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A Geopolítica dos recursos naturais: uma análise da dependência em
commodities de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai e seus impactos.
Victor Tarifa Lopes*
Introdução
Dentro da amplitude que o termo “geopolítica” traz, no presente artigo,
trabalha-se a ideia de geopolítica em termos de disputa política por recursos
energéticos e naturais escassos, geograficamente espalhados ao redor do globo
(COSTA, 2008). Em um mundo politicamente dividido em Estados-nações, é fato
que um país não possui em seu espaço territorial a totalidade de recursos
necessários para a garantia de suas demandas energéticas; logo, aqui surge a
necessidade de se lançar em buscas internacionais por tais suprimentos. Como se
verá ao longo do artigo, na “disputa sobre bens finitos e estratégicos” (HAGE &
FERNANDES, 2016, p. 4 e 5) a ênfase será nas commodities agrícolas e na busca
de Estados por recursos que garantam a segurança alimentar e nutricional de suas
populações.
Fenômeno de crescimento econômico sem precedentes na história humana,
a China não é diferente no quadro geral aqui trabalhado, possuindo necessidades
energéticas cada vez maiores para uma população em crescimento e vertiginosa
ascensão econômica. Com efeito, conforme esse país transforma-se na oficina e
fábrica mundial (ARRIGHI, 2008), processando, segundo dados da United Nations
Industrial Development Organization (UNIDO), 25% da manufatura global, ocorrem
mudanças na dinâmica populacional, com uma população cada vez mais
urbanizada, impactando, com isso, toda a economia e geografia mundial
(ECONOMY & LEVI, 2014).Do outro lado do globo, temos a América do Sul, uma
das regiões mais ricas e abundantes em recursos minerais, agrícolas e hidrográficos
(FUCCILE, CARLOS & LEITE, 2017), produtora de boa parte dos insumos
necessários à contínua expansão material que vem ocorrendo na China. Não
obstante, a primeira década de 2000 foi marcada pelo “superciclo de commodities”,
no qual países latino-americanos como um todo observaram um aumento
* Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorando em Relações Internacionais. Agência financiadora: CAPES. E-mail para contato: [email protected]
generalizado das exportações de commodities para o parceiro asiático (FERCHEN,
2011).
Nesse cenário, o objetivo desse artigo é de identificar a relação entre a
busca por recursos naturais por países em rápido crescimento econômico e o
aumento de dependência nas exportações de produtos agrícolas em países da
América do Sul, o qual está gerando problemas de natureza eminentemente
geopolítica, como aumento da insegurança alimentar e instabilidade
socioeconômica. Logo, o problema-pergunta trabalhado é: quais as implicações
geopolíticas no aumento da dependência no comércio de commodities? A hipótese
é de que o aumento da dependência em commodities agrícolas tem levado ao
aumento de insegurança alimentar e nutricional, por uma série de canais de
transmissão macroeconômicos, tais como observados na volatilidade da taxa de
câmbio, da balança de pagamentos e dos termos de troca, os quais por sua vez
acarretam em efeitos indiretos, destacadamente em diminuição do crescimento
econômico, aumento do desemprego, de preços de produtos alimentares e perda de
receitas fiscais por parte do Estado. A metodologia é de revisão bibliográfica,
incluindo artigos e documentos oficiais emitidos por organizações internacionais, e
de análise quantitativa de dados primários. É aplicado o método de estudo de caso
comparado, abrangendo Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, países-membros e
fundadores do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), dentro do período de 2003 a
2017.
Além dessa introdução, o artigo está dividido em mais 3 partes. Na primeira,
é realizado um resumido balanço sobre o crescimento urbano chinês recente, e
como o mesmo tem moldado a “geografia” do comércio internacional. Na segunda
seção, a partir do recente relatório “The State of Food Security and Nutrition in the
World” (FAO et al, 2019), é realizada a conexão entre dependência em exportações
de produtos agrícolas e o aumento em insegurança alimentar e nutricional, com a
análise empírica dos dados para os casos selecionados. Por último, são tecidas
considerações finais.
Parte 1: China, América do Sul e a geopolítica dos recursos naturais.
