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ESCOLA DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA MESTRADO EM TEOLOGIA
WALTER AMARAL DE SANTANA
A GRAÇA COMO PONTO DE PARTIDA DA UNIDADE ENTRE OS CRISTÃOS
Porto Alegre
2018
WALTER AMARAL DE SANTANA
A GRAÇA COMO PONTO DE PARTIDA DA UNIDADE ENTRE OS CRISTÃOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia, Área de Concentração em Teologia Sistemática.
Orientador: Prof. Dr. Pe. Cassio Murilo Dias da Silva
Porto Alegre
2018
WALTER AMARAL DE SANTANA
A GRAÇA COMO PONTO DE PARTIDA DA UNIDADE ENTRE OS CRISTÃOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia, Área de Concentração em Teologia Sistemática.
Aprovada em 24 de Abril de 2018, pela Banca Examinadora.
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________ Prof. Dr. Cássio Murilo Dias da Silva
(Orientador)
________________________________________ Prof. Dr. Geraldo Luiz B. Hackmann - PUCRS
________________________________________ Prof. Dr. Flávio Martinez Oliveira - UCPEL
Porto Alegre
2018
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, autor da minha vida e fé.
Aos meus pais, Alexandrino Amaral de Santana e Zorilda Freire Santana (in
memoriam), pois, apesar do pouco estudo que tiveram, souberam me conduzir na vida,
ensinando valores morais e éticos, criando oportunidades para que eu pudesse estudar e ser
alguém na vida.
A minha amada esposa, Katia Souza de Santana, verdadeira ajudadora e incentivadora
do meu ministério, que compreendeu minha ausência cuidando dos nossos filhos Walkiria,
Yuri e Ana Carolina.
Aos professores da PUCRS, em especial ao prof. Dr. Pe. Cássio Murilo da Silva,
orientador atencioso, sensível e paciente, sempre disponível a me direcionar no caminho do
meu objetivo.
Ao coordenador e professor do PPG Teologia, Dom Leomar Brustolin, homem de
grande sabedoria, que considerou minha aceitação no programa. Que o Senhor Deus possa
recompensá-lo.
Ao amigo e Pastor Luiz Guatura da Silva Neto e sua família, Pastor presidente da
Igreja Assembleia de Deus em Terra Brasil - RJ, grande incentivador do meu ministério, que
abriu as portas da sua casa e hospedou-me para que essa pesquisa fosse concluída.
Ao amigo e Pastor Germano Soares que incontáveis vezes me incentivou
espiritualmente e financeiramente para que essa pesquisa fosse concluída. Que Deus possa
abençoa-lo.
Ao amigo e Pastor Sérgio Luiz Alves da Assembleia de Deus Ministério Vida Plena,
grande incentivador desse trabalho.
Ao Pastor Marcos Sant’anna da Silva, Pastor da Assembleia de Deus de Cavalcante,
da qual sou secretário, que abriu mão da minha presença nos trabalhos da Igreja para que essa
pesquisa fosse concluída. Que Deus possa abençoa-lo cada vez mais.
A Todos que oraram por mim, para que essa etapa tão importante da minha vida fosse
vencida. A todos minha eterna gratidão.
RESUMO
Esta pesquisa procura discorrer sobre o tema “A Graça como ponto de partida da unidade
entre os cristãos”, tendo em vista o momento conflituoso em que vive o mundo, as pessoas e
as religiões. No primeiro capítulo procuramos demonstrar um caminho que pode transformar
a vida do ser humano e consequentemente o mundo através do poder da graça salvadora, dada
por Deus a todos independentemente de sua cultura língua ou religião, já que todos somos
feitos à imagem do Criador. No segundo capítulo procuramos demonstrar a vida do Apóstolo
Paulo, sua trajetória inicial e a mudança ocorrida em sua vida após seu encontro com o Cristo
na estrada para Damasco e como a graça teve uma participação especial nesse acontecimento.
No terceiro capítulo, caminharemos para um novo período da graça e como foi sua atuação no
período Patrístico através da vida de Santo Agostinho e como a graça passa a ser conceituada
por esse santo homem de Deus. Faremos uma trajetória da graça pelo período Escolástico,
focando em especial a vida e atuação de Santo Tomás de Aquino e como a graça marcou esse
período. No quarto capítulo trataremos da graça na Reforma e como ela atuou na vida de
Martinho Lutero e as transformações ocorridas nesse período através de pensadores como
Calvino e Armínio, tanto pra as Igrejas protestantes bem como para a Igreja Católica
Apostólica Romana, faremos ainda uma reflexão sobre a graça na modernidade no sentido de
união entre os cristãos.
Palavras-chave: Graça. União. Igreja Protestante. Igreja Católica. Ecumenismo.
ABSTRACT
This research seeks to discuss the theme "Grace as the starting point of unity among
Christians", in view of the conflicting moment in which the world, people and religions live.
In the first chapter we seek to demonstrate a path that can transform the life of the human
being and consequently the world through the power of saving grace, given by God to all
regardless of their language or religion culture, since we are all made in the image of the
Creator. In the second chapter we try to demonstrate the life of the Apostle Paulo, his initial
trajectory and the change that occurred in his life after his encounter with the Christ on the
road to Damascus and how grace had a special participation in that event. In the third chapter,
we will walk to a new period of grace and how it was during the Patristic period through the
life of St. Agostinho and how grace comes to be conceptualized by this holy man of God. We
will make a trajectory of grace through the Scholastic period, focusing in particular on the life
and performance of St. Tomás de Aquino and how grace marked this period. In the fourth
chapter we will deal with grace in the Reformation and how it acted in the life of Martinho
Lutero and the transformations that occurred in that period through thinkers such as Calvino
and Armínio, both for the Protestant Churches as well as for the Roman Catholic Church, we
will also reflect on grace in modernity in the sense of unity among christians.
Keywords: Grace. Union. Protestant Church. Catholic Church. Ecumenism.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 08
2 CONHECENDO PAULO ............................................................................................... 10
2.1 VIDA E MISSÃO DE PAULO: UM ESBOÇO PRELIMINAR ..................................... 10
2.1.1 Seguindo Paulo Através do Evangelho ..................................................................... 11
2.1.2 Paulo de Perseguidor a Cristão ................................................................................. 12
2.1.3 A Graça na Vida de Paulo - Tempo de Transformação ........................................... 14
2.1.4 A Graça nas Epístolas Deuteropaulinas ................................................................... 19
3 UM NOVO PERÍODO DA GRAÇA .............................................................................. 21
3.1 CARACTERÍSTICAS DA PATRÍSTICA: UM ESBOÇO PRELIMINAR ..................... 21
3.1.1 Trajetória Histórica de Agostinho ............................................................................ 24
3.1.2 Agostinho Antes de sua Conversão ........................................................................... 25
3.1.3 Agostinho Depois de sua Conversão ......................................................................... 28
3.1.4 Heresias Combatidas por Agostinho ........................................................................ 29
3.2 O CONCEITO DA GRAÇA SEGUNDO AGOSTINHO ................................................ 32
3.2.1 Graça Comum ........................................................................................................... 33
3.2.2 Graça Especial ........................................................................................................... 34
3.2.3 Graça Preveniente ..................................................................................................... 35
3.2.4 Graça Cooperante ..................................................................................................... 38
3.2.5 Graça Perseverante ................................................................................................... 39
3.3 CARACTERÍSTICAS DA ESCOLÁSTICA: UM ESBOÇO PRELIMINAR ................. 43
3.3.1 Trajetória Histórica de Tomás de Aquino ................................................................ 45
3.3.2 Heresia Combatida por Tomás de Aquino ............................................................... 46
3.3.3 O Conceito da Graça Segundo Tomás de Aquino .................................................... 48
4 A GRAÇA E A REFORMA ........................................................................................... 53
4.1 MARTINHO LUTERO E A GRAÇA ............................................................................ 53
4.2 AS DOUTRINAS DA GRAÇA EM ARMÍNIO E CALVINO ....................................... 57
4.3 O CONCÍLIO DE TRENTO E OS REFORMADORES ................................................. 64
4.4 EVOLUÇÃO DA GRAÇA ATÉ OS DIAS DE HOJE .................................................... 66
4.4.1 Pelo lado Católico ...................................................................................................... 66
4.4.2 Pelo lado Evangélico .................................................................................................. 69
4.5 UMA REFLEXÃO SOBRE A GRAÇA NA ATUALIDADE......................................... 71
4.6 A COMPREENSÃO ECUMÊNICA DA GRAÇA ......................................................... 76
4.6.1 Ponto de Vista Protestante ........................................................................................ 76
4.6.2 Ponto de Vista Católico ............................................................................................. 78
5 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 81
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 86
8
1 INTRODUÇÃO
O conceito da graça de Deus é extremamente abrangente e atinge todas as áreas da
nossa vida, sem deixar para o homem nenhuma questão meritória para recebê-la. Daí o
conceito universal da graça de Deus ser: “Favor imerecido de Deus concedido àqueles que
mereciam a justa condenação”. Esse conceito é sustentado pelo apóstolo Paulo quando ele
afirma: “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente,
por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus”.1 Esse pensamento é confirmado
por Santo Agostinho, quando ele declara: “Não sejas ingrato para com a graça tão imensa
daquele que tendo um único filho não quis que ele fosse o único”.2
Quando se expõe sobre a graça é preciso se ter a consciência que falamos dela porque
ela já existe e não para que ela exista e se manifeste em nossas vidas. Não há como visualizar
a graça de Deus, pois ela perpassa todas as barreiras daquilo que é chamado de realidade. Foi
assim no Antigo Testamento quando Deus manifestou a sua graça em escolher o menor de
todos os povos e o libertar de uma escravidão de quatrocentos anos para conduzi-los a uma
terra prometida. Também é assim no Novo Testamento, quando Deus continua manifestando
sua graça, agora, com objetivo de levar o seu povo para o céu tendo como veículo para isso a
fé em Jesus Cristo.
Após o período inicial da Igreja Primitiva Apostólica Cristã, a Igreja passou a
caminhar por conta própria, escrevendo a sua própria história sem a supervisão direta de
nenhum apóstolo, pois todos, já haviam morrido. Passado esse momento inicial de milagres,
sinais e maravilhas, os cristãos se deparam novamente com as perseguições promovidas pelos
Imperadores Romanos, que lhes traria a memória à época sombria e sofrida da perseguição do
apóstolo Paulo.
Entretanto, a Igreja não podia parar de caminhar, pois fazia e faz parte do propósito de
Deus. Em meio a esse segundo momento de perseguição por Nero, Tito, Décio, Valeriano e
outros imperadores, Deus levanta pensadores como Inácio de Antioquia, Policarpo e outros,
para dar testemunho daquilo que Jesus fizera através dos apóstolos, mesmo sob o risco de ser
encarcerado e perder a vida, Eusébio se preocupou em escrever, dizendo, que as prisões
ficaram tão cheias de líderes cristãos e crentes comuns que não havia lugar suficiente para os
criminosos comuns. Esse segundo período de perseguição e morte de santos homens, fez com
que a Igreja se fragilizasse em sua doutrina, permitindo assim a entrada de heresias
1 A BÍBLIA de Jerusalém. Rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2008. 2 FERREIRA, Franklin. Agostinho de A a Z. São Paulo: Vida, 2006. p. 105.
9
doutrinárias e filosóficas na doutrina cristã, no entanto, mais uma vez, Deus providenciou
aqueles com os quais ele tem um propósito (Rm 8,28).
Dentro desse contexto, a pesquisa que se pretende realizar possui um caráter analítico-
interpretativa para se compreender a importância da doutrina da graça como salvação e união
entre todos os povos. A pesquisa possibilitará compreender a importância desta doutrina e
como ela influenciou pensadores como o apóstolo Paulo, Pelágio, Agostinho, Tomás de
Aquino, Martinho Lutero, Calvino, Jacó Armínio entre outros.
Nas cartas paulinas é possível perceber que o apóstolo estava consciente de que
escreveria a um público diversificado, vindo de todas as camadas sociais e que teria grande
influência nas comunidades das Igrejas recém-formadas, especialmente na Gálacia e Roma. A
carta aos Romanos foi escrita com o propósito de edificar a Igreja, portanto, é uma carta
escrita para todos nós. Lendo Romanos podemos ter a certeza de que a nossa salvação não é
resultado da observância da Lei, da obra humana, mas fruto da graça salvadora de Deus. Ela é
resultado da bondade e da misericórdia do Pai. Somente pela graça e pela fé nos tornamos
justificados por Jesus Cristo diante de Deus. Sem a graça divina todos os nossos esforços são
inúteis para a nossa salvação, união entre todos e comunhão com Deus.
Analisaremos qual o impacto da influência dessas cartas nos dias atuais na essência da
fé cristã e na compreensão do processo de salvação para a Igreja Católica Apostólica Romana
e Protestante. Dessa forma, a presente pesquisa propõe transcorrer sobre a influência da
doutrina da graça e como essa doutrina pode ser usada para a união entre os povos,
independentemente de religião, já que a salvação é para todos. No capítulo dois, mostraremos
a trajetória histórica de Paulo, antes e depois da sua conversão e como a graça influenciou sua
vida e sua teologia, como suas cartas influenciaram as comunidades da sua época e uma
geração de pensadores que se seguiram. No capítulo três trabalhamos a graça no período da
patrística dando ênfase as controvérsias entre Agostinho e Pelágio e no período da escolástica
com Tomás de Aquino. No capítulo quatro trabalhamos a influência da graça na Reforma com
Lutero, João Calvino e Jacó Armínio, nesse capítulo também vamos discorrer acerca da
influência desses pensadores na modernidade e na Igreja Católica Apostólica Romana na sua
declaração conjunta da doutrina da justificação por graça e fé com a Igreja Evangélica
Luterana. Por fim, apresentamos as considerações finais, ressaltando a compreensão dessa
doutrina no seio do pensamento católico apostólico romano e no evangélico cristão para
prosseguirmos caminhando juntos para a união e construção da paz em Cristo.
10
2 CONHECENDO PAULO
2.1 VIDA E MISSÃO DE PAULO: UM ESBOÇO PRELIMINAR
Muitos livros têm sido escritos sobre a vida desse grande homem de Deus. Suposições
históricas têm sido levantadas para realçar a nobreza desse grande apóstolo. Grande parte do
que se conhece acerca de Paulo encontra-se no Novo Testamento, através dele sabemos que
Paulo foi contemporâneo de Jesus em sua vida terrestre, e certamente conhecia a sua fama
entre os judeus. Até hoje não foi possível provar que ele tivesse conhecido Jesus
pessoalmente, senão pela fama de seu ministério itinerante na Palestina.
Na realidade, Paulo o conheceu verdadeiramente no caminho para Damasco. O Senhor
já havia ressuscitado e subido ao Pai, quando o implacável “Saulo de Tarso” mais uma vez
investe contra os primeiros seguidores de Cristo. Mais foi detido pela poderosa luz do Rei dos
reis, Jesus, o Salvador. Uma transformação imediata aconteceu e ele converteu-se a Cristo (At
9, 1.29; Gl 1, 11; 2,1).
Segundo escreveu Charles R. Swindoll:
A mensagem e estilo de Paulo, eram também marcados pela graça. Esse indivíduo, que afirmava ser o menor dos santos e o maior entre todos os pecadores, compreendeu e explicou a graça melhor do que qualquer de seus contemporâneos. Não é difícil entender a razão disso. Ele nunca conseguiu superar sua gratidão por tê-la recebido. O favor imerecido de Deus, sua graça superabundante, alcançou-o em seu zelo farisaico, esmagou seu orgulho, colocou-o de joelhos, abrandou seu coração e transformou esse antes violento agressor em um poderoso porta-voz de Cristo. Um homem de tamanha coragem necessitava de muita graça. Não é de admirar que a graça tivesse dominado a mensagem e ministério de Paulo até o último momento de sua vida.3
Diante do exposto, mostraremos a trajetória histórica de Paulo, antes e depois da sua
conversão e como suas cartas, em especial a escrita aos romanos, influenciaram as
comunidades de sua época e toda uma geração de pensadores que se seguiu. Concentraremos
nesse capítulo, toda a nossa atenção sobre a vida desse homem, esperando que nossa vida seja
transformada e impactada como foi a dele.
3 SWINDOLL, Charles R. Paulo Um Homem de Coragem e Graça. São Paulo: Mundo Cristão, 2003. p. 11.
11
2.1.1 Seguindo Paulo Através do Evangelho
Quando Paulo escreve a Filemom, ele se refere a si mesmo como presbytes, traduzido
como “ancião” (Fm 9), provavelmente um homem com a idade avançada, na faixa de 57 anos.
Em Atos, Paulo aparece como estando presente no apedrejamento de Estêvão, no início da
década de trinta, quando é chamado de neanias, traduzido como jovem (At 7,58). M. Eugene
Boring escreve:
Um documento que circulava sob o nome de Hipócrates se refere a uma pessoa na faixa etária de 22 a 28 anos como um neaniskos, jovem, e usa presbytes para se referir a um homem de 50 a 56 anos. Alguns autores usaram neanias, jovem, como o estágio posterior a nesniskos, ca. 29-35. Portanto, Paulo teria nascido aproximadamente entre os anos 1 e 5 de nossa Era, e estaria na casa dos 30 anos quando aparece pela primeira vez em Atos.4
Dentro dessa perspectiva, podemos entender que provavelmente ele escreveu as cartas
que temos hoje quando tinha cerca de 50 anos e morreu quando tinha 60 anos.
Tarso, onde Paulo nasceu e foi criado, era a capital e principal cidade da Cilícia (At
9,11; 21,39; 22,3). Era uma das maiores cidades do Império Romano. Hoje não passa de uma
insignificante cidadezinha turca. Apesar de sua grandeza, Tarso não se destacava por sua
antiguidade. Embora fundada antes de Atenas e Roma, se comparada a Damasco, ou a
Jerusalém, não passava de uma criança. Uma cidade que experimentou suas primeiras glórias
nos dias de Alexandre, o Grande, quando muitos gregos abastados construíram ali suas
residências e palácios. A fama lhe proveio principalmente de seu entusiasmo pela cultura.
Suas escolas atraíam filósofos e professores de renome internacional, era uma famosa cidade
universitária, onde o Estoicismo era a filosofia dominante. A afirmação de que ofuscava
qualquer cidade como centro cultural era bem justificada. O Dr. Charles Ferguson Ball
comenta:
Bem antes dos dias de Paulo, os filósofos e eruditos de Tarso já ensinavam retórica, matemática, ética, gramatica e música. Paulo ainda não brincava nas ruas da cidade, quando grandes poetas, médicos, oradores e filósofos, treinados nas escolas de Tarso, levavam-lhe o nome para outras terras. Era tão grande a reputação da cidade que César Augusto, ele mesmo educado por Atenodoro de Tarso, escolheu Nestor, outro educador da cidade, como mestre de seu filho.5
4 BORING, M. Eugene. Questões Introdutórias do Novo Testamento e Escritos Paulinos. Santo André:
Academia Cristã, 2016. v. 1, p. 301. 5 BALL, Charles Ferguson. A Vida e os Tempos do Apóstolo Paulo. 12. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p. 9.
12
Não existe indicação se Paulo recebeu uma alta educação no cenário acadêmico grego,
mas claramente ele não estava isolado, em algo como um gueto, da principal corrente da
cultura greco-romana, e desenvolveu ao menos as habilidades retóricas básicas que eram parte
da educação grega. Para ele, mais importante era o fato de que pertencia a uma tradicional
família judaica, na qual a língua e as tradições antigas foram preservadas, “um hebreu de
hebreus” (Fl 3,5). Não apenas ele sabia grego, mas era familiarizado, talvez fluente, no
aramaico da Palestina e no hebraico das Escrituras. Ele não era um prosélito, mas um judeu de
nascimento cuja família era judaica por gerações. Ele conhecia um pouco da teologia dos
rabinos e escribas, bem como da interpretação bíblica, e pode ter estudado em Jerusalém,
conforme retratado em Atos (22,3) “fui instruído aos pés de Gamaliel”. Foi um fariseu, cujo
zelo pelas tradições ancestrais o levou a superar muitos de seus contemporâneos (Gl 1,14). O
fato de que suas inúmeras citações bíblicas sejam tipicamente da LXX indica claramente que
a tradução grega da sinagoga helenística era sua Bíblia.
Fabricante de tendas, podia se sustentar com trabalho braçal (1Ts 2,9; 1Cor 4,12; 9,6;
2Cor 11,27). O próprio Paulo jamais descreve a natureza desse trabalho. Atos se refere a ele
como um skenopoios, tradicionalmente “fazedor de tendas”, mas o termo também pode
significar “trabalhador em couro” ou “trabalhador em linho”. Tarso era bem conhecida como
um centro da indústria do linho. Paulo não era um negociante independente, alugava espaço
temporário, ou trabalhava para outros em seu ofício, provavelmente como alguém que
costurava toldos ou tendas para clientes particulares.6
2.1.2 Paulo de Perseguidor a Cristão
O livro de Atos descreve Paulo como um zeloso oponente dos primeiros cristãos e que
buscava destruir o novo movimento (At 8,1-3; 9,1-2; 22,4-5; 26,9-11). O próprio Paulo
confirma esse quadro, descrevendo a si mesmo como um zelote na antiga fé, disposto a
destruir a Igreja (1Cor 15,9; Fl 3,6; Gl 1,13). O conflito inicial não foi entre judeus e cristãos,
mas representa uma separação entre os judeus helenistas de Jerusalém em torno da Torá que
passam a acolher aos gentios, que acolheram o povo da aliança, mesmo aqueles que não
cumpriam a lei. Como poderia alguém que teria morrido sob a maldição da lei (Dt 21,22-23;
Gl 3,13; cf. 1Cor 1,23) ser o Messias de Deus. Podemos comparar o zelo de Paulo pela lei
com o zelo de Fineias, que matou aqueles que violaram a aliança e encorajaram outros a fazê-
lo (Nm 25,1-13; Sl 106,28-31; Sir 45,23-24; 1Mac 2,26,54), isso dava respaldo para Paulo
6 BORING, 2016, p. 303.
13
defender a violência e a pena de morte para aqueles que estavam profanando a aliança e
impedindo a missão do povo santo de Deus (At 26,10). Depois que Paulo se tornou um
missionário para o movimento cristão, os mesmos judeus helenistas, aos quais ele pertenceu,
tentaram matá-lo (At 9,29).
Paulo tinha autorização do judaísmo de Jerusalém para erradicar o novo movimento
messiânico em Damasco (At 9,1-2). Quanto ao local do início da perseguição aos cristãos, nós
não temos conhecimento, a não ser pelo próprio relato de Paulo, “perseguindo a Igreja”... “Eu
fui a Arábia”... “Retornei a Damasco” indica que Damasco foi o local da perseguição (Gl
1,13-17). Parece que Paulo não conhecia o cristianismo da Judéia (Gl 1,22), mas tinha
conhecimento dos cristãos helenistas que atuavam nas sinagogas de Damasco, e era preciso
exterminar esse perigo à fé. Atos e as cartas de Paulo concordam que Damasco foi o local-
chave de mudança na vida de Paulo que produziu efeitos inimagináveis à Igreja e à civilização
ocidental.
Sua chamada ao apostolado se deu em ou próximo a Damasco, por volta do ano 33, o
zeloso perseguidor dos judeus estava convencido de que estava fazendo a vontade de Deus
quando foi confrontado pelo Cristo ressurreto (At 9,1-8; 22,6-11; 26,9-18; 1Cor 9,1; 15,8; Gl
1,15-16). Paulo jamais viu Jesus durante sua vida na terra. Ele descreve o encontro com o
Cristo ressurreto como algo que aconteceu Em emoi, (em mim). Atos diz que isso foi uma
“visão” (At 26,19). Paulo não entendeu o evento como o clímax de sua busca religiosa, ele
tinha segurança e confiança da sua relação com Deus, estava certo de que estava fazendo a
vontade de Deus. A iniciativa partiu de Cristo; foi Cristo quem “deteve” Paulo (Fp 3,12
Katelemphthen, “arrebatou”), e não o contrário. Paulo identificou seu chamado como uma
revelação de Jesus Cristo como Senhor, dada por Deus (Gl 1, 12.16), ele acreditava que algo
além de si mesmo lhe aconteceu: aquele que era considerado maldito, cujos seguidores ele
havia perseguido, foi elevado ao céu e agora apareceu a Paulo e o chamou para ser seu
seguidor e apóstolo. Paulo nunca duvidou desse acontecimento, e isso mudou totalmente sua
vida.
Essa experiência é vista como uma “conversão” de Paulo, uma conversão no sentido
de que isso causou uma transformação pessoal em sua vida, uma total reversão de suas
perspectivas e senso de valores (cf. Fl 3,4-11). Não foi uma conversão no sentido de que
Paulo se converteu de uma religião para outra. Ele não se via como alguém que havia
abandonado o judaísmo e se juntado ao cristianismo. Ele sempre se considerou um judeu, mas
agora segundo escreve L. Michael White, veio a: “perceber que o próprio grupo que ele estava
perseguindo como uma forma aberrante de judaísmo era de fato o caminho verdadeiro do
14
judaísmo, depois de tudo”.7 O termo que Paulo utiliza para categorizar a experiência é
“chamado”.
Em Damasco, o Cristo ressurreto não apenas chamou Paulo para ser um cristão crente,
mas o chamou para ser apóstolo, o apóstolo aos gentios. Sua carta mais antiga, escrita
aproximadamente 17 anos depois do encontro, expressa seu senso de chamado apostólico
especial (1Ts 2,7), que foi intensificado em seus últimos escritos, documentando seus
conflitos com aqueles que duvidavam do seu apostolado (especialmente 2Cor 10-13; Gl 1-2).
Paulo recorre a linguagem dos profetas de Israel (cf. Jr 1,5; Is 49,1), e a partir de então via a si
mesmo como apóstolo, chamado para ser, à semelhança dos profetas, um porta voz do Cristo
ressurreto. Em seus escritos o autor Beverly Roberts Gaventa reconhece que:
Embora Paulo não fosse o converso de uma religião para outra, trocar “conversão” por “chamado” é ir muito longe. “Conversão” ainda é mais apropriada, de que “chamado” que é um elemento essencial, mas o melhor termo é “transformação”, que não desmerece a vida anterior de Paulo e seu comprometimento, mas incorpora-os na nova vida transformada.8
2.1.3 A Graça na Vida de Paulo - Tempo de Transformação
Paulo, através de sua experiência pessoal, experimentou o poder avassalador da
graça, por isso, tornou-se na época neotestamentária o arauto da graça e com isso o intérprete
da doutrina de Jesus sobre a graça dando a ela um sentido eminentemente teológico. O termo
“charis” no Novo Testamento é encontrado 118 vezes, sendo: 28 vezes nas epístolas aos
Coríntios; 20 vezes na epístola aos romanos; 12 vezes na epistola aos efésios; 8 vezes no
Evangelho de Lucas; 17 vezes no livro de Atos; 33 vezes nas saudações do apóstolo Paulo. E
cada uma dessas cartas, livros e evangelhos, vai nos revelar que esse termo, conceitua-se em:
O dinamismo de Deus, tanto no âmbito da criação como na história da salvação da pessoa decaída, destinado a produzir na criatura humana a abertura ao ingresso elevador e salvador de Deus na vida histórica da humanidade, para depois dar lugar, escatologicamente, ao acesso das pessoas à plena comunhão com o Deus Uno e Trino (LG 2).9
O pecado e apostasia existente na época de Paulo, que manipulava a lei e a
corrompia, escravizava a humanidade e trazia divisão e discórdia social, teve uma resposta: a
7 WHITE, L. Michael. From Jesus to Christianity. Texas: Harper One, 2005. p. 157. 8 GAVENTA, Beverly Roberts. From Darkness to Light: Aspects of Conversion in the New Testament.
