reduzir os efeitos po-tenciais de polarização vinculados à liberali-zação dos mercados nacionais de bens e servi-ços; nesse sentido, a inclusão do tema na agen-da de negociações deveria resultar na avalia-ção de modalidades de mobilização coordena-da de recursos financeiros e de mecanismosde garantia para novos investimentos em in-fra-estrutura, especialmente para aqueles pro-jetos com previsíveis impactos supranacio-nais.

Pode-se pensar em uma iniciativa dessa nature-za, envolvendo — no que se refere à canalização derecursos financeiros e à criação de mecanismosde garantia para os financiamentos — o BID, o Ban-co Mundial, o Multilateral Investment GuaranteeAgency (MIGA), a Corporación Andina de Fomento

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(CAF) e outras instituições sub-regionais e nacio-nais (como o BNDES) de financiamento de investi-mentos em infra-estrutura. No que diz respeito àsgarantias concedidas aos investidores externosem projetos de infra-estrutura contra riscos polí-ticos e outros, seria razoável trabalhar no sentidoda instituição de mecanismos de arbitragem su-pranacionais ou — numa visão mais ambiciosa —de se prever a negociação de um acordo de prote-ção aos investimentos especificamente voltadopara os setores de infra-estrutura, nos quais vo-lumes de recursos, prazos longos de maturação esensibilidade política convergem para aumentar os riscosvinculados à implantação e operação dos projetos.

6 O SETOR EMPRESARIAL E AINFRA-ESTRUTURA NA ALCA

Seguramente, o traço distintivo da ALCA em rela-ção aos demais processos de liberalização — mul-tilateral ou preferencial — de que o Brasil partici-pou nos últimos anos, tem sido a forte participa-ção da classe empresarial e, em especial, dos inte-resses da indústria.

Além de conferir maior legitimidade política aoprocesso de integração — o que é especialmenteimportante em um processo marcado por grandesassimetrias (de poder, inclusive) entre os partici-pantes —, a atuação empresarial tende a atenuaras polarizações atribuíveis a uma lógica de nego-ciação onde predominam considerações geopolí-ticas. Não por acaso, a taxa de convergência das diferentesposições empresariais nacionais levadas à reuni-ão de Belo Horizonte é muito mais elevada do quea verificada no plano das negociações intergover-namentais. É indiscutível que as classes empre-sariais dos países da América Latina identificamna ALCA uma oportunidade não desprezível para aliberalização de setores e de atividades, cuja atualregulamentação onera seus custos de produção e

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de comercialização. Isso parece verdade mesmonaqueles países, como o Brasil, em que a indús-tria mescla, na avaliação prospectiva da ALCA, apercepção de oportunidades com a identificaçãode forte ameaça associada à abertura do mercadodoméstico à concorrência dos países mais desen-volvidos do continente. O tratamento do tema dainfra-estrutura talvez seja, no âmbito da ALCA, omelhor exemplo.

A infra-estrutura recebeu dos empresários umaatenção prioritária desde o início das discussõesdo projeto ALCA. No âmbito do Foro Empresarialdas Américas, foi criado um Grupo de Trabalhoespecífico sobre o tema, e a posição empresarialbrasileira, levada pela Confederação Nacional daIndústria à reunião de Belo Horizonte ressaltaque, em vários países do continente, “os custosglobais de infra-estrutura, tais como o do trans-porte no comércio exterior representam barreiraao crescimento do comércio, ao diminuir a com-petitividade dos produtos de exportação e aumen-tar o custo das mercadorias importadas”. Nessesentido, “as discussões para a formação da ALCA

podem constituir excelente oportunidade para le-vantar os problemas domésticos de infra-estrutura dos países, especialmente na Américado Sul. O processo de integração seria visto comoum disciplinador de políticas nacionais, um fatorde pressão adicional para a correção de desequilí-brios internos”.

No documento preparado pela CNI, três questões parecem estruturar a posição empresa-

rial brasileira sobre o tema:

· a harmonização de normas técnicas, de pa-drões e de regulações que afetam as condiçõesde competição no setor;

· o estabelecimento de condições (financeiras,regulatórias e de solução de controvérsias)adequadas à entrada de capitais privados e àmanutenção da concorrência no setor; e

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· o tratamento não discriminatório contra em-presas estrangeiras na exploração de serviçosde infra-estrutura.

De maneira geral, em todas as áreas de infra-estrutura contempladas pelo documento, prevale-ce uma visão de liberalização das condições deacesso aos mercados nacionais de serviços, tantoem termos de comércio quanto de investimentos,de eliminação de monopólios estatais e de esque-mas de reserva de mercado público-privados, dedesregulamentação e de ênfase na atuação dos go-vernos na regulação, e no financiamento de proje-tos de infra-estrutura.

As conclusões do workshop sobre infra-estrutura doIII Foro Empresarial das Américas inscrevem-se na mesma linha e guarda também absolutacompatibilidade com as diretrizes liberalizantesdas conclusões dos grupos de serviços e de inves-timentos.

