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A IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NA LEI Nº 13.019/2014 I – Introdução Conforme ensina a melhor doutrina 1 , de forma costumeira, as entidades públicas brasileiras estão se valendo do apoio das entidades da sociedade civil, sem fins lucrativos, criadas para atuar em setores de interesse social (o chamado Terceiro Setor). Esse aumento de parcerias em sentido amplo ocorre não apenas para desburocratizar o sistema, mas porque essas entidades representativas, em tese, na maioria das vezes conseguem atingir determinadas parcelas da sociedade com maior precisão e rapidez, proporcionando melhor eficiência da aplicação dos recursos para o desenvolvimento da política social a que se destina. Também não se desconsidera que o surgimento das entidades do terceiro setor decorre da constatação da insuficiência tanto do Estado quanto do mercado para providenciar bens públicos suficientes para as necessidades sociais 2 . Daí seu número cada vez mais crescente, tanto que, segundo dados do IPEA 3 , atualmente existem cerca de 323 mil organizações da sociedade civil que, através de parcerias com entes públicos, buscam realizar políticas de interesse coletivo de maneira direta e descentralizada. Como é sabido, o denominado o Terceiro Setor não se submete aos preceitos limitativos impostos pela legislação às entidades pública quando em atuação junto à sociedade para desenvolvimento de seus objetivos sociais, muito embora deva ser constituído nos termos da legislação civil específica 4 , quando opera com recursos privados, pois se encontra vinculado exclusivamente às suas 1 Dentre outros, conferir: DIAS, Maria Tereza Fonseca. Terceiro setor e estado: legitimidade e regulação – Por um novo marco jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2008. 2 COELHO, Simone de Castro Tavares. Terceiro setor: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos. 2 ed. São Paulo: SENAC, 2002, p. 154. 3 Fonte: https://mapaosc.ipea.gov.br/Map.html .

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A IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NA LEI Nº 13.019/2014

I – Introdução

Conforme ensina a melhor doutrina1, de forma costumeira, as entidades públicas brasileiras estão se valendo do apoio das entidades da sociedade civil, sem fins lucrativos, criadas para atuar em setores de interesse social (o chamado Terceiro Setor).

Esse aumento de parcerias em sentido amplo ocorre não apenas para desburocratizar o sistema, mas porque essas entidades representativas, em tese, na maioria das vezes conseguem atingir determinadas parcelas da sociedade com maior precisão e rapidez, proporcionando melhor eficiência da aplicação dos recursos para o desenvolvimento da política social a que se destina.

Também não se desconsidera que o surgimento das entidades do terceiro setor decorre da constatação da insuficiência tanto do Estado quanto do mercado para providenciar bens públicos suficientes para as necessidades sociais2. Daí seu número cada vez mais crescente, tanto que, segundo dados do IPEA3, atualmente existem cerca de 323 mil organizações da sociedade civil que, através de parcerias com entes públicos, buscam realizar políticas de interesse coletivo de maneira direta e descentralizada.

Como é sabido, o denominado o Terceiro Setor não se submete aos preceitos limitativos impostos pela legislação às entidades pública quando em atuação junto à sociedade para desenvolvimento de seus objetivos sociais, muito embora deva ser constituído nos termos da legislação civil específica4, quando opera com recursos privados, pois se encontra vinculado exclusivamente às suas disposições estatutárias, aprovadas pelos seus membros em assembleia.

1 Dentre outros, conferir: DIAS, Maria Tereza Fonseca. Terceiro setor e estado: legitimidade e regulação – Por um novo marco jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2008.2 COELHO, Simone de Castro Tavares. Terceiro setor: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos. 2 ed. São Paulo: SENAC, 2002, p. 154.3 Fonte: https://mapaosc.ipea.gov.br/Map.html. 4 É de se destacar aqui a Lei nº. 9.603/1998 (que trata das Organizações Sociais – OSs) e a Lei nº. 9.790/1999 (que cuida das organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIPs). Sobre a existência de duas leis distintas para tratar de entidades do terceiro setor, são válidas e certeiras as observações de Maria Tereza Fonseca Dias (Terceiro setor e Estado: legitimidade e regulação – Por um novo marco jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 173-174): “Um dos primeiros problemas apresentados pela legislação acerca das novas qualificações jurídicas conferidas às entidades privadas sem fins lucrativos para que possam firmar parcerias com o Estado, que surgiu na última década é sua dubiedade de propósitos. É até difícil entender, enquanto observador externo ao ambiente governamental, como se justifica a existência de duas propostas legislativas com propósitos semelhantes e regime jurídico distinto, num período de tempo tão curto (OS – 1998 e OSCIP – 1999). A literatura analisada parece ter preferido ficar alheia à discussão e resposta a essa indagação”. Exatamente por isso, depois de aprofundado estudo, a autora mencionada destaca que a tendência é que se tenha uma legislação unificadora, que congregue, segundo ela, a três discussões básicas para um novo marco regulatório do terceiro setor: “sua caracterização; seu financiamento; seu controle” (cit., p. 239).

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Exatamente por essa liberdade de trabalho que os entes públicos passaram a coabitar com o terceiro setor, transferindo a ele, por meio de parcerias em sentido amplo, parte de suas responsabilidades para desenvolvimento de seus programas e ações de governo, o que se expandiu de forma considerável nas últimas décadas.

Assim, a Administração Pública, com o passar do tempo, incrementou a relação com entidades do terceiro setor para execução de projetos de interesse comum ao poder público e à entidade privada, se valendo principalmente dos instrumentos de convênios, contrato de gestão e termos de parceria.