Fortress, Pr. 1986. p. 38-40. 9 PACOMIO, Luciano. Lexicon Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003, p. 325.
15
boa nova anunciada pelo Senhor Jesus. A questão era: como se tornar parte dessa nova
humanidade? Como entrar nessa nova família na qual Cristo é o primogênito e o irmão mais
velho? Como escapar do poder do pecado e da morte?
Analisaremos esses questionamentos sob as perspectivas de James D. G. Dunn10.
Primeiro, é importante compreender o caráter epocal da afirmação de Paulo e dos primeiros
cristãos. Através de Cristo houve mudança decisiva nas possibilidades que confrontam a
humanidade. Um tempo caracterizado pelo poder do pecado e da morte à qual sucedeu um
novo tempo, um tempo marcado pela graça e pela fé. O tempo caracterizado pelo privilégio e
proteção judaica sob a lei tinha alcançado o seu fim no cumprimento da antiga promessa e na
possibilidade de uma nova maturidade perante Deus, tanto para os gentios como para os
judeus. Um tempo caracterizado pela cobiça e falsidade humana, pela injustiça e impiedade,
podia ser deixados para trás por aqueles que respondiam ao evangelho de Jesus Cristo numa
nova possibilidade da antiga tendência criatural para o Deus que dá a vida. A história humana
está familiarizada com discursos de transições de uma época para outra. A afirmação de Paulo
é de outro alcance. Ele falava de transição não só de a.C. para d.C., mas da mais fundamental
de todas as transições, dentro da qual devem ser avaliadas todas as outras, uma transição
capaz de atingir qualquer tempo e de transformar toda existência a partir de cada um
individualmente.
Segundo, era preciso compreender que a transição da época do primeiro para o
último Adão, ou seja, da morte para a vida, deve ser refletida na vida de cada indivíduo como
parte de uma comunidade, no sentido de que cada um tenha sua própria experiência, não se
trata de uma simples substituição da época de Adão para a época de Cristo, mas de morte
seguida de vida (Rm 5,12-21; 6,3-4), de um estado de viuvez para um outro, de casamento
(Rm 7,1-4), de desobediência para obediência, de insubmissão para submissão (Rm 13,1-7).
Quando escreve aos gálatas, Paulo usa de argumentos semelhantes (Gl 1,1-10), para mostrar
que o anúncio da morte e ressurreição de Cristo é a ação de Deus para mudar o mundo, do
qual tudo depende. O cerne da questão desta calorosa discussão não é sobre a experiência
religiosa pessoal contra a lei e rituais religiosos, não se trata de uma polêmica liberal contra o
legalismo e nem contra o judaísmo, mas afirmar que as boas novas do evangelho, o que Deus
fez em Cristo, não precisa de complementação humana. Isso envolve uma nova perspectiva,
uma reavaliação completa de valores e prioridades (Fl 3,7-11), principalmente uma
transformação moral e ética, com um novo pensar, em termos de responsabilidades pela
10 DUNN, James D. G. A teologia do apóstolo Paulo. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008. p. 370.
16
comunidade e pelos outros (1Cor 6,9-11) e também em termos de batismo e um só corpo (Rm
12).
Terceiro, a passagem de uma época para outra na vida de Paulo, não aconteceu em um
só momento. Teve um início, mas era um processo contínuo, foi um evento decisivo no
passado, mas estava em andamento no presente. Esse processo em termos teológicos gerou
dúvidas na distinção entre o termo “justificação” (de uma vez por todas) e “santificação”
(processo em andamento). Paulo descrevia os crentes através de dois processos de salvação,
como “aqueles que estão em processo de ser salvos” (1Cor 1,18; 5,1-2; 2Cor 2,15), e como
aqueles que estão em processo de “ser transformado” (Rm 12,2; 2Cor 3,18; 4,16; Cl 3,10).
Ritualisticamente, o mesmo assunto é tratado por Paulo quando compara os dois principais
sacramentos cristãos: o caráter único do batismo e a repetida celebração da Ceia do Senhor,
como aspectos fundamentais para “o processo de ser salvos”, ou seja, o tempo aoristo,
indicando um evento decisivo no passado.
O texto clássico da doutrina paulina sobre a graça (Rm 3,21-24), coloca a graça em
contexto muito perto com o processo da justificação. Esse texto engloba quase todo campo
conceitual teológico referente a “charis” como graça de justificação. “Todos sem exceção,
tanto judeus como gentios”, em todos se manifesta o universalismo da graça. “Como presente
grátis”, logo, “sem as obras da lei” (Rm 11,6). A morte de Jesus na cruz do calvário, é o
instrumento usado por Deus para justificar o pecador, não se trata de algo mecânico ou
mágico já que, a justificação depende da colaboração do pecador (Rm 4,16). Tendo em vista
que a justificação de Deus se manifestou “agora”, ou seja, na obra salvífica de Jesus Cristo, o
tempo da justificação começa a contar desse fato, num sentido todo especial nunca acontecido
antes, tempo de fé para todos os que creem.
A doutrina paulina sobre a graça possui, no sentido que expomos acima, uma pré-
formação judaica arcaica entre os Essênios, conforme demonstram os escritos de Qumram e
comentários de Johannes Feiner e Magnus Loehrer11. Cf. sobretudo 1 QS XI, 12-13:
Quando eu titubear, Deus me ajudará com sua graça para sempre. Se minha carne pecaminosa me fizer cair em pecado, minha absolvição (minha justificação) pela justiça de Deus durará para sempre... Sua misericórdia atraiu-me para junto de si e os dons de sua graça hão de absolver-me (justificar-me). A justiça de sua verdade me julgou (tornou justo); na plenitude de sua bondade expiará todos os meus pecados e sua justiça me purificará da imundície humana.
11 FEINER, Johannes; LOEHRER, Magnus. Mysterium Salutis, Compêndio de Dogmática Histórico-
Salvífica, IV/7. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 23-24.
17
Cf. ainda I, 26; II,1; XI,3: “Sua justiça apagará o pecado”; 1 QHod IV, 30: “E eu sei
que o homem não tem justiça alguma”; e mais I, 6.26; XIV, 15; XVI, 11; VII, 28b-30; “E
quem será justificado diante de ti, quando for julgado? Mas os filhos de tua verdade hás de
colocá-los todos diante de ti para perdoá-los e purificá-los de suas iniquidades, na
superabundância de tua bondade e na plenitude de tua misericórdia”.
Conforme podemos perceber, a comunidade de Qumran se entende como “aliança da
graça”. A grande diferença entre a doutrina da graça de Qumran e a de Paulo consiste em que
a de Paulo é um evento salvífico que abrange toda a humanidade e que depende da fé na
morte vicária expiatória de Jesus Cristo, excluindo o caminho tradicional da salvação pelas
“obras da lei”. O escritor Jurgen Becker, em seu livro, Das Heil Gottes na página 275, resume
sua pesquisa sobre o conceito de justificação paulino da seguinte forma:12 “Em parte alguma a
justiça divina aparecia como justiça punitiva, mas se via sempre determinada positivamente
como conceito de salvação”. Nesse sentido podemos entender porque em Paulo, graça e
justiça se entrelaçam, como se fossem sinônimos. Segundo Paulo, Deus não desiste de exercer
sua justiça (punitiva) para aplicar a graça em vez da justiça, mas a graça é sua justiça (Rm
3,21-24), conforme expomos acima. Resumindo, Paulo considera o termo “justiça” como um
conceito expressamente salvífico.
Paulo reconhece, mais que todos os outros missionários da sua época, que a morte de
Jesus na cruz do calvário, abre um novo caminho de salvação para a humanidade, na sua
visão, esse evento liquida de uma vez por todas o tradicional caminho das “obras da lei”, que
não conduziam à justificação (Rm 5,12-21). Através do pecado de Adão, todos estão sujeitos
a morte, a situação torna-se mais grave com o advento da lei, em virtude da fraqueza da carne
humana, ninguém se sentia em condições de cumprir suas exigências (Rm 3,19s; 4,15; 7,
8.10.13; Gl 3,12.19), mas a obra salvífica do novo Adão abriu um caminho totalmente novo,
capaz de levar aos fiéis a graça da justificação e da vida (Rm 5,17-21). Por isso, o dom da
graça, é insuperavelmente incomparável a prevaricação (Rm 5,15s; 6,1; 2Cor 4,15; 9,8.14). A
graça significa a vitória sobre o poder do pecado (Rm 5,20b.21), escape da situação de morte
do eón antigo e, a partir daí, “vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6,23).13
Abandonar esse caminho e tentar voltar para o caminho salvífico já liquidado “pelas obras da
lei”, como tentaram os Gálatas é visto por Paulo como um retrocesso, uma apostasia, um
abandono da ordem da graça (Gl 1,6), por esta razão, todas as tentativas de criar uma justiça
própria, que se vanglorie dos seus valores religiosos, como fizeram os judeus, ou de sua
12 FEINER; LOEHRER, 1978, p. 24. 13 Ibid., p. 24.
18
sabedoria humana, como fizeram os gregos, e apele para a carne, estão fadadas ao insucesso
(Gl 6,14; Fl 3,7s). Segundo Paulo, por esse motivo, o homem não deve receber a graça como
virtude de Cristo (2Cor 12,9s) em vão, sem proveito. Sob a ação da graça, uma nova pessoa,
um novo ser reconciliado com Deus, através de Cristo, passa a existir. Esse novo ser em
Cristo, revela claramente o seu caráter ontológico, por isso, “Se alguém está em Cristo, é nova
criatura...” (2Cor 5,17).
Fica claro, pelo exposto acima, que o termo graça para Paulo, representa em sentido
próprio um conceito histórico-salvífico, por ser inseparável do evento histórico de Cristo. Eis
por que a doutrina do Apóstolo sobre a graça não é integralmente inteligível, senão sobre o
fundo de sua doutrina sobre a Lei e sobre a morte14. Por isso, a restauração do estado original,
não fica bem conceituada na graça de Paulo, mas antes como a salvação vitoriosa, totalmente
imerecida e “inadequada” da geral situação de desgraça, operada por Deus. A predominância
da graça determina o eón (tempo eterno) novo, já iniciado com Cristo; esse eón é pela graça
um eón da vida (Rm 6,23), por ela tem futuro a Humanidade15.
Algumas considerações a serem feitas: através do batismo o pecador recebe o dom da
graça (Rm 6,1-11; Cl 2,11-14) e por isso, Deus confere aquele que é fiel o seu Pneuma
(Espírito) santificador. Entretanto a teologia paulina não identifica graça e Pneuma, mas,
como divino dom da vida ao homem justificado, o Pneuma faz parte da justificativo impi
(justificação). A graça da justificação encerra a santificação (objetiva) do homem. Os cristãos
são santificados em Cristo Jesus (1Cor 1,2; 6,11; Rm 15,16). Paulo só fala de charis no
singular. Portanto, não se orienta por cada manifestação da graça em particular, mas pela obra
salvífica, caracterizada pelo conceito de charis como puro dom de Deus; essa obra salvífica é
a redenção por Jesus Cristo. Charis é um evento escatológico salvífico que transforma em
Cristo, o homem em nova criatura, a entrar no ser em Cristo. Por isso, para Paulo charis e
ágape se congraçam, visto que na justificação do pecador o amor de Deus se manifesta de
forma única (Rm 8,31s), e fica evidente agora a um tempo como amor do Kyrios Jesus (Rm
8,35.39; 2Cor 8,9), no qual nos foi dada a graça de Deus, tanto assim que o Apóstolo fala a
vontade da graça de nosso Senhor Jesus Cristo, tal como fala da graça de Deus, especialmente
em suas saudações.
14 FEINER; LOEHRER, 1978, p. 25. 15 Ibid., p. 25.
19
2.1.4 A Graça nas Epístolas Deuteropaulinas
Ao falarmos das epístolas aos efésios, aos colossenses, 2 aos tessalonicenses, 1 e 2
Timóteo e Tito, verificamos que existe uma evolução na doutrina paulina sobre a graça e que
os propósitos fundamentais de Paulo sobre a graça se mantém constante sobre todo o corpo da
Igreja, mesmo em contextos diferentes como acontece em Ef 2,1-10, essa passagem considera
a teologia da graça sob alguns temas: por três vezes aparece o termo charis, nos versículos 5,
7 e 8 num campo conceitual que lhe é próprio: “misericórdia” e “amor de Deus” (v. 4)...
apresentando essas formulações numa linguagem tipicamente paulina, como nos versículos 5
e 8 onde é destacado o princípio da graça “por graça fostes salvos”, ainda nos versículos 8 e 9
destaca-se que a salvação não resulta “das obras”, mas é “dom de Deus”, sendo todos nós
“criaturas dele”, “criados em Cristo Jesus”. Um quadro tipicamente sobre a doutrina da graça,
mostrando o seu lado “histórico-salvífico” como vimos anteriormente. O autor olha para o
passado dos efésios, dando ênfase a vida anterior vivida sob o paganismo (v. 3.11), e que
agora é modificada radicalmente pela situação salvífica: antes mortos, tornaram-se vivos
(2,1.5). Agora existe uma visão cósmica que constitui uma novidade na doutrina da graça, não
mostrada nas epístolas paulinas vistas anteriormente, a salvação através da graça agora é vista
como “co-vivificação”, “co-ressuscitação”, “sentar nos céus com Cristo” (v. 5s). Novamente
em Efésios, fica claro como se impõe a doutrina da graça como evento salvífico inseparável
do evento de Cristo.
Quando analisamos Rm 5,12-21, o contexto era outro, ou seja, a graça em Cristo
estava ligada com a história da perdição e salvação de Adão e consequentemente de toda a
humanidade. Na epístola aos efésios o foco é diferente, ela é mais eclesiológica, pois trata da
inserção de judeus e gentios no uno corpo de cristo (Ef 2,16; 3,6; bem como, Cl 3,15s). A
Igreja deverá pois proclamar “o louvor da glória de sua graça, com que nos agraciou em seu
bem-amado, em quem temos a redenção pela virtude do seu sangue, a remissão dos pecados”
(Ef 1,6s).
Nas epístolas pastorais a formulação da doutrina da graça tem outro enfoque. Na
epístola endereçada a Tt 3,4-7, as palavras que nos chama a atenção são: “graça”, “salvar”,
“misericórdia”, “Pneuma”, “justificador”, “bondade”, “vida eterna”. As expressões: “não por
causa dos atos justos que houvéssemos praticados” (v. 5), “justificados pela sua graça” (v. 7),
denotam tradição genuinamente paulina. Entretanto toda a introdução do versículo 4 está
diferente do estilo paulino: “Mas, quando a bondade e o amor pelas pessoas do nosso
20
Salvador Deus, apareceu...”16; essa expressão: “apareceu”, é colocado em evidência num
trecho semelhante em 2,11: “Apareceu pois a graça de Deus salvadora a todas as pessoas
instruindo a nós...”17.Com um acréscimo importante: “Ela nos ensina". Conceitua-se a vinda
da graça salvífica de Deus como um evento epifânico (“manifestação”, “aparição”, como se
alguém "encontrou finalmente a última peça do quebra-cabeças e agora consegue ver a
imagem”), isso nos leva a pensar em “nosso salvador Jesus Cristo” (cf. 2,13; 3,6), a graça de
Deus em pessoa. A função pedagógica da graça não aparece nas cartas paulinas mais antigas.
É meta dessa “educação” pela graça, o reto modo de existência cristã num mundo depravado
(cf. 2,12s). A doutrina paulina sobre a graça não se situa pois, de modo algum, num contexto
homogêneo, mas apresenta aspectos múltiplos, que deveriam ser elaborados pela teologia
sistemática.18
16 SCHOLZ, Vilson. Novo Testamento Interlinear Grego-Português. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil,
2004. p. 796. 17 Ibid. p. 795. 18 FEINER; LOEHRER, 1978, p. 28.
21
3 UM NOVO PERÍODO DA GRAÇA
3.1 CARACTERÍSTICAS DA PATRÍSTICA: UM ESBOÇO PRELIMINAR
O período denominado “Patrístico” representa um momento significativo para o
desenvolvimento do pensamento cristão. A patrística foi, sem dúvida, um marco decisivo na
evolução da doutrina cristã. Os ramos teológicos dos pais da Igreja de 100 a 310 formam o
primeiro período Patrístico. De 310 a 451 temos o segundo período, finalizando com a
terceira fase que se inicia no Concilio de Calcedônia em 451 até o segundo Concilio de Nicéia
em 787.
Os três primeiros séculos da Igreja foram considerados um período difícil para a
manutenção da doutrina das verdades estabelecidas e deixadas pelos apóstolos. A Igreja
passou a caminhar por conta própria, escrevendo a sua própria história com a ajuda dos pais
da Igreja, que procuravam zelar pelos ensinamentos que os apóstolos haviam deixado. Esse
período fez com que a Igreja perseverasse cada vez mais em sua doutrina. Esse fenômeno
ganhou força na história da teologia cristã após o ano 310 devido à cessação da perseguição
ao cristianismo logo em 311. Finalizada a perseguição, as discussões teológicas poderiam ser
feitas em público, com o apoio do Estado. Isso possibilitava um avanço nas teologias cristãs,
os teólogos após 311 poderiam se dedicar sem se preocupar com a perseguição, não havia
mais acossamento do Estado e sim o apoio.
Surgem os defensores da fé conhecidos como os apologistas: Justino mártir, Aristide,
Tertuliano, Orígenes e Agostinho, que vão combater respectivamente o gnosticismo, definido
no dicionário de Paulo e suas cartas como segue:
Os gnósticos eram seguidores de uma variedade de movimentos religiosos que ressaltavam a salvação por meio da gnosis, ou “conhecimento”, isto é, das origens da pessoa. O dualismo cosmológico era aspecto essencial do gnosticismo – contraste entre o mundo espiritual e o mundo material e mau. O gnosticismo foi atacado nos escritos dos Padres da Igreja, que consideravam os diversos grupos gnósticos desvios heréticos do cristianismo.19
Foram os pais da Igreja responsáveis por confirmar e defender a fé católica, a liturgia,
a disciplina, criar os costumes e decidir os rumos da Igreja Católica, ao longo dos sete
primeiros séculos do cristianismo. É imprescindível a apresentação dos nomes dos teólogos
da patrística para melhor familiaridade com o próprio assunto. Os Pais Apostólicos
19 HAWTHORNE, Gerald F; MARTIN, Ralph P; REID, Daniel (Org.). Dicionário de Paulo e suas Cartas. São
Paulo: Loyola; Paulus; Vida Nova, 2008. p. 602.
22
(continuadores diretos dos Apóstolos, c. 80-150): Clemente Romano (Papa São Clemente I),
Papias de Hierápolis, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Pastor de Hermas. Segunda
metade do século II: Aristides de Atenas, Justino, Atenágoras de Atenas, Ireneu de Lyon
(Irineu de Lião), Teófilo de Antioquia. Século III: Orígenes de Alexandria, Tertuliano de
Cartago, Clemente de, Alexandria, Cipriano de Cartago (São Cipriano), Hipólito de Roma,
Minúcio Félix. Pais Nicenos: Eusébio de Cesareia, Atanásio de Alexandria, Cirilo de
Jerusalém, Efraím da Síria. Pais Pós Nicenos: João Crisóstomo, Hilário de Poitiers, Ambrósio
de Milão, Jerônimo de Strídon, Agostinho de Hipona, Nemésio de Emesa, Evágrio do Ponto,
Arnóbio, Lactâncio, Calcídio, Mário Victorino, Macróbio. Os Pais Capadócios: Basílio de
Cesareia (Basílio Magno), Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa. Século V: Marciano
Capela, Cirilo de Alexandria, Teodoro de Mopsuestia, Papa Leão I, (o Grande). Século VI:
Papa Gregório I (o Grande), Boécio. Século VII: Máximo o Confessor, Isidoro de Sevilha.
Século VIII: João Damasceno (João de Damasco). Depois do século VIII (só no Oriente)
Fócio Simeão, Gregório Palamas e Marco de Éfeso. Estes são os nomes que praticamente
foram responsáveis em grande parte pela definição das doutrinas cristãs como os conhecemos
hoje.
O pensamento grego é rico. Desde o século I a filosofia helênica em que se situavam
os estoicos, os epicuristas, os neopitagoricos, os céticos e os neoplatonicos, dominava a visão
de mundo antigo, distribuída pela cultura greco-romana. Quem primeiro iniciou esse diálogo
foi Justino Mártir (100 – 165), como aponta Paul Tillich em sua obra, História do Pensamento
Cristão:
Ao falar do cristianismo, dizia: Esta é a única filosofia certa e adequada que encontrei (...) quando Justino dizia que o cristianismo era uma filosofia, precisamos entender o que entendia por filosofia. Nessa época o termo filosofia se referia ao movimento de caráter espiritual oposto a magia e a superstição. Era, pois, natural que Justino se referisse ao cristianismo como a única filosofia certa e adequada, por que não era mágico nem supersticioso.20
Na concepção de Justino essa filosofia, que ele chama cristã, era universal, e continha
a verdade sobre o significado da existência. Essa verdade foi manifestada no “Logos” que era
o fundamento do cristianismo. Sendo assim, Justino expunha sua Téo-cristologia a partir do
“Logos”, não representando Cristo como um completo forasteiro, mas como o cumprimento
do melhor do pensamento grego.
20 TILLICH, Paul. Historia do Pensamento Cristão. Trad. Jaci Maraschin. 4. ed. São Paulo: ASTE, 2007. p. 47.
23
No século III surge o desafio do neoplatonismo que serviu como influência para o
primeiro sistema teológico elaborado por Orígenes de Alexandria (185-254). O que seria
neoplatonismo? Em síntese, foi uma corrente filosófica que visava uma revisão do
platonismo, apresentada por Amonio Saccas e Plotino. Paul Tillich define o surgimento do
neoplatonismo como segue:
Podemos dizer que foi basicamente Platão o grande formador das bases da teologia cristã. Mesmo que o neoplatonismo repense algumas questões filosóficas de Platão, ainda assim toda sua epistemologia é platônica. Por exemplo, Tillich examina cinco elementos fundamentais nessa linha: o primeiro é o conceito de transcendência. As ideias eram para Platão as essências das coisas. Salta-se daí para o mundo idealizado tão apreciado pela religião protestante, por exemplo. Se as ideias e, com elas, a abstração, representam o real, as coisas terrenas perdem seu valor. O segundo elemento destacado por Tillich é, pois, “a desvalorização da existência”. Até hoje a Igreja Cristã enfrenta problemas relacionados com a compreensão do corpo humano e de seus desejos. O terceiro elemento é a doutrina da “queda da alma da eterna participação no mundo essencial ou espiritual, sua degradação terrena num corpo físico, que procura se livrar da escravidão desse corpo, para finalmente se elevar acima do mundo material”. O quarto elemento é a ideia da providência divina. Tillich nos alerta de que essa ideia recebida ainda hoje pelos cristãos como se tivesse nascida com sua religião, pertencia, na verdade, ao mundo grego antigo e se expressara com clareza nos últimos escritos de Platão. O quinto elemento será visto quando examinarmos com mais detalhes o pensamento escolástico. Esse Deus platônico teve grande influência no pensamento cristão Patrístico.21
A aliança entre teologia e filosofia, como podemos observar, foi feita, porém a
filosofia tornou-se religiosa e teológica. O problema era que nem Epicuro, Zenão, Platão,
Aristóteles e etc, foram cristãos, os teólogos da patrística converteram esses filósofos na
evolução da teologia cristã. Submeteram suas filosofias ao julgamento heterônomo das
autoridades eclesiásticas e suas reflexões sempre foram policiadas por concílios, sínodos,
bispos, autoridades eclesiásticas e pelo Papa. Isso também ira acontecer com os teólogos
escolásticos no início do século XI. Alguns teólogos usavam a filosofia para melhor expressar
suas ideias religiosas face ao mundo “pagão”, é obvio que alguns não aceitavam de maneira
alguma esse diálogo, a ponto de dizer como Tertuliano: “Que relação tem entre Jerusalém e
Atenas?”. Essa crítica severa de Tertuliano no século III, fazia parte de uma pequena camada
de teólogos que defendiam que o cristianismo deveria manter sua identidade característica,
evitando influencias de filósofos gregos que nada conheciam da Igreja da época. O debate foi
tenso, podemos dizer que a argumentação mais espessa em defesa do diálogo entre filosofia e
teologia foi dada por Agostinho de Hipona (354 – 430). Neste santo da Igreja, focaremos toda
nossa pesquisa sobre a graça e sua influência neste século tão conturbado da patrística.
21 TILLICH, 2007, p. 54.
24
A principal característica da patrística era a elaboração doutrinal das verdades da fé e
do cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos “pagãos” e contra as heresias. Por isso,
essa doutrina filosófica foi representada pelo pensamento dos Padres da Igreja, que aos
poucos auxiliaram na construção da teologia cristã. Baseada na filosofia grega, os filósofos
desse período tinham como objetivo central compreender a relação entre a fé divina e o
racionalismo científico. Ou seja, eles buscavam a racionalização da fé cristã. Portanto, os
principais temas explorados por eles estavam ancorados nas vertentes do maniqueísmo,
ceticismo e neoplatonismo. São eles: criação do mundo; ressurreição e encarnação; corpo e
alma; pecados; livre arbítrio; predestinação divina. Com tudo isso há uma positividade nessa
aliança, a interação criativa da teologia, liturgia e espiritualidades cristãs com a tradição
cultural do mundo antigo, sem dívida, como aponta Alister E. McGrath “um dos exemplos
mais interessantes e férteis de hibridismo cultural da história intelectual da humanidade”.22
Basicamente, patrística é a filosofia responsável pela elucidação progressiva dos
dogmas cristãos católicos e pelo que se chama hoje de tradição católica conforme está escrito:
Por isso, a pregação apostólica, que é expressa de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se por uma sucessão contínua até a consumação dos tempos. Por isto os Apóstolos, transmitindo aquilo que eles próprios receberam, exortam os fiéis a manter as tradições que aprenderam seja oralmente, seja por carta (cf. 2Ts 2,15) e a combater pela fé que se lhes transmitiu uma vez para sempre (cf. Jd 3). O que, porém, foi transmitido pelos Apóstolos compreende todas aquelas coisas que contribuem para santamente conduzir a vida e fazer crescer a fé do Povo de Deus, e assim a Igreja, em sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que crê (DV 8).
3.1.1 Trajetória Histórica de Agostinho
O norte da África produziu quatro gigantes do cristianismo ocidental: Tertuliano,
Cipriano, Atanásio e Agostinho. Aurelius Augustinus, mais conhecido como Santo
Agostinho, nasceu em Tagaste, província romana na Numídia, hoje Souk-Ahras, na Argélia,
em 13 de novembro de 354. Foi o primogênito de Patrício, conselheiro municipal e membro
da classe média, que permaneceu pagão até as vésperas de sua morte, e da cristã Mônica, que
orou fervorosa e constantemente em seu favor. O irmão de Agostinho, Navígio, morreu
jovem, e a irmã, Perpétua, foi membro dos primeiros mosteiros. Em 365, com 11 anos, foi
enviado para estudar em Madaura. Os idiomas com que se expressava eram o púnico (ou
cartaginês), a língua de sua terra, e o latim, que dominava com perfeição. Em 370, voltou a
22 TILLICH, 2007, p. 54.
25
Tagaste, e aos 17 anos transferiu-se para Cartago, para estudar retórica e artes liberais. Após a
morte de seu pai, no ano seguinte, Agostinho conheceu uma mulher, com quem se uniu nesse
mesmo ano; ela se tornaria sua companheira durante quinze anos, ele a abandonou depois, e
não mencionou seu nome nas obras que escreveu.23
A vida de Agostinho pode ser dividida em dois períodos claramente distintos: antes e
depois da conversão. Antes da conversão ele se interessa principalmente por Retórica,
Maniqueísmo e Filosofia. Depois da conversão concentra seu interesse, sobretudo, nas
Sagradas Escrituras e na Teologia.
