A Herança de Penélope. estudos preliminares para uma História da Filosofia do Direito

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  • Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira

    Wellington Trotta

    John William Waterhouse-Penelope and the Suitors(1912)

    A HERANA DE PENLOPE _______________________________________________

    ESTUDOS PRELIMINARES PARA UMA HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

    RIO DE JANEIRO agosto de 2008

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    Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira

    Bacharel em Comunicao Social pela FACHA. Bacharel e Licenciada em Filosofia pela UERJ. Especialista e Mestre em Filosofia pela UERJ Bacharel em Direito pela UNESA. Advogada e Professora de Filosofia do Direito, tica Geral e Profissional e Filosofia e tica na Universidade Estcio de S

    Wellington Trotta

    Bacharel em Direito pela UGF. Licenciado em Direito pela FANIP. Licenciado em Filosofia pela UERJ. Mestre em Cincia Poltica (Poltica e Epistemologia) pela UFRJ. Doutorando em Filosofia pelo IFCS-UFRJ. Advogado e Professor de Filosofia do Direito e Filosofia e tica na Universidade Estcio de S

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    Sumrio

    Pg.

    Introduo Filosofia: para qu?.........................................................................................

    I. A Filosofia e o surgimento de uma nova conscincia.................................................

    II. Os filsofos pr-socrticos e o pensamento poltico.................................................

    III. O perodo Socrtico....................................................................................................

    IV. A dimenso poltica em Plato e a crtica de Aristteles...........................................

    V. Estoicismo: a natureza como fundamento da Lei......................................................

    VI. A cristandade medieval e a Filosofia..........................................................................

    VII. O pensamento jusnaturalista.....................................................................................

    VIII Thomas Hobbes: a garantia dos direitos individuais..................................................

    IX Direitos civis como extenso dos direitos naturais: da liberdade radicalidade

    democrtica................................................................................................................

    X. A filosofia prtica de Immanuel Kant..........................................................................

    XI. O positivismo jurdico..................................................................................................

    XII. A crtica tridimensional realeana ao normativismo-lgico de Kelsen.........................

    Concluso...............................................................................................................................

    Referncias Bibliogrficas....................................................................................................

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    Prezado (a) leitor (a):

    Este material foi elaborado para as aulas de Filosofia Geral e Jurdica do Curso de Direito

    da Universidade Estcio de S. Nesse sentido, ressaltamos que se destina to somente para uso

    interno, sendo vedada a sua utilizao sem autorizao expressa dos autores. A obra encontra-

    se depositada no Ministrio da Cultura/Fundao da Biblioteca Nacional.

    Clara Maria C.B. de Oliveira

    Wellington Trotta

  • 5

    INTRODUO

    Filosofia: Para qu?

    Muitos indagam: por que estudar Filosofia? Qual a importncia da Filosofia para o saber

    de modo geral, seja ele jurdico, poltico ou social? Nem sempre as respostas que formulamos

    so convincentes para esclarecer sobre as conseqncias desse saber. A grande maioria das

    pessoas no tem contato com a Filosofia durante o ensino fundamental ou mdio, o que torna

    nossa tarefa ainda mais rdua. O que pior, inmeras vezes percebemos que a falta de

    interesse pela leitura de maneira geral contribui tambm para certo desinteresse pelo estudo

    de Filosofia.

    Poucos se interessam por essa disciplina, geralmente ministrada em apenas um

    semestre nos primeiros perodos da graduao. Todavia, muitos profissionais do Direito

    descobrem a Filosofia em meio aos seus estudos de ps-graduao e experimentam certa

    ansiedade em tentar suprir essa falta em sua formao intelectual. Nesse sentido, temos que

    ressaltar que estudar Filosofia significa investigar os fundamentos de nossa prpria cultura, nos

    impondo, por sua vez, a necessidade de irmos ao que consideramos fonte inspiradora de nosso

    patrimnio intelectual: a Grcia antiga. Logo, segundo Werner Jaeger (1888-1961):

    A Grcia representa, em face dos grandes povos do Oriente, um progresso fundamental, um novo estdio em tudo o que se refere vida dos homens na comunidade. Esta se fundamenta em princpios completamente novos. Por mais elevadas que julguemos as realizaes artsticas, religiosas e polticas dos povos anteriores, a histria daquilo a que podemos com plena conscincia chamar cultura s comea com os gregos.1

    preciso enfatizar que a Filosofia oferece uma abordagem singular para tratar dos

    problemas fundamentais contemporneos, em particular, aqueles relacionados ao nosso

    cotidiano, centrados na eterna insocivelsociabilidade humana.

    Ademais, insistimos em apontar que a histria do pensamento filosfico, que se inicia

    com o povo grego, por volta do sc. VII a.C. constitui as bases de nossa prpria cultura, ou seja,

    configura o nosso ponto de partida, ou o incio do pensamento racional. Assim, ao lermos um

    texto filosfico colocamos em ao todo o nosso sistema de valores, crenas e atitudes que

    refletem o grupo social ou a classe social a qual pertencemos e no qual se deu nossa

    socializao primria, isto , o meio-valor em que fomos criados. Podemos ento analisar como

    1 JAEGER, W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989: 4. [grifo nosso]

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    esse sistema de valores interfere em nossa viso de mundo. Nesse horizonte, a Filosofia nos

    proporciona uma reflexo sobre ns mesmos e o nosso prprio pensamento. Nesse caso a

    Filosofia ensina a estruturar o prprio pensamento a partir da formulao de perguntas

    precisas cujo exame nos leva a consideraes reflexivas.

    Ingressar nos estudos filosficos significa, fundamentalmente, assumir a rdua tarefa

    do autoconhecimento que implica a transformao do prprio olhar, muitas vezes desatento,

    em um olhar cuidadoso diante das obviedades. Significa abolir a pressa e o imediatismo. A

    Filosofia significa, sobretudo, a formao de uma atitude crtica diante da vida. Como afirma

    Immanuel Kant (1724-1804) em suas lies de Lgica: filosofar algo que s se pode aprender

    pelo exerccio, pelo uso prprio da razo. (...) O verdadeiro Filsofo, portanto, na qualidade de

    quem pensa por si mesmo, tem que fazer um uso livre e pessoal de sua razo, no um uso

    servilmente imitativo. 2

    Inicialmente deve-se compreender que Filosofia no se confunde com cultura geral, mas

    estudar Filosofia implica estabelecer um dilogo com homens de notrio saber, que viveram

    em outras pocas, nesse sentido consideramos crucial no s conhec-los como tambm

    compreender seus costumes, pois assim podemos avaliar mais lucidamente os nossos.

    Confirmando a presente tese, citamos as clebres palavras de Ren Descartes (1596-1965) na

    obra Discurso do Mtodo, enfatizando que:

    A leitura de todos os bons livros qual uma conversao com as pessoas mais qualificadas dos sculos passados, que foram seus autores, e at uma conversao premeditada, na qual eles nos revelam to-somente os melhores de seus pensamentos. (...) bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais smente e no pensemos que tudo quanto contra os nossos modos ridculo e contrrio razo, como soem proceder aos que nada viram. 3

    Assim, intencionalmente se cuidou de apresentar um trabalho propedutico que

    pudesse oferecer uma exposio clara e indispensvel, capaz de configurar um apoio til para

    posteriores estudos de Filosofia. Nesse sentido, pesquisamos autores e doutrinas que julgamos

    essenciais para o estudo jurdico-poltico. Gostaramos ainda de esclarecer, preliminarmente,

    que o presente trabalho tem objetivo modesto, pois se procurou, ao expor, dar certa

    objetividade que no comprometesse a verdadeira complexidade da matria. O ponto de

    partida est na noo geral da Filosofia como um saber terico e universal que fundamenta

    toda a cultura ocidental, desvelando-se o imperativo de observar os diferentes problemas que

    2 KANT, I. Lgica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, A26-27.

    3 DESCARTES, R. Os Pensadores. In: Discurso do Mtodo. So Paulo: Abril Cultural, 1973: 39.

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    a nossa cultura formulou ao longo dos tempos com suas respostas e terminologias acerca do

    que consideravam relevantes.

    Importa tambm ressaltar que a histria apresentada focaliza um dos ramos da

    Filosofia, em particular, aquela que estuda a relao entre direito e poltica. Isso porque a

    pesquisa foi essencialmente motivada pelo desejo de compreender melhor a relao poltico-

    social a partir do devir histrico. Nesse caso as informaes apresentadas fundamentaram-se

    em textos clssicos e comentadores consagrados pela tradio filosfica. Acreditamos no ter

    incorrido em erros graves, buscando no esquecer que os filsofos so homens e que,

    portanto, esto sujeitos s influncias de sua origem, educao e singularidade histrica.

    preciso lembrar que todo pensador est fadado a ser de seu sculo, a seu contentamento ou

    pesar, 4 com isso assinalamos desde j que os problemas filosficos so to antigos quanto s

    inquietaes conscientes dos homens sobre o problema da convivncia humana, e se desvelam

    nas concepes fundamentais acerca do Direito e do prprio Estado, a partir das realidades que

    serviram como pano de fundo.

    Destaca-se que a leitura de tais obras, a partir de uma abordagem filosfica, nos

    permite vislumbrar que a transformao das sociedades no implica a superao pura e simples

    de um passado, mas antes ressalta que esse passado existe e persiste no presente. Algumas

    vezes preciso apontar caminhos que no se devem mais seguir. Nosso interesse por uma

    filosofia poltica ressalta a idia segundo a qual a poltica, pertencendo histria humana,

    participa do seu desenrolar gradual e do seu reencontro consigo mesma. Por conseguinte, que

    importa nesse caminhar a indispensvel tarefa crtica que a Filosofia nos oferece, sem a qual

    cairamos inevitavelmente num dogmatismo feroz ou num ceticismo tedioso.

    Nosso objetivo tambm ampliar a crtica para com isso fornecer as condies de

    possibilidade para uma reflexo filosfica sobre diversas reas do saber e sobre nossa prpria

    ao. Por isso, indicamos outras leituras para que o interessado possa ampliar sua capacidade

    de anlise. Dessa forma preciso no esquecer que somos como um espelho cuja imagem se

    reflete para os demais. Influenciamos uns aos outros, somos mediao para outros seres

    humanos e nessa inter-relao nos tornamos humanos. 5

    , portanto, inquestionvel que nossa cultura pode ser considerada, em ltima anlise,

    herdeira das construes gregas, ou, como alguns preferem dizer, representamos o futuro

    daquilo que costumamos assinalar como grecidade. Seja como futuro ou passado intelectual da

    4 MARX, K. O capital. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1994: 68.

    5 LORIERI, Marcos Antnio. Filosofia na escola: o prazer da reflexo. RJ: Moderna, 2004: 7.

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    cultura grega, o que importa que somos filiados ao imaginrio poltico pensado, discutido e

    belicamente defendido pelos gregos, ou melhor, nossa matriz terica passa pelo pensamento

    grego, que, segundo Jean-Pierre Vernant, tem sua origem no embate poltico. 6

    com esse profundo sentimento de gratido que escolhemos o ttulo fazendo meno a

    uma personagem feminina, muitas vezes preterida, que aparece na Odissia e que configura o

    paradigma perfeito da lealdade absoluta ao heri da Guerra de Tria. Talvez a nica mulher do

    mundo grego que no sucumbiu na solido com a ausncia de Ulisses e que suportou com

    astcia pretendentes que afrontaram sua casa e dilapidaram seus bens.

