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a MARTHA MEDEIROS A GRAÇA DA COISA

A graca da coisa martha medeiros

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a

Martha Medeiros

A grAçA dA coisA

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Sumário

Barulhos urbanos .............................................................. 9

Dupla falta ....................................................................... 12

Amputações ...................................................................... 14

A arte da manutenção ...................................................... 17

Interativos demais ........................................................... 20

Ser feliz ou ser livre .......................................................... 23

Tempos de amnésia obrigatória ...................................... 26

Eu não passarinho ........................................................... 29

Medo de errar ................................................................... 32

Carla Bruni e o rock’n’roll ............................................... 35

Quando menos se espera ................................................. 38

Nadir, Eurípedes e Yuri ................................................... 41

Sustento feminino ............................................................ 44

O dono do livro ................................................................ 47

Alguém quem?.................................................................. 50

De vestido de oncinha e plumas ..................................... 53

Autoajuda ......................................................................... 56

O que acontece no meio .................................................. 58

Vidas secas ........................................................................ 61

Sem querer interromper, mas já interrompendo ........... 64

Natal para ateus ................................................................ 67

O Brasil irregular .............................................................. 70

Empregadas ou secretárias? ............................................ 73

Fidelidade feminina ........................................................ 76

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Burrocracia ....................................................................... 79

Órfãos adultos .................................................................. 82

O macacão branco ........................................................... 85

A mulher e o gPS ............................................................. 88

Afogando-se num pires ................................................... 91

A capacidade de se encantar ............................................ 94

Briga de rua ...................................................................... 97

Os benefícios de não ser o melhor ............................... 100

As mães e os filhos do mundo ...................................... 103

Carisma e inocência ....................................................... 106

Construção ..................................................................... 109

Nada é suficiente ............................................................ 112

Coragem ......................................................................... 114

Último pedido ................................................................ 117

Para Woody Allen, com amor ....................................... 120

O encurtamento das durações ....................................... 123

Falando sozinho ............................................................ 126

Os solitários .................................................................... 129

De onde surgem os amores ........................................... 132

O poder terapêutico da estrada ..................................... 135

Não parecia eu ................................................................ 138

Corpo interditado .......................................................... 141

Vida: parte 2 ................................................................... 144

Pequenas felicidades ...................................................... 147

Narrar-se ........................................................................ 152

Quando termina a novela .............................................. 155

A melhor versão de nós mesmos ................................... 158

O dinheiro que grita ...................................................... 161

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As incríveis Hulk ............................................................ 164

Os solares ........................................................................ 167

Pulsantes ......................................................................... 170

O fim e o começo ........................................................... 173

Minha turma .................................................................. 176

Prosopagnosia ................................................................ 179

Frustração ....................................................................... 182

Suicídio e recato ............................................................. 185

Matéria-prima de biografias ......................................... 188

Empatia ........................................................................... 191

Afinados ......................................................................... 194

Amores maduros ............................................................ 197

O que é ser mulher? ....................................................... 200

Deus em promoção ........................................................ 203

A bota amarela ............................................................... 206

Visíveis para si mesmo .................................................. 209

Apegos ............................................................................ 212

Dialogando com a dor ................................................... 215

Admitir o fracasso .......................................................... 218

Reconciliando-se com o próprio corpo ....................... 221

Quando eu estiver louco, se afaste ................................ 224

Simples, fácil e comum .................................................. 227

Verdade interior ............................................................. 230

O sabor da vida .............................................................. 233

O crime que eu cometeria ............................................. 236

A mesa da cozinha ......................................................... 239

O amor mais que romântico ......................................... 242

O Michelangelo de cada um .......................................... 245

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BarulhoS urBanoS

Creio que eram seis horas da manhã. Reparei pelas frestas

da cortina que o dia estava amanhecendo. O barulho era

de tontear, algo de muito grave deveria ter acontecido para

um helicóptero ficar parado bem em cima do meu edifício.

Pior: ele parecia estar alinhado à minha janela. Aos poucos

fui voltando do sono e disse a mim mesma: deve ter aconte-

cido um assalto a banco, estão à procura de fugitivos.

Mas o helicóptero, insistente, não voava para lon-

ge, parecia resoluto em não se deslocar. Desisti de voltar a

dormir, não conseguiria. Levantei, fui até a sala, abri a por-

ta de correr que dá para a sacada e olhei para o céu. Nada.

Então, olhei para baixo e ali estava o helicóptero, estacio-

nado num terreno descampado, ali diante dos meus olhos

o helicóptero que não era helicóptero, e sim um equipa-

mento de construção civil ligado na velocidade máxima,

um trambolho que fazia um barulho idêntico ao de um

helicóptero, e que continuaria a me servir de despertador

nas manhãs seguintes.