3.1.2 Agostinho Antes de sua Conversão
A primeira educação de Agostinho foi estritamente humanística, feita de gramática e
retórica, que é a arte de persuadir quanto à verdade. Com dezenove anos começou a ensinar
retórica, e fez isso por dez anos. Esse estudo feito em Madaura, lhe proporcionou condições
de decorar trechos de poetas e prosadores latinos. Aprendeu regras de música, física e
matemática, porém, nunca dominou o grego. Em Confissões descreve-se como um pecador:
Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos. Ainda não amava, e já gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria, eu me odiava por não ser bastante miserável. Desejando amar, procurava um objeto para esse amor, e detestava a segurança, as situações isentas de risco. Tinha dentro de mim uma fome de alimento interior – fome de ti, ó meu Deus... .24
Em 373, aos dezenove anos, Agostinho tornou-se um ouvinte (auditor) do
maniqueísmo. Os maniqueístas se gabavam de ensinar uma explicação puramente racional do
mundo, de justificar a existência do mal e de conduzir finalmente seus discípulos à fé
unicamente por meio da razão. Agostinho acreditou por alguns anos que essa era a sabedoria
que ele cobiçava. Foi, portanto, como maniqueísta e inimigo do cristianismo que voltou para
ensinar Letras em Tagaste e em seguida a Cartago. Em Tagaste, abre uma escola particular
onde ensina retórica e gramática. É fascinado por esse ensino, não deixando alguns interesses
como o ocultismo e a astrologia.
O maniqueísmo era uma seita filosófico-religiosa fundada por um persa, Mani no
século III, apresentava um vivo racionalismo marcado pelo materialismo e um dualismo
radical na concepção do bem e do mal (luz e trevas) em constante conflito, entendidos não
apenas como princípios morais, mas também como princípios ontológicos, o universo físico
23 FERREIRA, 2006, p. 16-17. 24 AGOSTINHO. Confissões. 27ª reimp. São Paulo: Paulus, 2016. p. 61.
26
originou-se das trevas, e cósmicos, a alma humana é produto da luz. Essa teoria também
tentava explicar a origem do mal, e negava a responsabilidade pelas ações más cometidas,
Agostinho, mais tarde em suas confissões, comenta aspectos da religião dos maniqueus.
Caí assim nas mãos de homens desvairados pela presunção, extremamente carnais e loquazes. Suas palavras traziam as armadilhas do demônio, numa mistura confusa do teu nome com o de nosso Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo Consolador. Pronunciavam continuamente tais nomes, que eram apenas sons e movimentos de lábios, mas seus corações eram vazios da verdade. Repetiam: “Verdade, verdade”! E me falavam muito dela, mas não a possuíam; pelo contrário, ensinavam falsidades, não só a teu respeito, que és realmente a verdade, mas também, sobre a existência do mundo, criatura tua. Quanto a essas coisas, graças ao teu amor, eu deveria ter superado mesmo aqueles filósofos que ensinam coisas verdadeiras, meu Pai, bondade soberana, beleza das belezas! Verdade, verdade! Já então suspirava por ti do mais íntimo do meu ser, enquanto eles me faziam ouvir o teu nome tantas vezes e de várias maneiras, mas apenas com os lábios e através de numerosos e pesados volumes! Eu tinha fome de ti, e as iguarias que, ao invés de ti, me eram apresentadas, eram o sol e a lua... .25
Ele abandona esta seita após um diálogo com Fausto, bispo dos maniqueístas, por não
encontrar a verdade sobre algumas coisas, e pela incapacidade de seus principais mestres de
responder coerentemente onde se encontrava o princípio do mal. Logo percebeu que suas
explicações não o convenciam e também por perceber que ele mesmo tinha mais
conhecimento que o próprio bispo, conforme escreve:
A avidez, com que durante tanto tempo esperei por aquele homem, era satisfeita agora pelo calor e animação de sua dialética, e por suas palavras tão bem escolhidas e que lhe ocorriam com facilidade para revestir seu pensamento. [...] Descobri logo que ele nada entendia das disciplinas liberais, com exceção da gramática, da qual conhecia apenas o corriqueiro. Tinha lido alguns discursos de Cícero, pouquíssimas obras de Sêneca, algumas obras de poetas, e umas poucas, de seus correligionários, escritas em latim mais cuidado.26
Ao chegar a Roma por volta de 383, tinha pretensão de obter a presidência de um
tribunal ou o posto de governador de uma província. Porém, faltava algo no que concerne a
sua existência. Em Cartago, ele leu Hortênsio, de Cícero. A leitura dessa obra levou-o a se
apaixonar pela filosofia. A partir de então, abandonou o Maniqueísmo e passou a buscar a
respostas a suas indagações na filosofia neoplatônica, que acabaria por levá-lo à fé cristã. A
filosofia platônica ensinava que:
O mal não tem existência própria, mas que consiste antes na ausência do bem. Quanto mais se afastam as coisas do Único, menos boas são. Contudo, elas continuam sendo boas, e não são realmente más. O deus de Platão era de um deus do
25 AGOSTINHO, 2016, p. 68-69. 26 Ibid., p. 121.
27
intelecto, para Agostinho o conceito de Platão cai por terra totalmente, já que o Deus de Agostinho pode estar nos dois lugares ao mesmo tempo; tanto no intelecto, quanto criador do mundo e da natureza, como ser criador de todas as coisas. Tal concepção do homem provinha de Platão, para o qual o homem é definido como uma alma que se serve de um corpo. Agostinho mantém esse conceito com todas as consequências lógicas que ele comporta. Assim o verdadeiro conhecimento não seria a apreensão de objetos exteriores ao sujeito, devido a sua variabilidade, e sim, a descoberta de regras imutáveis, como o princípio ético segundo o qual é necessário fazer o bem e evitar o mal. Tal conhecimento se refere às realidades não sensíveis cujo caráter fundamental seria a necessidade, pois são o que são e não podiam ser diferentes.27
Agostinho supera o ceticismo mediante o iluminismo platônico. Inicialmente ele
conquista uma certeza: a certeza da própria existência espiritual, e deste conceito tira uma
verdade particular, de que Deus enquanto verdade onipotente, onisciente pode estar em dois
lugares ao mesmo tempo. Embora desvalorize o conhecimento platônico da sensibilidade em
relação ao conhecimento intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto são
fonte de conhecimento. Para Agostinho, a fé e a razão complementam-se na busca da
felicidade e da graça. A graça, para ele, não é alcançada por procedimento intelectual, mas por
ato de intuição e fé. Mas a razão se relaciona com a fé no sentido de provar a sua correção. Ou
seja, a fé é precedida por certo trabalho da razão e, após obtê-la, a razão a sedimenta. A razão
relaciona-se, portanto, duplamente com a fé. É necessário compreender para crer, e crer para
compreender. Aqui se percebe que, para Agostinho, a filosofia é apenas um instrumento
destinado a um fim que transcende seus próprios limites.
A filosofia platônica também não pode saciar todos os questionamentos de Agostinho
e logo ele teve dificuldade de entender a teoria do conhecimento (Epistemologia) ensinada
pela filosofia platônica, que sustentava a ideia que: “o conhecimento era fruto da lembrança
que a alma tem de sua existência prévia no mundo das ideias puras e eternas”.28
Para Agostinho, isso seria difícil de aceitar, porque essa ideia implicava na
preexistência da alma, logo sua posição não foi muito diferente de outros cristãos, como
Justino, Clemente de Alexandria e Orígenes de que conhecimento pleno só será possível com
a iluminação do verbo ou Logos de Deus.
O método teológico usado por Agostinho é assim definido pelo escritor Evangelista
Vilanova:
Agostinho apresenta um esboço da sua hermenêutica bíblica, que se constrói sobre uma filosofia de símbolos e se desenvolve segundo um dinamismo ascensional neoplatônico. Do mesmo modo que Orígenes, Agostinho queria recorrer para interpretação das Escrituras a todas as ciências auxiliares possíveis: gramática (para
27 GONZÁLES, Justo. Breve Dicionário de Teologia. São Paulo: Hagnos, 2009. p. 12-14. 28 Ibid., p. 12-14.
28
conhecimento das línguas bíblicas), ciências naturais, simbolismo dos números, música, história, dialética (para resolver as contradições) e sobre todos os filósofos (especialmente a platônica). Entre todas estas coisas, Agostinho e seus sucessores medievais só puderam utilizar de certo modo a gramática e a dialética. Porque nem sempre determinavam a tendência que procedia de Agostinho e que penetrou em todos os demais princípios metodológicos. A lei fundamental foi que: é tudo um símbolo.29
3.1.3 Agostinho Depois de sua Conversão
O divisor de águas na vida de Agostinho ocorreu em 386 na companhia de seu amigo
Alípio, durante uma severa crise de reflexões sobre a sua vida espiritual, o que se
desencadeou numa grande tempestade, portadora de copiosa torrente de lágrimas a qual fez se
afastar alguns metros de seu amigo, como ele mesmo relata em Confissões:
Levantei-me e afastei-me de Alípio, o necessário para que sua presença não me perturbasse, pois a solidão me parecia mais apropriada ao pranto. Deixei-me, não sei como, cair debaixo de uma figueira e dei livre curso às lágrimas, que jorravam de meus olhos aos borbotões, como sacrifício agradável a ti (cf. Sl 50,19). E muitas coisas eu te disse, não exatamente nestes termos, mas com o seguinte sentido: E tu, Senhor, até quando (Sl 6,4)? Até quando continuarás irritado? Não te lembres de nossas culpas passadas (Sl 78,5.8)! Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava desesperadamente: “Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não por fim agora a minha indignidade”? Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindo continuamente uma canção: “Toma e lê, toma e lê”.30
Segundo Agostinho, a partir desse instante, a única interpretação possível era a de uma
ordem divina para abrir o livro e ler as primeiras palavras que encontrasse. Agostinho tinha
ouvindo que Antão, assistindo por acaso a uma leitura evangélica, sentiu um chamado como
se a passagem lida fosse pessoalmente dirigida a ele: “Vai, vende os teus bens e dá aos
pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21). Logo depois dessa
mensagem, Antão se converte. Agostinho volta correndo onde tinha deixado Alípio e abre o
livro do Apóstolo: Peguei-o, abri e li em silêncio o primeiro capítulo sobre o qual caiu o meu
olhar: “Não em orgias e bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas rixas e
ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da
carne”.31 (Rm 13,13s)
A partir desse texto dissiparam-se todas as trevas das dúvidas e entrando, agora em seu
coração, uma luz de certeza. Já com a revelação da palavra acolhida em seu coração,
29 VILANOVA, Evangelista. Historia de La Teología Cristiana, De Los Orígenes Al Siglo XV. Barcelona:
Herder, 1985. Tomo primeiro, p. 225. 30 AGOSTINHO, 2016, p. 226. 31 Ibid., p. 227.
29
Agostinho volta para a companhia de seu amigo Alípio e resolvem comunicar a notícia a sua
mãe a qual ficou radiante com o sucedido e começou a glorificar o nome do Senhor, tendo em
vista, que o Senhor havia concedido a ela, muito mais do que ela pedira com lágrimas e
orações. A partir desse dia, Agostinho passou a progredir dia a dia no conhecimento de Deus,
na justiça e santidade da verdade.
Podemos observar no que foi escrito até aqui, que quando o ser humano portador da
graça comum, decidi a partir da leitura bíblica e da sua escolha, como no caso de Agostinho,
se transformar radicalmente em um novo ser, os benefícios para a humanidade são
incalculáveis. Essa graça atuante em todo ser humano realmente pode fazer a diferença nesse
mundo tão atribulado. Uma graça que tem o poder de transformar, salvar e unir,
independentemente de raças, ideologias e credos. Nós como cristãos temos o dever e a
obrigação de estarmos abertos a todos, levando as “Boas Novas” e sermos canal de bênçãos
nesse mundo moderno.
3.1.4 Heresias Combatidas por Agostinho
Como bispo e defensor da doutrina cristã, Agostinho vai enfrentar alguns adversários,
como os maniqueus, os donatistas e os pelagianos que são contrários às doutrinas da Igreja
Católica. Os maniqueus porque admitiam a existência de dois princípios supremos, um bom e
o outro mal e negavam o livre arbítrio:
Quando deliberava servir desde logo ao Senhor meu Deus, como há muito tempo já pretendia, era eu quem o queria, e ao mesmo tempo era eu quem não o queria: sempre eu. Não tinha uma vontade plena, nem decidida falta de vontade; daí a luta comigo mesmo, deixando-me dilacerado. Essa divisão se produzia contra a minha vontade, embora isso não demonstrasse a existência em mim de outra alma, e sim o castigo da minha própria alma. Não era eu que praticava a ação, mas o pecado que habitava em mim (cf. Rm 7,17), punição de um pecado livremente cometido enquanto filho de Adão.32
O mal como Agostinho via, é uma degradação, um declínio de uma posição devida.
Sua capacidade para livre escolha racional. Assim Agostinho sustentava, é a mais alta
qualidade imediata do homem, um dom de Deus pretendido para o próprio bem do homem, e
também seu principal perigo.33
Existia também os donatistas que negavam a validade dos sacramentos por ministros
indignos, eles defendiam a ideia segundo a qual qualquer sacerdote que tivesse algum contato
32 AGOSTINHO, 2016, p. 221. 33 SCOTT, Kenneth Latourett, Uma História do Cristianismo. São Paulo: Hagnos, 2006. v. 1, p. 234.
30
com o Estado ou com os dignitários do Estado, no tempo da perseguição pelo imperador
Diocleciano, perdiam a capacidade de administrar os sacramentos. Por culpa disso:
Surgiu uma violenta discussão a respeito da maneira como se deveria tratar aqueles que durante a época da perseguição, não haviam sido suficientemente perseverantes. Em geral, havia a opinião de que aos que haviam caído, designados de Lapsi, deveriam ser tratados sem muita severidade e perdoados. Um grupo pequeno, mas muito ativo, dirigido por um clérigo jovem e resoluto de nome Donato, desde 316 bispos de Cartago, voltou-se contra essa prática. Os donatistas, como eram designados os adeptos de Donato, não estavam dispostos a reconhecer bispos que haviam fugido ao martírio na época da perseguição.34
Devido, principalmente, a esse posicionamento dos donatistas, houve uma divisão,
existindo, a partir de agora, dois bispos em Cartago, Donato e Ceciliano, este último tinha o
apoio do imperador Constantino como representante legítimo da Igreja Católica. Não
satisfeitos com o apoio de funcionários e financeiro concedido por Constantino a Ceciliano,
os donatistas pediram ao imperador que toda essa questão fosse julgada por três bispos
galicanos, no entanto o imperador entregou a causa nas mãos do bispo de Roma, Miltíades,
que convocou um sínodo de bispos. Nesse sínodo ficou decidido “que o carisma está sobre o
ministério, e não sobre o bom ou o mau caráter do depositário do ministério”. Devido a essa
conclusão, “Ceciliano foi reconhecido com bispo e Donato foi excomungado”.35
As perseguições ao cristianismo sofridas pelo império romano tinham como pano de
fundo um interesse muito mais político do que religioso e o retrato fiel desse pensamento é a
perseguição promovida por Diocleciano:
Foi a mais sistemática e a mais terrível. Numa série de editos, determinou-se que todos os exemplares da Bíblia fossem queimados. Ao mesmo tempo, ordenou-se que todos os templos construídos em todo o império durante meio século de aparente calma fossem destruídos. Além disso, exigiu-se que todos renunciassem ao cristianismo e a fé. Aqueles que não o fizessem, perderiam a cidadania romana e ficariam sem a proteção da Lei.36
Em alguns lugares, os cristãos eram encerrados nos templos e, depois, ateavam-lhes
fogo, com todos os membros em seu interior. Consta que o imperador Diocleciano erigiu um
monumento com esta inscrição: “Em honra ao extermínio da superstição cristã”.37
Agostinho se contrapôs, ao donatismo, ele defendia a ideia de que os sacramentos por
si só já são santos, portanto, não havia a necessidade de que aqueles que os ministravam
34 DREHER, N. Martin. Coleção História da Igreja. 7. ed. Porto Alegre: Sinodal, 1993. v. 1, p. 61. 35 DREHER, 1993, p. 63. 36 SCOTT, 2006, p. 234. 37 DREHER, 1993, p. 61.
31
fossem totalmente dignos de tal função. A capacidade do sacerdote em administrar os
sacramentos, independem da pessoa que os administra e, por isso, também independem das
características morais do sacerdote: é Jesus Cristo — segundo Santo Agostinho — que opera
através do sacerdote, independentemente do comportamento moral dele.
Outro grupo combatido por Agostinho foi o dos Pelagianos, estes, negavam o pecado
original e; consequentemente, a necessidade da redenção. Pelágio foi monge na Grã-Bretanha,
nascido por volta de 360, famoso por sua disciplina moral, se mudou para Roma no final do
século IV, onde junto com seus amigos Celestius, e o bispo de Eclanum, Juliano e começou a
ensinar os seguintes pontos:
Adão foi criado mortal e teria morrido quer tivesse pecado, quer não; o pecado de Adão contaminou só ele e não a raça humana; as crianças recém-nascidas estão naquele estado em que estava Adão antes da queda; a raça humana inteira nem morre por causa da morte de Adão, nem ressuscita pela ressurreição de Cristo; a Lei, tanto quanto o Evangelho, conduz ao Reino dos céus; mesmo antes da vinda de Cristo houvera homens sem pecado.38
Para Pelágio não haveria a necessidade de alguma graça especial de Deus, pois era
algo que estaria presente em todos os lugares, em todo momento. Essa doutrina era marcada
pela ética, exortação à virtude e pela busca sincera de uma vida santa e reta. A felicidade e a
santidade deveriam ser cultivadas pela virtude e obtidas pelo empenho da vontade.
Por sua vez, Agostinho defendia que o homem, por culpa do pecado de Adão, jamais
poderia se salvar sem a graça especial de Deus e que o homem por seus próprios méritos não
pode recebê-la. Ele estava convencido que todos os homens mereciam o juízo: “Agostinho
declarou que a totalidade da massa de nossa natureza foi arruinada e caiu na posse de seu
destruidor. E dele ninguém – nem mesmo um – se libertou, ou será libertado, exceto pela
graça do Redentor”.39
No Novo Testamento, Deus continua ditando as regras, em relação a aliança da graça,
mas também viabiliza as condições para que elas sejam cumpridas através do Consolador.
“Não há na aliança da graça nenhuma condição que se possa considerar meritória”.40 Portanto,
até a fé, que é o único meio de se chegar a salvação é um dom de Deus, deixando o homem,
por culpa disso, numa total dependência de Deus. “Em virtude da graça que me foi concedida,
eu peço a todos e a cada um de vós que não tenha de si mesmo um conceito mais elevado do
que convém, mas uma justa estima, ditada pela sabedoria, de acordo com a medida da fé que
38 FERREIRA, 2006, p. 29. 39 SCOTT, 2006, p. 234. 40 BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 259.
32
Deus dispensou a cada um” (Rm 12,3). Fé essa, que é um dos atributos da graça. “Pela graça
sois salvos, por meio da fé, e isso não vem de vós, é o dom de Deus” (Ef 2,8).
3.2 O CONCEITO DA GRAÇA SEGUNDO AGOSTINHO
Sem sombra de dúvidas, e usando de justiça, podemos dizer que Agostinho é aquele
que concentra em compêndios muito da doutrina da graça de Deus que hoje nós conhecemos.
É bem verdade que outros que vieram após ele, como Lutero e Calvino, desenvolveram essa
doutrina. No entanto, todos eles beberam na fonte de Santo Agostinho. Como relatamos
anteriormente, Agostinho teologizou a doutrina da graça a partir do cenário da criação,
especificamente, a partir da queda do homem e para isso, ele faz uso dos textos paulinos:
“Conforme está escrito: Não há homem justo, não há um sequer, não há quem entenda, não há
quem busque a Deus. Todos se transviaram, todos juntos se corromperam; não há quem faça o
bem, não há um sequer [...] visto que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus”
(Rm 3,10-12,23).
Agostinho defendia a tese da depravação total do homem por culpa do pecado e que
esse, por si só, jamais se reconciliaria com Deus, no que diz respeito à esfera espiritual. Que
só Deus, em Cristo Jesus, pode reatar esse relacionamento. Naquilo que o apóstolo Paulo diz:
“e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo
Jesus” (Rm 3,24). Para Agostinho não basta o conhecimento da lei sem o auxílio da graça de
Deus. A Lei, como proibição desperta mais o desejo do mal, para ele:
O querer-crer e o querer-amar são dons puramente gratuitos de Deus. Não se deve à intervenção pessoal do sujeito o mérito do “início da fé” e do “início do amor”. Não deixa à vontade pessoal do crente uma “cooperação” na obra da salvação senão mínima, diminuída, em comparação com a plenitude da eficácia da ação divina. A vontade de crer é um dom de Deus. Afirma Agostinho que, “se a vontade de crer procedesse da natureza humana, deveria existir em todos, pois é o mesmo Criador de todos. Porque ele não a concede a todos se quer que todos os homens se salvem?41
Ele acreditava que os que praticam a lei, não tendo o auxílio do Espírito Santo, além
de não conseguirem cumprir todos os seus preceitos, os faziam por temor ao castigo e não por
amor à justiça, portanto, para Agostinho, tudo que o homem é e tem, é fruto da graça de Deus
derramada sobre ele, seja essa graça comum ou especial.
41 AGOSTINHO. A Graça. São Paulo: Paulus, 2002. v. 1 e 2, p. 15.
33
3.2.1 Graça Comum
Com certeza não existe dois tipos de graça, mas apenas uma, na qual Deus mostra seu
favor imerecido ao homem, favor de que este fora privado com justiça. Contudo, esta graça
compensadora se manifesta em diferentes dons e operações. Essa graça:
Aparece também nas bênçãos naturais que Deus derrama sobre o homem na presente vida, apesar do fato de que o homem perdeu o direito a elas e se acha sob sentença de morte”. A obra da graça divina se vê em tudo que Deus faz para restringir a devastadora influência e desenvolvimento do pecado no mundo, e para manter, enriquecer e desenvolver a vida da humanidade em geral, e dos indivíduos componentes da raça humana. “Deve-se ressaltar, que estas bênçãos são manifestações da graça de Deus ao homem em geral.42
Conceito: nisso pode se distinguir a graça comum e a graça especial. A primeira é
aquela que Deus, por sua livre e soberana vontade concede a toda criação, em especial ao
homem, para que esse possa ter condição necessária para a realização de cada boa ação na
esfera moral, social e justiça cível. Porém, ela não remove a culpa do pecador, não renova a
natureza humana e nem promove a salvação. Isso, só a graça especial é capaz de fazer.
Embora o homem possa exercer boas ações no campo moral, social e na lei civil,
Agostinho enfatiza a impotência do homem e sua total dependência da graça de Deus, a qual
de forma correta e justa atua na vontade, quer como graça operante, quer como graça
cooperante, com o intuito do homem atingir o propósito de Deus. Agostinho admite:
Os pagãos podem praticar certos atos que são bons em si mesmo e que, numa perspectiva inferior, são até louváveis, mas julgava que estes atos, como atos de pessoas não regeneradas, são pecados, porque não brotam da motivação do amor a Deus ou da fé, e não correspondem ao propósito certo – a glória de Deus. Ele negava que tais ações são fruto de qualquer bondade natural do homem.43
Logo, todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte
onde se encontre, é propriedade do Senhor44. Assim, os filósofos, especialmente os
platônicos, quando anunciavam teses verdadeiras e compatíveis com a fé cristã, não deviam
ser temidos nem evitados, antes devíamos reivindicar essas verdades para nosso uso, como
alguém que retoma seus bens de possuidores injustos, conforme citado por Franklin Ferreira:
42 BERKHOF, 2001, p. 402. 43 Ibid., p. 399. 44 FERREIRA, 2006, p. 109.
34
Verificamos esse fato quando Deus ordena a saída do povo hebreu do Egito, os egípcios possuíam ídolos e impunham pesados cargos que o povo hebreu devia abominar e fugir, mas tinham também vasos e ornamentos de ouro e prata, riquezas que o povo hebreu tomou posse, sem alarde (Ex 3,22), na intenção de dar a elas melhor emprego, tudo isso feito debaixo da autoridade de Deus (Ex 12,35.36). E os egípcios não contestaram esses bens, dos quais faziam mau uso. Isso acontece também com outras doutrinas pagãs. Eles possuem, igualmente, artes liberais bastante apropriadas ao uso da verdade e preceitos morais muito úteis. Quanto ao culto do único Deus, encontramos nos pagãos algumas coisas verdadeiras, que são como o ouro e a prata deles. Eles não a fabricaram, mas a extraíram, por assim dizer, de certas minas fornecidas por Deus, as quais se espalham por toda parte e das quais usaram a serviços diversos. Quando, porém, alguém se separa dessa sociedade pagã, tendo-se tornado cristão, deve aproveitar-se dessas verdades, em justo uso, para pregação do evangelho.45
Assim é igualmente pequena a ciência, se bem que útil, encontrada nos livros pagãos,
em comparação com a ciência contida nas divinas Escrituras. Porque tudo o que um homem
tenha aprendido de prejudicial aí está condenado, e tudo o que aprendeu de bom aí está
ensinado. E quando cada um tiver encontrado tudo o que aprendeu de proveitoso em outros
livros, descobrirá muito mais abundantemente aí. E o que não aprendeu em nenhuma parte
somente encontrará na admirável superioridade e profundidade destas Escrituras.
3.2.2 Graça Especial
Ao contrário da graça comum, a qual Deus por sua livre e soberana vontade, concede a
toda criação, em especial ao homem, visando manter o mínimo de equilíbrio na esfera moral e
social e com isso restringir a devastadora influência e o desenvolvimento do pecado no
mundo, a graça especial também é concedida ao homem pela soberana vontade de Deus sem
nenhum mérito deste. A graça especial tem como finalidade e objetivo restaurar o homem
decaído e trazê-lo novamente a uma esfera de relacionamento de pai e filho, daí Agostinho
dizer: “Não sejais ingratos para com a graça tão imensa daquele que tendo um único filho não
quis que ele fosse único. Para que tivesse irmãos, adotou filhos que, com o Filho, pudessem
possuir a vida eterna”.46
Somente a graça especial promove a salvação e leva o homem a morar no céu. A graça
comum mostra ao pecador o seu pecado, todavia, a graça especial limpa o pecador do seu
pecado. A graça comum, mostra ao pecador a sua natureza degenerada, enquanto a graça
especial regenera e renova a natureza do pecador. Segundo escreve Louis Berkhof: “Graça
45 FERREIRA, 2006, p. 109-110. 46 Ibid., p. 105.
35
especial é aquela que justifica e vivifica o homem e o dota de todos os dons e talentos com a
finalidade dele ser usado somente para a glória de Deus”.47
Segundo Agostinho, a graça especial, embora avultem outros benefícios, está ligada
diretamente à salvação do homem, Deus o justifica sem nenhum mérito: “E são justificados
gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus...” (Rm 3,24).
Um dos benefícios mais importantes, além da salvação, que a graça especial outorga ao
homem, é para ele “bem agir e perseverar no bom caminho impulsiona-nos não somente a
poder o que queremos, mas também a querer o que podemos”.48 Só a graça especial traz ao
homem o conhecimento da verdade, a qual a liberdade por si só é incapaz de encontrá-la.