Analisar China é sempre um exercício de se mensurar as maiores cifras
demográficas e econômicas em nível mundial. Segundo o World Development
Indicators, o país asiático apresentou uma taxa média de crescimento de 9,5% para
o período de 1990 a 2017. Mesmo em uma perspectiva conjuntural de maior
duração, entre 1960 e 2018, a taxa média de crescimento foi de 8%, com um
acumulado de 474% em níveis de Produto Interno Bruto (PIB). Para o período de
alta dos preços de produtos primários, ou seja, entre 2003 e 2011, as taxas foram
ainda maiores, girando em média em 10,8%.
Com a maior população mundial, com aproximadamente 1.392.700.000
habitantes em 2018, a China transformou-se de um país majoritariamente rural para
um urbano. Em 2003, 39,8% de sua população vivia em territórios urbanos, o
equivalente a 512.473.984 milhões de habitantes. Em 2018, esse número saltou
para 823.827.650 de pessoas vivendo em zona urbana, o equivalente à 59,2% da
população. A taxa média de crescimento da população urbana chinesa para esse
período (2003 - 2018) foi de 3,2%, ao passa que a média mundial foi de 2,1%.
Evidentemente que tal processo demandou uma enorme quantidade de
recursos energéticos, o que está no centro da rationale que levou à “caçada global
chinesa por recursos” (ZWEIG & JIANHAI, 2005). Como apontam Burgos Caceres e
Ear (2012), a garantia da estabilidade interna e permanência do sistema de partido
único tem feito com que seja necessário o crescimento acelerado em ritmo
constante, o qual, por sua vez, tem demandado a busca igualmente constante e em
aumento por recursos primários, por quatro fatores: “(1) a growing population, (2)
insufficient indigenous resources and raw materials to sustain growth over the long
term, (3) policy limitations, and (4) ideological contestation” (p. 50).
Com isso, a geografia mundial vem se transformando, com a China sendo o
maior importador de uma série de minérios e derivados como alumínio, carvão,
minério de ferro, aço, níquel, e cobre, um dois maiores importadores de petróleo
(BURGOS CACERES & EAR, 2012) e, atualmente, o maior importador de produtos
agrícolas, como soja, produtos lácteos, carne e frutas tropicais (ZHANG, 2019).
Como identificado pela plataforma Resource Trade (CHATAM HOUSE, 2018), em
2017 foi a maior compradora do mundo de produtos primários, representando 14%
de todo o comércio.
Ainda que o gigante chinês não esteja utilizando de práticas antes utilizadas
pelas potências coloniais, como a Inglaterra do século XIX e sua expansão
ultramarina em busca de recursos e mercados via colonização direta (ECONOMY &
LEVI, 2014), o mesmo tem colocado a segurança energética e alimentar se sua
população como questões eminentemente geopolíticas e centrais, sobretudo após
terem ultrapassado a capacidade de autossuficiência de produção alimentar,
mesmo sendo os maiores produtores de alimento do mundo (ZHANG, 2019). Com
efeito, a preocupação chinesa com questões energéticas não é a exceção, em uma
era de crescente instabilidade, era de emergente “geopolítica da escassez de
alimentos” (BROWN, 2011, p. 29)
Nesse sentido, a região Latino-americana, sobretudo os países Sul-
americanos, tem sido uma das opções de avanço da diplomacia comercial chinesa,
dada a grande potencialidade em matéria de produtos primários. De fato, muito da
racionalidade que tem guiado os investimentos estrangeiros diretos (IED) da China
na região durante a primeira década de 2000 tem sido justamente a necessidade
recursos naturais para sustentar seu crescimento e processo de urbanização
(BETHEL, 2011), ainda que esse padrão venha se transformando desde então
(DOLLAR, 2017, p 17-18).