    Penlope cujo nome etimologicamente significa pato ou ganso selvagem, porque na

    cultura grega antiga era comum designar as mulheres com nomes de pssaros, casou-se com o

    heri de taca, aquele que concebera pela inteligncia e no pela fora a forma certa para

    derrotar Tria, o clebre Cavalo de Tria. Este foi Ulisses ou podemos cham-lo tambm de

    Odisseu.

    Mas atribumos Penlope o sentido da difcil trajetria da Filosofia. Penlope no

    queria escolher um pretendente para ocupar o lugar do seu amado Ulisses que ficara 20 anos

    na Guerra de Tria. Para ganhar tempo usou a astcia para afastar o assdio de seus

    pretendentes. Prometeu-lhes que escolheria um novo consorte to logo terminasse de tecer a

    mortalha de Laertes, velho pai de Ulisses.

    Assim, tecia durante o dia e desfazia todo o trabalho noite para no ter que escolher

    um pretendente para ocupar o lugar do seu amado. Penlope sabia que para tecer era preciso

    ter pacincia e manter acesa sua lealdade, pois sabia que era preciso inicialmente fiar, ou seja,

    fazer fio enrolando as fibras de l ou algodo. Tecer significa essencialmente entrelaar a trama

    na urdidura.

    Assim como Penlope, em Filosofia preciso aprender a ter pacincia para fiar, ou seja,

    trabalhar conceitos, conceber idias - exercer a liberdade como a faculdade do pensar para

    depois estabelecer as tessituras que resultaro no tecido das muitas teses que nossa tradio

    concebeu.

    Esse fazer paciente e solitrio que desvelamos nos textos (do latim textu, tecido) que os

    filsofos nos legaram, nos faz perceber a primeira lio que acreditamos importante para o

    estudo na seara Filosfica: para elaborar um texto preciso fiar; preciso trabalhar as idias

    como se faz no ofcio de quem tece.

    6 VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. RJ: Bertrand Brasil: 1992.

  • 9

    Nesta dialtica do fazer e desfazer de Penlope a Filosofia se desvela no sentido da

    prpria existncia humana. E aqui nos revela o caminho da Filosofia do Direito que no pode

    ser investigado sem o conhecimento da tradio filosfica. Sem dvida, preciso ouvir o

    conselho daqueles que vieram antes de ns.

    Na verdade, necessitamos nos aconselhar com os mais velhos; talvez pela necessidade

    de ouvirmos a experincia daqueles que nos antecederam na experincia citadina; talvez, quem

    sabe, nosso referencial terico esteja por demais quantificados sob imagens burlescas,

    pensando poltica a partir de jogos lgicos como a dana da galinha ou coisa anloga. Bem,

    pensemos moda da Filosofia: esse o nosso maior desafio.

  • 10

    Captulo I

    A Filosofia e o surgimento de uma nova conscincia

    1.1 O sentido de Filosofia.

    Na obra Eutidemo de Plato (428-348 a.C.), destaca-se que a Filosofia do grego

    o uso do saber em proveito do homem. Assinala, esse clebre filsofo, que no

    teria utilidade alguma poder transformar as pedras em ouro se no tiver capacidade para valer-

    se desse nobre metal. Nesse mesmo sentido, de nada serviria um saber a quem no sabe servir-

    se dele. A Filosofia se desenha, portanto, como a colidncia entre o fazer e o saber valer-se

    daquilo que se faz. 7 Plato pretende, com isso, enfatizar que a Filosofia , sobretudo, a posse

    ou aquisio de um conhecimento, mas este em benefcio do homem. Certamente se

    encontraro inmeras definies para Filosofia forjadas em pocas diversas sob diferentes

    pontos de vista.

    Segundo Descartes, Filosofia seria o estudo da sabedoria, ou seja, um perfeito

    conhecimento de todas as coisas que o homem capaz de conhecer. 8 No foi diferente a

    definio elaborada por Thomas Hobbes (1588-1679). Na viso hobbesiana, a Filosofia , de um

    lado, conhecimento causal e, de outro, a utilizao desse saber em benefcio do prprio

    homem. Immanuel Kant (1724-1804), representante do Iluminismo alemo, a compreendeu

    como uma cincia da relao de todo conhecimento com a finalidade essencial da razo

    humana. Para este autor, o filsofo no um artista da razo humana, mas o legislador da

    razo humana. 9 Segundo Hegel (1770-1831), filosofia um saber conceituante. Na verdade,

    tais definies no se distanciam da mensagem platnica e, assim, esse conhecimento, ora

    visto como revelao, ora como busca ou aquisio, um privilgio prprio dos seres racionais.

    Considerando os estudiosos contemporneos, ressaltamos a definio elaborada por

    Marilena Chau, na obra Convite Filosofia, certificando que a Filosofia no se confunde com

    Cincia stricto sensu, mas pode ser entendida como reflexo crtica sobre os procedimentos e

    conceitos cientficos, pois se trata de um saber que cronologicamente anterior ao surgimento

    da prpria cincia. Assim, acrescenta que no tampouco Religio; antes, porm, reflexo

    crtica sobre as origens e formas das crenas religiosas; no se reduz Arte, mas se v diante de

    uma reflexo crtica sobre os contedos, formas, significaes da obra de arte e do trabalho

    7 PLATO. Eutidemo, 288 e 290 d. Apud, ABBAGNANO, N. Dicionrio de Filosofia. SP: Mestre Jou, 1982: 442.

    8 DESCARTES, R . Apud, ABBAGNANO, N. Dicionrio de Filosofia. SP: Mestre Jou, 1982: 442.

    9 KANT, I. Crtica da Razo Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994, A838/B866 A839/B867.

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    artstico; tambm no pode ser considerada Sociologia ou Psicologia, mas reflexo crtica sobre

    os fundamentos dessas cincias humanas de suma importncia; a Filosofia no se limita

    esfera Poltica, mas se configura como possvel interpretao, compreenso e reflexo sobre a

    origem, a natureza e as formas do poder; por fim, Filosofia no Histria, e sim interpretao

    do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e no espao e a compreenso do

    que seja o prprio tempo. A Filosofia est na histria, pois produto cultural do homem; um

    saber do homem situado, pretendendo desvelar as interpretaes e limites de cada poca.

    Pode-se ento, a partir da tica desta ilustre professora, definir Filosofia como a busca

    pela fundamentao terica e crtica dos conhecimentos e prticas. Trata-se de um saber que

    se volta para as origens, as causas, a forma e o contedo dos valores ticos, polticos, artsticos

    e culturais. O seu olhar observa com cuidado as transformaes histricas, a conscincia em

    suas vrias modalidades: imaginao, percepo, memria, linguagem, inteligncia,

    experincia, reflexo, comportamento, vontade, desejo, paixes; busca compreender as idias

    ou significados gerais: realidade, mundo, natureza, cultura, histria, subjetividade,

    objetividade, diferena, repetio, semelhana, conflito, contradio e mudana.

    Nesse sentido, o olhar filosfico se afasta do senso comum, das crenas, sentimentos,

    prejuzos, preconceitos; toma distncia do mundo cotidiano para interrogar e no aceitar as

    coisas passivamente. A Filosofia diz no ao senso comum, para indagar o que , como e

    por que momentos que constituem o pensamento crtico. Sua ao se realiza por meio da

    reflexo em que o pensamento volta-se para si mesmo a fim de indagar como possvel o

    prprio pensamento. Assim, pode-se considerar que refletir significa tomar distncia das coisas

    para poder enxergar novos ngulos, experimentar a realidade em diversos sabores, 10

    porquanto a reflexo filosfica radical, isso porque investiga a raiz, a origem de tudo o que

    existe. 11 A Filosofia um pensamento sistemtico, o que significa dizer que no sendo mera

    opinio, muito pelo contrrio, na verdade a Filosofia segue uma lgica de enunciados precisos e

    rigorosos, opera com conceitos ou idias obtidos por procedimentos de pura racionalizao.

    Nesse caso, a Filosofia na condio de saber exige fundamentao racional do que enunciado

    e pensado, e deve formar um conjunto coerente de idias racionalmente examinadas e

    demonstrveis.

    Conclui-se, provisoriamente, que o saber filosfico uma profunda refutao opinio,

    conhecido como senso comum. Um saber que exige consistncia terica. Conforme insiste o

    10

    LORIERI, Marcos Antnio. Filosofia na escola: o prazer da reflexo. RJ: Moderna, 2004: 17. 11

    MARX, K. Manuscritos econmicos-filosficos. Lisboa: Edies 70, 1993.

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    filsofo francs Luc Ferry e que sintetiza as idias expostas acima: o filsofo antes de tudo

    aquele que pensa que, se conhecemos o mundo, compreendemos a ns mesmos e

    compreendendo os outros, tanto quanto nossa inteligncia o permite, vamos conseguir, pela

    lucidez e no por uma f cega, vencer nossos medos. 12

    O valor da Filosofia repousa, portanto, na possibilidade de fundamentao ou

    justificao do trabalho cientfico ao indagar o que o homem?, o que a vontade?, o que

    a razo?, como nos tornamos livres?, o que um valor?. Pode-se estudar a Filosofia sob

    o aspecto temtico ou compreend-la a partir de seu acontecer histrico, ou seja, a histria da

    Filosofia compreendendo perodos que exprimem e manifestam os problemas e as questes

    que, em cada poca, os homens colocaram para si mesmos. Ser possvel tambm perceber

    que as transformaes no modo de conhecer ampliaram os campos de investigao do filsofo.

    Destaca-se que historicamente as abordagens filosficas, em sua dinmica, esto relacionadas

    aos problemas historicamente definidos por sua temporalidade, e, por isso a Filosofia tambm

    tem sua historicidade, logo os perodos foram classificados pela tradio da seguinte forma:

    Antigidade Clssica ou Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna e Filosofia

    Contempornea.