E não é de pouca relevância o volume de transferência de recursos públicos nessa relação. Para ter uma ideia, segundo dados da CGU (Controladoria Geral da União), no ano de 2014, somente no âmbito federal, foram repassados às entidades sem fins lucrativos recursos da ordem de R$ 10,539 bilhões5.

Não se nega que o Terceiro Setor pode efetivamente desempenhar atividades socialmente relevantes, sendo um caminho interessante para os objetivos estratégicos do Estado Brasileiro. Realmente, conforme destaca Juarez Freitas6:

Adicionalmente, força asseverar que, cercadas dos devidos cuidados em termos de sindicabilidade integrada e atenta, as organizações do Terceiro Setor (é dizer, em sentido amplo, as organizações privadas, não-estatais e sem finalidade lucrativa voltadas a objetivos socialmente relevantes ou de interesse público) podem desempenhar papel precioso, uma vez assumido, nos devidos limites prudenciais, o princípio da subsidiariedade da atuação. Vale dizer, não devem alijar o Estado Democrático do cumprimento de suas funções indelegáveis na promoção do núcleo dos direitos fundamentais, mas, sim, desempenhar as tarefas atinentes à esfera de autonomia da sociedade. Nada impede, nessa ótica, até a prestação de determinados serviços essenciais ou de interesse público, sempre de maneira não-lucrativa, como enfatizado.

Contudo, nem sempre a parceria entre o poder público e o terceiro setor resultou em ganho de qualidade para a sociedade. Inúmeros foram os casos, pelo Brasil afora, de entidades criadas com o fim específico de desviar recursos públicos, em detrimento a uma prestação de serviço público eficiente.

Com efeito, infelizmente, não são raros os escândalos divulgados pela imprensa brasileira, com envolvimento de políticos inescrupulosos que, aproveitando-se de entidades do terceiro setor, constituídas ou atuando de forma irregular, desviam os recursos públicos então destinados ao desenvolvimento das ações e programas de governo7.

5 Fonte: http://www.gsnoticias.com.br/repasses-federais-ao-terceiro-setor-cairam-31-5-e.aspx. Acesso em 04/04/2016. No ano de 2015, porém, em vista da crise econômica, referido repasse teve um decréscimo na ordem de 31,5%, com um repasse no valor de R$ 7,214 bilhões. Não obstante, o volume é ainda considerável.6 O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 440.7 Nessa Linha, por exemplo, é de citar a matéria publicada na Revista Época no ano de 2012, com o título “Como se desvia dinheiro no Brasil”, de autoria de Marcelo Rocha. Segundo a matéria, “A perversidade disso está em usar um instrumento normalmente associado a práticas positivas para rapinar, pilhar, subtrair. A

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Essas práticas ilícitas, como se pode observar pelos casos práticos apurados e que vieram a público, decorrem principalmente da deficiência dos mecanismos de controle8 e das lacunas legais existentes sobre a citada relação, em especial no que se refere da inaplicabilidade da prévia licitação para a celebração desses convênios e parcerias, conforme entende majoritariamente a doutrina9, não obstante a crítica de alguns autores, como Lucas Rocha Furtado, que defende a inconstitucionalidade em relação à omissão legislativa em prever qualquer critério objetivo e impessoal para indicação da entidade a ser escolhida10.

Porém, por disporem de recursos públicos nas relações com os entes públicos, o Terceiro Setor deve obedecer a princípios juspublicistas. Conforme destaca Juarez Freitas11, “corrobora tal vinculação a princípios de Direito Administrativo a necessidade comum de regulamento próprio para a contratação de obras e serviços em harmonia com tais diretrizes, por meio de cuidado análogo àquele exigido pelos certames licitatórios (art. 17 da Lei 9.637/1998 e art. 14 da Lei 9.790/1999), guardadas evidentes diferenças funcionais e de regramento, sempre convindo não confundir o plano dos princípios com o das regras”.

Essa tendência, aliás, foi seguida pelo STF, no julgamento da ADI 1923/DF. No referido julgamento o STF, dando interpretação conforme a Constituição às normas que dispensam licitação em celebração de contratos de gestão firmados entre o Poder Público e as organizações sociais para a prestação de serviços públicos de ensino, decidiu pela validade

parceria com organizações não governamentais é uma forma encontrada pela administração pública para implementar políticas sociais no Brasil com mais agilidade e maior capilaridade. Essas entidades têm uma penetração impensável para os gestores públicos. A parceria, no entanto, muitas vezes mostra-se extremamente frágil. As regras que regem essas entidades são mais flexíveis. Até o final do ano passado, por exemplo, não era preciso fazer licitações para escolher as ONGs que receberiam recursos públicos. É por essas brechas que ocorre a gatunagem. Somente em 2011, mais de 73 mil entidades repartiram mais de R$ 2,7 bilhões de dinheiro público. O problema é que não há garantia sobre a efetiva aplicação dos recursos. ‘Nada impede que hoje uma prefeitura faça um convênio com uma ONG para tocar a Educação inteira do município. Ou a Saúde inteira. Ou uma obra’, diz Luiz Navarro, da CGU. ‘Aí caímos no problema real: quem escolheu a ONG? Por que ela foi escolhida? A quem ela pertence? A gente vê coisas absurdas nas prestações de contas, como ONGs ditas sociais que cuidam até de trânsito’.”