Como demonstrou Ferchen (2011), o senso comum sobre as análises
acerca do avanço chinês na América Latina foi dominado pela ideia de uma busca
por recursos naturais, sendo possível dividirmos em dois tipos de percepções:
...[1] América Latina, uma região com recursos naturais abundantes, que exporta produtos primários para uma China em expansão, mas carente de tais recursos.[...] [2] [...] outros observadores têm destacado que o que veem como complementaridade é na verdade apenas uma forma renovada de dependência latino-americana. Eles alegam que, apesar da rápida expansão dos negócios e investimentos trazer benefícios no curto-prazo para ambos os lados, essa natureza de relações baseada em commodities reforça os padrões disfuncionais de desenvolvimento da América Latina que muitos países da região há muito tempo renunciaram e têm tentado deixar para trás há mais de meio século (p. 106)
Porém, de acordo com o mesmo autor, naturalizar o relacionamento
comercial sino-sul-americano como uma simples questão de oferta e demanda
acaba por obscurecer uma questão central: o tempo em que está ocorrendo. A
intensificação do padrão de trocas comerciais “commodity-manufatura” entre China
e países da América Latina, com ênfase na sub região Sul-americana, tem ocorrido
em um fase específica da trajetória de desenvolvimento deste país, ou seja, “tem
correspondido a uma mudança na trajetória de desenvolvimento doméstico chinês,
afastando-se da manufatura leve e média baseada em trabalho intensivo e
aproximando-se da (super)produção industrial pesada com capital intensivo”
(FERCHEN, 2011, p. 124). Tal mudança é fruto de estratégias políticas e
geopolíticas, que, como argumentamos, leva em conta as seguranças energéticas e
alimentar do povo chinês, principalmente visando a estabilidade do regime político.
Logo, colocar a alta dos preços das commodities, a proeminência comercial chinesa
e o elevado grau de especialização em produtos primários da vasta maioria dos
países Latino-americanos como algo “natural”, para se atender a demandas, elimina
questões eminentemente geopolíticas, ignorando que tratam-se de trajetórias de
escolhas políticas que, ao longo do tempo, tendem a se repetir.
Uma pergunta que Ferchen (2011), escrevendo no final do “superciclo das
commodities”, coloca é: “ o que acontece se e quando o surto de commodities
dirigido pela China terminar ou tornar-se propenso a maior volatilidade?” (p. 124).
Aqui, estendemos a questão: conforme o país asiático avança, desde 2015, nas
estratégias relacionadas à indústria 4.0 e à economia do conhecimento (IEDI, 2018),
distanciando-se de setores da indústria pesada altamente demandante de produtos
primários, qual será a situação de países primário-exportadores?
Todo caso, a realidade concreta é que a corrida chinesa por recursos
naturais impactou diretamente a região aqui estudada. Claro que se trataram de
impactos distintos, variando entre países com pátios industriais mais avançados,
como Brasil e Argentina, com complicações já no curto prazo1, e países sem grande
relevância industrial, como Peru ou Paraguai, sem complicações de curto prazo
(VADELL, 2011). Nesse cenário, muitos apontam para um processo de
reprimarização destas economias, com uma forte orientação para as atividades
1 As complicações de curto prazo referem-se, principalmente, para a perda de competitividade do setor industrial e, reforçada por isso, perda de liderança regional (VADELL, 2011).
primário-extrativas (SVAMPA & SLIPAK, 2015). Com o aprofundamento desse
padrão comercial de exportação de commodities e importação de produtos
manufaturados de alto valor agregado, tais países se aproximam de uma
configuração de relacionamento “norte-sul” (VADELL, 2011). O quadro se deteriora
levando-se em conta os problemas com a balança comercial, majoritariamente
deficitária com o país asiático (SVAMPA & SLIPAK, 2015, p. 54).
Avançando na discussão, o quadro 1 abaixo sintetiza a dinâmica de
comércio internacional dos quatro países-casos selecionados, com dados
resgatados da United Nations International Trade Statistics Database (UN
COMTRADE).
Quadro 1: Síntese da situação de principal parceiro comercial e produto exportado de 2003 para 2017.
País Principal parceiro em 2003 / % exportações
Principal produto exportado em 2003 / % exportações
Principal parceiro em 2017 / % exportações
Principal produto exportado em 2017 / % exportações
Argentina Brasil /15.58% Farelo de Soja / 11.17%
Brasil /15.94% Farelo de Soja/ 15.48%
Brasil EUA / 22.11¨% Soja / 5.53% China / 21.82% Soja / 11.19%
Paraguai Brasil / 36.63% Soja / 34.31% Brasil / 31.40% Soja / 24.99%
Uruguai Brasil / 19.52% Couro bovino e equino / 10.09%
China / 25.19% Papel e celulose / 15.10%
Fonte: The Atlas of Economic Complexity. Elaboração própria. Nota 1: Os produtos são baseados no Sistema Harmonizado 4, e foram excluídos os números relativos às exportações de serviços
Como mostrado, boa parte dos fluxos comerciais de exportação dos países
do MERCOSUL giram em torno do Brasil, sendo este o principal receptor de
produtos de Argentina e Paraguai, em ambos períodos. Nos casos de Brasil e
Uruguai, ocorreu a mudança para a China ocupar a posição de principal parceira
comercial, pelo menos do ponto de vistas de exportações. É nítido o domínio de
produtos primários e/ou agrícolas como os principais produtos exportados, sendo a
soja e seus derivados o principal para Argentina, Brasil e Paraguai, e o setor bovino
e posteriormente o setor de papel e celulose para o Uruguai.