Segundo Agostinho:
A nossa vontade é sempre livre, mas não é sempre boa. Ou é livre da justiça, quando se sujeita ao pecado, e então é má, ou é livre do pecado quando serve a justiça, e nesse caso é boa. A graça de Deus, porém, é sempre boa, e faz com que tenha boa vontade quem antes tinha má.49
Agostinho nos mostra através da graça especial que Deus um dia nos dará a coroa da
vitória, através dos dons que recebemos, e não através dos nossos méritos, e, se somos
coroados, é pela misericórdia de Deus que somos. Portanto:
Louva sempre o Senhor, não esqueças as suas retribuições. É uma retribuição seres chamado quando és pecador e ímpio para seres justificados. É uma retribuição, quando és reerguido e dirigido para não caíres. Trata-se de uma retribuição receberes força para perseverares até o fim. É uma retribuição que esta tua carne, que pesa sobre ti, ressuscite e não se perca nem um cabelo de tua cabeça. É retribuição seres coroado após a ressurreição. É retribuição louvares a Deus eternamente sem desfalecer.50
3.2.3 Graça Preveniente
Agostinho, a pedido de seus discípulos, Hilário e Próspero, defensores de suas
doutrinas contra os semipelagianos de Marselha, terminava a redação das Retratações por
volta de 429. Provavelmente, este é o último livro de Agostinho. Nele Agostinho continua
escrevendo sobre as doutrinas da graça desde o início da fé até a perseverança final. No livro,
sobre a predestinação dos santos, Agostinho corrigia o erro que atribuía à iniciativa humana o
início da fé e que os salvos e eleitos eram predestinados por graça divina, sem que Deus
47 BERKHOF, 2001, p. 430. 48 AGOSTINHO, 2002, p. 118. 49 Ibid., p. 56. 50 FERREIRA, 2006, p. 107.
36
levasse em conta seus merecimentos, enquanto os condenados se perdiam por justiça e não
por desprezo ou falta de misericórdia da parte de Deus. Em Retratações, ele quer provar que a
perseverança até o fim é também um dom de Deus. Segundo ele, esta graça não é dada
segundo os méritos daqueles que a recebem, mas concedida a uns pela misericórdia de Deus e
recusada a outros pela justiça divina. Trata-se daquela perseverança até o fim desta vida
terrestre e não aquela perseverança de certo tempo de vida. É a perseverança de Mt 10,22:
“[...] Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo”.
Por isso, os que perseverarem estarão misturados com os que não o farão, conforme
está escrito: “Tende a mesma estima uns pelos outros, sem pretensões de grandeza, mas
sentindo-vos solidários com os mais humildes; não vos deis ares de sábios” (Rm 12,16), e
“Portanto, meus amados, como sempre tendes obedecido, não só na minha presença, mas
também particularmente agora na minha ausência, operai a vossa salvação com temor e
tremor, pois é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade” (Fl
2,12.13). Ou seja, nós queremos, mas é Deus quem opera em nós e nos leva a operar de
acordo com sua boa vontade.51 Nesse sentido, podemos reconhecer que: a doutrina da
predestinação como a proclama a santa Escritura, ou seja, nos predestinados, os dons e a
vocação de Deus são irreversíveis, ou se admitir a concessão da graça de Deus de acordo com
nossos merecimentos, como afirmavam os pelagianos. Doutrina está condenada pelo próprio
Pelágio quando escreve nas suas atas aos bispos orientais.
Esses irmãos, cuja causa escrevemos, distam tanto do veneno herético que, embora não queiram confessar ainda serem predestinados os que se submetem à graça de Deus e perseveram, contudo confessam que a graça antecede a vontade daqueles a quem é dada. No entanto, não acreditam na doação gratuita da graça, como ensina a Verdade, mas professam a doação dela de acordo com os méritos da vontade precedentes.52
Portanto, Agostinho tinha segurança em afirmar que a graça antecede a fé. Caso fosse
ao contrário, a vontade é que prevaleceria antes da fé; isso porque a fé não poderia existir sem
a vontade de crer. Se cremos que podemos alcançar esta graça e cremos deveras por um ato da vontade, devemos investigar a origem deste querer em nós. Se nos vem pela natureza, por que não vem a todos? O mesmo Deus não é o criador de todos? Se procede de um dom de Deus, por que não favorece a todos, pois ele quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade?53
51 AGOSTINHO, 2002, v. 2, p. 246. 52 Ibid., p. 256. 53 AGOSTINHO, 2002, v. 1, p. 86.
37
A verdade é que a doutrina da graça precede todas as ações de Deus para com o
homem, conforme escrito nas Escrituras Sagradas: “[...] que nos salvou e nos chamou com
vocação santa, não em virtude de nossas obras, mas em virtude do seu próprio desígnio e
graça. Essa graça, que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos,...” (2 Tm 1,9).
Aliás, o próprio fato de que havia um pacto de graça na eternidade é outra evidência de graça
preveniente, pois se Deus fez provisão para a redenção do homem antes que houvesse
homem, então Ele estava trabalhando antecedentemente em graça. Essa graça preveniente não
só opera por nós antes que cheguemos a perceber, mas também, antecede até mesmo a
existência humana; data desde a eternidade, e se estende no tempo. J. B. Moody expressa esse
pensamento em seu livro: The Exceeding Riches of the Manifold Grace of God, assim:
A graça reinava não só na eternidade passada na concepção do plano, mas também no tempo ao executá-la, e continuará a reinar até que tudo esteja consumada. É de eternidade a eternidade. Daí, a graça reinou em nossa redenção, regeneração, justificação, santificação e reinará em nossa preservação, ressurreição e glorificação final. Se a graça reinante reina, ela então determina, e é isso o que leva ela a ser entendida como preveniente.54
Pode-se também dizer da graça preveniente, que nenhum homem pode ter fé em Cristo
por qualquer poder, vontade e desejo pessoal; é de fato dom de Deus, que quando e onde lhe
agrada, a opera no homem mediante seu Espírito Santo, a fim de que ele receba tudo o que lhe
será administrado de modo justo pela Palavra externa, e os Sacramentos instituídos por Cristo
para a salvação, Disso diz João Batista: “Um homem nada pode receber a não ser que lhe
tenha sido dado do céu” (Jo 3,27). E o próprio Cristo declarou: “Todo aquele que o Pai me der
virá a mim, e quem vem a mim eu não o rejeitarei” (Jo 6,37). Toda a doutrina da graça tem
por finalidade preparar o homem, sem nenhum mérito deste, a um novo encontro com Deus,
já regenerado em Cristo Jesus, para o estado primário de relacionamento o qual Adão se
encontrava antes da queda. Podemos afirmar que a graça preveniente de Deus é o único fator
diferenciado em nossas vidas, é a única coisa que nos impede de andarmos fora dos caminhos
dele. Foi a graça preveniente de Deus que nos distinguiu desse estado de pecado.
Portanto, a graça precede nas preparações para a glória no céu, conforme está escrito:
“o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, tudo
o que Deus preparou para os que o amam. A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito” (1Cor
2,9.10). E “Penso, com efeito, que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com
a glória que deverá revelar-se em nós” (Rm 8,18). Até mesmo a glória do milênio, é um
54 MOODY, J. B. The Exceeding Riches of the Manifold Grace of God. Martin, Tenessee: Hall
MoodyInstitute, [s. d.], p. 166.
38
assunto dessa mesma graça preveniente: Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita:
“Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a
fundação do mundo” (Mt 25,34).
Quando Agostinho fala de graça, fala de algo irresistível ao homem, por culpa deste se
encontrar moralmente e espiritualmente morto. Segundo ele, a graça nos ressuscita, nos
reconcilia com Deus, nos traz a luz e nos ajuda a pelejar contra o pecado, nos provendo de
tudo aquilo que é divino para sermos vitoriosos.
3.2.4 Graça Cooperante
A doutrina da graça de Deus em Santo Agostinho, basicamente, é formulada com o
auxílio de textos paulinos, principalmente no que se refere à graça cooperante, segundo ele:
O decálogo, sem a graça, é letra morta, lei que não justifica. A justiça se inscreve nos limites do agir humano, mas supõe o auxílio da graça de Deus. Constitui, pois, erro grave crer que se possa alcançar a justiça perfeita só com as forças humanas, naturais. Este é o erro fundamental em que incorrem os pelagianos. Agostinho combate, portanto, a afirmação pelagiana, segundo a qual a justificação é obra humana. Nem o livre-arbítrio, nem a prática dos mandamentos bastam para justificar, é absolutamente necessária a ajuda do Espírito Santo.55
Apesar de o homem ser dotado com o dom da liberdade e ser ensinado como viver
segundo os preceitos de Deus, ele precisa do auxílio do Espírito Santo, que infunde em sua
alma a complacência e o amor do Bem incomunicável que é Deus. Assim, com o penhor da
graça recebido gratuitamente, deseja aderir ao Criador e anele vivamente aproximar-se da
participação daquela luz verdadeira. São neste sentido as palavras do Apóstolo: “e tenho plena
certeza de que aquele que começou em vós a boa obra há de levá-la à perfeição até o dia de
Cristo Jesus” (Fl 1,6). Agostinho faz uso dos textos da Carta aos Romanos para mostrar que é
impossível o homem sem a ajuda do Espírito Santo caminhar na justiça. Isso porque, o pecado
e a morte contaminaram todo gênero humano, e a lei, embora sendo divina, acabou avultando
(avolumando) mais as faltas. Por culpa da lei, que diz, “Não cobiçaras”, passou, por culpa
disso, a gerar no homem todo tipo de concupiscência, mesmo esse sabendo que isso é pecado.
Para ele, a lei, por si só, jamais poderia justificar o homem, não por culpa dela, mas
por culpa da herança pecaminosa do homem em Adão, o que leva o apóstolo Paulo expressar:
“Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu
alcance, não porém o praticá-lo” (Rm 7,18). Deus, por amor a sua criação, superabundou a
55 AGOSTINHO, 2002, v. 1, p. 13.
39
sua graça, fazendo justiça ao homem, sem nenhum merecimento deste, enviando Jesus em
forma de homem, para cumprir toda a lei e assim justificasse todos aqueles que nele cresse e
assim pudesse, com a ajuda do Espírito Santo cumprir toda a lei, não com medo da punição,
mas sim por amor a justiça em Cristo Jesus. Não podemos esquecer que para Agostinho toda
a lei em Cristo se resumia numa só palavra “Caridade” (Amor), conforme as palavras de
Paulo:
Não devais nada a ninguém, a não ser o amor mútuo, pois quem ama o outro cumpriu a Lei. De fato, os preceitos: Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e todos os outros se resumem nesta sentença: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da Lei (Rm 13,8-10).
Segundo Agostinho, “o que deseja cumprir os mandamentos de Deus e não tem
capacidade, na realidade tem boa vontade, mas é ainda débil (fraco) e impotente. Terá
capacidade quando a vontade se manifestar forte e decidida”56 e isso, só poderá acontecer,
com a cooperação do Espírito Santo, agindo na vida daqueles que já foram justificados.
Portanto, para querermos, ele age em nós; quando queremos, com vontade decidida, coopera
conosco. Porém, quando não age para querermos ou não coopera quando queremos, somos
incapazes de praticar as obras de piedade. Sobre sua ação para querermos, está escrito: É Deus
que opera em nós o querer. Sobre sua cooperação quando queremos e, ao querer praticamos,
diz: E nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam (Rm 8,28).57
Por tudo isso Agostinho professa uma das suas célebres frases: “Concede-me o que me
ordenas, e ordena o que quiseres”.58
A vontade daqueles que têm o Senhor Jesus como senhor de suas vidas é de tal
maneira guiada pelo Espírito Santo, que podem agir bem porque assim o querem; e querem,
porque Deus faz com que queiram. Só a graça tem o poder de operar em nós toda boa obra.
3.2.5 Graça Perseverante
Agostinho sustentava o seu pensamento da graça perseverante fazendo uso do relato
da criação, no sentido de mostrar o quanto o homem sem a ajuda de Deus certamente irá fazer
mau uso da sua liberdade. “Aquele, porém, que pensa poder perseverar por suas próprias
56 AGOSTINHO, 2002, v. 2, p. 58. 57 Ibid., p. 59. 58 FERREIRA, 2006, p. 111.
40
forças, não reza para alcançá-la. Portanto, devemos tomar cuidado para que, por temor a que
se arrefeça a exortação, não venha a extinguir-se a oração e se acender a soberba”.59
Defendia que a liberdade que Deus deu a Adão, foi lhe dado para que ele honrasse a
Deus, no entanto, Adão permitiu que ela sucumbisse diante da tentação e que diante deste
triste relato da queda, era necessária uma liberdade maior. É impossível se adquirir a
perseverança pela vontade humana, pois também essa, é um dom de Deus, que é concedida ao
homem pela súplica e que quando recebida, não mais pode ser tirada.
Para Agostinho, a liberdade do homem não é suficiente para não cair em tentação,
disso vem a necessidade da dependência do agir de Deus na vontade do homem. Desse modo,
a graça divina é preveniente, no sentido de anteceder a fé, e perseverante, no sentido de ajudar
o ser humano a fazer uso da sua liberdade dignamente. O modo como Agostinho vê o ser
humano na criação é crucial para entender a capacidade moral da criatura. Apenas Deus
imutável possui a non posse pecare. Na criação, Adão violou o comando de Deus e
experimentou uma “queda” cuja causa foi o orgulho:
Na criação, Adão tinha a possibilidade de pecar, mas não tinha a necessidade de pecar. Em vez disso, ele violou o comando de Deus e experimentou uma “queda” cuja causa foi o orgulho: Contudo, começaram a ser maus no interior, para depois se precipitarem em desobediência formal, porque não se houvera consumado a obra má, se não a houvesse precedido a má vontade. Pois bem, qual pôde ser o princípio da má vontade, senão a soberba? [...] E o que é a soberba, senão apetite de celsitude perversa? A celsitude perversa consiste em abandonar o princípio ao qual o ânimo deve estar unido e fazer-se de certa maneira princípio para si e sê-lo. Esse declinar é espontâneo, pois se a vontade houvesse permanecido estável no amor ao bem superior e imutável, que a iluminava para ver e a incendiava para amar, não se haveria afastado dele para agradar-se a si mesma [...]. Logo, a obra má, quer dizer, a transgressão, o comer do fruto proibido, praticaram-na os que já eram maus, porque o mau fruto, como semelhante ação, não o produz senão a árvore má.60
Vale salientar que Agostinho descreve a “queda” do ser humano e a explica como
resultado de uma tentação súbita de buscar satisfação em si mesmo. Além disso, o orgulho,
como causa da “queda”, já está presente e já é mau antes do ato.
Ao primeiro homem, que na criação recebera o dom de poder não pecar (posse non
pecare), poder não morrer (posse non mori), poder não se afastar do bem (posse non cadere),
foi-lhe concedida a ajuda da perseverança, não para perseverar, mas sem a qual não poderia
perseverar pela força do livre-arbítrio. Mas agora os santos destinados ao reino de Deus pela
sua graça recebem não a ajuda para a perseverança, mas um dom que lhes outorga a própria
perseverança. Assim, não somente não podem perseverar sem esse dom, mas com ele
59 AGOSTINHO, 2002, v. II, p. 254. 60 AGOSTINHO. De civitate Dei. Summa Theologica I. cap. XIV, 13, 1.
41
perseveram realmente. Pois Cristo, não disse apenas: Sem mim nada podeis fazer (Jo 5,15),
mas também: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei
para irdes e produzirdes fruto e para que o vosso fruto permaneça (Jo 15,16).61 “É necessária
liberdade maior para enfrentar tantas e tão fortes tentações, as quais não houve no paraíso, e,
além disso, mais protegida e mais vigorosa com o dom da perseverança, para vencer este
mundo com todos os seus amores, temores e erros”.62
Agostinho defendia que a vontade do homem sucumbi diante de tantas e tão agressivas
tentações e que a perseverança no fazer a vontade de Deus, só poderia ser conquistada pela
insistência na oração. Para ele a oração dominical é o veículo pelo qual, sendo suplicado
constantemente, vem o fortalecimento do homem para perseverança na santificação. Para isso,
cita a obra do bem-aventurado mártir Cipriano intitulada, “A oração do Senhor”, segundo ele,
um antídoto preparado muitos anos antes, contra os futuros erros dos pelagianos, nesta oração,
Agostinho mostra três questões pelas quais a Igreja Católica lutava: A primeira era a questão
da graça que é concedida ao homem sem nenhum merecimento deste. A segunda é que
enquanto estivermos aqui na terra é impossível não pecar. A terceira é que a Igreja sempre
defendeu que o homem nasceu com uma natureza pecaminosa e que, por culpa disso, merece
a condenação e que somente pela regeneração se anula esse vínculo contraído e que o único
meio de se prevalecer nesses três pontos, é através da graça de Deus, dentro de um contexto
de perseverança na oração do Pai Nosso (Mt 6,9).63
Porque Deus mandaria pedir alguma coisa caso não seria ele que nos desse, isso seria
no mínimo ridículo, se Deus mandou e nós pedimos é porque ele sabia que a perseverança é
um dom que só ele pode nos dar e que ninguém sem ele pode adquiri-la. Agostinho se refere a
obra do mártir Cipriano ao dizer que, pedimos que o nome de Deus seja santificado, não por
culpa das nossas orações, mas sim, para que seu nome seja santo em nós e se possa cumprir,
aquilo que o próprio Deus diz: “Sede santo, porque eu, o vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). E
assim com essa graça, possamos perseverar no caminho que começamos a trilhar.
Segundo Agostinho, Cipriano entendia por céu o nosso espírito e a terra por nosso
corpo, portanto, oramos pedindo a graça da perseverança para fazer a vontade de Deus aqui na
terra, como os anjos o fazem no céu. Quando se pede: “seja feita a tua vontade” é porque se
deseja que isso se realize e não porque já se realizou.
61 AGOSTINHO, 2002, v. 2, p. 120. 62AGOSTINHO, 2002, v. 2, p. 121. 63 Ibid., p. 216.
42
É verdade que não se pode dizer neste caso que os santos pedem a realização da vontade de Deus no céu, mas, sim, que se realize na terra como no céu, que a terra imite o céu, ou seja, que o homem imite o anjo ou o infiel imite o fiel. Assim os santos suplicam que aconteça o que ainda não existe, e não que continue a ser o que existe. Pois, por mais santidade que o homem cultive e nela se distinga, não se equiparará aos anjos de Deus e, por conseguinte, não realizam a vontade de Deus como é feita nos céus.64
Quando pedimos que: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje” (Mt 6,11), isso tem
como objetivo a perseverança. Pedimos que a cada dia nos seja concedido o pão, a fim de não
nos separarmos do corpo de Cristo os que estamos em Cristo e recebamos o alimento da
Eucaristia todos os dias, a não ser que, devido a algum pecado mais grave, sejamos impedidos
de comungar o pão celestial.65 Segundo Agostinho, estas palavras indicam que os santos
imploram de Deus a perseverança, quando rezam nessa intenção é para que não sejam
separados do corpo de Cristo, mas permaneçam na santidade, mediante a qual não cometam
algum pecado que os torne merecedores de tal separação.
“E perdoa-nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores”
(Mt 6,12). Nesta petição, não se encontra o pedido de perseverança, pois, está relacionado aos
pecados do passado, já que hoje nós pedimos a perseverança para o tempo desta vida que nos
garante a salvação eterna. Embora, ainda sendo pecador, devemos pedir o perdão a Deus a
cada dia como João escreve em sua carta. Se dissermos: “Não temos pecado”, enganamo-nos
e a verdade não está em nós (1Jo 1,8). E quando oramos: “E não nos submetas à tentação, mas
livra-nos do Maligno” (Mt 6,13). Não estamos perseverando na santificação? E quando isso
nos é concedido fica claro que é dom de Deus, já que ninguém suplicaria por perseverança na
santificação, caso nunca tivesse caído em tentação, no mínimo, isso seria loucura.
Alguém poderia ainda fazer o seguinte questionamento: “Por vontade própria
abandona-se a Deus e com razão é por ele abandonado”. E quem nega a Deus? Quando
pedimos para não sermos submetidos à tentação, é para que isso não aconteça, e quando isso é
concedido, não acontecerá porque Deus nos guardará, isso porque ele é Deus. Ele tem o poder
de desviar do mal para o bem as vontades, converter a nossa pré-disposição à queda e nos
dirigir aos caminhos que são de seu agrado. Por isso está escrito: Ninguém, ao ser provado,
deve dizer: “É Deus que me prova”, pois Deus não pode ser provado pelo mal e a ninguém
prova. Antes, cada qual é provado pela própria concupiscência, que o arrasta e seduz (Tg
1,13.14). Todavia, existe uma tentação útil, que não nos engana nem oprime, mas nos sujeita à
provação, da qual está escrito: “Examina-me, Iahweh, põe-me à prova...” (Sl 25,2). Ser
64 AGOSTINHO, 2002, v. 2, p. 219. 65 Ibid., p. 220.
43
tentado e não cair na tentação, para Agostinho, não é um mal, pelo contrário, é um bem, visto
que significa ser provado.66 Para Agostinho, portanto: “Mas a todos que o receberam deu o
poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12). De Jesus Cristo são recebidos ao coração
humano bons pensamentos, com os quais alcança a fé, agindo pela caridade (Gl 5,6). Para
possuir este bem, conservá-lo e nele progredir com perseverança até o fim.67 “Não como se
fôssemos dotados de capacidade que pudéssemos atribuir a nós mesmos, mas é de Deus que
vem a nossa capacidade” (2Cor 3,5).
3.3 CARACTERÍSTICAS DA ESCOLÁSTICA: UM ESBOÇO PRELIMINAR
Enquanto a Patrística foi predominante do século I ao VII e teve como objetivo
consolidar o papel da Igreja e propagar os ideais do cristianismo, baseada nas Epístolas de
São Paulo e o Evangelho de São João, advogando a favor da Igreja e propagando diversos
conceitos cristãos como o pecado original, a criação do mundo por Deus e a ressurreição de
juízo final. A Escolástica foi predominante do século IX ao XV, onde, nesse período ocorreu
uma retomada de muitos princípios filosóficos gregos. A grande preocupação da Igreja era
aliar a razão e a ciência aos ideais da Igreja Católica. Nesse contexto, surgiu a teologia que foi
uma ciência que buscava explicar racionalmente a existência de Deus, da alma, do céu e
inferno e as relações entre homem, razão e fé.
A Escolástica foi o método de pensamento crítico dominante no ensino nas
universidades medievais europeias de cerca de 1100 a 1500. Não tanto uma filosofia ou uma
teologia, como um método de aprendizagem, a escolástica nasceu nas escolas monásticas
cristãs, de modo a conciliar a fé cristã com um sistema de pensamento racional. Tratando da
educação medieval, o ensino era ministrado nos conventos, mosteiros e catedrais. No século
XI, surgiram as Universidades, nas quais existiam quatro cursos: Artes, Medicina, Direito e
Teologia. Sendo que o idioma predominante na literatura medieval era o latim. Nesse período
a teologia concentrou-se na grande catedral e nas universidades de Paris e de Oxford68, tendo
como base, em grande parte, os escritos em latim de Agostinho de Hipona e Ambrosio.
Entretanto com tais mudanças, tanto na economia, política, social, religiosa e cultural, os
teólogos cristãos ocidentais têm uma nova preocupação: era necessário nesse novo cenário
uma sistematização e expansão da teologia cristã e a demonstração da inerente racionalidade
66 AGOSTINHO, 2002, v. 2, p. 224. 67 AGOSTINHO, 2002, v. 2, p. 230. 68 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p.
355;363.
44
dessa teologia. Com o a exploração do papel da razão nesse novo fazer teológico surge o que
denominamos escolasticismo.
Em resumo, o escolasticismo pode ser definido como um movimento medieval, que
enfatizou a sistematização e a justificação da teologia cristã por meio da razão. Por exemplo:
os dados da revelação deveriam ser organizados sistematicamente através do uso da lógica
dedutiva de Aristóteles e harmonizados com a filosofia de Aristóteles (Tomas de Aquino). É
pedagógica a divisão do período Patrístico para alguns teólogos e historiadores do
cristianismo, apresentá-la por fazes traz melhor compreensibilidade: A primeira fase irá do
século IX ao fim do século XII, caracterizada pela confiança na perfeita harmonia entre fé e
razão. A segunda fase irá do século XIII ao princípio do século XIV, caracterizada pela
elaboração de grandes sistemas filosóficos, merecendo destaques nas obras de Tomás de
Aquino. Nesta fase, considera-se que a harmonização entre fé e razão pôde ser parcialmente
obtida. E a terceira e última fase irá do século XIV até o século XVI, decadência da
escolástica, caracterizada pela afirmação das diferenças fundamentais entre fé e razão.
A descoberta de Aristóteles no século XIII causou admiração para alguns e
insatisfação para outros. Os chamados franciscanos de tradição agostiniana, não aceitavam a
cosmologia aristotélica preferindo a visão de mundo platônico. Até porque as obras de
Aristóteles apresentavam um novo olhar sobre a realidade, e por isso, por algum tempo os
escritos metafísicos de Aristóteles foram proibidos, mas esta foi apenas uma medida
temporária para ganhar uma pausa para tomar fôlego. A nova perspectiva aristotélica foi
realizada por dominicanos que recusavam a antiga cosmologia platônica adotada nas obras de
Agostinho de Hipona. Podemos considerar que; enquanto o pensamento Agostiniano-
platônica apresentava ser suficientemente místico, o tomista-aristotélico puxava o sujeito pra
baixo (realidade, racionalidade). Paul Tillich considera essa fase como o quinto elemento
presente na teologia cristã Aristotélica e classifica da seguinte maneira:
“O divino é forma sem matéria, perfeito em si mesmo”. Segundo Tillich, Aristóteles “entendia que Deus, a forma suprema ou ato puro (actus Purus) , como o chamava, move todas as coisas ao ser amado por todas as coisas” e que “a realidade toda deseja se unir à forma suprema, para se livrar das formas inferiores em que vive, na escravidão da matéria”.69
Esse Deus aristotélico entrou na Igreja Cristã e exerceu enorme influência
principalmente na formulação da teologia medieval.
69 TILLICH, 2007, p. 47 e 54.
45
É indispensável destacar alguns nomes mais influentes da escolástica, tais como:
Anselmo de Cantuária (1033 – 1093), Abelardo de Paris (1079 – 1142), Bernardo de Claraval
(1090 – 1153), Joaquim de Fiori (1132 – 1202), Boaventura (1221 – 1274), Tomás de Aquino
(1225 – 1274), Duns Scotus (1265 – 1308) e Guilherme de Ockham (1280 ou 1288 – 1347).
Estes formam os principais pensadores escolásticos, entretanto para a pesquisa em destaque,
daremos enfoque especial a Tomás de Aquino.
3.3.1 Trajetória Histórica de Tomás de Aquino
Tomás de Aquino nasceu entre 1224 e 1225 em Rocca Secca, no reino de Nápoles. De
1230 a 1239 foi educado no mosteiro de Monte cassino pelo abade Sinibaldo, seu tio paterno.