    1.2. - Surgimento da Filosofia na Grcia Antiga

    Como nos lembra Jos Amrico M. Pessanha, buscar as razes que conduziram o

    homem grego a fazer filosofia permanece ainda como um problema aberto. 13 O que teria

    fundamentado esse novo saber? Por que na Grcia, por volta do sc. VII ou VI a.C., surgiu uma

    nova mentalidade diante do real? Quais os fatores que se entrecruzaram e propiciaram esse

    fenmeno em uma cultura to antiga? Sabe-se que na Grcia do sc. VI a C., Pitgoras de

    Samos (571-496 a.C.) denominou-se Filo-sophos por ser amante do saber e no de sophos

    (sbio). 14

    Costuma-se lembrar de uma narrativa atribuda a Pitgoras, 15 segundo a qual esse

    filsofo teria dito aos seus discpulos que trs tipos de pessoas participavam dos jogos

    olmpicos na Grcia, a saber: as que trabalhavam no comrcio, com interesses voltados para o

    lucro; as que buscavam disputar os torneios, os atletas e artistas e aqueles que, sem interesses

    12

    FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007: 23. 13

    PESSANHA, Jos Amrico M. Os pensadores. In: Pr-socrticos. SP: Nova Cultural, 1983. 14

    A palavra Filosofia formou-se da juno de Filos-filia (amigo) com sophia(sabedoria, saber), opondo-se ao termo grego polimathia que significa saber comum, desconexo, fragmentado. 15

    importante ressaltar que este pr-socrtico nada escreveu. Seus ensinamentos foram transmitidos oralmente e guardados em segredo por seus primeiros discpulos.

  • 13

    comerciais ou competitivos, buscavam compreender o significado das coisas e contemplando a

    realidade, desinteressadamente. Este ltimo o filsofo, aquele que ama o saber. Essa teria

    sido a origem da palavra Filosofia e da idia de filsofo.

    O que a tradio literria afirma que a Filosofia foi um fenmeno especfico do povo

    grego e teve continuidade com os povos dominados por ele. O seu momento inicial estaria na

    prpria curiosidade humana (perplexidade), 16 no instante em que algo desperta a nossa

    admirao e exige uma explicao sobre a origem do mundo, dos povos e dos fenmenos da

    natureza sem recorrer aos mitos ou explicaes religiosas. Vale esclarecer que a palavra mito

    do grego mythos e do latim mythus, aponta, alm da acepo geral de narrativa, para trs

    significados distintos, a saber: 1. forma atenuada de intelectualidade; 2. forma autnoma de

    pensamento ou de vida; 3. instrumento de controle social.. Para o pensamento grego, mito

    significava um discurso ou narrativa considerada verdadeira para seus ouvintes; havia uma

    relao de confiabilidade entre a pessoa do narrador e os ouvintes, ou melhor, uma crena na

    autoridade do narrador, chamado de poeta-rapsodo. Os gregos acreditavam que ele fora

    escolhido pelos deuses e que se tornara o transmissor de suas mensagens, carregadas de

    valores compartilhados pelo grupo.

    A palavra proferida pelo poeta, o mito, ganhava uma aura de divindade, portanto

    inquestionvel e incontestvel, constituindo-se no ponto central de uma educao ainda por

    via da oralidade. Sendo assim, a narrativa sobre a origem do mundo foi denominada como

    genealogia que pode ser cosmologia ou teogonia. Ser cosmologia quando tratar do

    nascimento e da organizao do mundo, pois gonia vem do verbo gennao e do substantivo

    genos, assumindo a idia de gerao, nascimento a partir da concepo sexual e do parto.

    Cosmo quer dizer mundo ordenado, organizado. J teogonia composta de gonia e theos que

    significa em grego, seres divinos, coisas divinas, deuses. Ser teogonia quando a narrativa tratar

    da origem dos deuses. A Filosofia vista como uma cosmologia, ou seja, uma explicao

    racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformaes das coisas.

    O sentido da narrativa mtica foi marcado por uma profunda formulao de valores cujo

    fim era a formao do homem grego, levando em considerao uma explicao pedaggica

    capaz de instituir laos integrativos entre os homens a partir de uma idealidade divina. O mito

    carrega no som das palavras proferidas pelos poetas, orculos dos deuses, as faanhas dos

    heris como formao moral dos homens: a supremacia do valor helnico como forma de

    manter sua identidade ante a pluralidade de povos existentes. A autoridade do mito sucumbe

    16

    ARISTTELES. Metafsica. So Paulo: Edies Loyola, 2002.

  • 14

    diante dessa nova explicao que no resulta de uma pessoa fsica com poderes msticos, como

    no caso dos poetas-rapsodos, mas do poder da razo. Essa mitologia e suas figuras sobrevivem

    enquanto se mantm viva na vida cotidiana. Memria, oralidade e tradio so os

    componentes indispensveis para a sua sobrevivncia. Assim, a explicao filosfica, que era

    apenas uma explicao de homens que buscavam o conhecimento racional, se desenvolveu

    paulatinamente e permaneceu por muito tempo concomitante s explicaes mitolgicas que

    povoavam o imaginrio desse mundo antigo.

    No pensamento de Plato e Aristteles podemos ver que o mito se contrape verdade

    ou narrativa verdadeira, embora ao mesmo tempo guarde a verossimilhana que, em certos

    pontos a nica validade a que o discurso capaz de aspirar e passa a exprimir o que se pode

    encontrar de melhor e de mais verdadeiro. Em outras palavras podemos dizer que a relao da

    cultura grega com o mito muito delicada, uma vez que o mito visto em alguns momentos

    como oposto verdade e, em outros forma aproximativa do conhecimento verdadeiro.17

    O advento do pensamento filosfico marcou o aparecimento de uma indagao que

    passa a rejeitar narrativas mitolgicas ou mgicas. No entanto, no se pode negar a ntima

    relao da mitologia grega com a histria da civilizao grega, por isso o relato mtico no

    resulta necessariamente da inveno individual, mas da transmisso de uma cultura por vrias

    geraes e da memria de um povo, o que ressalta a sua dignidade e importncia. A Filosofia ,

    portanto, um fenmeno cultural grego que surgiu no momento de estabilizao da sociedade

    com a consolidao das cidades-estados (plis); um progressivo enriquecimento do comrcio e

    inveno da moeda; expanso martima que propiciou o surgimento de uma classe mercantil

    politicamente forte; a inveno do calendrio; a prpria inveno da poltica como idia tica.

    Na verdade, no h consenso sobre a origem da Filosofia na Grcia antiga, porque

    muitos estudiosos entendem que os povos do oriente j sistematizavam doutrinas filosficas

    antes dos filsofos gregos. Todavia, o que se observa freqentemente que no se configurou

    nesses povos o que ocorreu na Grcia: o processo de laicizao do saber. Esse processo de

    laicizao apresentou caractersticas marcantes como, por exemplo, a noo de physis, a idia

    de causalidade interpretada a partir de termos naturais, o conceito de arch, a concepo de

    cosmo racionalmente ordenado, o logos como possibilidade de se explicar o mundo, o carter

    crtico capaz de operar profundas mudanas no homem.

    Segundo esforos de notveis estudiosos da cultura clssica, pode-se ento afirmar com

    confiana que a civilizao e a cultura gregas vivenciaram um ambiente completamente

    17

    ABBAGNANO, N. Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Mestre Jou, 1982: 644.

  • 15

    original. interessante observar que foram os romanos que criaram o sentido atual do termo

    gregos como verso depreciativa da palavra Graeci. O que a histria nos relata que os

    gregos se denominavam helenos, aqueles que habitam a Hlade. A Hlade, num sentido

    cultural e no necessariamente poltico, se estendia desde o estreito de Gibraltar at a atual

    Gergia, na extremidade do mar Negro. Definiam-se assim por uma ancestralidade e lngua

    comuns falava-se o grego. Aqueles que no falavam o grego eram denominados brbaros,

    porque tais lnguas eram constitudas de um balbuciar de sons ininteligveis bar-bar. 18

    1.3 - A plis grega e a formao de uma nova conscincia

    Antes do advento da Plis, a Grcia j apresentava uma vida social intensa. Um dos

    poetas mais importantes, Homero (sc. IX a.C.), autor dos famosos poemas (Ilada e Odissia)

    que narram as guerras troianas (1260 a 1250 a.C.) e as aventuras de Ulisses (Odisseu), nos

    desvela em suas narrativas o entrecruzamento de histria, fico, lenda, mitos e deuses, que

    segundo pesquisadores exprimem traos da cultura drica. Os drios oriundos do norte,

    sculos aps as guerras troianas, construram uma sociedade marcadamente aristocrtica que

    paulatinamente se transformou no que denominamos civilizao grega. Segundo muitos

    historiadores, Homero considerado o pai da cultura grega por ter sido a sua obra fundamental

    para a manuteno das tradies. Alm de Homero, o pensamento de Hesodo (sc. VIII a.C.) foi

    igualmente importante, porquanto marcou uma nova fase da cultura grega. Em sua obra

    denominada Teogonia, descreveu a criao do mundo, dos deuses e a organizao do Olimpo.

    Em Os trabalhos e Os Dias narrou o clebre mito das cinco idades da humanidade.

    Por volta do sc. VIII a.C., com a inveno da moeda cunhada, a regio vivenciou um

    renascimento das relaes comerciais que resultou na runa das antigas linhagens tribais e no

    surgimento de pequenas cidades de agricultores e artesos. Lentamente se formou uma nova

    organizao scio-poltica que, segundo J.P.Vernant, destacou a supremacia da razo. Assim, a

    palavra, o discurso e a razo ganharam grande relevo nessa nova organizao social. O discurso

    tornou-se condio fundamental para a participao nos assuntos pblicos. Tal mudana,

    alinhada uma revoluo poltica, ensejou o desenvolvimento do pensamento humano.

    Portanto, as discusses polticas, a elaborao das leis, deixaram de ser privilgio da

    aristocracia grega.

    A palavra polis, do plural pleis, de origem grega que expressa a idia de cidade-

    estado autogovernada por um esprito que procura ir alm das formas privadas de organizao

    18

    CARTLEDGE, Paul. Histria Ilustrada da Grcia antiga. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002: 17-19.

  • 16

    do espao pblico. Cada polis tinha suas prprias leis de cidadania, cunhagem de moedas,

    costumes, festivais, ritos etc. Segundo Jaeger, a polis desenhou um novo momento para os

    gregos, uma nova forma de convivncia humana: A polis o centro principal a partir do qual se

    organiza historicamente o perodo mais importante da evoluo grega. Situa-se, por isso, no

    centro de todas as consideraes histricas. 19 O termo polis propiciou o aparecimento de

    palavras como poltico, poltica e, conseqentemente, a idia de justia. Com a palavra polis

    surgiu tambm o direito de cada cidado de emitir, na esfera pblica, o seu pensamento para

    possvel debate. E valorizou o humano, a discusso, a persuaso, a fora do melhor argumento,

    enfim o prprio desenvolvimento do discurso. Assim, o interesse pela justia se desenvolveu na

    vida da polis como um grande valor, semelhante em intensidade fora exercida pelo ideal

    cavaleiresco dos primeiros estgios da cultura grega aristocrtica. A idia do homem justo

    assumiu um novo locus no pensamento grego, isso porque aquele que se determina pela lei

    cumpre o seu dever.