8 “As diversas falhas apontadas pela doutrina acerca dos mecanismos institucionais de controle existentes, entre as quais se destacam a ausência do controle interno em alguns entes federativos e a existência de controles internos integrados, exercidos somente pelo Poder Executivo (englobando o controle dos demais poderes), dificultam ou até mesmo inviabilizam o desenvolvimento de suas atividades. O controle parlamentar exercido sobre as relações entre o terceiro setor e a administração pública é realizado de forma mais incisiva nas tarefas afetas ao controle do Legislativo exercido com o auxílio dos tribunais de contas e mostra-se, ainda, bastante incipiente, haja visto até mesmo a inexistência de dados públicos sobre a questão” (DIAS, Maria Tereza Fonseca. Terceiro setor e Estado: legitimidade e regulação – Por um Novo marco jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 434).9 Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Enquanto os contratos abrangidos pela Lei nº 8.666 são necessariamente precedidos de licitação – com as ressalvas legais – no convênio não se cogita de licitação, pois não há viabilidade de competição quando se trata de mútua colaboração, sob variadas formas, como repasse de verbas, uso de equipamentos, de recursos humanos, de imóveis, de ‘Know-how’. Não se cogita de preços ou de remuneração que admita competição” (Temas polêmicos sobre licitações e contratos. São Paulo: Malheiros). Ainda sobre a não obrigatoriedade de licitação para a celebração do contrato de gestão é de se conferir a ADInMC 1.923-DF, rel. Min. Ilmar Galvão (publicado no Informativo STF 156). 10 FURTADO, Lucas Rocha. As raízes da corrupção no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 224.11 O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 450-451.

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da prestação de serviços públicos não exclusivos por organizações sociais em parceria com o poder público. Porém, assentou que a celebração de convênio com as referidas entidades deve ser conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios constitucionais que regem a boa administração pública (caput do artigo 37).

Não obstante a evolução doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, os problemas relativos à relação entre o Poder Público e as entidades do Terceiro Setor continuaram. Por isso, as críticas não cessaram. Segundo Lucas Rocha Furtado12, “A rigor, consta-se no relacionamento entre o Estado brasileiro e as ONG, o cenário ideal para a ocorrência de fraudes e desvios: total discricionariedade na escolha da entidade com a qual será firmado o convênio; falta de transparência na prestação de contas e falta de estrutura por parte dos órgãos que repassam os recursos para fiscalizar a correta execução do objeto dos acordos firmados.”

Observando o conjunto das críticas que são feitas, podemos apresentar aqui as que são mais referidas, a saber:

a) Falta de critérios objetivos para a escolha de entidades do terceiro setor com a qual será firmado o convênio ou o termo de parceria;

b) Falta de condições das entidades do terceiro setor para cumprir os objetivos pactuados;

c) Problemas relacionados à prestação de contas dos recursos públicos;d) Falta de transparência em relação à aplicação dos recursos públicos;e) Uso de entidades do terceiro setor para burlar a regular ocupação de cargos,

empregos ou funções públicas;f) Procedimentos de aquisição adotadas pelas entidades muito distantes de se

constituírem em licitações ou procedimentos análogos que atendam aos princípios da igualdade, moralidade, publicidade e eficiência administrativa;

g) Utilização de recursos dos convênios para pagamento de despesas de manutenção das entidades do terceiro setor;

h) Favorecimento de esquemas criminosos objetivando a apropriação de recursos públicos em favor de políticos, servidores públicos, empresários e lobistas.

Essas dificuldades enfrentadas pelos órgãos de controle na fiscalização dos recursos públicos repassados às entidades do terceiro setor não passou despercebida pelo TCU, como se pode perceber pelas seguintes manifestações:

Esse sistema de cooperação, no entanto, tem sido alvo de fundadas críticas quanto aos seus mais diversos aspectos: seja pela baixa efetividade das ações, em consequência da precária articulação intergovernamental e da pulverização de recursos em detrimento de ações estruturantes de maior impacto e efeito multiplicador sobre a população, o estado ou região beneficiada; seja pela forma como boa parte dos recursos destinados a essas ações vem sendo alocada no OGU, por meio de emendas parlamentares individuais ou coletivas, que num contexto de orçamento não impositivo, acabam por enfraquecer o Legislativo, na medida em que o Executivo pode barganhar a execução delas em troca de apoio às votações de seu interesse; seja por fomentar a montagem de esquemas criminosos objetivando a apropriação de recursos públicos em favor de políticos, servidores públicos, empresários e lobistas; seja,

12 Ob. cit., p. 227.

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enfim, pelas deficiências e disfunções operacionais a propiciar toda sorte de irregularidades em toda a cadeia de execução das ações, tais como: o desaparelhamento do Estado para acompanhar e fiscalizar a execução, as negligências funcionais, a pouca transparência e a insuficiência de mecanismos de controle social.

A problemática não é nova, tem permanecido ao longo de tempo, não obstante as decisões desta Corte e as recomendações da Controladoria-Geral da União (CGU), na área do controle, além dos esforços normativos e regulatórios, na área dos poderes Legislativo e Executivo. O estado de falência da sistemática foi, enfim, não sem tempo, reconhecido pelo Congresso Nacional, por meio do relatório final da CMPI “das Ambulâncias”, instalada em 2006, que chega a apontar, como solução, a própria extinção dessas transferências. (...)