O caso do Paraguai é um pouco distinto. A China, que não possui relações
diplomáticas com este país, não chega a estar nem entre os 30 principais mercados
destinos de produtos paraguaios. O que acontece é que produtos produzidos no
Paraguai, sobretudo a Soja, são exportados para Brasil ou Uruguai para então
serem reexportados para o parceiro asiático2. Porém, nos demais países, em um
período de pouco mais de uma década, a China se tornou o principal mercado de
Brasil e Uruguai e o terceiro na Argentina. Ora, o processo de reprimarização não foi
“puxado” exclusivamente por este país, mas ocorreu uma contribuição significativa
para tanto, sobretudo na questão de supervalorização dos preços das commodities,
a qual permitiu um período artificial de breve desenvolvimento econômico dos
países ricos em recursos naturais. Na próxima seção, serão avaliados os pontos
sobre como essa situação pode levar ao agravamento da situação de segurança
alimentar, com inclusive impactos socioambientais e, consequentemente,
geopolíticos.
2. Mensurando os impactos na dependência em commodities
Constatada a situação de que o tratamento geopolítico dado ao
fornecimento de recursos naturais por países como a China levam à uma situação
de especialização produtivo de países Sul-americanos, essa seção é voltada para a
análise de como tal situação pode levar para o aumento de insegurança alimentar e
nutricional. Para tanto, nos baseamos amplamente no estudo “The State of Food
Security and Nutrition in the World”, publicação anualmente realidade entre a FAO e
outras organizações internacionais (FAO et al, 2019).
De acordo com a FAO (2019), “Eighty percent of the countries (52 out of 65)
with a rise in hunger during recent economic slowdowns and downturns are
countries whose economies are highly dependent on primary commodities for export
and/or import” (p. 61). Logo, faz-se necessário a definição sobre o que seria um
estado de dependência em exportações e/ou importações de produtos primários.
Primeiramente, transcrevemos a definição de dependência do ponto de vista das
exportações, podendo o país ser classificado como dependente ou altamente
dependente.
Commodity-export-dependent countries or territories derive the bulk of their export earnings from primary commodities, such as minerals, ores, metals, fuels, agriculture raw materials and food. This report defines high
2 https://lta.reuters.com/articulo/granos-paraguay-china-idLTAKBN1HR1KY-OUSLD
commodity-export-dependent countries as those who generate more than 60 percent of their merchandise export revenues from food, agriculture and raw materials; minerals, ores, and metals; and/or energy commodities (FAO et al, 2019, p. 64).
A dinâmica sobre a perspectiva das importações segue uma lógica
semelhante, definindo “high commodity-import-dependent countries as those where
the share of the value of food and fuel imports is more than 30 percent of the total
merchandise” (IDEM, p. 64). Analisando-se os casos aqui trabalhados, os dados
demonstram um percentual de nível de alta dependência. O gráfico a seguir
demonstram o comportamento do ponto de vista das exportações para os 4 países.
Todos foram elaborados levando-se em conta o Standard International Trade
Classification (SITC), a partir da base de dados da United Nations Conference on
Trade and Development (UNCTAD)3.
Como se pode observar, segundo a classificação da UNCTAD, a
amostragem de países aqui analisada nos revela que todos estão no status de high
commodity-export dependent, o que implica em maior vulnerabilidade a choques
externos. Tomando os casos de Argentina, Paraguai e Uruguai, apenas o setor
agrícola já bastaria para se atingir o percentual mínimo, com o setor de minérios
aumentando as cifras nos dois primeiros. No caso brasileiro, os produtos agrícolas
por si só não levam à uma situação de dependência, sendo necessário a adição do
setor de minérios, sobretudo por conta das receitas provindas do minério de ferro.