    Observa-se que a plis introduziu uma verdadeira revoluo no pensamento: O ideal

    antigo e livre da Arete 20 herica dos heris homricos converte-se em rigoroso dever para com

    o Estado, ao qual todos os cidados sem exceo esto submetidos, tal como so obrigados a

    respeitar a fronteira entre o prprio e o alheio. 21 Nesse momento, com a mudana das formas

    de vida, surgiu um novo esprito centrado na vida pblica, e a literatura que testemunha a idia

    de justia como fundamento da sociedade humana estende-se desde os tempos primitivos da

    epopia, ou seja, do sc. VIII at o sc. VI a.C.

    Conforme explicao de Jaeger, nos tempos homricos:

    Toda manifestao do direito ficou sem discusso na mo dos nobres que administravam a justia segundo a tradio, sem leis escritas. Contudo, o aumento da oposio entre os nobres e os cidados livres, a qual deve ter surgido em conseqncia do enriquecimento dos cidados alheios nobreza, gerou facilmente o abuso poltico da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas.22

    A reclamao universal pela justia j figura claramente em Hesodo e, atravs desse

    poeta, que a palavra direito, dike, se converte no lema da luta entre as classes ento existentes.

    No temos fonte sobre a histria da codificao do direito grego, mas sabe-se ao menos que ao

    ser escrito assumia o carter de universalidade. J em Homero temos o direito como Themis

    19

    JAEGER, Werner W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989: 73. 20

    aret, aretai (pl.) excelncia, virtude. 21

    JAEGER, Werner W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989: 94. 22

    Idem, 1989: 91.

  • 17

    que etimologicamente significa lei. Segundo a narrativa homrica, Zeus ofertava aos reis o cetro

    e themis. Esta ltima seria o smbolo da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres

    homricos. Na prtica, significava que os nobres dos tempos patriarcais julgavam de acordo

    com a lei procedente de Zeus. As normas que constituam as leis de Zeus fundamentavam-se no

    direito consuetudinrio e no prprio saber do homem daquela poca.

  • 18

    Captulo II

    Os Filsofos pr-socrticos e o pensamento poltico

    2.1. Os filsofos pr-socrticos e a arch

    Comumente tem-se por filsofos pr-socrticos aqueles pensadores que viveram antes

    de Scrates (470-399 a.C.), que se tornou marco histrico na Filosofia por inaugurar a reflexo

    tico-poltica, diferentemente daqueles que dissertavam sobre o problema da causa primeira

    na natureza. As obras dos filsofos pr-socrticos perderam-se na Antigidade, restando

    apenas fragmentos e uma extensa doxografia 23 disponvel, que apresenta citaes e passagens

    desses pensadores como fonte para o conhecimento do primeiro momento do pensamento

    filosfico como reflexo racional.

    Estudiosos relatam que duas escolas dividiram-se em duas concepes filosficas

    diferentes. A Escola Jnica interessada na physis, ou seja, Filosofia da Natureza, tambm

    chamada de Escola de Mileto cujos expoentes foram Tales (625 - 546 a.C.), Anaximandro (sc.

    VII-VI a.C.), Anaxmenes (sc. VI a.C.) e Herclito de feso (sc. VI-V a.C.). A outra a Escola

    Italiana que apresentou uma viso de mundo mais abstrata, prenunciando o surgimento da

    lgica e da metafsica, marcada pelos filsofos Pitgoras (sc. VI-V a.C.), Parmnides (510-470

    a.C), Zeno (488-430 a.C) e Melisso de Samos, entre outros.

    Num segundo momento dessa fase pr-socrtica destacam-se os pensadores

    Empdocles de Agrigento (484-424 a.C.), Anaxgoras de Clazmena (500-428 a.C.) e a Escola

    Atomista, denominados pluralistas e eclticos. Nosso intento nesta parte to-somente

    mencionar os pr-socrticos mais conhecidos. Assim, para um maior aprofundamento no tema

    sugerimos a obra de Gerd Bornheim. 24

    Quando pensamos em Grcia Antiga, pensamos em uma regio que compreende o

    conjunto de vrias cidades autnomas entre si. Sabe-se que o bero da Filosofia teria sido a

    polis de Mileto, situada na regio da Jnia, litoral ocidental da sia menor prspera do ponto

    de vista econmico-comercial. Nessa cidade temos trs pensadores pr-socrticos de grande

    importncia: Tales, Anaximadro e Anaxmenes. Esses primeiros filsofos, denominados filsofos

    da physis, tinham por objetivo construir uma explicao racional e sistemtica do universo,

    23

    Comentrios proferidos por filsofos posteriores Aristteles a Simplcio ( sc. VI d.C.). 24

    BORNHEIM, G. (org) Os Filsofos Pr-socrticos. So Paulo: Cultrix, 1997.

  • 19

    tendo por modelo a matemtica, pois percebiam a existncia de leis gerais e permanentes a

    reger os fenmenos naturais. Tais pensadores buscavam a matria-prima, a arch, existente em

    todos os seres. Seria, portanto, a busca pelo princpio originrio, ou substancial de todas as

    coisas.

    Tales de Mileto foi considerado efetivamente o primeiro filsofo e sabe-se que era

    estudioso de astronomia que, segundo conta a tradio, chegou a prever um eclipse total do sol

    ocorrido por volta do ano de 585 a.C. Esse pensador apresentou grande desempenho em

    geometria e demonstrou que todos os ngulos inscritos no meio crculo so retos e que a soma

    dos ngulos internos de um tringulo igual a 180. Ademais, concluiu que o princpio

    originrio era a gua, porque somente a gua permanece a despeito de todas as

    transformaes. Infelizmente no conhecemos nenhum fragmento desse pensador, mas os

    comentrios de alguns filsofos posteriores, como Aristteles que menciona em passagem de

    sua obra De Coelo:

    Outros julgavam que a terra repousa sobre a gua. Esta a mais antiga doutrina por ns conhecida e teria sido defendida por Tales de Mileto. Ou ainda na obra De Anima onde menciona: E alguns sustentam que a alma est misturada com o universo; talvez por isto chegou Tales opinio de que todas as coisas esto cheias de deuses. 25

    Anaximandro de Mileto, discpulo de Tales, concebeu que o princpio primordial

    transcendia os limites do observvel e que, logo, estaria fora do alcance dos sentidos.

    Denominou de peiron, termo grego que significa o indeterminado, o infinito a massa geradora

    de todos os seres. Anaximandro nos legou trs fragmentos, so eles: 1. Todas as coisas se

    dissipam onde tiveram a sua gnese, conforme a necessidade, pois pagam umas s outras

    castigo e expiao pela injustia, conforme a determinao do tempo. 2. O ilimitado eterno. 3.

    O ilimitado imortal e indissolvel.26

    Anaxmenes de Mileto, por sua vez, discpulo de Anaximandro, admitia que a origem de

    todas as coisas fosse realmente algo indeterminado, mas no o concebia como inalcanvel aos

    sentidos. Segundo seu entendimento, o ar seria o princpio de todas as coisas, o elemento

    invisvel, impondervel e, no entanto, observvel. Em seu nico fragmento nos diz: Como

    nossa alma, que ar, nos governa e sustm, assim tambm o sopro e o ar abraam todo o

    cosmo. 27

    25

    Apud, BORNHEIM, G. (org) Os Filsofos Pr-socrticos. So Paulo: Cultrix, 1997: 23. 26

    Idem, 1997: 25. 27

    Idem, 1997:28.

  • 20

    Pitgoras de Samos viveu na ilha de Samos e posteriormente deslocou-se para Crotona,

    localizada no sul da Itlia (Magna Grcia), onde fundou sua escola filosfica preocupada com

    questes polticas e religiosas. Em seu modo de ver, a essncia de todas as coisas residia nos

    nmeros que representavam a ordem e a harmonia. A arch teria uma estrutura matemtica

    que configuraria a origem do finito-infinito, par-mpar, multiplicidade-unidade etc, enfim, para

    Pitgoras, ao fim e a ao cabo, a diferena entre os seres repousava sobre os nmeros. Suas

    contribuies foram numerosas, alm da matemtica, as concepes da imortalidade da alma,

    reencarnao, o rigor moral etc. Pitgoras no deixou obra escrita, porm, conforme Porfrio:

    O que Pitgoras dizia a seus discpulos, ningum pode saber com segurana, pois nem o silncio era causal entre eles. Contudo, eram especialmente conhecidas, conforme o juzo de todos, as seguintes doutrinas: 1) a que afirma ser a alma imortal; 2) que transmigra de uma a outra espcie de animal; 3) que dentro de certos perodos, o que j aconteceu uma vez, torna a acontecer, e nada absolutamente novo, e 4) que necessrio julgar que todos os seres animados esto unidos por laos de parentesco. De fato, parece ter sido Pitgoras quem introduziu por primeira vez estas crenas na Grcia.28

    Herclito de feso foi considerado um dos mais importantes filsofos pr-socrticos.

    Sabe-se que floresceu pelo ano 500 a.C. e se tornou o representante do pensamento dialtico.

    Herclito concebeu o mundo como dinmico, em inesgotvel transformao. Sua escola

    filosfica foi denominada de mobilista, pois para ele a vida era fluxo constante, impulsionado

    pela luta de foras contrrias. Acreditava que a luta dos contrrios seria o princpio de todas as

    coisas e por meio dessa luta o mundo se modifica e evolui. Entendeu que o fogo era a arch.

    Dentre os 126 fragmentos existentes como de sua autoria, destaca-se: No se pode entrar

    duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e rene-se; avana e se retira.29

    Uma das marcas fundamentais da doutrina de Herclito o sentido dialtico que deu ao

    movimento do pensamento, capaz, por sua vez, de perceber a natureza dicotmica da

    natureza, da vida, dos homens e de sua histria. Essa viso inaugura, por assim dizer, uma

    tradio de pensar problemas a partir de suas possibilidades contrrias, levando em

    considerao que o verso faz parte do anverso, que a guerra faz parte da paz etc. Herclito se

    torna, dentro da filosofia, um autor preocupado com a ordem dicotmica.

    Parmnides de Elia foi um grande opositor de Herclito. Acreditava que o ser era

    eterno, nico, imvel e ilimitado. Essa era a tica da razo, da essncia, a via a ser buscada pela

    filosofia. Por outro lado, a tica da aparncia, da doxa, no desvela a verdade, mas em funo

    do movimento ou vir-a-ser da realidade denota apenas uma aparncia enganosa. Parmnides

    28

    Apud, BORNHEIM, G. (org) Os Filsofos Pr-socrticos. So Paulo: Cultrix, 1997: 48. 29

    Idem, 1997: 41.