Se você é morador de uma grande cidade, também

deve ter um helicóptero matinal entrando pelos ouvidos,

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ou uma bateria de escola de samba, ou uma turbina de

avião, ou qualquer coisa excessivamente barulhenta que

seja oriunda do que se chama obra. Metrópoles estão em

constante construção. Aqui onde moro há essa obra bem

em frente ao meu prédio, e outra bem ao lado, e duas logo

atrás. Silêncio? Estamos em falta.

Não há como reclamar para o bispo. Obras são efei-

tos colaterais do progresso. E o barulho faz parte do pacote,

não se ergue um edifício aos sussurros.

Então, como tenho escritório em casa, trabalho o dia

inteiro com essa trilha sonora pouco romântica. Desde a

manhã até o final da tarde, escrevo, escrevo, escrevo, e não

ouço o toque dos meus dedos sobre o teclado, ele é aba-

fado pelos motores de equipamentos pesados, caminhões

despejando cimento, batidas de estacas, uma orquestra em

permanente ensaio, e só resta adaptar-me, um dia o edifí-

cio onde moro também foi um esqueleto que não foi posto

em pé quietinho.

Sou uma escritora de apartamento, digo com o mes-

mo tom pejorativo que classificamos crianças de aparta-

mento. Deveríamos estar cercados por jardins, margens de

rio, praias abertas, mas vivemos confinados entre quatro

paredes que de certa forma aleijam a inspiração. Escrever,

lógico, me oferece várias oportunidades de fuga. Estou

onde estou, fisicamente, mas também não estou: inven-

to meu próprio lago, pátio, horizonte. Até que volto a ser

atingida pela consciência do inevitável: não é o barulho do

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mar que escuto, nem o das folhas caindo nesse final de ou-

tono, e sim o de betoneiras, perfuratrizes, compactadores,

rolos compressores. De poético, me restou apenas a chuva.

Quando chove, a obra para. Quando chove, o helicóptero

some. Quando chove, o silêncio me pisca o olho: “Apro-

veita a trégua e me escuta”.

11 de maio de 2011

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Dupla falta

o belo texto do mineiro Rubem Alves sobre as diferen-

ças entre o tênis e o frescobol (usadas como metáforas para

o casamento) é tão conhecido que não seria absurdo supor

que foi nele que a americana Lionel Shriver se inspirou

para escrever seu recente lançamento, Dupla falta. Se não

foi, é um caso de feliz coincidência, ainda que de feliz sua

obra não tenha nada.

A história do livro é razoavelmente simples: o en-

contro amoroso de uma tenista obstinada em subir posi-

ções no ranking com um tenista de talento mediano que vê

o tênis apenas como um hobby. Ambos se apaixonam, ca-

sam e a partir daí o leitor se torna espectador de um texto

que funciona como um jogo de final de campeonato, com

cenas de alta tensão e competitividade extrema. E, como

todos sabem, tensão e competitividade combinam com

amor tanto quanto cacos de vidro combinam com bebês.

Vibrar com o acerto do outro e pedir desculpas

quando se erra: eis uma “relação frescobol”, em que o que

interessa é manter a bola em jogo, com ambos se sentindo

vencedores pelo simples fato de manterem o entendimen-

to e a sincronia até o término da partida.

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Não é o que se vê no livro.

Willy foi uma menina que aos cinco anos decidiu

que seria a melhor tenista do planeta, e não fez outra coi-

sa na vida a não ser lutar pelo seu lugar no pódio. Eric,

por sua vez, cresceu fazendo de tudo um pouco, e quando

resolveu se aventurar no tênis, acabou naturalmente con-

quistando posições que a esposa sempre almejou. Logo ele,

que nunca quis nada com as raquetes. Quem esse diletante

pensa que é para realizar um sonho que nunca foi dele, e

sim dela?

O livro escancara traumas de infância, obsessões de-

lirantes e a deterioração que o fracasso pode provocar em

alguém que se leva a sério demais. Willy não tem um mari-

do, e sim um adversário. E um adversário muito superior,

não por ser melhor tenista que ela – não é – mas por domi-

nar as regras do jogo da vida, que Willy nunca aprendeu.

A autora Lionel Shriver, que já tinha deixado o mun-

do literário de queixo caído com seu implacável Precisamos

falar sobre o Kevin, mais uma vez desnuda a perversidade

escondida onde menos se espera: dentro das relações mais

íntimas e nobres. Os diálogos do livro são voleios ferozes,

brutais. De certa forma, traduzem a sociedade atual, que

exalta o sucesso como a única alternativa de existência,

deixando todas as demais no limbo. Na impossibilidade

de lutarmos contra nossas fraquezas, resta-nos a baixeza

maior: se alegrar com a derrota alheia.

24 de julho de 2011