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A história de Deus e a sua história

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A HISTÓRIA DE DEUS E A SUA HISTÓRIA

QUANDO A DELE SE TORNA A SUA

MAX LUCADO

Traduzido por EMIRSON JUSTINO

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O pequeno José anda rápido pelo palco da igreja, usando san-dálias, uma túnica e fazendo o que pode para demonstrar an-siedade. Ele bate na porta que seu pai construiu para a peça de Natal das crianças e então se apoia alternadamente em um pé e em outro, em parte porque deve agir como quem está nervoso. Mas o fato é que ele está mesmo.

O dono da hospedaria responde. Ele também usa uma tú-nica rústica e uma toalha que se transformou num turbante. Um elástico segura uma barba falsa em seu rosto. Ele olha para José e segura a vontade de rir. Apenas algumas horas atrás, os dois meninos estavam fazendo um boneco de neve no jardim de casa. As mães de ambos precisaram pedir duas vezes que entrassem para se aprontar para o culto de véspera de Natal.

Lá estão eles. O dono da hospedaria cruza os braços; José acena com os seus. Ele fala de uma viagem de Nazaré num jumento, cinco dias de estrada, de um censo aqui em Belém e, mais que tudo, fala da esposa. Ele se vira e aponta na direção de uma menina de 9 anos com um travesseiro na barriga.

C A P Í T U L O U M

o comum é importante

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Ela vai bamboleando até o centro do palco com uma das mãos junto às costas e a outra esfregando a testa. Anda com dificuldade, fazendo de tudo para retratar as dores da gravidez, ainda que, se fosse questionada, revelaria que não faz a menor ideia do processo de dar à luz.

Ela representa seu papel. Geme. Suspira. “José, me ajude!”A plateia dá risada.José olha para o dono da hospedaria.O dono da hospedaria olha para Maria.E todos nós sabemos o que acontece a seguir. José insiste.

O dono da hospedaria balança a cabeça. O hotel está lotado. Os hóspedes ocupam todos os espaços. Na há lugar para eles.

Creio que um pouco de licença artística possa ser usada aqui. Em vez de correr para a próxima cena, vamos deixar José defender sua causa.

— Senhor Estalajadeiro, pense duas vezes sobre sua deci-são. O senhor sabe a quem está mandando embora? É Deus que está dentro dessa moça! Você está fechando a porta para o Rei do universo. É melhor reconsiderar. Tem certeza que quer ser lembrado como a pessoa que deixou a criança celestial pas-sar frio?

E o dono da hospedaria reage.— Já ouvi alguns apelos desesperados para conseguir um

quarto, mas Deus dentro de uma moça? Aquela moça? Ela tem espinhas e tornozelo inchado, ora! Não me parece ser a mãe de Deus. E você mesmo não parece alguém especial, hum... como é mesmo o seu nome? Ah, sim, Zé. Zé não sei das quantas. Coberto da cabeça aos pés de poeira da estrada. Meu chapa, vá contar sua história em outra freguesia. Sua história não me convence. Vá dormir no celeiro; não estou nem aí!

O dono da hospedaria bufa e se vira. José e Maria saem. O coral canta “Num berço de palhas” enquanto o contrarregra

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traz uma pilha de feno, um cocho para alimentação de animais e algumas ovelhas de plástico. A plateia sorri, bate palmas e canta com o coral. Eles amam a música, as crianças e apreciam a história. Acima de tudo, porém, eles se apegam à esperança. A esperança do Natal com que Deus permeia o cotidiano de nosso mundo.

A história transborda de normalidade. Não se trata da rainha Maria ou do rei José. O casal não chega a Belém numa caravana cheia de camelos, servos, estandartes cor púrpura e dançarinos. Maria e José não têm isenção de impostos nem contatos po-líticos. Eles têm a influência de um trabalhador imigrante e o patrimônio de alguém que ganha um salário mínimo por mês.

Eles não são assunto para um documentário de televisão.Também não são candidatos ao bolsa-família. Sua vida é di-

fícil, mas não passam necessidade. José tem como pagar os im-postos. Eles habitam o populoso mundo entre a realeza e a ralé.