Para sopesar o efeito de eventuais decisões em relação à questão, bem como dimensionar a magnitude dessas transferências, convém toma-las, em termos absolutos e relativos, na fração orçamentária em que elas se situam, ou seja, dentro daqueles R$ 50 bilhões a R$ 60 bilhões anuais, equivalente a, aproximadamente, 11% do que resta de discricionariedade no OGU.Em 31/12/2006, havia 2.719 convênios, contratados de repasse e termos de parceria, cuja vigência já se encontrava expirada desde 31/12/2015, sem que as prestações de contas tenham, sequer, sido apresentadas aos órgãos e entidades que transferiram os recursos. O atraso médio na entrega dessas prestações de contas, em toda a administração pública federal, chega a quase quatro anos, chamando a atenção o caso do Ministério do Planejamento, que tem responsabilidade sobre as prestações de contas de órgãos extintos, como é o caso, por exemplo, da Legião Brasileira de Assistência (LBA), antes ligada à Presidência da República, e dos Ministérios do Bem-Estar Social e da Integração Regional, todos extintos em 1995, cujo atraso médio chega a dezesseis anos (Ministro Ubiratan)13.

(...)

f) ao mesmo tempo, o TCU deu início a diversas auditorias em convênios celebrados entre a União e Organizações Não Governamentais, no período de 1999 a 2005, com utilização de R$105,7 milhões, as quais estão consubstanciadas no processo TC 015.568/2005-1;g) apurou-se a inexistência de critérios objetivos e transparentes para a escolha da ONG parceira, a notória falta de qualificação de muitas dessas entidades para desempenho da tarefa pactuada e o fato de que a maioria delas não possui o título que confere aos seus serviços o caráter de utilidade pública federal, sendo que justamente os convênios com aqueles que aí se enquadram revelaram sérias irregularidades;h) outros problemas foram destacados no referido processo sobre convênios com ONGs: “análises técnicas superficiais e insuficientes das proposições e das condições das convenentes para consecução dos objetivos propostos; aprovação de planos de trabalho vagos, com metas insuficientemente descritas, que são delegados a entidades sem condições para executá-los; falta de critérios objetivos e de avaliação técnica das condições da convenente para a consecução dos objetivos pactuados; negligência na fase preliminar de avaliação técnica das propostas e das condições da convenente para executá-las, associadas à falta de acompanhamento, fiscalização e transparência na execução, o que faz multiplicar as irregularidades nos processos de licitação e contratação e na execução física e financeira dos convênios; procedimentos de aquisição adotadas pelas entidades muito distantes de se constituírem em licitações ou procedimentos análogos que atendam aos princípios da igualdade, moralidade, publicidade e eficiência administrativa; desvio de finalidade na aplicação dos recursos transferidos; utilização de recursos dos convênios para pagamento de despesas de manutenção das ONGs; análises superficiais e deficientes das prestações de contas em dissonância com as informações e elementos presentes no processo, denotando que os pareceres são meramente por forma, para cumprir ritos estabelecidos nas normas legais;

13 apud FURTADO, Lucas Rocha, As raízes da corrupção no Brasil. Estudo de casos e lições para o futuro, Belo Horizonte, Fórum, 2015, p 225/226.

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i) conclui-se pela necessidade de, entre outras medidas, tornar os dados dos convênios acessíveis a qualquer interessado, para assim incentivar o controle social; (...)14.

II – A Lei nº. 13.019/2014 Justamente com intuito de combater esses disparates, foi sancionada a Lei Federal nº 13.019, de 31 de julho de 2014, fruto de um grande e demorado debate entre gestores públicos e organizações sociais15, estabelecendo o regime jurídico das parcerias voluntárias, entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público, sendo conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC).

A Lei nº 13.019/2014 teve por princípio disciplinar o controle e a transparência das execuções de programas e ações governamentais, por intermédio de parcerias entre as organizações da sociedade civil.

Com isso, buscou o legislador a maior transparência na aplicação de recursos públicos para execução de ações e programas por meio da iniciativa privada, através das organizações da sociedade civil.

A referida lei foi publicada no Diário Oficial da União em 1º de agosto de 2014, sendo que, de acordo com o art. 88, passaria a vigorar depois de decorridos 90 (noventa) dias, ou seja, em 30 de outubro de 2014. Contudo, por força da Medida Provisória nº. 658, de 29 de outubro de 2014, a vigência da Lei foi adiada para 27 de julho de 2015. Posteriormente, agora por força da Medida Provisória Medida Provisória nº. 684/15 o prazo foi prorrogado, tendo então entrado em vigor no dia 23 de janeiro de 2016. Porém, para os municípios, a nova lei somente entrará em vigor a partir do dia 1º de Janeiro de 2017, conforme se pode observar do § 1º do art. 88 da lei.

O período foi suficiente para que as organizações da sociedade civil pudessem se adequar às novas regras para celebração de parceria com o poder público, sendo, como se viu, ainda mais dilatado em relação às parcerias com os municípios.

Importante destacar que, segundo o art. 3º, estão fora do alcance da Lei nº. 13.019/2014 as transferências voluntárias regidas por lei específica, naquilo em que houver disposição expressa em contrário, e aos contratos de gestão celebrados com Organizações Sociais16, na 14 Acórdão TCU 277/2007 – Plenário.15 A nova lei é um bom exemplo de um processo legislativo participativo. Nessa linha, é importante destacar que, por iniciativa da própria sociedade, no ano de 2010 foi criada uma plataforma específica (http://plataformaosc.org.br), na qual ainda podem ser encontradas as atas das reuniões do denominado Comitê Facilitador, onde a discussão sobre o futuro marco civil para a parceria entre Estado e organizações implicaria em uma redefinição das fronteiras entre Estado, mercado e sociedade, além de modos de proteger a integração entre as esferas pública e privada de problemas enraizados da formação da sociedade brasileira, como o tradicional clientelismo e patrimonialismo, que historicamente representam umas das principais chagas da administração pública brasileira.16 Referida exclusão vem sendo objeto de crítica por parte de certo setor da doutrina, merecendo destaque a posição de Rafael Carvalho Rezende Oliveira (Licitações e Contratos Administrativos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. p. 307): “Não encontramos justificativa razoável para excluir da incidência do novo regime das parcerias os contratos de gestão celebrados com Organizações Sociais (OS),