Logo em seguida, estudou as artes liberais em Nápoles. Em 1244 entrou para a Ordem
dominicana, à revelia da família. Despeitados, seus irmãos armaram-lhe uma cilada no
caminho a Paris, e o confinaram por vários meses ao cárcere. Restituído a liberdade por
intervenção de sua irmã, retoma sua viagem a Paris, onde muito provavelmente teve como
mestre a S. Alberto Magno de 1245 a 1248. Acompanhou-o também para Colônia, onde ficou
até 1252, ano em que retornou a Paris. Em 1257 obteve, juntamente com S. Boaventura, o
título de mestre, podendo, desde então, ensinar publicamente a teologia. Em 1259 participou
do capítulo geral da Ordem em Valenciennes, sendo enviado, em seguida, à Itália, onde
lecionou teologia na corte de Urbano IV e Clemente IV. Por esse tempo compôs a Summa
contra Gentiles. Foi igualmente na Itália que travou conhecimento com Guilherme de
Moerbecke, exímio conhecedor do idioma grego, que lhe fornecia versões fidedignas de
Aristóteles e outros filósofos helênicos. Em todas suas obras, está sempre uma vasta erudição,
não haurida diretamente nas fontes, pois Aquino não conhecia nem o hebraico, nem o grego,
nem o árabe. Limitado ao latim, conheceu e utilizou, porém, inúmeros autores “profanos”
((Eudóxio, Euclides, Hipócrates, Galeno, Ptolomeu), os filósofos gregos, sobretudo Platão e
Aristóteles, os árabes e judeus (AlFarabi, Avempace, Al Ghazali, Avicebrom, Avicena,
Averrróis, Israeli), e escolásticos, como Anselmo, Bernado de Clairvaux e Pedro Lombardo.
Mas foi principalmente influenciado por Alberto Magno, seu mestre em Paris. Após breve
estadia em Roma, no ano de 1265, vamos encontra-lo em Viterbo. Por esse tempo inicia a
redação da Summa Theologica, sua obra mais celebre, apesar de não ter sida concluída. De
1269 a 1270 vive, novamente em Paris, onde entra em luta aberta com o aristotelismo
averroísta. Em 1273 assiste ao Capítulo da Ordem em Florença, sendo encarregado de
instalar um Studium Generale em Nápoles. Pouco após, foi convocado por Gregório X ao
46
concílio de Lyon, mas veio a falecer durante a viagem, no convento dos Cistercienses, em
Fossa nova, a 7 de março de 1274. Ainda no leito de morte encontrou forças para expor aos
monges o Cântico dos Cânticos.70
Aquino fora dos momentos de debates acadêmicos e das conversações atinentes a
assuntos sérios. Era possuidor de uma índole serena e concentrada. Por toda a vida seguiu um
curso retilíneo e consistente, calado e reservado. Além disso, não apreciava perder tempo com
conversas inúteis.
Por isto um de seus colegas o chamou de “o boi mudo”. Conta-se que um de seus professores disse: “Um dia o mugido desse boi será ouvido em todo mundo”. Sua alma, aberta a tudo o que é nobre, bom e verdadeiro, desconhecia por experiência própria os abismos da humana miséria. Sua obra revela grande otimismo, que se poderia chamar de singelo, na melhor acepção da palavra, cônscio embora da insuficiência do espírito humano em face de muitos mistérios impenetráveis, alimenta contudo uma confiança inabalável no caráter racional do ser e na disposição ordenada do mundo. Por isso a sua obra respira uma tranquilidade soberana, sem contudo lograr aquele contato vivo com a realidade, nem a fina sensibilidade, de um Santo Agostinho.71
3.3.2 Heresia Combatida por Tomás de Aquino
Em 1268, a Ordem dos Pregadores nomeou Tomás para ser o regente mestre da
Universidade de Paris pela segunda vez, uma posição que ele manteve até a primavera de
1272. Parte da razão para esta súbita transferência parece ter sido a ascensão do "averroísmo",
conhecido também como "aristotelismo radical", nas universidades.
Quem foi Averróis (1128-1198)? Na realidade um filósofo árabe que se dedicou aos
comentários das obras de Aristóteles, tido por ele como um “ser divino” e “o príncipe de toda
a filosofia”. As conclusões a que chega Averróis comentando o Estagirita constituem a base
das teorias reunidas sob a denominação de averroísmo latino, que é um conjunto de
afirmações fortemente divergentes das teses da filosofia e da teologia da Igreja conforme
descrito:
O averroísmo recusa a ideia de Deus criador e causa primeira de todo existente; Deus conhece somente aquilo que é necessário, por isso as criaturas materiais não podem entrar no horizonte das suas preocupações, da sua providência e do exercício da causalidade. Contra o dogma da criação e do começo do mundo, os averroístas negam qualquer início das coisas criadas. No campo da psicologia (entendida como visão das faculdades espirituais do homem), o averroísmo propõe uma visão completamente diversa da dos teólogos e dos filósofos da escolástica; sustenta que a alma não está unida substancialmente ao corpo, não forma com o corpo uma única
70 BOEHNER; GILSON, 2004, p. 448. 71 Ibid., p. 448.
47
substância, que é única, corruptível e mortal. Essa visão comporta o desaparecimento de alguns pontos capitais da visão cristã do homem: a imortalidade individual, a diferença essencial entre o homem e os outros seres animados. Não menos graves são as consequências da visão moral do averroísmo: uma vez descartada a liberdade e afirmado o determinismo psicológico, o homem aparece como estando sob o total domínio da necessidade, como qualquer outro ser criado, e por isso mesmo isento de qualquer responsabilidade moral. Em lógica, o averroísmo sustenta a teoria da dupla verdade: relativamente ao mesmo assunto, pode-se verificar oposição entre as verdades alcançadas com a inteligência e as outras conhecidas graças à revelação sobrenatural.72
Como resposta a estes aparentes malefícios, Tomás escreveu duas obras. Na primeira,
"Sobre a Unidade do Intelecto, Contra os Averroístas" (De unitateintellectus, contra
Averroistas), ele ataca o averroísmo como sendo incompatível com a doutrina cristã. Foi
durante a segunda regência que Aquino terminou a segunda parte da "Suma" e escreveu "Dos
Virtuosos" (De virtutibus) e "Da Eternidade do Mundo" (De aeternitatemundi), esta tratando
do controverso conceito aristotélico e averroísta sobre a "falta de começo" do mundo.
Diversas controvérsias com alguns importantes franciscanos, como Boaventurae João
Peckham, ajudaram a tornar a segunda regência muito mais difícil e conturbada que a
primeira. Um ano antes de tomar posse novamente, nos debates de 1266-67 em Paris, o
mestre franciscano Guilherme de Baglione acusou Tomás de encorajar os averroístas,
chamando-o de "líder cego dos cegos". Tomás chamou-os de "murmurantes" (resmungões).
Na realidade, ele ficou profundamente perturbado pela disseminação do averroísmo e se
enfureceu quando soube que Siger de Brabante estava ensinando interpretações averroístas de
Aristóteles aos seus alunos em Paris.
Em 10 de dezembro de 1270 o bispo de Paris, Etienne Tempier, publicou um édito
condenando treze proposições aristotélicas e averroístas como sendo heréticas e excomungou
os que continuavam a defendê-las. Muitos na comunidade eclesiástica, os chamados
"agostinianos", temiam que a introdução do aristotelismo e sua versão mais extrema, o
averroísmo, pudesse de alguma forma contaminar a pureza da fé cristã. No que parece ter sido
uma tentativa de conter o temor contra o pensamento aristotélico, Tomás conduziu uma série
de debates entre 1270 e 1272, reunidos em "Sobre as Virtudes em Geral" (De virtutibus in
communi), "Sobre as Virtudes Cardeais" (De virtutibus cardinalibus) e "Sobre a Esperança"
(De spe). O mais famoso defensor do averroísmo foi Siger de Brabante, professor em Paris,
que foi condenado pela autoridade eclesiástica em 1277. Entre os que combateram o
averroísmo destaca-se Santo Tommás de Aquino.
72 PACOMIO, 2003, p. 69.
48
3.3.3 O Conceito da Graça Segundo Tomás de Aquino
O século XIII, conhecido como alta Escolástica, caracterizou-se pela síntese do legado
de Agostinho com o Aristóteles redescoberto. S. Domingos e S. Francisco haviam fundado as
ordens dominicana e franciscana, rejeitando os erros dos hereges, mas acolhendo o que havia
de legítimo nos ideais de reforma e dando-lhes uma expressão equilibrada e verdadeira dentro
da Igreja e não fora dela. No início do século XIII, o êxito das duas ordens, englobadas sob a
denominação de "mendicantes" por renunciarem a todo o tipo de posses, é explosivo. Esses
frades renunciam à vida retirada do monacato tradicional, dirigindo-se especialmente à
juventude das cidades. Aliás, o século anterior havia assistido a um verdadeiro renascimento
da vida urbana.
É natural que Tomás de Aquino se fizesse dominicano: o ideal de São Domingos
coincide perfeitamente com a vocação de Tomás. Está centrado, por um lado, no retorno ao
espírito do Evangelho, numa pobreza e pureza radicais, mas completadas pela fé e pela
humildade; e, por outro, na paixão de anunciar a verdade, convencendo pela argumentação e
não pela violência. Este contexto manifesta-se na doutrina da graça, em termos escolásticos,
surgia assim a diferença entre graça não-criada e graça criada (gratia increata – creata). A
graça não-criada é o próprio Deus enquanto aquele que se doa (não-criado = Ele próprio) na
humanização do Filho e na habitação do Espírito Santo, ou seja, da Trindade;
consequentemente, graça criada é o efeito provocado por meio de toda dedicação graciosa de
Deus na pessoa humana, na criatura. Por meio dessa distinção se preservou a diferença entre
Criador e criatura, conforme explica Bernd Jochen Hilberath:
Porém o que aconteceu mercê da dominante concepção do Espírito Santo, como vínculo de amor entre Pai e Filho, foi o esmaecimento da pessoalidade do Espírito e concomitantemente também o caráter pneumatológico bem como pessoal da doutrina da graça. Como o interesse espiritual e pastoral se concentrou cada vez mais sobre o efeito da graça junto ao receptor, passou para um plano secundário o polo principal do processo da graça como processo relacional, isto é, a graciosa inclinação de Deus. Neste contexto as distinções conceituais empreendidas não deixavam de fazer sentido. Por outro lado elas fomentaram a predominância de categorias objetivas e formais na doutrina da graça.73
Enquanto a escola franciscana, mais voltada para Agostinho, se movimentava dentro
de uma visão mais pneumatológica da doutrina da graça, a escola dominicana, menos
influenciada por Platão e mais por Aristóteles, desenvolvem nova doutrina ontológica da
graça, tendo como principal personagem Tomás de Aquino, que cria uma síntese tão
73 SCHNEIDER, Theodor (Org.). Manual de dogmática. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. v. II, p. 27.
49
admirável quanto arriscada ao cristianizar Aristóteles; estando ele próprio ligado a Platão por
intermédio de Agostinho. Tomás de Aquino em sua “Summa theologiae” trata da graça ao
final da primeira parte do livro II (Sth I-II q. 109-114), ou seja, antes da cristologia e no
contexto da fundamentação geral da ética.74 Os dois primeiros livros tratam da saída do ser
humano, da imagem de Deus, e do seu retorno para o mesmo, ou seja, esquema do egressus –
regressus. Já o terceiro livro trata dos meios salvífico nesse retorno, principalmente de Jesus
Cristo. Tomás entende que a atuação divina para fora é doação do Deus triuno, e somente a
humanização no sentido específico é ato do Filho eterno, ou seja, como um legado histórico-
teológico da atuação de Deus. Assim se preserva ao mesmo tempo a autonomia da doutrina da
graça. Graça não é subtema da cristologia e não pode ser reduzida ao perdão dos pecados; antes ela designa a segunda dimensão na relação entre Deus e ser humano após a criação: além daquilo que está dado na semelhança criatural em relação a Deus, os seres humanos estão destinados à consumação em Deus, por graça e em graça. Graça, portanto, abrange a inclinação de Deus para a Criação, desde a graciosa predestinação, passando pela humanização e pelo morar na alma dos agraciados, até a beatífica contemplação de Deus (visio beatifica).75
Segundo Tomás, a graça desempenha um papel decisivo de como a pessoa humana
encontra o caminho de volta para Deus, através dos seus princípios de agir. Princípios
internos, que ele classifica como virtudes ou vícios, e externos classificados como lei e graça
(na “Summa” é identificada como a nova lei). Isto nada tem a ver com transformação da graça
em algo exterior, legalista ou ético, essa classificação externa chama a atenção para o limite
da autonomia humana e, portanto, a necessidade da graça para a salvação; a nova lei é a lei do
Espírito, ou seja, um viver a partir do Espírito. Não se trata de uma ética “natural”, mas da
fundamentação de uma ética teológica, Tomás enxerga a semelhança do ser humano em
relação a Deus na realização da sua relação com o Deus triuno.
Thomas Söding, em seu livro, “A tríade fé, esperança e amor em Paulo” escreve o
seguinte:
Para Agostinho, fé (fides), esperança (spes), e amor (caritas), são a essência da religio, ou seja, da relação com Deus, em que repousa todo o pensar, querer e agir do cristão. Com base nisso, Tomás de Aquino, vê a fé, a esperança e o amor como as três virtudes teologais – em analogia com as quatro virtudes cardeais tradicionais. Elas se chamam virtudes porque são consideradas habitus, isto é, faculdades do cristão para querer e fazer o bem de bom grado, com leveza e prontidão (Suma teo. I-II, 62,3,2); e são teologais porque são derramadas por Deus (cf. Rm 5,5ss), dirigem-se a Deus e são reveladas por ele nas Escrituras (Suma teo. I-II, 62,1). Fé, esperança e amor são operados apenas pela graça de Deus. Tomás entende gratia
74 SCHNEIDER, 2009, p. 28. 75 Ibid., p. 28.
50
como movimento, enquanto se origina de Deus e a ele conduz, mas também como qualitas, na medida em que Deus, por causa do Reino de sua bondade, proporciona a graça ao homem de tal modo que ele “se deixe conduzir de maneira suave e com prontidão à aquisição da salvação eterna” (Suma teo. I-II, 110,2).76
Existem quatro enunciados fundamentais da doutrina da graça na escolástica tomista,
segundo escreve Theodor Schneider, em seu manual de dogmática.
Primeiro: graça não é qualidade, quer criada, quer não-criada, mas designa a relação entre Deus e ser humano. Não que seja uma relação entre iguais, já que, graça é formulada como o agir de Deus para com os seres humanos, a qual naturalmente “não deixa de ter efeito real sobre a criatura, tornando-se inerente ao ser humano neste sentido, mas permanecendo ‘princípio exterior’ no mais, ou seja, aquele ‘amor especial’ no qual Deus se doa a si próprio ao ser humano e o qual é idêntico à predestinação divina”.77
Quando falamos desse primeiro enunciado fundamental, significa nomear os dois
lados de uma relação. Segundo Tomás de Aquino, essa graça que se tornou inerente ao ser
humano diferencia-se tanto do amor divino criado quanto do não-criado, ele chama de
qualitas. “Com isto ele quer “exprimir a total e radical chegada do amor de Deus no centro da
essência do ser humano”.78
Portanto, graça é participação na natureza divina e fundamento das virtudes divinas.
Diferentemente de agir na virtude como hábito operativo (habitus operativus), ela age como
um hábito ontológico (habitus entitivus), não como “realidade objeto”, mas participando de
um processo relacional (Deus e o ser humano).
O segundo enunciado da doutrina tomista da graça, diz que ela é necessária para a
salvação; ela sana a natureza criada e a leva à consumação. Devido ao pecado o ser humano
perdeu sua natureza inalterada (natura integra); em sua nova natureza corrompida (natura
corrupta) ele necessita da graça não só para alcançar os alvos que ultrapassam os limites da
sua natureza, mas também para fazer o bem natural. Sendo assim, a graça tem em princípio e
em primeiro lugar efeito sanador. Tomás une esse benefício deixado por Agostinho com a
criação de natureza de Aristóteles interpretada a partir da fé criacional. Portanto, graça é
atuação divina junto à natureza humana, a qual precisa ser preparada para receber a graça,
nisto sendo não só curada, mas também consumada enquanto natureza criada. Para Tomás, a
natureza humana depende de algo fora de si, ela almeja por si mesma a comunhão com o
Deus triuno. Ela almeja a beatífica contemplação de Deus.
76 SÖDING, Thomas. A Triade Fé, Esperança e Amor em Paulo. São Paulo: Loyola, 2003. p. 23-24. 77 SCHNEIDER, 2009, p. 29. 78 Ibid., p. 29.
51
Graça é a criadora chegada do eterno amor de Deus no centro do eu do ser humano. Dentro da limitação em sua natureza, o ser humano é arrancado e elevado para a comunhão de vida com Deus, ao mesmo tempo em que é equipado com as capacidades que lho tornam possível e até fácil e óbvio: da graça ‘fluem’ fé, esperança e amor.79
O terceiro enunciado diz que a contribuição do ser humano para sua salvação depende
totalmente da graça de Deus. Tomás interpreta o modo de operação da graça no ser humano
como independente das suas ações, ou seja, antes de qualquer ação do homem ele já está
envolvido pela graça em todos os sentidos. A graça é sanadora e santificadora da “matéria” da
natureza humana, e nesse caso ela é forma, como também é auxilium, e nesse caso atua como
coadjuvante. Tomás utiliza a distinção entre graça precedente e graça subsequente para
estabelecer os seus diversos efeitos no ser humano, tais como: cura da alma, busca do bem,
realização do bem, nele perseverar e alcançar a glória. Tomás vai até aos limites do
concebível na tentativa de estabelecer a relação entre liberdade e graça. Assim como
Agostinho, ele sustenta a constante dependência que o agir relevante para a salvação tem em
relação a graça; para Tomás é importante a liberdade da vontade, porque a graça de Deus não
agiria contra nosso consciente. Claro que esse livre-arbítrio somente entra em atividade sob
influência da graça divina.
O quarto e último enunciado defende que, para o ser humano a graça santificadora é
em primeiro lugar e concretamente graça justificadora. Em termos efetivos o ser humano
existe como pecador, e somente a graça de Deus pode curar, levantar e consumar. Por isso a
graça santificadora de Deus atua inicial e concretamente como graça justificadora no pecador.
Segundo Tomás a justificação abrange quatro elementos: a infusão da graça, o voltar-se para
Deus, largar o pecado, e o perdão do pecado. O voltar-se para Deus é identificado com a fé da
protoconversão: “Ora, sem a fé é impossível ser-lhe agradável. Pois aquele que se aproxima
de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram” (Hb 11,6), sendo que
os quatro elementos devem ser considerados agindo simultaneamente e não como sucessivos
no tempo. No que se refere às disputas desde o período da Reforma, com base em Tomás, é
preciso sustentar:
A graça de Deus tem a primazia absoluta e incondicional, ela significa em primeiro lugar perdão dos pecados. A contribuição do livre-arbítrio deve ser pensada como ação de liberdade concedida, liberta, de modo que: o meu ato livre, decidido e responsável, de dedicação a Deus e de largar o pecado é, em absoluta identidade, ao mesmo tempo e totalmente efetuada por Deus como forma de justificação em realização e realizada.80
79 SCHNEIDER, 2009, p. 29. 80 Ibid., p. 31.
52
Quando observo a vida de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino vejo dois santos
homens que muito contribuíram para a edificação da Igreja na terra, deixando um legado
inquestionável de conhecimento e fé até os dias de hoje. Entretanto, tanto na vida de um
quanto na vida do outro havia uma diferença interessante, Santo Agostinho teve uma história,
antes de sua conversão, de vida voltada para o mundo. Uma vida de prazeres mundanos,
enquanto Santo Tomás, toda sua vida voltada para a Igreja e para Deus. Ambos chegam a uma
conclusão interessante: Deus pode fazer a diferença em qualquer ser humano através da graça
dada a cada um de nós. Essa graça que atuou em ambos é a mesma que pode mudar o mundo,
é a mesma que pode transformar, salva e unir o homem independentemente de religião,
culturas e cor da pele. Creio que a função da Igreja hoje é fazer com que essa graça seja
reconhecida por todos como caminho para a união entre todos os homens.
53
4 A GRAÇA E A REFORMA
As simplificações da teologia e proclamação medieval tardia assim como as distorções
“pelagianas” na prática religiosa são enfrentadas pelos reformadores não por meio de uma
doutrina especial da graça, mas por nova compreensão do ser humano perante Deus, a qual
transforma em aspecto central o aspecto da justificação, que na doutrina tradicional da graça
ocupa posição subordinada. Os reformadores abandonam a compreensão ontológica e
sacramental da graça, voltando-se novamente para a compreensão bíblica, entendida como
processo relacional. Martinho Lutero se volta para um radical cristocentrismo, enquanto que J.
Calvino reformula a dimensão pneumatológica.
4.1 MARTINHO LUTERO E A GRAÇA
O avanço da reforma de Martinho Lutero, em termos de conteúdo, inicia-se na sua
nova compreensão da justiça de Deus, após a leitura do seguinte texto bíblico: “Porque nele a
justiça de Deus se revela da fé para a fé, conforme está escrito: O justo viverá da fé” (Rm
1,17); ela não é justiça adjudicadora (que estabelece vínculos), condenatória, punitiva, mas
uma ser-justo de Deus a acolher o pecador, que comunica ao pecador injusto a sua justiça
como justiça que a este é “estranha”. Essa justiça se manifesta de uma vez por todas na cruz
de Cristo, onde se realiza uma “troca maravilhosa”: Jesus Cristo toma sobre si os nossos
pecados e nos concede a sua justiça.
O início da carreira de Lutero como monge foi marcado pela excelência intelectual, de
um lado, e pela espiritualidade com meticulosidade exagerada de outro lado. Como ele
próprio definiu mais tarde, se algum monge entrasse no céu por sua escrupulosa observância
da disciplina monástica, ele seria esse monge. Segundo escreve Alister Mcgrath: “É fácil
discernir um profundo sentimento de desmerecimento pessoal nas atitudes e nos atos de
Lutero nessa época, e alguns se preocupavam com a estabilidade mental dele”.81 Johann von
Staupitz, seu superior, gentilmente afastou-o dessa introversão pessoal, recomendando o
estudo da teologia como um antídoto para a introspecção mórbida. Dessa forma, ele inicia o
estudo da teologia na Universidade de Erfurt, na Alemanha, assentando-se aos pés de alguns
dos maiores teólogos alemães de sua época. Nessa altura, o que predominava nas
universidades alemãs eram a filosofia e a teologia, inclusive em Erfurt. Os estudos teológicos
81 MCGRATH, Alister E. A Revolução Protestante: uma provocante história do protestantismo contada desde o
século 16 até os dias de hoje. Brasília: Palavra, 2012. p. 46.
54
eram expressos no entendimento da salvação baseada na graciosa resposta divina a uma
iniciativa moral do homem. Esse princípio, em geral, era expresso no lema latino: facientibus
quod in se est Deus non denegat gratiam, que pode ser traduzido grosseiramente por: “Deus
não negará graça àqueles que fazem seu melhor”.82 Esse princípio teológico repercutiu nos
instintos psicológicos básicos de Lutero e parecia-lhe totalmente razoável que Deus não
recompensaria a pessoa a menos que ela fizesse algo para merecer esse ato. Esse era o
consenso acadêmico em Erfurt. No entanto não era o ensinamento oficial da Igreja Católica.
Em 1512, Lutero deixou Erfurt e aceitou uma posição de conferencista em estudos
bíblicos na recém-estabelecida Universidade de Wittenberg, fundada em 1502 por Frederico,
o Sábio, com a intenção de rivalizar com outras universidades da região. Foi durante essa
época que Lutero desenvolveu uma “maravilhosa nova definição da justiça de Deus” que
mudaria seu próprio mundo espiritual e se tornaria a plataforma por renovação e por reforma
na Igreja. As principais mudanças no pensamento de Lutero centraram-se, primeiro, em como
a teologia cristã chega a suas ideias centrais e, segundo, em como a humanidade pode
conseguir salvação. Por volta de 1516, estava claro para Lutero que a principal fonte da
teologia cristã não era a tradição escolástica, menos ainda a filosofia de Aristóteles. Era a
Bíblia Sagrada, especialmente conforme interpretada por meio dos escritos do teólogo cristão
primitivo Agostinho de Hipona (354-430). Lutero passou cada vez mais a falar da “Bíblia e
Agostinho” como as fontes de suas ideias. Embora a importância da Bíblia sempre tenha sido
reconhecida na teologia cristã, Lutero começou a enfatizá-la de uma maneira que, em última
instância, levaria a um perigoso e novo território teológico.
Entre 1513 e 1516 Lutero tenta discernir o que o texto bíblico dizia a respeito da
salvação. Para ele a grande questão era simples e profunda: como ele podia encontrar um
Deus gracioso? Lutero, como jovem, tinha pleno conhecimento da sua pecaminosidade e vivia
aterrorizado com a ideia de inferno, nada melhor, de encontrar uma resposta aceita pelos
círculos teológicos alemães e pela cultura cristã popular: se ele quisesse se aproximar de Deus
tinha de se tornar uma pessoa boa. A comunidade cristã daquela época acreditava que tinha a
capacidade de se fazer justa, e que, quando isso acontece, Deus aprova essa atitude e aceita a
pessoa transformada na comunhão com ele, o que conduz inevitavelmente à salvação. O
problema é que, ao desenvolver sua doutrina da justificação pela fé, Lutero, joga por terra tais
ideias e passa a oferecer uma alternativa radical e fascinante.
Lutero desenvolve parte dessa ideia alternativa, por volta de 1516, baseado nas ideias dos
primeiros escritores cristãos, especialmente em Paulo e Agostinho de Hipona, quando fala da
82 MCGRATH, 2012, p. 47.
55
“justiça de Deus”. No evangelho, quando Paulo fala sobre o assunto, ele não nos revela quais
padrões de justiça devemos satisfazer a fim de sermos salvos. Primeiramente, somos confrontados
com a declaração espantosa e irresistível de que Deus mesmo providencia a justiça exigida para a
salvação como um dom gratuito e imerecido, ou seja, o amor de Deus não está condicionado à
transformação. Antes da transformação pessoal segue-se à aceitação e à afirmação divina. Embora
admirasse Agostinho por sua ênfase no amor incondicional de Deus na justificação, Lutero
sugeriu que Agostinho ficara confuso em relação à localização do dom de justiça. Agostinho via-o
na humanidade como uma realidade transformadora; já Lutero sugeriu que ela é exterior a nós,
sendo “concedida” ou “imputada” à humanidade, e não transmitida, segundo Alister McGrath:
Talvez o aspecto mais radical da doutrina da justificação de Lutero seja a conceituação do relacionamento entre Deus e a humanidade. Como a humanidade encontra a Deus e entra em relacionamento com ele – relacionamento esse que liberta a humanidade de uma vez por todas do medo da morte, do inferno ou da condenação? Lutero é inflexível: esse relacionamento é tornado possível por meio da morte e ressurreição de Jesus Cristo e toma-se posse dele pela fé. Para Lutero, a fé é fundamentalmente uma atitude de confiança em Deus que capacita o crente a receber as promessas de Deus e se beneficiar delas.83
Precisamente esta justiça divina não ocorre entre Deus e ser humano, porque Deus não
considera o pecado, mas considera a toda pessoa que, em fé, lhe confia, como “ao mesmo
tempo pecador e justo” (simul iustus et peccator) mêrce de Cristo: aquilo que elas são de si
mesmas está contraposto por aquilo que são exclusivamente pela fé, exclusivamente por
Cristo (sola gratia, solo Christo) e precisam aceitar somente na fé (sola fide).
Neste contexto Lutero radicaliza a concepção agostiniana de pecado. Ele interpreta o
“pecado original” como “pecado da pessoa”, cuja essência consiste na concupiscência (o
desejo maligno). Consequência do pecado original é a total escravidão do ser humano, de
modo que, em termos teológicos, o livre–arbítrio não tem relevância alguma. A partir daí se
compreende que o perdão dos pecados se identifica com a ressurreição dentre os mortos.