Eles são, digamos, normais. Os normais têm calos, como José, e estrias, como Maria. Os normais ficam até tarde cui-dando das roupas e acordam cedo para trabalhar. Os normais são Norma e Normando, não a Princesa e o Príncipe.

Normando canta desafinado. Norma trabalha num cubí-culo e se esforça para encontrar um tempo para orar. Ambos aguentam o que José aguentou e ouvem o que Maria ouviu. Não do estalajadeiro de Belém, mas do técnico da escola de ensino fundamental, do valentão do ensino médio ou do supervisor na fábrica. “Não temos lugar para você... tempo para você... espa-ço para você... trabalho para você... interesse em você. Além do mais, olhe para você. Você é muito lerdo... gordo... inexperiente... atrasado... jovem... velho... tem o dedo torto... o olho estrábico... um olhar inexpressivo. Você é muito... comum”.

Mas então vem a história do Natal — Norma e Normando, da cidade de Normal, Bahia, caminhando pela banal Belém,

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no meio da noite. Ninguém os nota. Ninguém olha duas vezes na direção deles. O dono da hospedaria nem sequer limpa um canto qualquer no porão. As trombetas não tocam; os sinos não soam; os anjos não jogam confete. Não ficamos felizes pelo fato de nada disso acontecer?

E se José e Maria aparecessem vestidos de pele, com um motorista, cheios de joias penduradas no pescoço e fazendo a maior pose? E se Deus tivesse ornamentado Belém como Hollywood na noite do Oscar: tapete vermelho, luzes de flashes, com anjos entrevistando o casal real? “Maria, Maria, você está simplesmente divina!”

Se Jesus tivesse chegado no meio de todo esse agito, le-ríamos a história e diríamos: “Caramba, veja só como Jesus entrou neste mundo”.

Mas, uma vez que não foi assim, podemos ler a história e sonhar. “Puxa, será que Jesus poderia ter nascido no meu mun-do? No meu mundo tão comum?”

Não é nesse mundo que você vive? Não é um mundo de festa. Não é um mundo de dias vermelhos na folhinha. Não, você vive uma vida comum. Você precisa pagar as contas, tem camas para arrumar e grama para cortar. Seu rosto não vai aparecer na capa de revistas, e você não está esperando um telefonema do presidente da República. Parabéns! Você está apto a fazer parte de uma história de Natal moderna. Deus entra no mundo por meio de pessoas como você e chega em dias como hoje.

O esplendor do primeiro Natal é a ausência de esplendor.Entre no estábulo e pegue o menino Jesus no colo, ainda

molhado do útero, embrulhado em panos. Passe um dedo na sua bochecha gordinha e ouça a descrição do evento feita por alguém que o conhece bem:

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No princípio era aquele que é a Palavra. João 1.1

As palavras “no princípio” nos levam para o início de tudo. “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). O bebê que Maria segurava nos braços estava ligado ao amanhecer dos tem-pos. Ele viu o primeiro raio de luz e ouviu o primeiro quebrar das ondas. O bebê havia nascido, mas a Palavra nunca nasceu.

“Por meio [dele] vieram todas as coisas” (1Co 8.6). Não por ele, mas por meio dele. Jesus não moldou o mundo a partir da matéria-prima que encontrou. Ele criou todas as coisas a partir do nada.

Jesus, a Palavra do Gênesis, “o primogênito de toda a cria-ção” (Cl 1.15). Ele é “Jesus Cristo, por meio de quem todas as coisas foram criadas e por meio de quem nós existimos” (1Co 8.6, NTLH).

Então, Deus fez aquilo que nenhum teólogo concebeu e que nenhum rabino jamais ousou sonhar. “A Palavra tornou-se car-ne” ( Jo 1.14). O Artista tornou-se óleo em sua própria paleta. O Oleiro derreteu-se em barro sobre sua própria roda. Deus tornou-se um embrião no ventre de uma moça interiorana. Cristo em Maria. Deus em Cristo.