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forma da Lei Federal nº 9.637/98. Por outro lado, conforme o art. 4º da Lei nº. 13.019/2014 aplicam-se, no que couber, aos termos de parceria celebrados com as OSCIP's, nos moldes da Lei Federal nº 9.790/99. Isso significa que as disposições da Lei das OSCIPS que contrariar o novo marco regulatório das parcerias entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil devem ser consideradas revogadas pelo último.

Sendo assim, conforme destaca Marco Aurélio Marrafon17,

Com essas alterações, as parcerias entre a Administração Pública e o terceiro setor serão regulamentadas apenas por três leis federais, a depender do tipo de entidade do terceiro setor:i) Lei 9.637/1998, que trata das Organizações Sociais que sejam pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde. Para este tipo de entidade, a parceria será o contrato de gestão.ii) Lei 9.790/1999 para parcerias entre o Estado e as Oscips, cujo instrumento de repasse é o termo de parceria;iii) Lei 13.019/2014 para as organizações da sociedade civil que não se enquadrarem nas hipóteses anteriores, com as quais poderá o Poder Público celebrar termo de colaboração e termo de fomento.

III – Tutela repressiva da improbidade administrativa

1 – Introdução

Como se sabe, dentro da tipologia dos atos de improbidade administrativa, encontramos os seguintes: a) atos de improbidade que importam em enriquecimento ilícito (art. 9º); b) atos de improbidade que causam dano ao erário (art. 10); c) atos de improbidade que violam os princípios que regem a Administração Pública (art. 11).

Antes mesmo do advento da Lei nº. 13.019/2014 não havia dúvida a respeito da incidência da LIA em relação a possíveis atos de improbidade administrativa envolvendo as parcerias entre a Administração Pública e as entidades do terceiro setor, inclusive com a responsabilização de seus gestores como sujeitos ativos dos atos ímprobos18.

Com efeito, basta lembrar aqui o art. 1º, par. único, da LIA, que dispõe “Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão

sem excluir também os termos de parceira com as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). De lado algumas diferenças pontuais, as referidas entidades possuem características gerais semelhantes, consideradas entidades privadas sem fins lucrativos que desempenham atividades de caráter social, por meio de vínculos jurídicos com o Poder Público (contrato de gestão e termo de parceria, respetivamente)”.17 Fonte: http://www.conjur.com.br/2016-fev-15/constituicao-poder-participacao-inovacoes-marcam-lei-organizacoes-sociais#_ftn1. 18 Dentre outros, conferir: DIAS, Maria Tereza Fonseca. Terceiro setor e Estado: legitimidade e regulação – Por um Novo marco jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 423.

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público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos”.

Ainda é de se lembrar o art. 3º da LIA, pelo qual “As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”.

Não obstante, a ausência de critérios mais transparentes para os termos de parceria entre a Administração Pública e as entidades do terceiro setor, conforme já demonstrado, acaba configurando, em muitos casos, terreno fértil para atos de corrupção, transformando as pautas sociais em verdadeiras “feiras de negócios”19.

Nessa linha, salutar o advento da Lei nº. 13.019/2014, ao trazer uma nova disciplina, que insere, dentre outras inovações, o chamamento público para os termos de cooperação e fomento com as OSCIPs. Trata-se de uma espécie de “licitação” entre entidades do terceiro setor, que visa conferir menos discricionariedade aos agentes públicos na relação com tais entidades. Também visa um maior controle, fiscalização e transparência em relação às prestações pactuadas.

2 – Novos atos de improbidade inseridos pela Lei nº. 13.019/2014

Os art. 77 e 78, da Lei nº 13.019/14, introduziram novas modalidades de atos de improbidade administrativos previstos nos art. 10 e 11, da Lei federal nº 8.429, de 1.992, que tratam respectivamente dos atos que causam dano ao erário e que violam os princípios que regem a boa administração pública.

Da análise dos novos incisos não se nota grandes complexidades, em especial considerando que algumas das condutas inseridas se assemelham aos casos de improbidade administrativa que gravitam em torno da aplicação da Lei de Licitações. Sendo assim, entendemos que boa parte da construção jurisprudencial e doutrinária já existente poderá ser aplicada aos novos casos, logicamente com as devidas adequações.

2.1 – Atos que causam dano ao erário

No art. 10 da LIA, foram inseridas as seguintes condutas:

VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente;

Aqui necessário observar o novo instituto do chamamento público, que trata das regras para seleção, pela Administração Pública, da organização da sociedade civil com a qual firmará o ajuste, por meio de procedimento administrativo regular, que observará as exigências contidas nos arts. 23 a 29 da Lei 13.019/2014.