Reconhecendo a existência de graves proble-mas na oferta de infra-estrutura em diversos paí-ses do continente, o grupo propôs a identificaçãosistemática dos gaps de infra-estrutura com vistas àelaboração de um livro branco dos investimentos ne-cessários no setor. Para superar tais gaps, as reco-mendações do grupo centram-se em três eixos:“abolição de práticas protecionistas nos serviçosde infra-estrutura, abertura de monopólios ao ca-pital privado e orientação prioritária dos fundosde desenvolvimento aos projetos de infra-estrutura sob responsabilidade privada”. No en-tanto, como observa o documento de conclusõesda reunião, “nesta área, a efetiva participação docapital privado depende de estabilidade econômi-ca e arcabouço jurídico com regras claras e objeti-vas capazes de proporcionar segurança aos inves-tidores nacionais e estrangeiros”.

Talvez o melhor exemplo do sentido de oportu-nidade e, mais do que isso, de urgência conferidopelos empresários ao tema se encontre na obser-vação de que “a efetivação das propostas aqui

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formuladas não requer a conclusão integral dosacordos da ALCA, podendo, sempre que possível, terinício imediato”.

Na área de transportes, o documento do foro de-fende a ampla oferta de fretes, “regidos por con-corrência aberta, eqüidade e transparência, comlivre acesso para os operadores de transportes; aliberalização do transporte porta a porta, elimi-nando as reservas de carga rodoviária; a supres-são das políticas de reserva de carga no transpor-te marítimo internacional entre os países da ALCA;a flexibilização dos acordos bilaterais de trans-porte aéreo entre os países do continente e a priva-tização das operações portuárias e aeroportuári-as”.

Na área de energia, propugna-se: a formulaçãode uma política energética do hemisfério; a uni-formização de produtos, equipamentos e materi-ais, visando à compatibilização dos sistemas deenergia; programas de financiamento público àsiniciativas dos investidores privados; e o livreacesso dos autoprodutores e produtores indepen-dentes às redes de transporte de energia elétrica.

Em telecomunicações, defende-se: a adesão dospaíses do continente ao Acordo Setorial da Orga-nização Mundial de Comércio; a promoção dacompatibilidade entre os sistemas de telecomuni-cações para assegurar sua interconexão e intero-peração; a abertura à competição, considerando,entre outras, a proibição dos subsídios cruzados,etc.

O interesse dos países latino-americanos no tra-tamento do tema da infra-estrutura é seguramen-te, desde o início das negociações efetivas da ALCA,um dos principais incentivos para que se avancenas áreas de serviços, investimentos e soluções decontrovérsias — áreas onde os EUA e o Canadá pre-tendem alcançar acordos hemisféricos com nívelOMC — plus de disciplinas. Será difícil manter, frentea essa convergência de interesses, a posição ofici-al do MERCOSUL em relação à discussão desses te-

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mas — como eles envolvem acesso a mercado, é dese supor que sua negociação somente ocorreria naterceira fase, na metodologia apresentada peloMERCOSUL.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do ponto de vista do MERCOSUL, a análise do qua-dro de ameaças e oportunidades associadas à in-clusão do tema da infra-estrutura na agenda daALCA revela a predominância das oportunidades,principalmente se os pressupostos definidos aofinal da seção 4 forem assumidos pelos partici-pantes na negociação.

Em primeiro lugar, como sugerido pela posiçãoempresarial, a eventual inclusão é funcional emrelação às tendências dominantes no plano do-méstico: liberalização dos mercados, atração decapitais privados com escassa restrição aos in-vestidores externos e visão estratégica de plane-jamento em bases supranacionais (visão geoeco-nômica). As principais restrições brasileiras, emtermos de acesso aos mercados, envolvem o setorde transporte, mas é previsível que os EUA não seempenhem por incluir o setor em um programa deliberalização. No caso das telecomunicações, oacordo da OMC acaba de ser assinado e caberia aoBrasil tão-somente avaliar o interesse de conce-der preferências a seus parceiros do continente vis-

à-vis do resto do mundo, a partir de julho de 1999.

Em segundo lugar, a relevância de novos inves-timentos em infra-estrutura para reduzir o cha-mado custo Brasil e a eliminação da discrimina-ção constitucional em favor das empresas brasi-leiras de capital nacional parecem definir uma re-lação benefício/custo muito favorável à inclusãodo tema da infra-estrutura como questão autô-noma e prioritária na agenda da ALCA, ainda queisso implique antecipar, em relação ao cronogra-ma proposto pelo MERCOSUL, o início das negocia-

40 A INFRA-ESTRUTURA E O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DA ALCA

ções sobre serviços e investimentos no âmbitocontinental.

No entanto, para que se maximizem os benefíci-os de tal inclusão e para que o Brasil possa — comindiscutível legitimidade política — capitanearuma iniciativa abrangente na área de infra-estrutura no âmbito da ALCA, é necessário que o pa-ís dinamize as negociações sobre o tema noMERCOSUL, atuando como locomotiva do processo deaprofundamento da União Aduaneira e defen-dendo o uso dos investimentos infra-estruturaiscomo política compensatória em favor dos paísese das regiões menos desenvolvidas. Na agenda denegociações do MERCOSUL com os demais países daAmérica do Sul, seria também fundamental in-cluir temas de infra-estrutura de interesse co-mum, explicitando a prioridade concedida peloBrasil a essa matéria.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NACIONAL DE CENTROS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA — ANPEC.