  • 21

    afirmou que: o ser ; o no-ser no .Pensava que o mundo o lugar das aparncias, o

    mundo da iluso e que, somente pela razo, no plano lgico, compreendemos a essncia da

    realidade. Para Parmnides o ser e o no-ser no . Diz-nos um dos seus fragmentos:

    Necessrio dizer e pensar que s o ser ; pois o ser , e o nada, ao contrrio, nada . Pois

    pensar e ser o mesmo30

    Zeno de Elia, discpulo de Parmnides, buscou argumentos capazes de legitimar as

    afirmaes de seu mestre e fortaleceu a idia de que a noo de movimento era contraditria.

    O mais clebre foi denominado Aquiles, que apresentava o complexo estudo dos conceitos de

    movimento, espao, tempo e infinito. Nesse argumento Zeno nega o movimento da seguinte

    maneira: afirma que o mais lento em uma corrida jamais ser alcanado pelo mais rpido, se e

    somente se, o mais lento sair bem frente, porque o mais rpido ter que primeiro alcanar o

    ponto de onde partiu o mais lento que, por sua vez, continuaria se movendo. Para

    entendermos melhor esse paradoxo de Zeno, preciso compreender o exemplo que nos

    forneceu e que, resumidamente, o seguinte: em uma determinada corrida, se a tartaruga

    (mais lenta) sasse frente de Aquiles (de ps ligeiros), este heri no conseguiria alcan-la,

    em face da vantagem que a tartaruga obteve por ocasio da largada.

    Uma das grandes contribuies dos estudos de Parmnides e, conseqentemente, de

    Zeno, est justamente dentro do campo da reflexo de uma linguagem fundamentada no

    argumento lgico. Embora a problemtica parmendica parea, a primeira vista,

    eminentemente ontolgica, o pano de fundo de sua problemtica passa pelo rigor dos

    enunciados, que, por sua vez, implica a mais profunda abstrao, o que nos leva admitir

    Parmnides como aquele filsofo que inaugura, de certa forma, o pensamento metafsico.

    Empdocles de Agrigento tentou conciliar as idias de Parmnides com o pensamento

    de Herclito, ou seja, conciliar a idia de essncia imutvel obtida pela razo com a idia de

    movimento, o vir-a-ser, captado pelos sentidos. Acreditou que o elemento primordial era

    constitudo por quatro elementos: o fogo, a terra, a gua e o ar. Tais elementos seriam

    misturados de modos diversos a partir de dois princpios universais, a saber: de um lado, o

    amor, personificando a idia de fora de atrao ou harmonizao das coisas; de outro, o dio,

    responsvel pela desagregao ou separao das coisas. Em um dos seus fragmentos

    menciona: No h nascimento para nenhuma das coisas mortais, como no h fim na morte

    30

    Idem, 1997: 55.

  • 22

    funesta, mas somente composio e dissociao dos elementos compostos: nascimento no

    mais do que um nome usado pelos homens. 31

    O leitor convir conosco que resta claro que a Filosofia desde o seu nascedouro

    apresentou posturas bem definidas quanto ao seu contedo, mtodo e objeto de investigao.

    Portanto, focalizou a realidade para compreender o verdadeiro sentido de todas as coisas a

    partir de uma explicao racional sobre a realidade pelo puro desejo de conferir outro

    significado a todas as coisas e a si mesmo, na medida em que realiza a reflexo. Os antigos

    compreenderam esse movimento que, na verdade, est radicado na prpria natureza humana.

    2.2. O sentido de justo no perodo pr-socrtico

    Para estudiosos como Jaeger e Rodolfo Mondolfo (1877-1976), a preocupao dos

    primeiros filsofos teria sido com o universo, ou seja, os pr-socrticos inauguraram o

    pensamento filosfico quando iniciaram um estudo racional sobre o homem, a vida e a

    Natureza. Outros estudiosos do pensamento grego revisaram essa tese e concluram que certa

    reflexo acerca do mundo dos homens teria precedido a reflexo sobre o mundo fsico.

    Destarte Truyol y Serra apresenta, nesse sentido, o seguinte argumento:

    Isto verdade se tivermos em conta a primitiva concepo helnica do mundo e da vida em sua totalidade, ou seja, incluindo as teogonias mticas. Efectivamente, estas, fundadas num politesmo antropomrfico, concebem os problemas csmicos como problemas humanos, o que traz consigo a personificao dos elementos e das foras naturais e a apreenso das suas relaes segundo a natureza das relaes entre os homens. 32

    A filosofia do mundo natural precisou trabalhar com categorias nascidas da experincia

    da vida humana, de uma forma ou de outra expressa na literatura disponvel poca, a

    mitologia. So categorias cuja origem social: a noo de lei, por exemplo. A imagem da

    comunidade foi til para a representao da Natureza. O enigma que perturbava o esprito dos

    pensadores pr-socrticos era o movimento, a mudana, o que justificou a necessidade de

    buscar um elemento primordial que permanecesse sempre o mesmo. O homem dessa poca

    vivia em uma comunidade autrquica e sagrada, uma espcie de microcosmo. Cada cidade,

    guardando sua autonomia, apresentava no s peculiaridades jurdico-poltica, como tambm

    dispunha de proteo particular por parte de seus respectivos deuses, baseando-se em normas

    e regulamentaes 33 tradicionais de fundamento religioso.

    31

    Apud, BORNHEIM, G. (org) Os Filsofos Pr-socrticos. So Paulo: Cultrix, 1997: 69. 32

    SERRA, A. T. Histria da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profisses, 1985: 85-86. 33

    Nomos

  • 23

    Para o preciso entendimento do sentido de justia construdo pelos gregos, preciso

    antes de tudo, compreender a sua relao com o cosmos. A cultura grega compreendia o

    universo como um ente organizado e animado. Havia a concepo de uma ordem csmica, uma

    estrutura ordenada do universo que perfeita e divina. 34 Nesta ordem e harmonia h o

    movimento regular dos planetas, a dinmica da vida em sua mais completa perfeio, a prpria

    existncia dos seres at o mais nfimo dos insetos. Cada membro desse imenso Ser est

    perfeitamente colocado em seu lugar em harmonia com os outros. Essa estrutura revela o

    logos, ou seja, a lgica que permite e sustm a harmonia entre os seres. Esse cosmos justo,

    harmnico, lgico e racional porque podemos compreender seu movimento. Nesse sentido

    esclarece Luc Ferry que:

    (...) se compreendermos bem os Antigos, o que queriam dizer no tem nada de absurdo: ao afirmar o carter divino do universo todo, eles exprimiam sua convico de que uma ordem lgica operava por trs do caos aparente das coisas, e que a razo humana poderia traz-lo luz 35

    Trata-se da mesma idia que ser transportada para a dimenso moral do homem. Os

    gregos viveram sob o imperativo de imitar a perfeio da Natureza enquanto justa e boa na

    vida na polis anunciando uma teoria do justo que desvela a necessidade de uma conduta que

    respeite essa harmonia, dando a cada um, o que lhe pertence, conforme o seu lugar natural no

    cosmos. Esse o modelo de beleza para alcanar a felicidade e a vida boa. 36 Sob essa tica,

    podemos entender por nomos a idia de ordem da polis, ou seja, as regras morais e os

    preceitos jurdicos indistintamente misturados. O cuidado com os valores culturais de cada polis

    garantia uma convivncia pacfica. No fica difcil perceber que a idia de justia significava

    garantir essa convivncia harmnica a partir de uma represso a tudo que pudesse

    comprometer a ordem estabelecida. Esse sentido seria alargado diante das novas necessidades

    que a vida comunitria exigia: estabilidade visando solues polticas diante de conflitos

    resolvidos belicamente.

    Truyol y Serra aponta, numa viso contrria, que Anaximandro teria deslocado a idia

    de justia da polis para o universo, 37 constitudo como uma grande polis, ou seja, uma grande

    comunidade sujeita a uma lei ordenadora, invarivel, afirmando a existncia de uma justia

    csmica de carter imanente que preside a gerao e a dissoluo dos seres particulares. Para

    este autor, idias semelhantes seriam usadas mais tarde por Parmnides de Elia e Empdocles

    34

    A idia de divino no se relaciona com o sentido cristo de ser divino, mas antes com o significado de perfeio. 35

    FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio e Janeiro: Objetiva, 2007: 41. 36

    FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio e Janeiro: Objetiva, 2007: 41-43. 37

    Esta idia estaria presente no nico fragmento existente da obra Sobre a Natureza.

  • 24

    de Agrigento nos poemas que cada qual escreveu, ambos intitulados Acerca da Natureza.

    Parmnides teria personificado a Justia nas deusas Themis e Dike entre o dia e a noite, entre a

    verdade e a opinio. A justia aparece no seu poema como um princpio esttico que assegura a

    imutabilidade do ser que ele afirma com vigor: o ser e o no-ser no . Empdocles usa a

    idia de justia para tentar uma explicao do universo; o amor e o dio como foras originais

    fazem e desfazem as coisas; a lei estende-se sem alterao.

    Sabe-se que Pitgoras e Herclito apresentaram consideraes mais explcitas sobre a

    vida social. Com Pitgoras ganha relevo a preocupao tica e religiosa, crescendo o interesse

    pela vida scio-individual, tendo a Filosofia como especulao possvel de uma purificao

    interior. Pitgoras antecipa, tambm, a relao entre Filosofia e poltica, cabendo aos seus

    discpulos, os pitagricos, os primeiros a organizar uma teoria da justia no interior de sua

    doutrina dos nmeros. Desse modo, concebeu os nmeros como essncia das coisas e

    expresso de harmonia e regularidade no sentido especfico de totalidade ordenada. Essa

    harmonia, transposta para a esfera humana, assume o sentido de uma correlao de condutas.

    Os pitagricos formularam uma definio de justia como aquilo que algum sofre por algo

    a justia como uma relao aritmtica de igualdade entre dois termos. Esta igualdade aparece

    como elemento essencial da justia. Simbolizavam a justia nos nmeros 4 e 9, porque a

    multiplicao de um nmero par (2) por ele mesmo daria 4; a multiplicao de um nmero

    mpar (3) por ele mesmo alcanaria o nmero 9. A justia nessa concepo funda-se na ordem

    natural presidida pelo nmero.