É de impressionar essa ideia de um feto celestial flutuar den-tro de um útero. José e Maria não tinham a vantagem que temos hoje: a ultrassonografia. Durante a gravidez de cada uma de nossas três filhas, Denalyn e eu tiramos vantagem plena da tecnologia. A imagem em branco e preto na tela se parecia mais com um radar Doppler do que com uma criança. Com a ajuda do médico, porém, conseguimos enxergar os braços e as mãos, a cavidade nasal e o vestido do baile de formatura... Espere, estou confundindo as fotos.

À medida que movia o aparelho em torno da barriga de Denalyn, o médico fazia o inventário. “Ali está a cabeça, os pés, o tronco... Bem, tudo parece normal.”

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O médico de Maria teria feito o mesmo pronunciamento. Jesus foi um bebê comum. Não há nada na história que dê a entender que ele levitou sobre a manjedoura ou que saiu an-dando do estábulo. Foi exatamente o oposto. Ele “habitou en-tre nós” ( Jo 1.14, RC). A palavra usada por João foi traduzida como habitar e tem sua origem em tabernáculo ou tenda. Jesus não se separou de sua criação; ele acampou na vizinhança.

A Palavra de Deus entrou no mundo com o choro de um bebê. Não tinha dinheiro nem influência, nem pistolões a quem recorrer. Jesus, o Criador do universo, aquele que inventou o tempo e que criou a respiração, nasceu numa família humilde demais para conseguir uma cama para uma moça grávida pres-tes a se tornar mãe.

Deus escreve a história dele com pessoas como José e Maria... e como Sam Stone.

Nas semanas que antecederam o Natal de 1933, uma oferta curiosa foi publicada no jornal diário de Canton, Ohio. “Ho-mem que sentiu os efeitos da Depressão quer ajudar 75 famí-lias desafortunadas”. Um tal de sr. B. Virdot prometia enviar um cheque para os mais necessitados da comunidade. Tudo o que precisavam fazer era relatar sua situação difícil numa carta e enviá-la ao serviço de posta-restante.1

A crise econômica deixara pais sem emprego, casas sem aquecimento, crianças com roupas remendadas e, ao que pare-ce, um país inteiro sem esperança.

Os pedidos chegaram aos montes.“Odeio escrever esta carta... parece mendicância... meu ma-

rido não sabe que estou escrevendo... Ele trabalha, mas não ganha o suficiente sequer para alimentar a família.”

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“Sr. Virdot, estamos numa situação desesperadora... Só quem já passou por isso é que sabe como é.”

Todos os habitantes de Canton ficaram sabendo da oferta do sr. Virdot. O estranho era que ninguém conhecia o sr. Virdot. O registro de moradores da cidade contabilizava 105 mil ha-bitantes, mas nenhum deles tinha esse nome. As pessoas se perguntavam se ele realmente existia. Contudo, depois de uma semana, os cheques começaram a chegar em diversas casas por toda a região. A maioria era de pequeno valor, em torno de cinco dólares. Todos traziam a assinatura “B. Virdot”.

No correr dos anos, a história foi contada, mas a identidade do homem nunca foi descoberta. Em 2008, muito depois de sua morte, um neto abriu uma pasta executiva surrada que estava no sótão da casa de seus pais, cheia de poeira. Foi ali que ele encontrou as cartas, todas datadas de dezembro de 1933, assim como 150 cheques liquidados. O sr. B. Virdot era Samuel J. Stone. Seu pseudônimo era uma mistura de Barbara, Virginia e Dorothy, o nome de suas três filhas.2

Sam Stone não era uma pessoa privilegiada. O fato é que sua criação foi marcada pelo desafio. Ele tinha 15 anos quan-do sua família saiu da Romênia. Eles se estabeleceram num gueto em Pittsburgh, onde o pai de Sam escondia seus sapatos para que ele não pudesse ir para a escola. Também forçava Sam e seus seis irmãos a enrolarem charutos no sótão.

Ainda assim, Stone persistiu. Saiu de casa para trabalhar num barco, depois numa mina de carvão e, na época da Grande Depressão, ele possuía uma pequena rede de lojas de roupas e vivia em relativo conforto. Não era rico nem pobre, mas estava disposto a ajudar.

Homem comum. Lugar comum. Mas um canal de graça incomum. E, na história de Deus, o comum é importante.

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