Segundo Theodor Schneider:
Essa imagem pessimista do ser humano também se reflete na doutrina da graça, que é sua contrapartida positiva: a graça não passa a ser uma força atuante na pessoa, um habitus, mas continua sendo força de Deus, virtus, que permanece extra nos (fora de nós). O confiar-se a Deus na fé não tem por consequência que Deus acolha o pecador em função da fé (propter fidem), mas que somente pela fé (sola fide) Cristo pode ser acolhido. Enquanto qualidade de Deus, a qual nunca se torna qualidade no ser humano, nem a teria por consequência, a graça é graça da palavra no sentido de promessa e encorajamento.84
83 MCGRATH, 2012, p. 49. 84 SCHNEIDER, 2009, p. 33.
56
Segundo Lutero, a atuação da graça no ser humano é a chegada da palavra de Deus; na
medida em que isto ocorre no poder do Espírito, pelo menos neste ponto é rompido o
cristocentrismo estrito. Enquanto fruto do Espírito, as obras pela fé não são mérito que
concorrem com a atuação da graça, mas demonstrações da autenticidade da fé.85
Quando Lutero diz que Deus opera o mal em nós, não devemos pensar que age como
se criasse de novo o mal em nós, como se fôssemos um recipiente que recebe ou sofre a
malignidade daquele que faz um veneno. Deus opera o mal em nós, isto é, por meio de nós,
mas por causa de um vício nosso, pois somos maus por natureza, e Deus, ao contrário, é bom.
Assim, ao apropriar-se de nós, não pode agir de outro modo a não ser fazendo o mal com um
instrumento mau, ainda que faça bom uso deste mal de acordo com sua sabedoria para sua
glória e nossa salvação. Se o homem é tão mau e por si só não pode fazer o bem, necessita
inteiramente da graça de Deus para fazer algo que agrada a esse Deus. Dessa forma, o homem
não tem nenhum livre arbítrio, sendo este, somente, escravo do pecado e de Satanás, nada
fazendo a não ser praticar e intentar o mal.
Assim, como antes de ser criado, o ser humano nada faz para ser humano, ou em nada se esforça para tornar-se uma criatura, assim também, depois de feito e criado, ele nada faz ou em nada se esforça para permanecer criatura; ambas as coisas acontecem somente pela vontade do onipotente poder e bondade de Deus, o qual nos criou e nos preserva sem nossa ajuda, mas não atua em nós sem nós, já que nos criou e preservou para que atuasse em nós e nós cooperássemos com ele, quer isso ocorra fora de seu reino pela onipotência geral, quer dentro de seu reino pelo poder singular do Espírito Santo. Antes de ser renovado em nova criatura do reino do espírito, o ser humano nada faz e em nada se esforça a fim de preparar-se para esta renovação, este reino; depois de recriado, nada faz e em nada se esforça para permanecer nesse reino, mas somente o Espírito Santo faz ambas as coisas em nós, recriando-nos e preservando-nos sem nós.86
Sendo assim, podemos perceber que a graça, no pensamento luterano, não procede de
nosso esforço ou empenho, antes da predestinação divina. Dessa forma, conclui Lutero que o
livre arbítrio nada é, senão cativo e condenado perante Deus.
85 SCHNEIDER, 2009, p. 33. 86 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, 1993. (v. 4, Debates e Controvérsias, II), p.
178.
57
Visto, porém, que acusa o mundo inteiro deste pecado e, como é notório, a partir da experiência, que esse pecado foi desconhecido do mundo como também Cristo, fato que é revelado pelo Espírito acusador, fica evidente que o livre arbítrio com sua vontade e razão é considerado cativo e condenado perante Deus por esse pecado. Por isso, enquanto ignora a Cristo e não crê nele, nada pode querer ou intentar de bom, mas serve obrigatoriamente àquele pecado ignorado. Em resumo: tendo em vista que a escritura anuncia a Cristo em toda parte (como já disse) por meio de comparações e antíteses, de modo que tudo que não tiver o espírito de Cristo submete a Satanás, à impiedade, ao erro, às trevas, ao pecado, à morte, à ira de Deus, todos os testemunhos que falam de Cristo combaterão o livre arbítrio. E esses são incontáveis, ou melhor, toda a Escritura.87
Mas como saberemos se somos ou não somos salvos por essa graça? No pensamento
luterano, não cabe a nós responder isso, sendo somente a presciência de Deus a comandar o
que acontece entre os homens. Isso é algo que saberemos somente na glória de Deus.
4.2 AS DOUTRINAS DA GRAÇA EM ARMÍNIO E CALVINO
As doutrinas da graça se resumem em cinco ensinamentos bíblicos distintos que foram
reunidos em resposta à teologia que se desenvolveu na Holanda no final do século dezesseis.
Essa teologia foi associada ao nome de Jacó Armínio (1560-1609). Armínio e seus seguidores
enfatizavam o livre arbítrio do homem. Esse pensamento os levou, por um processo lógico, a
negar a doutrina de João Calvino (1509-1564) da predestinação estrita e especialmente o
ensino de que Jesus morreu somente pelos eleitos, aqueles a quem Deus escolhera. O Sínodo
de Dort (1618-1619) foi convocado para responder aos desvios teológicos dos arminianos, e
deu origem à obra “Os Cânones de Dort”, que contém a clássica agregação das cinco
doutrinas da graça conhecida hoje como os “Cinco Pontos do Calvinismo”, que são:
depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança
dos santos. Essas doutrinas são importantes porque removem do homem a confiança em
qualquer bem espiritual que se poderia acreditar residir nele, depositando-a em vez disso
somente na vontade e no poder de Deus.
O nosso ponto de partida é a famosa Genebra de Calvino, cidade que antes da Reforma
era famosa por sua imoralidade, segundo escrevem James Montgomery Boice e Philip
Graham Ryken:
87 LUTERO, 1993, p. 210.
58
Entre as depravações comuns na cidade rica estavam a embriaguez, a conduta desordeira, os jogos de azar, a prostituição e o adultério. Os cidadãos de Genebra eram conhecidos por ocasionalmente correrem nus pelas ruas entoando canções vulgares e até mesmo blasfemas. Práticas comerciais desleais, como a usura, eram comuns. A cidade também era perturbada por dissensões que um observador descreveu como “facções ímpias e perigosas”...O que necessitava de reforma não eram simplesmente a adoração e a teologia da cidade, mas toda a atmosfera moral. Com esse intuito, o Conselho dos Duzentos (era uma autoridade legislativa da cidade de Genebra na época de Calvino) aprovou leis civis destinadas a promover a religião protestante e a restringir a indecência pública. Todavia, eles descobriram rapidamente o quão difícil é legislar a moralidade. Sem uma aplicação enérgica, as leis por si só fizeram pouca diferença e a decadência moral de Genebra não foi reprimida de modo geral.88
Em agosto de 1536, Calvino foi convocado por William Farel, um reformador por seus
próprios méritos, para promover a Reforma em Genebra. Logo Calvino descobre que a cidade
estava imersa em caos e desordem ainda maiores do que ele esperava. Além disso, sua
pregação provou ser impopular, especialmente quando ele insistiu que, para exercer sua
própria autoridade dada por Deus, a Igreja precisa ser livre do controle secular. Dois anos
depois, Calvino foi demitido de suas funções pastorais e banido para Estrasburgo. Em pouco
tempo, os cidadãos de Genebra descobriram que não podiam ficar sem ele e, em 1541, eles
clamaram por sua volta.
Dessa vez, Calvino insistiu em que a Igreja fosse governada por uma constituição
própria, aceita em juramento pelos cidadãos. As Ordenanças Eclesiásticas, como foram
chamadas, concediam aos pastores e presbíteros da cidade autoridade plena para regulamentar
o culto e a disciplina da Igreja de Genebra. Armado com essa nova autoridade, Calvino
retomou sua agenda rigorosa de pregação e ensino. Além de pregar duas vezes aos domingos,
ele costumava pregar várias manhãs por semana e também dava palestras bíblicas e teológicas
para estudantes que se preparavam para o ministério pastoral, o que acabou fazendo com que
escrevesse comentários a respeito de quase toda a Bíblia. Sua estrutura doutrinária foi a
teologia da Reforma, resumida em suas famosas Institutas da Religião Cristã. Calvino
ensinou cada uma das doutrinas defendidas posteriormente no Sínodo de Dort, desde a
depravação total até a certeza da graça perseverante. Não há dúvida de que ele acreditava que
a morte de Cristo na cruz cumpriu, de fato, o que foi destinada a cumprir: a redenção dos
eleitos, nem de que ele sustentava a eficácia da graça de Deus sobre o chamado eficaz do
Espírito de Deus. Em todos os pontos da sua teologia, insistia que a salvação é um dom da
graça divina e não uma conquista do esforço humano.
88 BOICE, James Montgomery; RYKEN, Philip Graham. As Doutrinas da Graça: resgatando o verdadeiro
evangelho. Rio de Janeiro: AnnoDomini, 2014. p. 46.
59
Calvino e seu Calvinismo vieram a exercer uma influência profunda sobre a cidade de
Genebra. Essa influência não veio por meio de coerção, como às vezes se pensa, mas
principalmente por persuasão, como escreve o teólogo Alister McGrath:
Calvino não era um ditador de Genebra que governava a população com mão de ferro. Ele não foi sequer cidadão de Genebra em todo o tempo em que lá ficou, tendo assim seu acesso à autoridade política negado. Sua condição era simplesmente a de um pastor que não estava em posição de ditar ordens às autoridades magistradas que administravam a cidade. De fato, essas autoridades retiveram até o fim o direito de demitir Calvino, mesmo tendo optado por não exercer esse direito. Como membro do Consistório, ele era certamente capaz de fazer representações à magistratura em nome dos ministros – representações que, porém, eram ignoradas com frequência...A influência de Calvino sobre Genebra consistia, em última análise, não em sua posição jurídica formal (que era insignificante), mas em sua autoridade pessoal considerável como pregador e pastor.89
O contato diário com a exposição sã da Bíblia transformou a mente e o coração de
Genebra. O povo se conscientizou como povo de Deus para construir uma cidade santa. Seu
lema se tornou post tenebras lux (após a escuridão a luz). A partir do momento que Genebra
aprendeu a adorar o Deus da graça, principalmente através dos salmos, ela se tornou uma
cidade mais feliz e mais íntegra, conforme relatado:
Em um esforço para eliminar a embriaguez e o adultério, as tabernas foram fechadas e o balneário público foi dividido, de modo que homens e mulheres pudessem tomar banho separadamente. Genebra se tornou uma cidade mais limpa e mais segura. Os exemplos desse fato incluem o projeto do próprio Calvino para um sistema público de esgoto e sua insistência em que os pais protegessem seus filhos instalando grades nas varandas das casas.90
Genebra se tornou também uma cidade mais culta, pois Calvino estabeleceu uma
escola, a famosa academia de Genebra, para servir como um centro de excelência acadêmica.
Isso estava de acordo com seu objetivo de educação cristã universal, que incluía uma escola
para meninas. A academia ajudou Genebra a se tornar um centro de missões: muitos dos
pastores lá treinados foram enviados para evangelizar a França implantando novas igrejas.
Como não poderia deixar de ser, Calvino estabeleceu um sistema para cuidar
espiritualmente dos membros da Igreja. Ele formou o Consistório com os pastores e
presbíteros que se reuniam semanalmente para resolver desavenças e disciplinar paroquianos
que fossem pegos em pecado. Quando era necessário, se aplicava a disciplina com o objetivo
de incentivar o arrependimento genuíno. Com o tempo, o efeito desse trabalho realizado pelo
Consistório reduziu drasticamente a imoralidade pública. É claro que todo esse trabalho de
89 MCGRATH, Alister E. Reformation Thought: an introduction. 2. ed. Oxford: Blackwell, 1993. p. 217. 90 BOICE, 2014, p. 49.
60
mudança não foi realizado pelas doutrinas da graça, mas pelo ensino claro das Escrituras,
entendidas a partir da perspectiva do sistema calvinista de doutrina com sua paixão
imperecível por ver Deus glorificado em todos os aspectos da vida.
Voltemos para Jacó Armínio e façamos um apanhado geral resumindo as questões
teológicas presentes sempre que considerarmos a graça de Deus no Evangelho. Os
denominados Cinco Pontos do Calvinismo foram uma resposta à teologia de Jacó Armínio.
Armínio ensinava teologia sistemática na Universidade de Leyden. Em 1610, ano seguinte à
sua morte, seus seguidores elaboraram cinco artigos de fé que resumiam sua compreensão da
salvação. Os arminianos, como vieram a ser chamados, apresentaram essas doutrinas ao
Estado da Holanda na forma de um protesto (ou Remonstrância), argumentando que as
confissões holandesas deveriam ser alteradas de modo a estarem em conformidade com as
suas opiniões. Esses são os cinco artigos de sua plataforma teológica:
Artigo I: Que Deus por um propósito eterno e imutável em seu Filho Jesus Cristo,
determinou antes da fundação do mundo salvar em Cristo, por amor a Cristo e por meio de
Cristo, aqueles entre a raça pecadora caída dos homens que, pela graça do Espírito Santo,
crerem nesse seu Filho Jesus e perseverarem nessa fé e obediência de fé, por intermédio dessa
graça, até o fim.
Artigo II: Que em concordância com isso, Jesus Cristo, o Salvador do mundo, morreu
por todos os homens e por cada homem, para obter para todos eles, por sua morte na cruz, a
redenção e o perdão dos pecados, ainda que ninguém realmente desfrute desse perdão dos
pecados senão os crentes...
Artigo III: Que o homem não possui em si mesmo graça salvadora, nem a energia do
seu livre-arbítrio, de modo que, em seu estado de apostasia e pecado, é incapaz de pensar,
querer ou fazer qualquer coisa verdadeiramente boa (como a fé salvadora eminentemente é).
Portanto, é preciso que seja nascido de novo de Deus em Cristo, por meio do Espírito Santo, e
renovado em entendimento, inclinação ou vontade e todas as suas faculdades, para que seja
capacitado a entender, pensar, querer e efetuar o que é verdadeiramente bom...
Artigo IV: Que essa graça de Deus é o começo, a continuação a realização de todos o
bem, de modo que nem mesmo o homem regenerado pode querer ou praticar qualquer bem,
nem mesmo resistir a qualquer tentação para o mal sem a graça preveniente que assiste,
desperta e coopera. Sendo assim, todas as boas ações ou movimento que podem ser
concebidos são atribuídos necessariamente à graça de Deus em Cristo. Mas, no tocante ao seu
modo de operar, a graça não é irresistível...
61
Artigo V: Que aqueles que são enxertados em Cristo por uma fé verdadeira e, assim,
se tornam participantes do seu Espírito vivificador, têm pleno poder para lutar contra Satanás,
o pecado, o mundo e sua própria carne, e conquistar a vitória. Mas que sempre seja bem
entendido que isso se dá pela graça auxiliadora do Espírito Santo e que Jesus Cristo os auxilia
por intermédio do seu Espírito em todas as tentações.91
Esses artigos podem ser resumidos da seguinte maneira:
I. Deus elege ou reprova com base na fé ou falta de fé prevista. II. Cristo morreu por todo e cada homem, embora só os crentes sejam salvos. III. O homem é de tal modo depravado, que a graça divina é necessária para que haja fé ou qualquer boa ação. IV. É possível resistir a essa graça. V. Se todos os que são verdadeiramente regenerados perseverarão indubitavelmente na fé é um ponto que necessita de investigação adicional.92
O que essas declarações têm em comum é uma incerteza sobre a soberania absoluta de
Deus no tocante à graça, e em alguns lugares, uma resistência a essa soberania. Fica claro que
a posição arminiana é de que a soberania divina precisa, de alguma maneira, ser acomodada à
capacidade humana. Eleição e reprovação dependem das escolhas humanas. A certeza da
expiação não está somente na obra salvífica de Cristo, mas também na fé e no arrependimento
do pecador. Embora seja atraente e persuasiva, a graça de Deus não é suficientemente
poderosa para triunfar sobre aqueles que resistem teimosamente ao seu amor. E se um cristão
perseverará ou não até o fim é uma questão em aberto, porque, em última análise, a
perseverança depende do cristão, e não de Cristo. Ainda que essas sejam questões doutrinárias
distintas, elas estão ligadas por um interesse comum de minimizar a predestinação, de modo a
permitir que os seres humanos determinem o seu próprio destino espiritual.
Isso nos ajuda a entender porque as teologias arminianas são tão predominantes no
Evangelicalismo contemporâneo. Para o arminianismo, a tomada de decisão humana ocupa
um lugar central na salvação. O resultado é uma teologia que não se centra exclusivamente
em Deus, mas é distorcida na direção do eu. Nestes tempos pós-modernos e cada vez mais
pós-cristãos, as pessoas estão clamando por atenção, buscando experiências espirituais
secularizadas, humanizadas e relativizadas. O arminianismo fornece exatamente o que o
Movimento Evangélico dos dias de hoje exige: um Evangelho que confere um papel
determinante à escolha pessoal.
Por outro lado, o Calvinismo insiste que a salvação é pela graça do início ao fim. É um
dom, em todos os sentidos da palavra, um presente de Deus para os pecadores indignos que
91 SCHAFF, Philip. The Creeds of Christendom. Ed. revised. Baker Pub Group, 1983. v. 3, p. 545-559. 92 BOICE, 2014, p. 31.
62
não podem ser redimidos senão pela graça salvadora de Deus, esse dom é dado a quem Deus
escolhe dá-lo e, embora seja oferecido a todos, não é dado a todos. Entretanto quando Deus
decide conceder essa dádiva, Ele a coloca efetivamente nas mãos de seu Filho, e uma vez
recebida, ela nunca pode ser perdida, roubada ou danificada. Verdadeiramente, a própria
dádiva continua a derramar dádivas!
Esses princípios da graça foram definidos e defendidos em Os Cânones de Dort,
conforme já mencionado. Em resumo, esse Sínodo concluiu que:
Os decretos de eleição e reprovação fundamentavam-se na escolha soberana de Deus e não na fé ou descrença prevista; que embora a morte de Cristo tenha sido suficiente para todos, somente para os eleitos ela foi eficiente; que a humanidade foi corrompida totalmente pela Queda e, assim, é incapaz de escolher a salvação antes da regeneração; que a graça de Deus é eficaz para converter o descrente; e, por fim, que Deus guarda os crentes para que nunca sofram uma queda que os afaste da graça definitivamente.93
Dentre esses cinco pontos básicos destacaremos:
Eleição incondicional. Se a condição da raça humana é tão má quanto atesta a doutrina
bíblica da depravação, a salvação precisa originar-se em Deus. Ela precisa ser uma obra do
Deus triuno, realizada e aplicada por Ele sem qualquer ajuda da nossa parte. Isso significa que
o que acontece na salvação de um indivíduo é determinado pela decisão anterior de Deus, que
estabeleceu os decretos da salvação em Cristo antes da fundação do mundo. “Incondicional”
indica que essa decisão é tomada independentemente de qualquer coisa que Deus possa prever
a respeito da criatura pecaminosa. Se a eleição fosse fundamentada em qualquer coisa que o
pecador pudesse ser ou fazer, então, em última análise, a salvação dependeria de mérito
humano. Mas para provar que a salvação é inteiramente pela graça, a eleição é um ato de
amor da vontade soberana de Deus. A fé em Cristo não é a causa da eleição, mas um de seus
resultados.
Graça irresistível. Além do chamado externo do Evangelho feito a todos, o Espírito
Santo emite um chamado interno. Esse chamado interno é feito somente aos eleitos e,
inevitavelmente, os atrai à fé em Cristo. Devido a Deus ser soberano em sua salvação, não é
possível eles rejeitarem esse chamado eficaz de modo permanente ou eficaz. A graça de Deus
é irresistível e invencível, pois o Espírito nunca deixa de cumprir o seu propósito salvífico na
mente, no coração e na vontade do povo escolhido de Deus. Significa dizer que a graça do
chamado de Deus é esmagadoramente eficaz, ou seja, o Espírito Santo nos regenera, dando-
nos uma nova natureza e, como resultado disso, agimos naturalmente de acordo com a nossa
93 BOICE, 2014, p. 35.
63
nova natureza: isto é, cremos no Evangelho, arrependemo-nos do nosso pecado e confiamos
em Cristo para a salvação. Isso coloca o fator determinante da salvação de uma pessoa nas
mãos de Deus. Exemplo disso é que quando as autoridades judaicas se opuseram a Jesus
Cristo, foi permitido que elas o fizessem até o fim, conforme está escrito: “Homens de dura
cerviz, incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo! Como
foram vossos pais, assim também vós!” (At 7,51). E embora o apóstolo Paulo também tenha
resistido, foi-lhe permitido resistir apenas até certo ponto, após o qual Deus pois fim a sua
resistência: “Ele perguntou: Quem és, Senhor? E a resposta: Eu sou Jesus, a quem tu
persegues. Mas levanta-te, entra na cidade, e te dirão o que deves fazer” (At 9,5.6). A
confissão de fé de Westminster expressa a doutrina da graça eficaz em uma linguagem clara:
Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, Ele se agrada, em seu tempo determinado e aceito, em chamar eficazmente, por sua Palavra e seu Espírito, do estado de morte no qual estão por natureza para a graça e a salvação por Jesus Crist. Assim, Ele ilumina suas mentes espiritual e salvificamente para compreenderem as coisas de Deus, tirando seu coração de pedra e dando-lhes um coração de carne, renovando as suas vontades e, por seu poder onipotente, determinando-os para o que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que venham espontaneamente, sendo para isso tornados dispostos pela sua graça (cap. 10, Seção 1).94
A perseverança dos santos. Ás vezes, essa doutrina é chamada doutrina da “segurança
eterna”. Ela tem duas partes: 1) Que Deus persevera com o seu povo; e 2) que, devido a Deus
perseverar com o seu povo, este também persevera. Os santos são simplesmente o povo de
Deus, aqueles que Deus considera santos por meio da obra de seu Filho. A perseverança dos
santos é realmente a preservação dos santos, pois sua perseverança depende da graça
perseverante de Deus. É a fidelidade de Cristo, não a fidelidade do cristão, o que leva os
santos à glória. Quando fala da perseverança, a Confissão de fé de Westminster fundamenta a
nossa segurança nos atos de Deus: “Ao que Deus aceitou em seu Amado, chamados
eficazmente e santificados pelo seu Espírito, não podem decair do estado da graça, nem total
nem finalmente; mas certamente perseverarão até o fim e serão eternamente salvos” (Cap. 17,
Seção 1).
As doutrinas da graça dependem uma das outras, e juntas elas apontam para uma
verdade central: a salvação ocorre inteiramente pela graça, porque ela pertence inteiramente a
Deus. E por ser inteiramente dele, ela é inteiramente para a sua glória. Portanto, todo louvor e
glória pertencem somente a Deus: “Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos
séculos! Amém” (Rm 11,36).
94 BOICE, 2014, p. 154.
64
4.3 O CONCÍLIO DE TRENTO E OS REFORMADORES
O Concílio de Trento, na sua 6ª sessão realizada em 13 de janeiro de 1547, no Decreto
sobre a justificação, abre a discussão, onde são afastadas sobretudo as doutrinas de Lutero
sobre a justificação e sobre a cooperação do homem com a graça, além dos conceitos de João
Calvino sobre a predestinação, como também os erros contrários de Joviniano e Pelágio, que
negaram a necessidade da graça para obter e conservar a justificação.95 Foi uma reação da
Igreja Católica à Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero na primeira metade do
século XVI. Com o crescimento do protestantismo na Europa, a Igreja Católica buscou uma
reação, que ficou conhecida historicamente como Contra-Reforma. Dentro deste contexto, o
Concilio de Trento buscou condenar as novas doutrinas protestantes, além de reafirmar os
dogmas da fé católica. Muitas das decisões tomadas pela Igreja Católica foram no sentido de
combater as ideias protestantes, muitas delas consideradas heréticas. Vários decretos
disciplinares também foram aprovados pelo concílio, visando principalmente a moralidade e a
adoção de medidas para melhorar o nível de instrução dos membros do clero (principalmente
padres).
Formulações tendo em vista os reformadores encontra-se na 5ª sessão: 1510-1516, de
17 de junho de 1546. Decreto sobre o pecado original. Segundo o qual:
A culpa original efetivamente é “levada embora” pela graça do batismo, e não apenas “não imputada”; isto tem por consequência que a concupiscência que resta na pessoa mesmo após o batismo não é propriamente pecado, mas apenas provém deste e confere inclinação para o mesmo.96
Nesse sentido, com os reformadores o Tridentino concorda em que os seres humanos
não podem redimir-se a si próprio. Diferente dos reformadores é a avaliação do concílio sobre
a relação da redenção/justificação causada por Cristo com a constituição humana concreta.
Os capítulos doutrinais do decreto sobre a justificação (DH 1520-1583) reforçam essa posição: “necessidade generalizada de redenção, sendo que o livre-arbítrio foi atenuado, mas não totalmente extinto (DH 1521); Jesus Cristo é redentor e conciliador universal; daí sucede como descrição provisória da justificação: transferência para o estado de graça, a qual, uma vez proclamado o evangelho, somente é proporcionada pelo batismo (ou ao menos pelo desejo pelo mesmo) (cf. Jo 3,5)”.97
95 DENZINGER, Henrici; HÜNERMANN, Petrus. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e
moral. SãoPaulo: Paulinas; Loyola, 2007, p. 400. 96 Ibid., p. 397-400. 97 Ibid., p. 400-415.
65
Os conciliares concordam com os reformadores, no sentido que, essa justificação, no
caso de adultos, precisa ter seu início a partir da graça precedente de Deus através de Cristo
Jesus. Cristo chama os pecadores, sem que existissem quaisquer méritos por parte destes.
Estes, por meio de sua graça despertadora e auxiliadora são preparados para converter-se por
livre vontade a esta graça para sua própria justificação. O cristocentrismo que liga a Lutero
aqui recebe complementação pneumatológica, o que vai ao encontro da preocupação de
Calvino.
Podemos observar nesses enunciados conciliares, aquilo que a Bíblia já nos salientava:
“E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações
pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). E: “que em função do mérito desse
santíssimo sofrimento, de Cristo, por meio do Espírito Santo o amor de Deus é derramado nos
corações daqueles que são justificados, neles resistindo”.98
É importante notar a interpretação dada pelo concílio no que diz respeito a justificação
pela fé como está escrito:
“[...] justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que crêem – pois, não há diferença,...e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (Rm 3,22.24). A “fé” é início da salvação, base e raiz da justificação; vale o “gratuitamente” porque nada do que precede a justificação, seja fé, seja obras, merece por si mesmo a graça da justificação.99
Enquanto para os reformadores, em especial Lutero, utilizavam fé como conceito total
para caracterizar a existência cristã, os conciliares operam com um conceito mais estreito de
fé: a fé é início da salvação, aceitação da proclamação; por isso “somente pela fé” não é
suficiente para caracterizar a existência cristã.