    Herclito de feso associa justia ordem universal. Como concebeu a realidade em

    perptuo devir, afirmou ainda que o devir nasce dos contrastes e que este surge da luta, logo o

    sentido de justia luta. Todavia esse perptuo fluir presidido por uma lei eterna e universal,

    o logos, por sua vez o responsvel pela harmonia invisvel entre os opostos. Essa unidade

    realizada pelo logos manifesta-se no fogo, que Herclito evoca das Ernias, personagens

    mitolgicas servidoras de Dike, que, segundo a narrativa mtica, foravam o Sol a voltar rbita

    se por acaso se afastasse. Assim, por analogia, o logos estaria oferecendo ao homem a norma

    para a ao correta. Todos os homens participam dessa ordem, embora nem todos a revelem

    em sua conduta. Essa lei nica e divina alimenta a lei humana, conferindo o seu sentido de

    sagrado e justificando qualquer sacrifcio em seu nome. Importa perceber que a moralidade,

    tanto para os pitagricos como para Herclito, fundamenta-se numa lei natural.

    preciso ressaltar que na fase pr-socrtica se afigurou um suposto direito natural

    cosmolgico de cunho pantesta. Essa filosofia natural pr-socrtica conferiu validade

  • 25

    concepo helnica de justo percebida em Hesodo e Homero. Sabe-se ainda que a idia de

    igualdade na reciprocidade, apresentada na narrativa hesidica, superou o sentido de

    autoridade expresso nos poemas homricos na condio de sentido da justia. Esse predomnio

    da concepo de Hesodo aconteceu por ocasio de profundas transformaes polticas,

    econmicas e sociais nos sc. VII e VI a.C., conduzindo as codificaes legais pela liderana de

    Slon (640-558 a.C.), legislador e poeta, assinalando em suas Elegias, o conceito de eunomia,

    ou seja, a ordem equilibrada fundada na justia. Slon observou a necessidade de

    homogeneidade social que excluiria as desigualdades excessivas. A cidade deve ser comum a

    todos e todos devem se interessar por sua conservao. Slon fustigou a hybris como a mxima

    negao da ordem.

    No mbito literrio, os poetas trgicos como Eurpides (480-406 a.C.), squilo (525-456

    a.C.) e Sfocles (496-406 a.C.) foram os herdeiros dessa concepo de justia pr-socrtica. A lei

    representa o equilbrio e a hybris a desmedida. A negao da lei deve ser resolvida com uma

    sano conforme o princpio que conhecemos pelo nome de talio: quem praticou a violncia

    sofrer violncia. 38 Resgatar o equilbrio entre o crime e o castigo funo da polis cuja idia

    de retribuio est fundada na mais antiga tradio e configura uma legalidade csmica que

    para os homens assumia o carter de frreo destino. Sfocles acrescenta um problema novo: o

    do antagonismo entre as leis humanas e as leis divinas. Este conflito constitui o ncleo

    dramtico da tragdia Antgona. Ao apresentar esse conflito, Sfocles conduz-nos, de certo

    modo, filosofia jurdica da sofstica, todavia reconhea e enfatize o carter sagrado das leis

    no escritas. 39

    Herdoto de Halicarnasso (484-420 a.C.) transps para o mbito da histria a concepo

    de justia oferecida pela tradio. Trata-se de uma concepo religiosa de justia em que os

    deuses, ansiosos por justia, procuram manter os homens longe da demasia e dos excessos do

    orgulho, longe da desmedida. Esse pensador, considerado pai da histria, apresenta um novo

    problema: a diversidade das convices e instituies humanas, ou seja, a relatividade dos

    costumes, a no universalidade das leis entre as polis, o que de certa forma conduz

    problemtica sofstica.

    Segundo Aristteles (384-322 a.C.), Demcrito de Abdera (460-370 a.C.) foi o ltimo dos

    pr-socrticos, ou filsofos da physis. A importncia de mencion-lo separado dos demais que

    38

    SQUILO. Agamenon. 39

    Chamamos a ateno para um ponto interessante: a figura do coro na tragdia Antgona desvela certo vestgio da antropologia sofstica que exalta o homem e suas obras, embora apresente a advertncia que a obra humana tambm poder gerar um grande mal.

  • 26

    ele inaugura o que denominamos de perodo sistemtico da filosofia helnica que, por sua vez,

    culminar no pensamento de Plato e Aristteles. Um estudo atravs dos fragmentos de

    Demcrito permite perceber que sua reflexo tica apresenta um desenvolvimento

    independente de sua filosofia natural.

    Sabe-se que Demcrito professou um materialismo mecanicista que considerava os

    tomos, mveis no vazio, os elementos ltimos da realidade. A tradio atribui a Leucipo a

    inspirao deste pensamento que a rigor despoja o universo de qualquer concepo divina. Sua

    tica apresenta o que podemos denominar de hedonismo esclarecido, ou seja, concebia a

    felicidade na moderao, na preeminncia da alma sobre os sentidos, cuja meta era a eutimia

    que significava um estado de alma sereno e alegre, de tranqilidade e equilbrio. O seu

    individualismo se refletia na esfera da famlia e, nesse sentido, combatia o casamento e a

    paternidade, isso porque acreditava que tais coisas perturbavam o esprito. Essa concepo

    no se estendia ao mbito poltico, pois compreendia que a prosperidade do indivduo est

    vinculada vida na polis. Da preocupar-se com questes sobre o bom governo e sobre normas.

    Como Scrates, Demcrito inclina-se para uma aristocracia vinculada ao conceito de sabedoria:

    em seu modo de ver os melhores deveriam governar.

  • 27

    Captulo III

    O perodo Socrtico

    3.1. O advento da democracia ateniense e suas implicaes polticas

    A democracia ateniense no foi obra de um nico homem, sabe-se que esteve presente

    por pelo menos dois sculos de existncia no mundo grego-ateniense (508 a 322 a.C.).

    Tradicionalmente, comentamos que Clstenes desenvolveu um sistema de democracia, em 508-

    7 a.C., entendido como isonomia, ou seja, igualdade perante a lei, mas observa-se que a palavra

    democracia foi inventada tardiamente para expressar tal princpio. Demokrata considerada

    uma palavra ambgua no universo grego; nesse sentido, krtos significa literalmente poder

    soberano do demos. Demos tinha acepes diversas na Atenas do sc. V e poderia significar o

    povo como um todo; o conjunto dos cidados adultos do sexo masculino; a maioria pobre do

    corpo dos cidados, ou ainda uma denominao dada a pequenas reas dentro da plis

    (espcie de diviso em bairros ou comunidades). Demokrata poderia significar tambm

    constituio, ou o prprio povo de Atenas na ekklesa (assemblia). Demokrata poderia ser

    vista como o governo do povo como um todo ou, para um opositor, como o governo das

    pessoas comuns que estabelecem uma ditadura da maioria sobre os melhores cidados.

    As fontes fidedignas no revelam quem inventou a palavra demokrata ou quando

    comeou a ser efetivamente utilizada, todavia acredita-se em uma apario indireta ou virtual,

    registrada em squilo, na tragdia A suplicante, a partir de um equivalente potico: demou

    kratousa kheir, que significa a mo soberana do demos. A palavra demokrata somente

    aparece em Histrias de Herdoto e na Constituio de Atenas de Xenofonte,

    aproximadamente em 420 a.C. Afirma-se que os ideais democrticos no eram aceitos por

    todos, havendo inmeros adversrios. Muito dos opositores defendiam um retorno ao sentido

    de democracia de Slon, outros pretendiam uma volta forma oferecida por Clstenes e alguns

    defendiam ferozmente uma oligarquia. A teoria democrtica tal como se desenvolveu em

    Atenas viu-se diante da tarefa de uma reconstruo, sobretudo em face das crticas elaboradas

    por Aristteles na obra Poltica.

    Sem dvida a Antigidade nos legou um rico acervo sobre poltica, igualdade,

    despotismo e liberdade. Muitas vezes no fica claro para o estudante interessado no

    pensamento poltico da Antigidade, como compatibilizar o sentido de cidadania ou a idia de

  • 28

    liberdade dentro de uma viso aristocrtica que vigorava na poca. Muitas so as crticas, por

    exemplo, ao pensamento de Aristteles na Poltica, em que apresenta a dialtica senhor-

    escravo. O fato que precisamos compreender o sentido desses termos naquele contexto

    histrico, ou seja, compreender o prprio nascimento da liberdade do cidado numa Atenas

    arcaica, marcadamente aristocrtica. Em seu Ensaio sobre a mobilizao poltica na Grcia

    Antiga, Jos Antnio Dabad Trabulsi relata que a idia de liberdade grega comportava um

    aspecto positivo e outro negativo. No sentido positivo, implicava a possibilidade de

    participao na direo dos assuntos da polis; no negativo, estaria diretamente relacionado

    situao de no ser dependente de outrem, no ser escravo, nem estrangeiro.

    A origem da liberdade do cidado estaria no perodo conhecido como Grcia Arcaica

    (800-500 a.C.), 40 momento da formao das cidades-estados. As reformas operadas por Slon

    teriam contribudo para a criao dessa idia de liberdade no momento em que este legislador

    probe a escravido por dvidas de atenienses em razo de dvidas. Na ocasio, havia o instituto

    da escravido por dvida e o endividamento de inmeros camponeses colocava a possibilidade

    de vrios atenienses experimentarem esse tipo de explorao interna. Essa modificao

    conduziu a uma importante separao entre o cidado e o escravo, esvaziando o sentido de

    uma explorao da prpria comunidade em favor da difuso da escravido-mercadoria.

    Entretanto que motivos teriam levado a nobreza grega a no reagir de forma eficiente para

    evitar o desconforto de ter que conceder s camadas inferiores da plis privilgios que

    monopolizavam? Pode-se pensar que tal aceitao encontra fundamento na prpria idia de

    polis, ou melhor, na fragilidade ou instabilidade da polis grega. Com o seu advento surge

    tambm um demos que, paulatinamente, adquire certa conscincia poltica e passa a

    reivindicar alguns direitos. Essa transformao decorre de avanos sociais que naturalmente

    ampliam o sentido de igualdade at ento restrita classe dos nobres, ou seja, queles a quem

    de direito pertencia a partilha do esplio de guerra.

    Segundo Trabulsi, nesse aspecto, o modelo grego se destacou do modelo oriental de

    acordo com o qual as crises internas eram sufocadas pelas elites. Na Grcia, as crises internas

    deviam ser evitadas, pois fragilizavam a cidade diante do estrangeiro. Nesse sentido, era

    necessrio garantir um mximo de coeso interna para fazer face ameaa exterior. Donde a

    busca da harmonia que uma boa constituio poderia criar. 41 Na obra de Herdoto

    40

    TRABULSI, Jos Antnio D. Ensaio sobre a mobilizao poltica na Grcia Antiga. BH: UFMG, 2001.A tradio abraou a seguinte diviso: Perodo Pr-Homrico (2500-1100 a.C.); Perodo Homrico (1100 800 a.C.); Perodo Arcaico (800- 500 a.C.); Perodo Clssico ( 500-400 a.C.); perodo Helenstico ( 336-146 a.C.) 41

    Idem, 2001: 54.