19 DIAS, Maria Tereza Fonseca. Idem, p. 429.

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Para interpretar a nova regra será fundamental observar os casos de dispensa e inexigibilidade, que estão previstos respectivamente nos arts. 30 e 31 da Lei 13.019/2014:

Art. 30. A administração pública poderá dispensar a realização do chamamento público:I - no caso de urgência decorrente de paralisação ou iminência de paralisação de atividades de relevante interesse público realizadas no âmbito de parceria já celebrada, limitada a vigência da nova parceria ao prazo do termo original, desde que atendida a ordem de classificação do chamamento público, mantidas e aceitas as mesmas condições oferecidas pela organização da sociedade civil vencedora do certame;II - nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem pública, para firmar parceria com organizações da sociedade civil que desenvolvam atividades de natureza continuada nas áreas de assistência social, saúde ou educação, que prestem atendimento direto ao público e que tenham certificação de entidade beneficente de assistência social, nos termos da Lei n o   12.101, de 27 de novembro de 2009;III - quando se tratar da realização de programa de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer a sua segurança;IV - (VETADO).

Art. 31. Será considerado inexigível o chamamento público na hipótese de inviabilidade de competição entre as organizações da sociedade civil, em razão da natureza singular do objeto do plano de trabalho ou quando as metas somente puderem ser atingidas por uma entidade específica.

Obviamente que tanto nos casos de dispensa quanto nos de inexigibilidade haverá necessidade de o ente público chegar a essa conclusão por meio de regular procedimento administrativo, no qual deverá constar a devida fundamentação, a exemplo do que se da nos casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação.

Conforme deflui do caput do art. 10, não obstante certa polêmica reinante na doutrina, é possível a caracterização do ato ímprobo a título de dolo ou culpa, o que, aliás, vem sendo admitido pelo STJ. Entretanto, é necessário cautela do interprete, para assim não banalizar a LIA.

Fundamental, conforme vem entendendo a jurisprudência, que haja lesão ao erário. É, portanto, ônus do autor da ação civil pública por ato de improbidade administrativa fazer prova do dano e do nexo causal com a conduta dolosa ou excepcionalmente culposa. Contudo, em não havendo lesão ao erário, é possível o enquadramento da conduta, eventualmente, improbidade com base no art. 9º ou 11 da LIA, conforme o caso.

XVI - facilitar ou concorrer, por qualquer forma, para a incorporação, ao patrimônio particular de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores públicos transferidos pela administração pública a entidades privadas mediante celebração de parcerias, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;

O inciso exige para adequação típica: a) que o agente facilite ou concorra de qualquer foram para a incorporação em prol de patrimônio particular; b) que a incorporação envolva bens, rendas, verbas ou valores públicos transferidos pela administração pública a entidades privadas mediante celebração de parcerias; c) que se faça em descompasso com as regras legais.

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Sobre os bens referidos no inciso é importante destacar o § 5º20 do art. 35 e o art. 3621 da Lei 13.019/2014.

XVII - permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores públicos transferidos pela administração pública a entidade privada mediante celebração de parcerias, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;

A situação é semelhante ao inciso XIII do art. 10 da LIA, que cuida da facilitação para que terceiro se utilize de bens da administração pública direta ou indireta. A diferença aqui é que os bens, as rendas, verbas ou valores utilizados são aqueles transferidos pela administração pública para a entidade privada.

Também se aproxima da conduta prevista no art. 9º, inc. IV da LIA. Contudo, difere pelo fato de no caso do art. 9º o próprio agente vir a utilizar indevidamente os bens da administração pública direta e indireta.

XVIII - celebrar parcerias da administração pública com entidades privadas sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;

Nesse ponto, é importante observar os requisitos necessários trazidos pela Lei 13.019/2014 para celebração de parcerias. Dentre outros, destacamos os seguintes: a) existência de previsão orçamentária para a celebração de parcerias, conforme disciplina o art. 9º22; b) existência de Procedimento de Interesse de Manifestação Social (arts. 18 a 21); c) existência de Plano de Trabalho (art. 22); d) observar os requisitos do Termo de Cooperação ou de Fomento (arts. 33 a 38); e) observar as vedações constantes dos arts. 39 a 41.

XIX - frustrar a licitude de processo seletivo para celebração de parcerias da administração pública com entidades privadas ou dispensá-lo indevidamente;

XX - agir negligentemente na celebração, fiscalização e análise das prestações de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas;

A Lei 13.019/2014 traz importantes regras que visam à fiscalização das parcerias firmadas, sendo aqui de se destacar os arts. 58 a 60, que tratam de obrigações da administração pública. 20 “§ 5o Caso a organização da sociedade civil adquira equipamentos e materiais permanentes com recursos provenientes da celebração da parceria, o bem será gravado com cláusula de inalienabilidade, e ela deverá formalizar promessa de transferência da propriedade à administração pública, na hipótese de sua extinção”.21 “Art. 36. Será obrigatória a estipulação do destino a ser dado aos bens remanescentes da parceria. Parágrafo único. Os bens remanescentes adquiridos com recursos transferidos poderão, a critério do administrador público, ser doados quando, após a consecução do objeto, não forem necessários para assegurar a continuidade do objeto pactuado, observado o disposto no respectivo termo e na legislação vigente”.22 “Art. 9o No início de cada ano civil, a administração pública fará publicar, nos meios oficiais de divulgação, os valores aprovados na lei orçamentária anual vigente para execução de programas e ações do plano plurianual em vigor, que poderão ser executados por meio de parcerias previstas nesta Lei’.

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O inc. XX é de grande relevo ao prever a hipótese de ato de improbidade no tocante à prestação de contas (v. arts. 63 a 68) de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas, sendo que conforme já destacado acima, a prestação de contas apresentada pela organização da sociedade civil deverá conter elementos que permitam ao gestor da parceria avaliar o andamento ou concluir que o seu objeto foi executado conforme pactuado, nos termos do supratranscrito art. 64, da Lei nº 13.019/14.