O Concílio de Trento tem em comum com os reformadores a convicção da incapacidade de auto-redenção e da exclusiva veiculação da salvação por Jesus Cristo. Tudo que o ser humano pode fazer no âmbito da fé é causado e suportado pela graça precedente, despertadora e auxiliadora. Distanciamentos em relação a posições reformadoras (efetivamente defendidas ou apenas hipotéticas ou temidas) ocorrem, por sua vez, por razões pastorais tão fortes quanto do lado dos reformadores. Assim o concílio teme uma redução da vida de fé ao mero aceitar, acreditar na justificação, um solapamento do esforço ao longo de todo o processo de fé, a perda de experiências da graça como justificação e santificação. Por isso se salienta a força atuante da graça a transformar o ser humano a partir de dentro (sem que se destaquem como normativos os conceitos de “habitus” e “qualitas”).100
98 SCHNEIDER, 2009, p. 35. 99 DENZINGER; HÜNERMANN, 2007, p. 404. 100 SCHNEIDER, 2009, p. 37.
66
4.4 EVOLUÇÃO DA GRAÇA ATÉ OS DIAS DE HOJE
4.4.1 Pelo lado Católico
Segundo Theodor Schneider, na teologia pós-tridentina incrustou-se a postura de
oposição ao se alegar e interpretar de modo unilateral principalmente dois aspectos, “graça
criada” (termo temporal da vontade de amor de Deus, um dom criado, enquanto distinto
essencialmente d’Ele) e liberdade/ética, como pontos centrais da doutrina tridentina.
Infelizmente não se levar em conta o fato de a “graça não-criada” a “habitação da Trindade”
não mais ser considerada como base e fonte de toda “graça criada”, mas como seu fruto, ou
seja, como “efeito formal”, em termos escolásticos teve consequências funestas.
O debate sobre a existência ou não de livre-arbítrio e graça divina teve seu ponto mais
alto no século XVI na Espanha católica. Nesta época, um forte debate se desencadeou entre os
jesuítas e os dominicanos. Os seguidores do jesuíta Luís de Molina (1535-1600), conhecidos
como molinistas, firmam-se no livre arbítrio do homem (ou liberdade psicológica) para
explicar a eficácia da graça. Com efeito, o homem é dotado de livre arbítrio como está escrito:
“Desde o princípio ele criou o homem, e o abandonou nas mãos de sua própria decisão” (Eclo
15,14).
Para o molinismo, a graça eficiente e a suficiente (divisões da “graça atual”) têm
mesma natureza.101 Sua diferença reside apenas acidentalmente, ou seja, na correspondência
ou não da vontade do homem à graça. Esta visão da graça salva a liberdade do homem, mas
restringe o governo divino em relação às criaturas livres: torna Deus refém do homem e tolhe,
de certa forma, Sua liberdade. Além disso, os molinistas condicionam a vontade divina para
corresponder à vontade do homem. Deste modo, Deus conhece infalivelmente qual atitude a
vontade do homem assumiria em cada circunstância, e assim conferiria a graça de acordo com
esse pré-conhecimento, para o homem corresponder à graça, tornando-a, só assim, eficaz. O
problema desta explicação é que Deus ainda tem sua vontade determinada pela do homem,
pois é em vista de sua escolha que Deus determina qual graça distribui. O problema na
solução molinista, que é mais bem aceita e catequeticamente mais fácil de explanar (com a
vantagem de não cair em erro), é que, em última instância, não é Deus Quem determina a
101 A graça atual recebe nomes diferentes, segundo o aspecto que a encaramos. Pode ser, quanto ao modo:
exterior (gratia externa) ou interior (gratia interna). Quanto aos efeitos: medicinal (gratia medicinalis) ou elevante (gratia elevans). Quanto ao momento ou quanto à vontade livre: preveniente, antecedente ou operante (gratia præveniens ou gratia operans) ou concomitante, consequente ou cooperante (gratia concomitans ou gratia cooperans). Finalmente, quanto aos efeitos: suficiente (gratiasufficiens) quando não produz o efeito, embora habilite perfeitamente para tal; eficiente (gratia efficax), quando produz o devido resultado.
67
vontade do homem, mas o contrário. Não há pré-conhecimento divino dos atos livres das
criaturas que seja anterior à vontade divina de eles acontecerem. Nada pode ser causa do
conhecimento de Deus, sob pena de cerceá-lo como Ato puro.
Em contra partida, Domingo Bañez (1528-1604), um teólogo espanhol, religioso da
Ordem dos Frades Pregadores e um dos mais ilustres defensores da doutrina de Tomás de
Aquino sobre cuja Suma Teológica compôs amplos comentários, via a graça atual como
eficiente em si mesma. Os tomistas, como eram conhecidos, baseiam sua tese na Escritura que
diz: “Tal ocorre com a palavra que sai da minha boca: ela não volta a mim sem efeito; sem ter
cumprido o que eu quis realizado o objetivo de sua missão” (Is 55,11). De fato, Deus, Ato
puro, não pode ter Sua vontade condicionada, em absoluto, pela criatura, mas é Ele mesmo a
forma da vontade dos seres contingentes. Não é concordante com a Providência divina se ter
Deus à mercê da vontade do homem para corresponder à Sua graça. Não é o homem que
corresponde à graça e a torna eficaz, mas ela já é essencialmente eficaz e move
necessariamente a vontade do homem.
Para os molinistas surgia o problema de como a liberdade de Deus poderia ser
preservada diante da decisão do ser humano; para os tomistas o problema é como ainda se
poderia falar de liberdade do ser humano diante à graça de efeito infalível. Tentam-se algumas
soluções, primeiro com o auxílio do conceito do “conhecimento médio” (scientia media) de
Deus: O molinismo argumenta que Deus atinge seu objetivo através das vidas das criaturas
genuinamente livres por intermédio de sua onisciência. O modelo proposto apresente o
conhecimento infinito de Deus em uma séria de três momentos lógicos (considerados nessa
ordem não-cronológica, mas lógica): "conhecimento natural", "conhecimento médio" e o
"conhecimento livre":102
Conhecimento natural: O conhecimento do que é possível ou das possibilidades.
Conhecimento médio: O conhecimento de como um ser possuidor de livre-arbítrio
(independência libertária) poderia agir em qualquer situação. Conhecimento livre: O
conhecimento do que realmente acontecerá.
Assim, o conhecimento médio de Deus desempenha um papel importante na
realização do mundo. Na verdade, parece que o conhecimento médio desempenha um papel
mais imediato na criação de presciência de Deus. William Lane Craig assinala que: "sem o
102 KEATHLEY, Kenneth. Salvation and Sovereignty: a molinist approach. B&H Academic Publishing Group,
2010. p.16.
68
conhecimento médio, Deus iria encontrar-se, por assim dizer, com o conhecimento do futuro,
mas sem qualquer planejamento lógico e prévio do futuro".103
A colocação do conhecimento médio de Deus entre o conhecimento natural e o
conhecimento livre é crucial. Pois se o conhecimento médio estivesse depois do conhecimento
livre, então Deus estaria ativamente fazendo o que várias criaturas fariam em várias
circunstâncias e, assim, destruindo a liberdade. Mas, colocando o conhecimento Médio antes
do conhecimento livre, Deus permite a liberdade. A colocação de conhecimento médio
logicamente depois do conhecimento natural, mas antes do conhecimento livre também dá a
Deus a possibilidade de examinar mundos possíveis e decidir qual mundo atualizar. Graças,
então, ao conhecimento médio, Deus sabe o que a vontade livre fará nas diversas situações em
que uma pessoa se encontrar e, através do conhecimento livre, em qual situação a pessoa
concretamente ficará, assim ele pode com certeza prever o sucesso da graça que doará a cada
um.104
A segunda solução é pela distinção entre graça suficiente e atuante: A graça suficiente
é uma graça que não produz o efeito, mas não só habilita o espírito humano a Deus
(meramente suficiente), como é capaz de ser mudada em graça eficiente (extrínseca) por esta
mesma adesão do homem a ela. Neste sentido, a graça suficiente não difere do molinismo.
Esta graça Deus dá a todos, pois quer a salvação de todos, conforme está escrito: “Eis o que é
bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador, que quer que todos os homens sejam salvos e
cheguem ao conhecimento da verdade” (ITm 2,3.4). Encarando a graça suficiente como
potencialmente eficiente, salvaguarda-se a liberdade humana e a vontade salvífica de Deus e
assim a culpa pela condenação recai única e exclusivamente no homem. Segundo Theodor
Schneider:
Quanto à situação teológica de hoje duas constatações são reveladoras: em primeiro lugar o fato de o papa Paulo V (1605-1621) negar-se a condenar qualquer uma das duas correntes, proibindo às facções em disputas a censura recíproca; em segundo lugar a percepção de que na teologia moderna a graça não mais ser entendida com naturalidade como afeição de Deus, a qual provocaria a atividade no livre-arbítrio no interior da pessoa. Agora predomina o modelo da concorrência, segundo o qual Deus teria que ser relegado ao segundo plano, colocando-se restrições à sua atuação, para que a liberdade do ser humano possa desenvolver-se.105
103 CRAIG, William Lane. The Only Wise God: The Compatibility of Divine Foreknowledge and Human
Freedom. Eugene: Wipf and Stock Pub, 2000. p. 134. 104 PACOMIO, 2003, p. 505. 105 SCHNEIDER, 2009, p. 37-38.
69
Nesse período, Francisco Suárez (1548—1617), um jesuíta, filósofo, jurista espanhol,
um dos principais expoentes da Escola de Salamanca e considerado um dos maiores
escolásticos após Tomás de Aquino, cujo trabalho é considerado o marco inicial da segunda
escolástica, que determinou a transição do movimento renascentista para o barroco. Suárez
serviu de inspiração para figuras das mais diversas orientações filosófica, tais como Leibniz,
Grotius, Samuel Pufendorf, Schopenhauer e Martin Heidegger; acentuava a dimensão
missionária e social da graça. Outro que seguia Stº Agostinho foi Cornelius Jansen (1585-
1638), um filósofo e teólogo neerlandês, que fundou o jansenismo, doutrina que prega o rigor
moral. Ele defendia a irresistibilidade da atuação da graça frente à liberdade humana.
Doutrinas condenadas a partir desse pensamento em 1653 pelo papa Inocêncio X (1644-
1655), inclusive quanto a limitação da vontade salvífica de Deus ao número de
predestinados.106
4.4.2 Pelo lado Evangélico
Esse período pós-tridentino, não trouxe somente esse desenvolvimento de
pensamentos doutrinários da graça do lado católico, mas também a “ortodoxia protestante”
desenvolveu sua sistemática doutrina da graça baseada no interesse intenso pela realização da
fé; apesar do seu teocentrismo e cristocentrismo. O lado evangélico encontra forte oposição
nesse período pelo pietismo, um movimento oriundo do luteranismo que valoriza as
experiências individuais do crente. Tal movimento surgiu no final do século XVII, como
oposição à negligência da ortodoxia luterana para com a dimensão pessoal da religião, e teve
seu auge entre 1650-1800. O mentor e pioneiro do movimento, Philip Jacob Spener (1635-
1705), fundou os seus collegia pietatis, pequenos grupos, principalmente, de pessoas leigas,
que se encontravam para discutir as Escrituras, para compartilhar experiências espirituais e
para encorajar-se mutuamente em uma vida de fé mais entusiasta.107 O pietismo combinava o
luteranismo do tempo da Reforma Protestante, enfatizando a conversão pessoal, a
santificação, a experiência religiosa, diminuição na ênfase aos credos e confissões, a
necessidade de renunciar o mundo, a fraternidade universal dos crentes e uma abertura à
expressão religiosa das emoções. Como no caso dos agostinistas do lado católico, estão
interessados na experiência autêntica da graça da justificação, muitas vezes chamada de
106 SCHNEIDER, 2009, p. 38. 107 PACOMIO, 2003, p. 594.
70
“renascimento” com a atenção voltada para o processo do auto-encontro da pessoa, a auto-
experiência no Espírito Santo, em direção a Deus.
O pietismo influenciou o surgimento de movimentos religiosos independentes de
inspiração protestante tais como o metodismo, o Movimento de Santidade, o evangelicalismo,
pentecostalismo, o neo-pentecostalismo e grupos carismáticos, além de influenciar a teologia
liberal de Friedrich Schleiermacher e a filosofia de Immanuel Kant. No contexto do
Iluminismo a doutrina da justificação recebe um traço otimista de fora a fora, mais ainda: ela
é naturalizada, relacionada com a realização imanente, intramundana da humanidade. A
relação entre liberdade e graça recebe especificação quase que sinergética; na doutrina da
justificação a ênfase se desloca para o aspecto da santificação, Jesus pode ser visto antes
como exemplo ético, de modo que no fim das contas a religião (quase) pode ser identificada
com ética. A teologia dialética ou teologia da crise ou, ainda, teologia da Palavra ou neo-
ortodoxia foi um movimento teológico que floresceu na Europa (particularmente na
Alemanha) da década de 1920, representa uma reação a esta concepção. Reagindo ao
liberalismo teológico, a teologia dialética tem em Karl Barth o principal nome. Além dele,
outros teólogos tornaram-se conhecidos, como Emil Brunner, Friedrich Gogarten, Eduard
Thurneysen e Rudolf Bultmann, por exemplo.
De uma forma geral, a teologia dialética apresenta duas características básicas. Em
primeiro lugar, afirma-se que a própria revelação tem estrutura dialética, "na medida em que
mantém unidos elementos que se excluem reciprocamente: Deus e homem, eternidade e
tempo, revelação e história".108 Segundo, os próprios enunciados teológicos devem seguir esta
metodologia dialética, exprimindo tanto a posição quanto a negação. O grande exemplo desta
metodologia continua sendo o primeiro livro de Karl Barth, intitulado A Carta aos Romanos.
Nada melhor do que a conclusão de Theodor Schneider sobre o que mais nos chamou
a atenção para questões em aberto e que contribuíram para a solução de temas efetivamente
relevantes da doutrina da graça e justificação até o momento, pois, são cada vez mais
considerados no tocante a sua seriedade espiritual:
A tarefa da dogmática de hoje será então deixar claro, no horizonte de sua experiência e com os recursos conceituais disponíveis, que a “graça” refere-se a um processo relacional, a inclinação graciosa de Deus para o ser humano, a qual capacita a pessoa à vida verdadeiramente humana. Tarefa perene da reflexão são as questões referentes à relação entre liberdade humana e graça divina, entre a liberdade aceita na fé, libertada para si, e a atuação libertadora, bem como a relação entre vontade salvífica geral e a multiplicidade de caminhos da fé.109
108 GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1998. p. 23. 109 SCHNEIDER, 2009, p. 39.
71
4.5 UMA REFLEXÃO SOBRE A GRAÇA NA ATUALIDADE
No século XX, correntes teológicas cada qual à sua maneira, retornam as questões não
resolvidas sobre natureza e graça, herança e experiência, verdade e história. Algumas coisas
que antes eram encaradas com reservas agora são encontradas nos textos do Concílio
Vaticano II, principalmente na Constituição Pastoral conforme descrito principalmente na
Gaudium et Spes:
[...] A verdadeira liberdade porém é um sinal eminente da imagem de Deus no homem. Pois Deus quis “deixar ao homem o poder de decidir” (Ecl 15,14), para que assim procure espontaneamente o seu Criador, a ele adira livremente e chegue a perfeição plena e feliz...O homem consegue essa dignidade quando liberado de todo cativeiro das paixões, caminha para o seu fim pela escolha livre do bem e procura eficazmente os meios aptos com diligente aplicação. A liberdade do homem, vulnerada pelo pecado, só com o auxílio da graça divina pode tornar plenamente ativa esta ordenação a Deus. Cada um porém, perante o tribunal de Deus, prestará contas da própria vida, segundo o bem e o mal que tiver feito (GS 17).
Onde fica claro a responsabilidade do ser humano em escolher, com o auxílio da
graça, o caminho que leva a Deus. A teologia da graça do século XX, traz uma reforma em
função do seu contexto e desenvolvimentos externos e internos que precisavam ser
reconduzidas para questões essenciais; as convicções irrenunciáveis e os problemas nelas
implícitos precisavam ser reformulados dentro do horizonte modificado de experiência e
pensamento. Alguns desafios precisavam ser superados: reduzir o grande volume de material
em favor da concentração teológica; ressaltar o aspecto da graça como dimensão que
atravessa toda a teologia; esclarecer e estabelecer correlação que admite somente uma
interpretação dos dois aspectos da doutrina da graça, o teológico no sentido estrito (graça
como atuação graciosa de Deus) e do teológico (implicação, para o ser humano, dessa
dedicação graciosa); reformulação de enfoques centrais em categorias históricas e pessoais: a
consideração mais estática da relação entre natureza e graça com duas camadas independentes
uma da outra (“andares”) da existência humana é substituída pela consideração histórico-
salvífica da graciosa dedicação de Deus para com sua criatura e por uma visão dinâmica
integral no ser humano como criatura agraciada; o esquema um tanto impessoal de causa e
efeito no processo da graça é corrigido por um modelo interpessoal da relação entre o Deus
libertador e a pessoa libertada. Esse avanço teológico teve participação fundamental de Karl
Rahner (1904-1984). Na Teologia de Karl Rahner, o ser humano é visto como “condição de
possibilidade” de Deus, sendo o destinatário por excelência da auto comunicação divina.
Assim sendo, esta relação entre o homem e Deus não sucede de modo unilateral, mas
72
dialógica. Com efeito, a condição fundamental para se compreender o homem como ser finito
que é atraído pelo infinito é possível somente mediante a abertura incondicional do homem ao
mistério de Deus que se oferece como dom.
A Antropologia de Rahner se ocupa, no primeiro momento, em estabelecer o que é
pressuposto no homem para que ele possa acolher o mistério de Deus, a auto comunicação,
pois é ele seu evento e destinatário. A resposta se dá, pois, no campo de uma metodologia
transcendental, que encontra em seu âmago aquela possibilidade de um conhecimento a priori
sobre Deus, sem exclusão de uma experiência a posteriori d’Ele (ou com Ele). É neste ponto,
portanto, que a Antropologia se revela com o predicamento de transcendental. Rahner insiste
radicalmente em pôr a mensagem cristã em moldes (ou em categorias) mentais, de modo que
possam ser compreendidos pelo homem moderno. E a perspectiva antropológica (ou
antropocêntrica) à qual adere ressalta ainda mais essa tentativa: na medida em que a
cosmovisão atual é antropocêntrica, a mensagem cristã também deve ser, para que recupere a
inteligibilidade e a credibilidade. E ele ainda faz questão de manifestar a ideia de que: “[...]
depois da encarnação, não há mais nenhuma área da Teologia que possa ser excluída da
Antropologia”.110
O que está claro, pois, é o fato de que, para o teólogo, não há problema em se
considerar como válido o método transcendental dentro da Teologia. Até porque não é uma
metodologia desvinculada da presença do elemento divino para o próprio conhecimento de
Deus, uma vez que o ser humano, capaz de transcender-se a si mesmo, o faz por intermédio
de um existencial sobrenatural que lhe é permanente: a graça. O homem é, pois, o único
ouvinte possível da Palavra divina, porque, por sua constituição ontológica fundamental, ele é
abertura à totalidade da realidade e, portanto, abertura a Deus: o homem é orientado
fundamentalmente para Deus, é aquele que pode acolher em sua vida a possível entrega
amorosa de Deus. O ser humano é, assim, condição de possibilidade, da auto comunicação de
Deus, isto é, se não houver ser humano, não há sentido em haver graça criada, porquanto este
se constitui como que um momento interno da realização desta graça infinita, pois é aquilo
que a graça pressupõe para atuar. Melhor expressando, Deus e sua graça são,
independentemente da existência humana; entretanto, ao existir o ser humano, este se torna o
destinatário por excelência desta graça indevida de Deus, de tal maneira que esta graça (que
aqui chamamos “graça criada”, por se referir à criatura humana como a um polo de atração;
quanto a Deus em si mesmo, chamamos aqui “graça incriada”) só faz sentido na medida em
110 MONDIM, Battista. Os grandes teólogos do século XX: Teologia Contemporânea. São Paulo: Paulus &
Teológica, 2003, p. 525.
73
que há algo no mundo que a possa acolher. Nesse sentido é que, logo, a graça passa a fazer
parte da vida humana, de tal modo que se a pode definir como:
“[...] a condição última a priori do conhecimento”, uma vez que é ela mesma o fundamento objetivo do dado histórico conhecido a posteriori. “Então aqui, em Teologia, a prioridade do sujeito e a posterioridade do objeto histórico têm uma relação única, que doutra parte nunca se apresenta assim”.111
É, então, aí que se localiza o fundamento teológico das afirmações de Rahner; a graça,
proporcionadora de um conhecimento sobre Deus a priori, é destinada ao ser humano,
tornando-o, de fato, condição de possibilidade deste mesmo Deus, podendo com ele entrar em
contato dialogal. A graça, desse modo, é esse existencial sobrenatural que garante ao ser
humano a possibilidade de encontrar-se com Deus e de com Ele manter um relacionamento
dialogal, transcendendo aquilo que é corriqueiro ao ir à presença do mistério santo. Este
homem que, diante da auto-oferta de Deus deve se posicionar com um “sim” ou “não” em sua
liberdade112, nunca pode abarcar a totalidade dessa experiência transcendental pela própria
reflexão humana, mas pode se abrir a ela para se encontrar com Deus e enxergá-Lo como um
Tu absoluto. Esse existencial sobrenatural (ou graça), contudo, supõe a natureza humana. E
essa relação é fundamental para uma compreensão razoável da graça, fundada na vontade
salvífica de Deus.
Rahner, nesta relação, dará início em suas afirmações na proclamação não-coisal da
graça; ela, em vez de objeto, é dom de Deus. E, para ratificar sua teologia karicêntrica (que
tem por centro a graça, karis), ela é o próprio Deus em auto comunicação livre, indevida e
indulgente ao ser humano, por intermédio de sua conduta kenótica (ao deixar de lado seus
atributos divinos sem perder sua natureza divina) peculiar. Por isso mesmo é que a graça é
dom incriado, já que é Deus mesmo em autodoação. Quanto ao ser humano, este é natureza,
na medida em que é o receptor desta doação divina radicalmente indevida – visto que não é
implicada na autorrealização do ser humano enquanto tal. Como se pode perceber:
No ser humano, a graça (graça criada) é um estado determinado de uma pessoa espiritual, portanto uma determinação, uma forma de ser de um sujeito e por isto enquanto tal formalmente distinta dele e indevida a ele. Assim, a graça só pode ser compreendida enquanto através dela a pessoa, ou seja, a natureza, é, efetiva-se desta forma.113
111 RAHNER, Karl. Teologia e Antropologia, São Paulo: Paulinas, 1969. p. 16. 112 RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé: Introdução ao Conceito de Cristianismo. São Paulo: Paulus,
1989. p. 127-128;131. 113 OLIVEIRA, P. R. F. de; PAUL, C. (Org.). Karl Rahner em perspectiva. São Paulo: Loyola, 2004. p. 202.
74
Por este fator é que não se pode admitir a existência da graça sem a pessoa, dado que a
pessoa (natureza) é um momento interno na concretude da graça, estas, pois, se implicando: a
graça pressupõe a natureza. Na verdade:
[...] não se pode... deduzir, com exatidão, como reagiria a natureza do homem com as sua próprias forças e que seria ela exatamente, por si só....O homem pode fazer experiência sobre si mesmo, só no âmbito da amorosa vontade sobrenatural de Deus; não pode apresentar a natureza em um estado “quimicamente puro”, separada do seu existencial sobrenatural (a graça). A natureza, neste sentido, permanece sendo um conceito abstrato derivado. Mas esse conceito é necessário e objetivamente fundamentado, se quiser tomar consciência reflexa da gratuidade da graça, embora o homem seja ordenado a ela interiormente e de maneira absoluta. Então se deve conceber como indébita e sobrenatural, essa mesma ordenação incondicionada. A essência humana concretamente experimentada compõe-se desse existencial sobrenatural e do “resto”, que é a natureza pura.114
Afinal, qual o posicionamento de Rahner no que concerne a essa relação entre
natureza e graça? A tal indagação poderíamos redarguir acentuando que, no primeiro
momento, o Teólogo põe à mostra a finalidade da obra criacionista de Deus, cujo conteúdo
primordial é a auto comunicação amorosa. De fato, o homem fora criado exatamente para
receber este amor, que é Deus mesmo; desta feita, deve haver nesse homem uma certa
potência real para aquele amor, que há de estar sempre nele, uma vez que tal potência real
constitui-se como o que de mais íntimo e mais próprio há no ser humano, como “o centro e a
razão radical do que ele é”.115 Deste modo, o homem tem que seguir sendo sempre o mesmo
que foi criado, já que “[...] a ardente aspiração fazia Deus mesmo na imediatez de sua própria
vida trinitária”.116
E é também aí que se percebe a comprovação da loucura da Encarnação, pois o que se
apresenta diante dos nossos olhos é que a história humana é, de alguma maneira, “história de
Deus”, o que nos dá ainda mais acesso à vida mesma de Deus e faz do Cristianismo uma
religião profundamente humana que, ao ser assim, é profundamente divina:
[...] O Cristianismo é tão humano, tão histórico, que é demasiado humano para muitos homens que pensam que a verdadeira religião não poderia ser humana, mas teria de ficar fora do alcance dos sentidos e da história. O Verbo se fez carne.... O Cristianismo é uma religião histórica, concreta e forte, escândalo dos orgulhosos que afinal, pelo menos em coisas de religião, não querem ser humanos; mas é graça e verdade para aqueles que, de coração humilde, querem ser homens no espaço e no tempo, mesmo quando adoram o Deus da eternidade e da imensidade.117
114 RAHNER, Karl. O homem e a graça, São Paulo: Paulinas, 1960. p. 60-61. 115 RAHNER, Karl. Escritos de Teología I. Espanha: Cediciones Cristiandades, p. 342. 116 Ibid., p. 343. 117 RAHNER, Karl. Graça Divina em Abismos Humanos. São Paulo: Herder, 1998. p. 17.
75
A uma visão da Teologia sob estes moldes não se poderia objetar a dessacralização de
Deus. Pôr a mensagem cristã embasada numa antropologia em vez de reduzir, engrandece e
torna plausível um discurso verdadeiramente cristão. O fato de se colocar o acento no ser
humano mostra, indefectivelmente, o interesse de Deus pelo destinatário da auto comunicação
divina, no amor, ao mesmo tempo em que expressa, tendo a graça como pano de fundo, que o
homem é realmente condição de possibilidade de seu Criador: a pessoa humana é um
momento interno da própria doação infinita de Deus; não pode haver doação de Deus sem
haver quem acolha ou rejeite esta doação. Aqui se faz uma ponte necessária com a dimensão
cristológica da Teologia rahneriana, uma vez que, pelo evento-Cristo, Deus radicalizou a
autodoação ao ser humano na graça, manifestada sobretudo por sua morte e ressurreição. Em
Jesus, o Cristo de Deus, o homem pode contemplar-se; encontrando-se com Ele, pode
perceber para que foi criado, enfim enxergar sua origem e seu destino: Deus mesmo. Como o
próprio Rahner nos sugere:
Não se pode entender o Deus-homem como se Deus ou seu Logos houvesse se disfarçado de certa forma para fins de seu agora salvífico, com o fato de poder emitir sua voz aqui dentro do nosso mundo para nós. Jesus é verdadeiramente homem, possuindo simplesmente tudo que é parte de um homem, inclusive subjetividade finita, na qual, à sua maneira própria e singular, historicamente condicionada e finita, o mundo chega a si mesmo, subjetividade finita que, precisamente pela auto comunicação divina na graça, situa-se em radical imediatez para com Deus, como também é dada a nós na profundidade de nossa existência.118
Com suporte em Jesus Cristo, então, Deus assumiu de maneira incontestável a
humanidade e fez dela o lugar privilegiado de sua manifestação. O caráter “transcendental”
todo-determinante da graça que Karl Rahner descreveu ao falar do mistério da fé, que deve
ser desdobrado como mistério triuno. Esse mistério é a auto comunicação de Deus na qual ele
permanece mistério insondável e mesmo assim se dá a experimentar. Conforme vimos e
segundo a fé cristã, essa auto comunicação divina alcança seu ápice único e insuperável em
Jesus Cristo; no Espírito Santo essa oferta de auto comunicação divina pode ser aceita. Como
graça se refere a um processo relacional, a teologia da graça sempre deve encarar os dois
polos da relação: o Deus a se inclinar graciosamente ao ser humano (em termos escolásticos:
gratia increata) e o ser humano agraciado por Deus (gratia creata). Enquanto a oferta
salvadora de graça da parte de Deus deve ser tratada principalmente na cristologia, a
pneumatologia trata da chegada da dedicação graciosa no ser humano, e a doutrina da graça
em sentido mais restrito, da aceitação, possibilitada pelo Espírito Santo, da graciosa vontade
118 RAHNER, 1989, p. 235-236.
76
salvífica e de seus efeitos transformadores no ser humano. Por isso Rahner fala do triuno
mistério da Trindade, da humanificação e da graça. Diante dessa realidade, o que está claro é
que: O conceito da graça como existencial sobrenatural comporta, pois, dois elementos: a) antes de tudo, a graça é uma realidade sobrenatural, indevida e gratuitamente dada como comunicação pessoal de Deus à sua criatura; b) mas, ao mesmo tempo, é sempre dada com a existência humana, de tal forma que constitui um a priori e um transcendental, que acompanha o devir histórico e a posteriori da vida de cada homem, marcando-o profundamente e co-determinando suas decisões. A graça como oferta está sempre no próprio centro da existência humana: “lá estão Deus e sua graça libertadora ...; lá fazemos uma experiência, que é inevitável na vida e é oferecida à nossa liberdade, para que a aceitemos ou nos entrincheiremos contra ela, condenando-nos por nós mesmos a uma liberdade infernal”.119
“Mas a cada um de nós foi dada a graça pela medida do dom de Cristo” (Ef 4,7), nesse
sentido, realiza a elevação do homem, fazendo com que os seres humanos cresçam “até que
alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, o estado de
Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4,13), de sorte que “[...]
seguindo a verdade em amor, cresceremos em tudo em direção àquele que é a cabeça, Cristo”.