  • 29

    encontramos alguns exemplos para esta tese, como o da cidade de Samos que, fragilizada

    internamente, caiu em domnio persa. 42 Nesse sentido afirma o autor que: , portanto, pela

    necessidade de manter essa coeso interna da polis, para poder defender a comunidade contra

    os eventuais agressores, que as concesses so feitas. Em caso de tal agresso, os aristocratas

    se arriscavam a perder tudo de uma vez. 43 Em suma, foi a necessidade premente de garantir

    aquele modelo de vida social e poltica que provocou o alargamento da idia grega de liberdade

    e o conseqente sentido de cidadania em Atenas, isto , buscou-se na representao

    democrtica a constituio de laos integrativos face aos perigos externos de naes com base

    territorial e populacional numerosas.

    O perodo mais conhecido ou famoso da demokrata ateniense o da segunda metade

    do sculo V a.C. Todavia, as fontes disponveis que tratam do tema remontam ao sculo IV a.C,

    o que compromete seu estudo, visto que esse sistema aperfeioou-se ao longo do tempo. A

    democracia descrita por Aristteles na obra Constituio de Atenas (Athenaion Politea) no ,

    portanto, a democracia de Pricles. 44

    A democracia ateniense, participativa, difere da democracia moderna, representativa.

    As decises eram tomadas e executadas diretamente pelos cidados de Atenas. Duas

    instituies eram fundamentais para configurar a imediatez dos procedimentos polticos de

    Atenas: a ekklesia (Assemblia) e a boul (conselho dos 500) com seu subcomit de prutneis

    (presidentes). Segundo alguns historiadores, todos os problemas da cidade eram observados

    primeiramente pelos cinqenta prutneis, que viviam em constante vigilncia. Se constatada a

    relevncia do problema, os prutneis convocavam uma reunio plenria da boul dos 500 e, se

    necessrio, convocar-se-ia a ekklesia, rgo encarregado da tomada de decises da democracia

    direta ateniense. A palavra ekklesia significa, literalmente, um grupo que chamado; esse

    grupo se reunia em uma colina chamada Pnix a sudoeste da agor que era o centro cvico de

    Atenas.

    Os cidados de mais de vinte anos que estivessem inscritos nos registros do seu demo

    (comunidade) poderiam integrar a ekklesia. O assunto principal era a poltica externa. Esse

    rgo no s deliberava sobre as polticas a serem seguidas, como tambm legislava. Tal funo

    foi posteriormente delegada a um rgo menor de legisladores (nomothtai), por volta de 403

    a.C. De acordo com os relatos de Aristteles, na dcada de 320 a ekklesia realizava quatro

    42

    Herdoto, III, 143-144 apud TRABULSI, Jos Antnio D. Ensaio sobre a mobilizao poltica na Grcia Antiga. BH: UFMG, 2001: 55. 43

    TRABULSI, Jos Antnio D. Ensaio sobre a mobilizao poltica na Grcia Antiga. BH: UFMG, 2001: 55. 44

    Pricles: estadista e general, incentivador da democracia ateniense. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. So Paulo: Martins Fontes, 1997.

  • 30

    reunies fixas em cada um dos meses que constituam os dez meses civis. A primeira reunio

    era denominada de ekklesia soberana (Kria). Cada participante era inicialmente verificado, em

    seguida iniciavam as oferendas de purificao, pronunciavam maldies contra traidores e, a

    partir de ento, comeavam as sesses. Sabe-se que uma reunio ordinria durava menos do

    que um dia. Outro fator importante a ser destacado que na prtica nem todos os cidados

    participavam da ekklesia ou poderiam subir tribuna.

    Acreditam alguns historiadores que a populao de cidados de Atenas flutuava em

    torno de 20 ou 50 mil pessoas, mas que somente cinco mil efetivamente participavam da

    ekklesia. Isso porque, alm de o local no comportar um grande nmero de cidados, muitos

    no se sentiam atrados pelo debate, ou ainda viviam desmotivados pela longa distncia que

    teriam que percorrer dos demos at a Pnix. Portanto, no sc. IV introduziram uma espcie de

    pagamento para compensar o comparecimento que implicava perda de horas de trabalho. Por

    razes no difceis de compreender, entre 400 e 330 a.C. a Pnix sofreu reformas para acomodar

    um nmero cada vez crescente de cidados alcanando o quorum de 13 mil participantes.

    A ekklesia exigia qualidades especiais de seus oradores, que lanavam mo da

    persuaso para obter xito em relao aos seus interesses. Essa habilidade imperiosa para o

    cidado ateniense proporcionou um grande desenvolvimento da educao sofstica. Os

    cidados que falavam tribuna eram denominados de rhetores, ou seja, oradores ou ainda

    politeumenoi, os polticos. Esses rhetores falavam na ekklesia na qualidade de lderes de

    pequenos grupos polticos ou pessoas com idias parecidas (no confundir com o que

    chamamos hodiernamente de partidos polticos). Eram agrupamentos informais, em que

    aquele que expressava com maior clareza suas idias freqentemente tornava-se o porta-voz.

    Alguns desses oradores foram tambm denominados de demagogs que significa

    literalmente, o condutor do demos. 45 A conduo da justia em Atenas era responsabilidade

    dos thesmothtai, seis funcionrios. A democracia ateniense implicava tambm uma grande

    participao do cidado nos tribunais. Em Atenas, ou melhor, na antiga Grcia no havia a

    separao dos poderes. Foi Aristteles em sua obra Poltica que ressaltou que o cidado de

    uma democracia no s participava da boul e ekklesia, como tambm, participava nos

    tribunais.

    3.2. Os tribunais em Atenas: graph paranmom

    45

    JONES, P.(org) O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. SP: Martins Fontes, 1997: 210.

  • 31

    O surgimento de um tribunal popular como recurso contra as decises das autoridades

    se deu com Slon em 594 a.C, denominado de Eliaia. Aps 462-61, todos os tribunais do jri

    passaram a figurar como Eliaia, no s como fase recursal, mas como primeira instncia. Tais

    tribunais eram constitudos por jurados em um nmero que poderia variar entre 201 a 2.501

    membros e, nesse caso, tambm foram chamados de dikastria. Sabe-se que o jri era

    escolhido de acordo com a necessidade a partir de uma lista anual de seis mil jurados e, mais

    tarde no sc. IV a.C, eram escolhidos dentre os que se ofereciam para tal. Observa Peter V.

    Jones, na obra supramencionada, que o termo jurado inapropriado para designar os

    dikastai, pois no havia juzes no sentido moderno, mas jurados, que eram, ao mesmo

    tempo, juzes. Os dikastai eram pagos por cada dia de sesso; pagamento que fora introduzido

    por Pricles. 46 Pode-se presumir que o cidado que comparecia para ser jurado era o mesmo

    que tinha o hbito de comparecer s ekklesias.

    Muitas vezes a ekklesia funcionava como tribunal. Observa-se ainda a inexistncia de

    um rgo que funcionasse como Ministrio Pblico ou fora policial especfica. O procedimento

    especfico desses rgos ficava a cargo da iniciativa particular, embora houvesse a distino

    entre casos pblicos e casos particulares. Neste ltimo, somente a parte ofendida poderia

    mover a ao, que por sua vez era denominada de dke. Nos casos pblicos, a iniciativa ficava a

    cargo de quem quisesse emitir uma intimao por escrito (graph).

    O homicdio, por exemplo, era considerado como dke por prejudicar o papel da famlia.

    Se um orador na ekklesia apresentasse uma proposta inconstitucional, configuraria um caso

    pblico para quem quisesse salvaguardar a democracia. Rumores de subverso e problemas de

    desafeto poltico tambm possibilitariam uma graph. Uma vez emitida a intimao, graph

    paranmom, 47 ao orador com proposta de lei inconstitucional, esta ficaria suspensa at o

    julgamento e, sendo considerado culpado, pagaria uma multa e seu projeto seria

    imediatamente cancelado. Em Atenas, o povo como jurado julgava o prprio povo na ekklesia o

    que assinala, em certo sentido, o princpio da responsabilidade democrtica alcanando a

    todos.

    Na obra Apologia de Scrates, que narra a verso platnica sobre o julgamento de

    Scrates, condenado morte em 399 a.C., percebemos as peculiaridades do tribunal ateniense.

    No havia advogados; os querelantes falavam em causa prpria, sem regras para apresentao

    46

    Cf. As vespas (422) de Aristfanes que constitui uma stira sobre os tribunais. 47

    O primeiro uso da graph paranmom foi verificado em 415, momento em que houve rumores de subverso. Tambm foi utilizada na competio pelo sucesso poltico. A graph paranmom substituiu o ostracismo que foi abandonado por volta de 416.

  • 32

    de provas e sem juiz. As testemunhas, embora fundamentais, no eram ouvidas pelas duas

    partes e os jurados reagiam conforme suas emoes e preconceitos morais. Os jurados

    votavam imediatamente aps o discurso dos querelantes, sem fazer uso de recintos reservados

    ou de conselhos de juiz. O testemunho de escravos somente poderia ser aceito se obtido sob

    tortura, porque eram considerados objetos sem alma, coisas. Na verdade, o escravo era tido

    como um bem familiar valioso para o senhor que preferia no submet-lo a qualquer tortura, o

    que contribuiu como argumento vlido para a limitao de testemunhos considerados pouco

    confiveis.

    Sabe-se que no sculo IV a.C. havia o recurso da arbitragem. Ambas as partes

    concordavam com a participao de rbitros particulares e se comprometiam a aceitar as

    decises. Segundo os historiadores, as partes poderiam invocar a arbitragem a qualquer tempo

    em um processo civil. Se tal mtodo no fosse eficaz, procedia-se a uma intimao. A parte

    ofendida se dirigia agora e verificava se as leis que l estavam expostas apoiavam seus

    interesses e qual o procedimento adequado sua causa. Inicialmente, a intimao era feita

    verbalmente, o ru comunicado perante testemunhas deveria apresentar-se ao rkhon,

    conselho judicirio em dia estabelecido. Na data prevista, tal conselho decidia sobre a

    possibilidade ou no do processo. Se vivel, a queixa era registrada por escrito e ambas as

    partes depositavam um sinal referente as custas que o perdedor pagava por inteiro aps o

    julgamento. O conselho judicirio fixava um dia para a audincia e determinava que uma cpia

    da queixa fosse exposta publicamente na agor.

    No caso de uma dike, a aplicao da sentena era funo do ofendido. A recusa em fazer

    um acerto ou acordo poderia ensejar mais processos e at mesmo a perda dos direitos civis

    (atmia). Se o condenado se recusasse a pagar a quantia estipulada, o querelante vencedor

    poderia apossar-se de suas propriedades no valor referente quantia imposta. Os julgamentos

    em uma graph e as sentenas de morte proferidas eram atribuies de funcionrios da cidade.