O inciso, porém, inova, ao trazer a expressão “negligentemente”. Trata-se de inovação desnecessária, uma vez que a negligência, como se sabe, configura modalidade de culpa. Por isso, pensamos que tal inovação foi infeliz, tendo havido um excesso de linguagem do legislador, pois, além de desnecessária, acabará ressuscitando ainda mais a polêmica a respeito da possibilidade de improbidade culposa nas demais modalidades previstas no art. 10, inclusive as novas trazidas pela Lei 13.019/2014.

Assim, ao nosso sentir, a expressão só vem a reforçar a hipótese constante do novo inciso, dada sua importância para fins de transparência, dissipando qualquer dúvida interpretativa a respeito.

XXI - liberar recursos de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular.

Trata-se de hipótese que se assemelha ao inciso XI do art. 10 da LIA. Difere pelo fato de a liberação de recursos previstos no inciso XXI ser destinada para parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas, enquanto que a do inc. XI ser para os outros tipos de liberação de verba pública.

O caso se insere em mais uma situação de despesa pública irregular, que poderia estar abrangido pelo inc. IX da LIA (“ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento”).

Fundamental que haja liberação indevida para caracterização do ato ímprobo. Para tanto, é necessário observar se foram respeitadas as regras previstas na Constituição Federal (p. ex., arts. 52, V e VII, e 167), como também na LRF. Importante também destacar nesse ponto os arts. 51 a 54 da Lei 13.019/2014, que cuida da movimentação e aplicação financeira dos recursos. Não havendo liberação, uma vez que não se pode falar em tentativa do ato ímprobo previsto no art. 10, se pode falar, em tese, de improbidade prevista no art. 11 da LIA.

2.1 – Atos que importam em violação aos princípios

O art. 78, da Lei nº 13.019/14, a seu turno, introduz o inc. VIII, ao art. 11, da LIA, nos seguintes termos:

VIII - descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas.

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Reforçando a ideia de transparência relativa à prestação de contas, o presente inciso prevê como ato de improbidade:

a) O descumprimento das normas relativas à celebração de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas;

b) O descumprimento das normas relativas à fiscalização de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas;

c) O descumprimento das normas relativas à aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas.

São todas condutas já tratadas nos novos incisos inseridos no art. 10 pela Lei 13.01/2014. Contudo, aqui, para configurar o ato ímprobo, deve ser observado: 1º - que a conduta seja praticada somente a título de dolo; 2º - que para configuração do ato ímprobo não há necessidade que haja lesão ao erário.

Havendo lesão ao erário, deve se preferir o enquadramento da conduta no art. 10. Não havendo lesão ao erário, tendo o ato sido praticado a título de culpa, não haverá como considerar a conduta como ímproba.

Nesse ponto, é importante observar algumas estratégias visando à caracterização do dolo: a) expedir recomendação ao gestor, o que acaba sendo fator importante para colocá-lo em mora, impedimento dessa forma alegações de ausência do elemento subjetivo; b) verificar a incidência da teoria da cegueira deliberada23.

23 Sobre referida teoria em sede de improbidade administrativa, vale destacar importante precedente jurisprudencial do TJSP (Apelação nº 0009252-56.2010.8.26.0073), cuja parte do voto mercê ser destacado: "Ainda que esta teoria tenha sua incidência e aplicação na prática de ilícitos penais, mais especificamente em relação ao crime de lavagem de dinheiro, tal como fez o eminente Ministro Celso de Mello em recentíssimo julgamento acima mencionado, já foi ela também reconhecida em relação aos crimes eleitorais, bem como naquele famoso caso do furto ao Banco Central em Fortaleza. Por outro lado, é, em relação ao ilícito administrativo praticado neste caso concreto, perfeitamente adequada a sua incidência, na medida em que os corréus fingiram não perceber o superfaturamento praticado com a nova contratação por intermédio de Termo de Parceria, com objetivo único de lesar o patrimônio público, não havendo agora como se beneficiarem da própria torpeza. Destarte, a licitação, como é sabido, destina-se a assegurar a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos (v. art. 3º da Lei nº 8.666/93). Enfim, a condenação dos réus em relação aos ilícitos administrativos praticados por cada um deles de forma individualizada e dolosa, já que responsável o ex-Prefeito por ser ele o gestor do dinheiro público, como também da empresa ré, pela assunção deliberada neste intento, portanto, houve fixação de penalidades administrativas em patamar bem razoável, não havendo motivo alguma para sua redução, ante a extensão dos danos proporcionados aos cofres públicos, com consequente prejuízo ao erário público, daí porque mantidas as penas administrativas fixadas com base no art. 12, II, da Lei nº 8.429/92." Destarte, considerando certa tendência jurisprudencial que vem tornando tormentosa a comprovação do dolo em sede de improbidade administrativa, recomenda-se aos órgãos de execução do Ministério Público a adoção da referida teoria, notadamente em situações nas quais os gestores, como matéria de defesa, alegam desconhecimento da ilegalidade, montando verdadeira “maquiagem legal” para descaracterizar o dolo nos casos em que a tipologia só prevê tal modalidade de elemento subjetivo (LIA, arts. 9º e 11).