(Ef 4,15).
Em suma, a graça (ou o que chamamos de “Deus-no-homem”) é a oferta da auto
comunicação de Deus a nós, é a absoluta proximidade do mistério santo enquanto se
comunica e não se recusa a si mesmo.120
4.6 A COMPREENSÃO ECUMÊNICA DA GRAÇA
4.6.1 Ponto de Vista Protestante
Como entender a experiência do amor? Como explicar a fé que existe em nós? Como
entender a graça que nos torna acessíveis a Deus? Só existe uma resposta para esses mistérios:
tudo isso acontece porque Deus nos ama, somente isso. Precisamos proclamar isso de todo
nosso ser. Paulo o fez, quando da sua conversão na controvérsia judaica, pela via negativa da
noção de justificação por meio da fé. Agostinho também o fez, tomando emprestada a noção
de Paulo de justificação, na luta contra Pelágio. Em Tomás de Aquino, a graça desempenha
um papel decisivo de como a pessoa humana encontra o caminho de volta para Deus. Lutero,
em sua busca angustiada pela face misericordiosa de Deus, viu as portas da graça serem
abertas diante de si, quando a noção paulino-agostiniana abriu-lhe as portas do paraíso, na 119 GIBELLINI, 1998, p. 231. 120 RAHNER, 1989, p. 126.
77
chamada experiência da torre, sendo seguido pelo escocês John Knox, do francês João
Calvino, do holandês Jacob Armínio, do suíço Ulrich Zwinglio e do alemão Thomas Müntzer,
este um líder do movimento camponês, dos anabatistas, conhecido por posições mais radicais
em torno do debate religioso e dos enfrentamentos sociais e políticos sobre a posse da terra.
Em tempos tribulosos em que vivemos, é preciso declarar: só a graça. Vivemos sob o
signo da necessidade de humanização da vida, da urgência em acordar para a catástrofe
socioambiental que silenciosamente se impõe sobre o planeta, da busca de um lugar aberto,
para bem longe do aperto opressivo e sacrificial de Mamon que continua sacrificando pessoas,
povos e culturas. Segundo o teólogo protestante Paul Tillich, no seu famoso sermão “És
aceito”, baseado em Romanos 5,20, ele afirma que a expressão: “Onde abundou o pecado
superabundou a graça”, além de resumir a experiência paulina de Deus, expressa a totalidade
de sua mensagem religiosa e ainda revela a compreensão cristã que o apóstolo dos gentios
tinha da vida. Segundo Tillich, a palavra pecado deve ser entendida como separação, ou seja,
antes de ser um ato o pecado é um estado de separação. Sendo assim, jamais tomaríamos
consciência de tal estado se em algum momento não tivéssemos experimentado a unidade da
vida. Tal unidade, ele chama de graça.
Graça é a reunião da vida com a vida, é a aceitação daquilo que repelimos em nossa
relação conosco próprios, com os outros e com o fundo e a finalidade do nosso ser. Em todos
estes campos há uma luta entre separação e reunião, entre pecado e graça. Para Tillich, o que
mais expressa a separação entre a vida e vida estaria, no seu tempo, na atitude recíproca de
grupos sociais dentro das nações, e destas com outras. Apesar do progresso técnico ter
eliminado os muros que nos distanciam no tempo e no espaço, os muros que separam
corações de corações estariam cada vez mais reforçados.
Quando escreve aos romanos, o apóstolo Paulo cita: “[...] onde abundou o pecado
superabundou a graça” (Rm 5,20), nesta mesma carta ele descreve os abismos de separação e
destruição que existem no seio das sociedades e da alma humana. Após a visão que teve do
Senhor Jesus no caminho para Damasco, ele que se achava mais separado de si mesmo, de
Deus e das pessoas, percebeu-se aceito em meio a tantas recusas, e ao perceber-se aceito, foi
capaz de aceitar a si mesmo e aos demais. A graça fê-lo transpor o abismo das separações.
Segundo Tillich, ser abraçado pela graça, não se trata de crer que Deus existe, que Jesus é o
salvador ou que a Bíblia contenha a verdade. A graça transpõe tudo isso. Entender a graça
superabundante também não significa alguma coisa como um progresso na nossa vida moral,
ou uma superação nas nossas faltas. Pode até ser um fruto da graça em nós, mas, em si
mesmo, não é graça, podendo inclusive impedir que esta se nos comunique, quando
78
permitimos que a arrogância ou o desespero nos permita uma relação com Deus fora do sopro
da graça. Neste caso, seria melhor rechaçar a Deus, Cristo e a Bíblia que aceitá-los sem a
graça, sem ela, nosso abismo só faz aumentar. Não podemos transformar nossa vida, a menos
que permitamos que a graça nos transforme. Mas onde habitar, que atitude tomar, para que a
experiência da graça seja possível em nós? Segundo escreve Tillich:
Quando andamos pelo vale escuro de uma vida vazia e carente de sentido; quando sentimos que nossa separação é mais profunda que de costume, porque temos agredido outra vida, uma vida que amávamos ou uma vida que nos rechaçou; quando nosso fastio pelo nosso próprio ser, nossa indiferença, nossa debilidade, nossa hostilidade e nossa falta de direção e de serenidade tornam-se intoleráveis; [...]. Às vezes, nesse momento, uma onda de luz irrompe em nossa escuridão e é como se uma voz nos dissesse: “És aceito!”. [...]Depois de uma experiência assim, podemos não ser melhores que antes e podemos não crer mais como antes, mas tudo se transforma. Nesse momento a graça domina o pecado e a reconciliação faz uma ponte sobre o abismo da alienação.[...]À luz dessa experiência percebemos o poder da graça em nossa relação com os demais e conosco mesmos. Experimentamos a graça de poder olhar francamente nos olhos dos demais, a graça milagrosa da reconciliação com a vida. Experimentamos a graça de compreender a vida dos demais.[...]Experimentamos a graça de poder aceitar a vida do outro, inclusive se nos é hostil ou nocivo, já que pela graça sabemos que também ele pertence ao mesmo fundo a que nós pertencemos. Experimentamos a graça que é capaz de vencer a trágica separação dos sexos, das gerações, das nações, das raças, e inclusive o grande abismo aberto entre o homem e a natureza.[...] Então podemos dizer que a graça veio sobre nós! “Pecado” e “graça” são, pois, palavras insólitas; mas não são realidades insólitas. As encontramos sempre que voltamos para nossa intimidade com olhos que buscam e um coração anelante. “Pecado” e “graça” determinam nossa vida. Abundam em nós e em todo aquele que encoraje a vida. Oxalá a graça sobreabunde em cada um de nós!121
4.6.2 Ponto de Vista Católico
Marcelo Barros escreve sobre o mundo em que vivemos hoje, atribulado pelas guerras
e no qual as despesas com armas aumentam sob o pretexto de prevenir e reprimir atos
terroristas, onde a desigualdade social se torna cada dia mais grave a ponto de provocar ondas
sempre mais numerosas de migrantes e refugiados, rejeitados pelos países ricos e pela elite do
mundo. Nesse contexto, questiona ele, o que pode significar as antigas controvérsias cristãs
sobre salvação e graça?122
No final de outubro de 2016, o fato de representantes da Igreja Católica Apostólica
Romana e da Federação Luterana Mundial se colocarem de acordo sobre esses assuntos e,
juntos assinarem o documento “Do conflito à comunhão”, significa muito para as Igrejas. Mas
o que pode significar para esse mundo ferido pelas divisões e faminto de amor e
121 TILLICH, Paul. Se Conmueven los Cimientos de la Tierra. Barcelona: Ariel, 1968. p. 256-258. 122 RIBEIRO, Claudio de Oliveira; ROCHA, Alessandro Rodrigues (Orgs.). Ecumenismo e Reforma. São
Paulo: Paulinas, 2017. p. 24.
79
solidariedade? Em seu tempo, Lutero insistiu que salvação e graça são dons divinos,
absolutamente gratuitos e universais. Pregou que, através da cruz de Jesus, Deus redime e
resgata a todos os pecadores que somos nós. A Igreja Católica insistia que, para a salvação,
sempre eram essencialmente necessários o ministério da Igreja e a mediação dos sacramentos
e das indulgências. É claro que, nesse contexto, a posição radical de Lutero foi rejeitada e, a
partir daí, se realizou a divisão.
Atualmente, devemos aprofundar esse assunto a partir de outro ângulo. Até há pouco
tempo, a teologia das Igrejas falava da salvação e da graça como se fossem forças ou
elementos sobrepostos ou acrescentados à natureza. E, desde os primeiros séculos, houve
muitas controvérsias teológicas sobre a fé. Leonardo Boff afirma que:
Na história da Igreja Católica, predominaram ao menos quatro concepções diferentes da graça: (i) o enfoque baseado na experiência psicológica (por exemplo, em São Boaventura e na teologia franciscana); (ii) uma compreensão baseada na metafísica clássica (posição do Mestre Eckhart e da mística renana no século XIV); (iii) uma visão dialógico-personalista (predominante no século XX); e (iv)o enfoque estrutural e social que poderia se dizer da Teologia da Libertação.123
Desde a segunda metade do século XX, as Igrejas Reformadas e a Igreja Católica
criaram comissões teológicas mistas que assinaram vários acordos sobre a fé. No início da
década de 1970, começaram a surgir compreensões totalmente novas de uma possível
compreensão contemporânea de salvação. Em 1973, em Bangoc, o Conselho Mundial de
Igrejas (CMI) reuniu teólogos/as e pastores/as do mundo todo e de diversas Igrejas em uma
conferência internacional sobre a missão, e o tema foi “A salvação hoje”. Nessa reunião, a
novidade estava em que o CMI aceitava às teses de alguns teólogos europeus, como Jürgen
Moltmann, e, na América Latina, à Teologia da Libertação, conforme escrito por Ulrich
Kuhn:
Com base em Lucas 4,18, se ensina que a salvação e a graça têm de ser pensadas para o ser humano integral e não apenas para o espírito. E também não podem ser vistas como destinadas apenas às pessoas individuais, e sim devem abranger também as estruturas sociais do mundo.124
Uma década depois, o Documento de Lima continha um profundo acordo
interconfessional sobre o Batismo, os Ministérios e a Eucaristia (1983). Tudo isso teve seu
cume quando, em 1999, representantes da Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial
123 BOFF, Leonardo. A Graça Libertadora no Mundo. 2. ed. Petrópolis: 1977. p. 28-29. 124 KUHN KUHN, Ulrich. Salvação. In: LOSSKY, Nicolas et al. (Org.). Dicionário do Movimento Ecumênico.
Petrópolis: Vozes, 2005. p. 992.
80
assinaram a “Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação”. O núcleo do documento
encontra-se nos parágrafos 15 a 17 e começa dizendo:
É nossa fé comum que a justificação é obra do Deus triuno. O Pai enviou seu Filho ao mundo para a salvação dos pecadores. A encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo são fundamento e pressuposto da justificação. Por isso justificação significa que o próprio Cristo é nossa justiça, da qual nos tornamos participantes através do Espírito Santo segundo a vontade do Pai. Confessamos juntos: somente por graça, na fé na obra salvífica de Cristo, e não por nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para boas obras (n. 15).125
Hoje, há muito mais unidade e comunhão entre um católico e um evangélico que
trabalham no meio dos pobres do que entre um protestante e um neopentecostal. Assim, a
visão de salvação e graça não depende mais da Igreja a que se pertence, e sim de que lado
social se está.
125 HASENACK, Johannes F.; SANDER, Luís M. Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação.
Augsburgo: Sinoidal; CONIC; Paulinas, 1999. p. 12.
81
5 CONCLUSÃO
Ao finalizar esta pesquisa descubro que hoje, não podemos deixar de discutir sobre a
graça como ponto de partida para união do corpo de Cristo entre todos os cristãos. No mundo
todo, os movimentos fundamentalistas testemunham um deus que ama seus amigos e odeia seus
inimigos, como se fosse um deus que parece matar quem não obedece às normas daqueles que
se consideram eleitos, uma divindade criada em seu nome. Mesmo os descendentes de Lutero
que afirmam que Deus é graça e perdão incondicional, algumas vezes, sustentam posições
sociais e políticas que são contrárias a uma imagem generosa e gratuita de Deus. Nesse caso,
não existe graça, o que existe é a desgraça estrutural, como negação de Deus.
Ao transmitirmos ao mundo de hoje a mensagem de Lutero referente aos princípios
básicos da Reforma (“somente a fé, somente a graça, somente a Escritura, somente o
Cristo...”), devemos ter cuidado com a imagem de Deus que queremos passar às pessoas. Que
Deus é esse que salva pela graça e através da cruz de Jesus? De que salvação se trata e como
ele salva? Por onde ir?
Os contatos entre a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana
iniciaram-se com a participação de observadores luteranos no Concílio Vaticano II (1962-
1965). Daí surgiu o grupo de trabalho católico-romano/evangélico-luterano que, entre os anos
de 1965 e 1966, dialogou sobre dois temas: as controvérsias teológicas tradicionais, sobre o
tema geral “o Evangelho e a Igreja”; e questões relativas ao matrimônio misto.126 Desse
diálogo resultou o Relatório de Estrasburgo127, elencando alguns temas que podem ser objetos
de diálogo, como a Palavra de Deus, a presença de Cristo na Igreja, a pneumatologia, a
justificação e a santificação, renovação e reforma, questões pastorais, entre outros. Propõe-se
o início do diálogo teológico oficial entre as duas tradições eclesiais e o intercâmbio regular
de observadores, com uma metodologia de aproximação autenticamente ecumênica, na qual
se respeite a prioridade da oração e o arrependimento das culpas contra a unidade.128
A partir desse diálogo originaram-se cinco fases, sendo que entre os anos de 1986 e
1993 aconteceu a terceira fase do diálogo tratando da doutrina da justificação. Nas conclusões
das fases anteriores, já se evidenciava certo consenso sobre a justificação, a Escritura e a
Tradição. Essa terceira fase concluiu com o documento Igreja e Justificação (1993), tendo
como chave o significado da Igreja à luz da sacramentalidade e da justificação, considerando
126 COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICA LUTERANA (CICL). Do conflito à comunhão:
comemoração conjunta católico-luterana da Reforma em 2017, Brasília: CNBB, 2015. p. 551. 127 Ibid., p. 831-837. 128 Ibid., p. 833.
82
que a justificação provém do anúncio e da acolhida do Evangelho. O tema da justificação
continuou a ser estudado na quarta fase, iniciada em 1994, e concluída com a publicação da
“Declaração conjunta sobre a Doutrina da Justificação”, em 1999. Esta Declaração é o
principal resultado do diálogo até agora realizado entre as duas Igrejas. Ela propõe um
“consenso em verdades básicas” sobre o núcleo central do Evangelho, a salvação unicamente
por graça e fé em Jesus Cristo.129 Apresenta a solução para as controvérsias doutrinais sobre a
doutrina da justificação do pecador pela graça de Deus na fé (Rm 3,23-25), como uma base
bíblica comum130, o princípio sola fides131, também segundo a compreensão católica a fé é
fundamental para a justificação e essa justificação é perdão dos pecados e ato que torna justo
através da graça justificadora, que nos torna filhos e filhas de Deus. A cooperação com a
graça salvífica132, católicos dizem que o ser humano “coopera” no preparo e na aceitação da
justificação e veem nesse sentimento um efeito da graça, e não da ação humana, na concepção
luterana o ser humano é incapaz de cooperar em sua salvação, já que, como pecador ele
resiste ativamente a Deus e à sua ação salvadora, ou seja, pode resistir a atuação da graça. A
compreensão de mérito pelas obras praticadas133, tanto católicos como luteranos concordam
que, as boas obras nos fazem merecedor de recompensa no céu, ou seja, não fazemos boas
obras para sermos salvos, fazemos porque já somos salvos pela graça e pela ação do Espírito
Santo. O simul iustus et peccator134, católicos e luteranos confessam que no batismo o
Espírito Santo une a pessoa com Cristo, a justifica e realmente a renova. Não obstante, a
pessoa justificada, durante toda a vida, permanece incessantemente dependente da graça de
Deus que justifica de modo incondicional. Cancelam-se as mútuas acusações de heresias
considerando a fé comum na justificação em Cristo como a pedra angular do diálogo católico-
luterano atual. Questões que permanecem não são conflitivas, mas complementárias, no
sentido de que não comprometem o acordo de base.135
Esta quarta fase foi um período de continuidade do diálogo com o aprofundamento do
sentido bíblico da justificação; a tradução da mensagem da justificação na linguagem atual e
as questões eclesiológicas a ela ligadas; a ampliação do consenso diferenciado a outras Igrejas
ligadas à Reforma. Um dos momentos mais significativos nessa continuidade foi a consulta
sobre “Unidade da fé”. A Declaração conjunta sobre a justificação num contexto ecumênico
129 HASENACK; SANDER, 1999, p. 12. 130 Ibid., nº. 8-12, p. 8-11. 131 Ibid., nº. 25-27, p. 16-17. 132 Ibid., nº. 20-21, p. 14. 133 Ibid., nº. 38-39, p. 22. 134 Ibid., nº. 28-30, p. 17-19. 135 Ibid., nº. 40-41, p. 23.
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mais amplo (realizada em Columbus, Ohio, EUA, em 2001). Esta consulta buscou expandir o
consenso sobre a doutrina da justificação para outras Igrejas, sobretudo aos metodistas e
reformados. O Concílio Metodista Mundial adotou a Declaração conjunta sobre a doutrina da
justificação em 2006.
O diálogo católico-luterano internacional fortalece as relações entre as duas Igrejas
também no Brasil. Aqui, esse diálogo tem origem nos encontros de professores de teologia da
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e a Igreja Católica a partir de
1957, quando foi criado o Grupo Ecumênico de Reflexão Teológica (GERT).136 Desse
diálogo foi criada a Comissão Nacional Católico-Luterana, em 1974. Uma conclusão do
Seminário que merece particular atenção diz respeito ao “ecumenismo de base”. Os
participantes do Seminário percebiam que “o ecumenismo não pode ficar restrito à ação dos
órgãos de direção” das Igrejas, sendo necessário “promover a ação conjunta em nível de
comunidades de base”,137 sugerindo para isso:
1) optar por alguma ação social comum para as duas Igrejas; 2) intensificar a promoção da união nas bases e na oração (desaconselha-se a intercomunhão); 3) intensificar a consciência sobre o que já existe de comum na fé cristã; 4) intensificar a relação de padres e pastores; 5) criar nas comunidades de base espaços de laboratório e de vivência ecumênicas.138
A importância dessas conclusões está, sobretudo, na busca de ação conjunta entre as
duas Igrejas e a não concentração do ecumenismo nas hierarquias. Esse seria o caminho para
desenvolver nos cristãos a consciência de uma Igreja aberta ao diálogo e ao reconhecimento
da mesma fé nos cristãos de outra Igreja. O que se conclui dessas intensas atividades da
Comissão Nacional é a seriedade do compromisso em aprofundar a convicção ecumênica das
tradições católica e luterana no Brasil, acompanhando de perto as discussões sobre temas
essenciais para a unidade cristã. Esse compromisso é um dos maiores impulsionadores do
ecumenismo no Brasil, como mostra a atuação dessas duas Igrejas nas organizações
ecumênicas existentes no país, inclusive como membros fundadores, tal como a
Coordenadoria Ecumênica de Serviços (1973) e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do
Brasil (1982). Assim, o diálogo bilateral amplia-se e é fortalecido pelo diálogo multilateral,
tratando de questões teológicas, pastorais e sociais que dizem respeito à unidade da Igreja e a
construção de uma sociedade justa e solidária.
136 WOLF, Elias. Caminhos do ecumenismo no Brasil. São Paulo: Paulus, 2002. p. 101-103. 137 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Comunicado Mensal, n. 265, 1974.
p. 897. 138 Ibid., p. 897-898.
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O que mais precisa ser superado para a união entre católicos e luteranos? Segundo
Elias Wolf, o status quaestionis da divisão entre católicos e luteranos configura-se atualmente
em seis principais horizontes:
1) Na teologia, as Igrejas estão divididas na interpretação dos elementos que constituem a natureza e o conteúdo da fé cristã, como a doutrina dos sacramentos, a natureza da Igreja, os ministérios, a relação entre Bíblia e tradição, entre outros; 2) Nas estruturas eclesiásticas, católicos e luteranos divergem tanto sobre os elementos estruturais da Igreja quanto sobre a compreensão teológica que se tem deles; 3) Na espiritualidade, a compreensão da fé e a vida eclesial são alimentadas por espiritualidades diferentes no interior de cada tradição eclesial. Esse fato, que poderia ser apenas manifestação da diversidade da atuação do Espírito, num contexto de divisão manifesta tensões e distanciamentos de uma tradição eclesial em relação a outra; 4) Na pastoral, as divergências nos tópicos acima leva católicos e luteranos a não conseguirem realizar projetos de cooperação na missão, opondo-se tanto no conteúdo quanto no método da missão; 5) Na ética, as Igrejas estão divididas em questões éticas e nos costumes, como as questões de gênero, a sexualidade, as experiências científicas com genes humanos; 6) Em questões sociopolíticas, católicos e luteranos têm realizado uma linda caminhada conjunta, sobretudo nos anos 1970-1980. Mesmo assim, e sobretudo na atualidade, não se verifica consenso na compreensão da sociedade e no modo de situar-se nos conflitos que nela ocorrem.139
Não existem receitas prontas para superar os impasses entre católicos e luteranos. Mas
as duas Igrejas estão dispostas a seguir em frente com suas convicções ecumênicas. A história
do diálogo já realizado as aproximou fortemente e as integrou em organismos ecumênicos que
sustentam essas convicções. Para progredirem no diálogo, as Igrejas precisam libertar-se, com
pobreza evangélica, de cada superestrutura autoritária e de poder, sentando-se à mesa em
igualdade de condições, como atitude de profecia ecumênica. Em termos práticos, isso
implica o fortalecimento das iniciativas ecumênicas em algumas principais direções:
No cotidiano dos fiéis, onde já existe uma prática espontânea de aproximação na vida do povo cristão, sobretudo nos meios onde se promove a dignidade humana, a justiça e a paz; nas iniciativas institucionais, como os setores de ecumenismo interno às Igrejas, a presença nas organizações ecumênicas, a ação das comissões nacional e internacional de diálogo; na formação ecumênica das comunidades, principalmente dos seus agentes, desenvolvendo tanto a teologia quanto a espiritualidade ecumênica.140
Isso possibilita intensificar os esforços ecumênicos das Igrejas Católica e Luterana em
várias direções, estreitando o diálogo entre as lideranças eclesiásticas e os organismos
ecumênicos, entre o caminho teológico-doutrinal e o pastoral, entre a busca da unidade na
graça e na fé e os esforços pelo bem comum na sociedade e a defesa da vida no planeta.
139 RIBEIRO; ROCHA, 2017, p. 185-186. 140 Ibid., p. 186.
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Como balanço dessa caminhada do diálogo católico-luterano serve o que o papa João
Paulo II reconheceu acerca do movimento ecumênico como um todo: que em nossos tempos
“a ação em prol da unidade dos cristãos assumiu proporções tão amplas e se estendeu a um
âmbito tão vasto” como nunca antes visto (Ut unum sint, n. 41). E os “frutos do diálogo” estão
aparecendo: a fraternidade reencontrada pelo reconhecimento do único batismo e pela
exigência que Deus seja glorificado na sua obra; a solidariedade no serviço à humanidade;
convergências na Palavra de Deus e no culto divino; o apreço mútuo dos bens nas diferentes
tradições eclesiais; o reconhecimento de que “aquilo que une é mais forte do que o que
divide” (Ut unum sint, nn. 20.41-49).
Nosso Deus é santo, infinitamente santo (Is 6,3), não se satisfaz com uma religiosidade
legalista. Por ser amor, ele não aceita nada de nós que não esteja infiltrado e dominado pela
sua graça. Entretanto, graça sem compromisso não representa a realidade bíblica. Graça barata
e teórica, carece do poder transformador. Essa graça não-bíblica incita ao legalismo e a
separação entre os cristãos. Mas a glória que João e seus colegas viram, “cheia de graça e de
verdade” (Jo 1,14), é acessível aos que crêem (Ef 2,8). Graça que diz “És aceito”, como foi na
vida de Paulo, de Agostinho, de Tomás de Aquino, de Lutero, de Calvino, de Armínio e na
modernidade em Karl Rahner e tantos outros.
Não podemos cruzar os braços diante de tanta desunião entre os seres humanos, pelo
fato de sermos seres inteligentes, criados à imagem de Deus, capazes de decidir e agir de
acordo com vontade própria, concluímos que tanto a apatia morta como a ação independente
não nos conduzem à santidade e a união. Os dois trilhos nos quais o trem da glória caminha
devem ser: 1) Dependência da graça de Deus, acompanhada por confiança no seu soberano
poder, e 2) Submissão à sua orientação. Toda altivez, rebeldia, desunião e autoconfiança são
incompatíveis com a graça de nosso Senhor. Mas a inércia, sem interesse ou ação, também
não vence a corrida para a união e a santidade entre os cristãos.
Todas as pessoas, em todas as religiões e culturas, são “filhas de Deus”, ou seja, são
receptáculos da salvação e da graça. Não cada uma por si, mas por intermédio de suas
comunidades que são, assim, comunidades de salvação. A fé cristã nos convida a viver isso
plenamente, com toda consciência e de forma missionária, como testemunhas dessa salvação.
Deus nos encoraja ou nos fustiga, para persuadir-nos a deixarmos nossa letargia e
perseguir a santidade (Hb 12,14). E é correndo a corrida que nos é proposta (Hb 12,1) que nos
asseguramos da promessa de um dia ver o Senhor (Hb 12,14). Deus nos ajude!
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