    Atenas tinha um grande nmero de funcionrios com mandatos anuais, embora a cidade no

    possusse uma burocracia, no sentido moderno do termo. Segundo Aristteles, na segunda

    metade do sc. V a.C., Atenas contava com setecentos funcionrios, o que ressalta o sentido

    democrtico na oportunidade de ocupar cargos pblicos por turnos.

    A situao de atima equivalia a estar fora da lei e, nesse sentido, o homem na condio

    de timos poderia ser morto ou roubado sem ter direito reparao legal. A atima no

    acarretava a perda das propriedades ou o exlio; antes, porm, equiparava-se morte no

    sentido poltico, a privao absoluta dos direitos civis: falar na ekklesia, participar nos tribunais,

  • 33

    integrar a boul, entrar nos templos e na agor. Em geral, a perda dos direitos civis era de

    carter perptuo, sobretudo nos casos considerados, particularmente graves e era at mesmo

    dirigida aos descendentes. Peter Jones nos relata um caso curioso, o de Andcides, em 415 a.C.,

    que sofreu a perda parcial dos direitos civis por se envolver na profanao dos Mistrios de

    Elusis. Segundo seus relatos, tal sentena foi revogada por ocasio de uma anistia geral

    extraordinria concedida em 403. 48 Enfim, Atenas foi a polis grega que mais contribuiu

    intelectualmente para o desenvolvimento das cincias e artes. A sua importncia envolve a

    matemtica, a retrica, a histria, a tica, a poltica, a lingstica, a lgica e as artes (poesia,

    escultura e arquitetura). Seus pensadores desenvolveram teorias que permaneceram vlidas

    durante milhares de anos e algumas perduram at hoje.

    3.4. O advento da Sofstica: do cosmo para o homem.

    O sculo V vivenciou um esplndido apogeu cultural na cidade de Atenas, considerada a

    capital intelectual do mundo helnico. Essa cidade-estado experimentou um verdadeiro

    entrecruzamento de pensamentos filosficos que contribuiu para a passagem do perodo

    cosmolgico para a fase antropolgica. Foi nesse contexto que surgiram os sofistas. O

    movimento sofstico em Atenas mobilizou um grande nmero de professores e causou um

    efeito perturbador na antiga educao do jovem grego, construindo um novo tipo de instruo

    no interior do sistema at ento existente. Pode-se observar a educao grega antes do

    aparecimento da sofstica a partir das obras de Aristfanes e dos dilogos Repblica e

    Protgoras de Plato. A educao ateniense se dividia em duas partes fundamentais: a

    gymnastik (educao fsica) e a mousik (intelectual).49 Na verdade, no havia um sistema

    elaborado, mas a escolaridade no ultrapassava o estgio elementar. Consistia simplesmente

    nos rudimentos da gymnastik e da mousik e dependia da iniciativa individual, dependia da

    capacidade financeira da famlia. 50

    Nesse sentido, no havia nmero obrigatrio de anos de estudo e para cada ramo de

    saber havia professores especficos. Para a mousik tinham o kitharists e para a gymnastik, os

    paidotribs que vem do grego paidia, jogos para crianas dos 7 aos 14 anos. Todos recebiam

    honorrios e eram contratados diretamente pelas famlias. Quando alcanavam a adolescncia

    eram dispensados do acompanhamento formal, pois se acreditava que a prpria vivncia na

    48

    JONES, P (org). O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. SP: Martins Fontes, 1997: 231-2. 49

    PLATO. Repblica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian: 1993: 376 e. 50

    PLATO. Protgoras. Belm: Edufra, 2002: 326 c.

  • 34

    plis iria complementar a educao. Segundo Aristfanes, na obra As Nuvens, o objetivo da

    educao grega era atingir a excelncia moral, a transformao em boas pessoas, ou seja, bons

    cidados, ou cidados teis. Na fase da adolescncia o jovem experimentava o tempo de cio,

    do grego schol como complemento sua primeira formao. Dos 18 aos 20 anos os jovens do

    sexo masculino, epheboi, experimentavam o servio militar obrigatrio.

    O movimento sofstico ganhou expresso nesse vcuo da formao do jovem grego.

    Construa um novo tipo de instruo no interior de um sistema que no se estendia alm do

    nvel elementar. Os sofistas criaram um nvel secundrio valorizando temas de natureza

    intelectual em detrimento da gymnastik. No precisamos mencionar que os contedos

    variavam de acordo com a viso educacional de cada sofista ou da famlia. 51 Assim, ensinavam

    como tutores privados, competindo entre si, formando grupos com certa identidade,

    profissionalizando as idias de schol e diatribe. Protgoras foi considerado o primeiro a

    ensinar mediante pagamento. Nas palavras de Iscrates, quando fala de seu mestre Grgias,

    percebe-se essa nova realidade:

    Ele ensinava na rea da Tesslia onde os gregos mais prsperos viviam e onde dedicavam a maior parte da sua vida ao trabalho. No estabeleceu residncia fixa em nenhuma cidade e, portanto, no gastou dinheiro nos interesses da comunidade nem foi obrigado a pagar impostos. 52

    Buscando outra leitura da sofstica, podemos pensar que Scrates, Plato e Aristteles,

    como para muitos dos seus coetneos, seriam mais um dentre uma grande variedade de

    sofistas. A possvel distino estaria num certo ponto de vista platnico. Plato se considerava

    mais philosophoi do que sophistai, mas temos que desconfiar que nos sc. V e IV a.C. no havia

    tal distino. Ademais, Plato nos chamou a ateno para a diferena de mtodo entre Scrates

    e os sofistas. Scrates no havia desenvolvido um currculo secundrio moda sofista. Tanto

    Plato como Xenofonte nos relatam o pensamento socrtico mais prximo da educao antiga

    grega. Segundo relatos de Xenofonte, Scrates saa ao amanhecer e freqentava o que eles

    chamavam de peripatoi, gymnasium, gora. Assim, ganhou muitos discpulos e teria fundado

    uma escola, mas no aceitava pagamento. Sua paidia tratava de uma educao para a vida em

    cidade.53 Outro relato interessante que nos permite visualizar a diferena entre Scrates e os

    sofistas est nas palavras de um discpulo de Aristteles quando menciona:

    51

    Iscrates, Antidosis, 304, apud PATRICK, John.. Aristotle' s School. A study of a Greek Educational Institution (1972) Londres: University of California Press, p. 32-67. 52

    Ibidem. 53

    XENOFONTE. Os pensadores. Ditos e feitos memorveis de Scrates. SP: Abril, 1973, p, 33-b.

  • 35

    Scrates era, de qualquer maneira, um filsofo embora no tenha assentado ou no se tenha estabelecido a si mesmo num trono ou mesmo fixado uma hora para conversar (diatribe), ou para caminhar (peripatos) com seus conhecidos (gnonimoi). Ao invs, estava com eles sempre que podia e servia no exrcito ou ia para o gora com alguns deles. 54

    A sofstica se tornara uma exigncia da prpria democracia ateniense: formar cidados

    capazes de viabilizao de idias polticas nas assemblias. Esses senhores cultivaram a

    retrica, qualidade pedaggica de convencer pela argumentao o que se concebia como

    verdade. Tratava-se de uma tendncia para institucionalizar a educao grega. Interessante

    observar que na viso de Aristfanes, Scrates e os sofistas promoveram uma transformao

    na educao do jovem grego: desenvolveram uma educao secundria com forte contedo

    intelectual. Muitos estudiosos denominaram essa fase como o Iluminismo grego, pois a

    tendncia retrica baseava-se num racionalismo de esprito crtico sobre a tradio helnica.

    Ressaltaram a contraposio entre o natural e o convencional, ou seja, o costume, o arbtrio

    dos homens que estabelece o que justo ou injusto, certo ou errado.

    Os sofistas, com suas teses acerca da relativizao da verdade, causaram receio e

    escndalo que se refletiram nas comdias de Aristfanes e nos dilogos de Plato. Na verdade,

    as informaes que temos dos sofistas foram obtidas atravs dos dilogos de Plato, seu

    opositor declarado. O nico estudo da sofstica repousa na existncia de alguns fragmentos ou

    fontes indiretas, alm de no constituir uma unidade sistemtica. Nos dilogos de Plato os

    sofistas figuram como os interlocutores de Scrates. Nesse sentido, resta-nos a mxima

    prudncia possvel ao tentar compreend-los.

    Mas o que fizeram tais homens? Os sofistas freqentemente criticavam o fundamento

    que conferia validade s leis e costumes da tradio. Atacavam o aspecto sagrado da tradio

    helnica. Eles observavam a diversidade cultural de sua poca e percebiam a mudana na

    esfera das instituies. A lei e os costumes assumiam um carter essencialmente humano,

    convencional, vinculado vontade dos homens. Assim como nos pensadores jnicos, o ponto

    de partida dos sofistas foi o movimento e a procura de uma realidade nica capaz de

    permanecer idntica a si mesma. Sendo assim, surgiu com os sofistas a dicotomia natureza

    (physis) e lei (nomos) ou conveno. A moralidade passa a estar desligada da ordem natural e o

    interesse pela convenincia assume o status de pilares da vida social. preciso mencionar que

    o termo sofista significa sbio ou especialista do saber, por isso a palavra em sua origem

    apresentou um sentido positivo, mas ganhou conotao negativa a partir do pensamento

    54

    Plutarco. An seni res publica gerenda sit, XXVI, 796d.

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    platnico, vinculando-a ao saber aparente e no efetivo. Esses especialistas do saber

    promoveram uma verdadeira revoluo espiritual, deslocando a reflexo filosfica da physis

    para o homem e a plis. Ganhavam relevo problemas ticos, polticos, lingsticos, religiosos e a

    prpria educao como objeto do pensamento. Os sofistas constituram, na verdade, o

    primeiro e efetivo movimento intelectual de cunho poltico.

    Alguns autores costumam dizer que podemos experimentar o advento de uma fase

    humanista da filosofia grega, um movimento com dois momentos bem distintos. O primeiro foi

    com a filosofia da physis e a emergncia da vida urbana acompanhada de uma crise de valores

    da aristocracia grega, com afluxo de estrangeiros na plis e a ampliao do comrcio. Assim, as

    cidades gregas passavam por uma mudana de olhar provocada pela difuso dos

    conhecimentos e experincias dos viajantes e a virtude passava ento a ser adquirida, no mais

    ligada ao nascimento nobre. O segundo com o advento da sofstica. O problema educacional

    assumiu lugar de destaque quando enfatizou que a nova aret se desvinculara da nobreza e se

    fundara no saber. Nas lies de Giovanni Reale e Dario Antiseri, tivemos trs grupos de

    sofistas: os que formaram a primeira gerao, os mais famosos; os que podem ser

    denominados de crticos, porque estav