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No que tange à celebração das parcerias, podem ser destacadas algumas regras importantes que devem ser observadas, tais como:

- que a entidade disponha em seu estatuto, dentre outras coisas: a) a ausência de finalidade lucrativa; b) a proibição de distribuição de parcerias financeiras aos seus diretores, conselheiros; c) a previsão de aplicação integral de sua receita na consecução do respetivo objeto social;

- sobre o procedimento de manifestação de interesse social, em especial no que se refere à proposta a ser encaminhada à Administração Pública, que deverá conter, no mínimo, os seguintes requisitos: a) identificação do subscritor da proposta; b) indicação do interesse público envolvido; c) diagnóstico da realidade que se modificar, aprimorar ou desenvolver e, quando possível, indicação da viabilidade, dos custos, dos benefícios e dos prazos de execução da ação pretendida;

- sobre o procedimento de chamamento público, cuidado especial merecerá o edital que, dentre outras regras, deverá especificar o seguinte: a) a programação orçamentária que autoriza e fundamenta a celebração da parceria; b) o tipo de parceria a ser celebrada; c) o objeto da parceria; d) as datas, os prazos, as condições, o local e a forma de apresentação das propostas; e) as datas e os critérios objetivos de seleção e julgamento das propostas; f) o valor previsto para a realização do objeto; g) a exigência que a organização da sociedade civil possua: g.1) no mínimo, 3 (três) anos de existência, com cadastro ativo, comprovados por meio de documentação emitida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, com base no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ; g.2) experiência prévia na realização, com efetividade, do objeto da parceria ou de natureza semelhante; g.3) capacidade técnica e operacional para o desenvolvimento das atividades previstas e o cumprimento das metas estabelecidas.

Sobre o descumprimento das normas relativas à fiscalização de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas, outras regras também merecem serem destacadas, em especial as seguintes:

- Se estão sendo observadas as regras relativas ao regulamento de compras, conforme previsto no art. 43 da Lei 13.019/2014;

- verificar se o recurso a ser recebido pela organização da sociedade civil está sendo empregado para atender, categoricamente as ações constantes do plano de trabalho aprovado pela administração, em especial se não estão ocorrendo despesas consideradas impróprias, conforme previsto no art. 45 da Lei 13.019/2014;

- verificar a forma como está ocorrendo a contratação de pessoal pela organização, notadamente por meio de processo seletivo simplificado, o que está em consonância com o princípio da impessoalidade;

- verificar a existência de um gestor exclusivo designado para acompanhar a destinação, a utilização, os resultados, os objetos e as metas do plano de trabalho, o que é recomendável para os fins previstos no art. 58 (destacando-se a fiscalização in loco, o

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relatório técnico de acompanhamento, a pesquisa de satisfação para parcerias com vigência superior a 1 (um) ano etc.

Diante do novo regramento, é salutar que o Ministério Público recomenda à Administração Pública que para cada Termo de Colaboração ou de Fomento haja um gestor, para assim garantir a máxima efetividade dos princípios que regem a boa gestão pública, sendo uma providência preventiva, visando evitar possíveis danos ao erário e à imagem da Administração Pública.

Finalmente, sobre o descumprimento das normas relativas à aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas, é de se lembrar os arts. 63 a 68 da Lei 13.019/2014, das quais podem ser destacas, dentre outras, as seguintes regras: a) a prestação de contas, sempre que possível, será realizada em plataforma eletrônica, sem prejuízo de se manter em seus arquivos os documentos originais; b) a prestação de contas deverá, conforme o plano de trabalho, apresentar dois relatórios (1º - relatório de execução do objeto; 2º - relatório de execução financeira; c) o gestor deverá emitir parecer técnico sobre a prestação de contas.

CONCLUSÃO

Como se nota, a Lei nº. 13.019/2014, não obstante algumas críticas que estão sendo feitas, configura mais um instrumento importante para evitar atos de improbidade administrativa, inclusive sua face mais perversa: a corrupção.

Veio para tentar suprir uma lacuna existente, que acaba gerando sérios desvios em relação ao sistema de repasse de recursos públicos para as entidades do terceiro setor, o que conforme destacado, vem se constituindo um dos maiores focos de corrupção no Brasil. Assim, pode contribuir para uma melhor fiscalização das entidades do terceiro setor quando atuarem em parceria com os entes públicos, permitindo que se separe o joio do trigo, em especial quando fomente uma maior participação e controle social.

Por isso, se trata de novo regramento que reclama atenção do Ministério Público, como um dos órgãos de controle externo dos atos praticados pelos órgãos públicos, na tutela da probidade administrativa, devendo agir preventivamente e, quando necessário, repressivamente.

Por fim, para concluir, são absolutamente pertinentes as ponderações de Juarez Freitas24:

Em suma, dada a extrema e crescente importância do Terceiro Setor, o controle sistemático dessa modalidade de cooperação entre o Poder Público e a sociedade deve ter presente que aqui se encontra uma das mais promissoras fontes de mobilização articulada e transparente de forças voluntárias. As mesmas forças que mantêm vívidas as perspectivas de viabilização de um caminho que não conduz ao assistencialismo paternalista, nem afasta o Estado de seu papel renunciável, tampouco reduz o cidadão a espectador/vítima da

24 O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 453-454.

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guerra “desregulatória” de todos contra todos. Quer-se o estado que assuma, processual e substancialmente, o qualificativo “Democrático”, sem renunciar às funções regulatórias e à indeclinável titularidade em matéria de serviços públicos, mas que saiba, ao fim e ao cabo, promover, com respeito ao princípio da subsidiariedade, a robusta e emancipacionista participação social, com o auxílio do terceiro Setor, no desiderato de promover, de modo vigoroso, o desenvolvimento humano.