Gráfico 1: Percentual de exportações de commodities primárias, 2003 – 2017.
3 A UNCTAD classifica commodities primárias os produtos da SITC das seções 0, 1, 2, 3, 4 e 68.
Fonte: UNCTADStat. Elaboração própria.
Importante notar que a mesma situação não foi observada do ponto de vista
das importações, isto é, os países analisados não apresentam o status de high
commodity-import-dependent. Para o período de 2013 - 2017, de queda
generalizada dos preços das commodities, a Argentina apresentou um percentual
da composição das importações de commodities de 19%, o Brasil de 26%, Paraguai
de 24% e Uruguai de 29%, ou seja, todos abaixo da faixa dos 30% (UNCTAD,
2019). Além disso, todos produzem mais alimentos do que importam, não sendo
importadores líquidos de alimentos (FAO et al, 2019).
Logo, a questão da vulnerabilidade está confirmada apenas do ponto de
vista das exportações. Antes de se relacionar um choque econômico e a
dependência em commodities com uma situação de insegurança alimentar e
nutricional, frisa-se aqui o conceito de Segurança Alimentar, sendo
A situation that exists when all people, at all times, have physical, social and economic access to sufficient, safe and nutritious food that meets their dietary needs and food preferences for an active and healthy life. Based on this definition, four food security dimensions can be identified: food availability, economic and physical access to food, food utilization, and stability over time (FAO et al, 2019, p. 186).
Logo, uma situação de insegurança alimentar e nutricional é o oposto disso,
e não se resume a apenas uma situação de fome e desnutrição crônica, mas
também a aqueles indivíduos que não possuem acesso à macronutrientes
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Argentina
Brasil
Paraguai
Uruguai
Percentual deDependência
(proteínas, carboidratos e gorduras) e micronutrientes (vitaminas, minerais e outras
substâncias), que podem estar com sobrepeso ou obesidade (IDEM, 2019)4.
Como mencionado, existem canais de transmissão diretos e indiretos dos
impactos negativos na redução nos preços das commodities. São três principais
impactos diretos que um choque de preços pode gerar: choque e volatilidade dos
termos de troca; volatilidade na taxa de câmbio e; volatilidade na balança de
pagamentos, afetando tanto conta corrente como conta capital. Através desses
canais, os impactos são distribuídos por toda a economia por uma série de
derivações. Por exemplo, com a deterioração dos termos de troca e volatilidade da
taxa de câmbio, há um crescimento menor ou até mesmo decrescimento
econômico, principalmente por afetar o comportamento de investimento e consumo,
extremamente sensíveis a instabilidades. Com o menor crescimento, há aumento de
desemprego, decréscimo de salários e, com isso, perda de renda. Isso, por sua vez,
se traduz em perda de poder de compra, que significa menos consumo de produtos,
incluindo alimentos. Há também impactos nos preços domésticos e perda de
arrecadação fiscal dos governos, que passam a investir menos políticas e
programas de proteção social e serviços de saúde, reforçando o ciclo vicioso. Os
canais de transmissão podem ser visualizados a seguir.
Infográfico 1: Potenciais impactos negativos da redução de preços internacionais de commodities na segurança alimentar e nutricional em economias dependentes em commodity: canais de transmissão.
4 Muitos indivíduos adotam como estratégia para lidar com a perda de renda, por exemplo, consumindo produtos alimentares mais baratos e ultra processados, pobres em tais tipos de substâncias.
Fonte: FAO et al, 2019, p. 69.
Como reportado pela FAO (et at, 2019), a partir de 2011 os preços
internacionais das principais commodities que compõem a cesta de exportações do
MERCOSUL sofreram uma queda aguda. Após um pico de preços históricos
atingidos em 2011, que foram se elevando em ritmo acelerado durante os anos
2000 e reforçados com a crise de 2008 (com investidores financeiros migrando para
o setor de mercado futuro de commodities), o mercado global de commodities
passou a níveis de preço semelhantes a observados na década de 1990, mesmo
com uma demanda não se arrefecendo5.
Assim dito, passa-se agora à análise dos três principais canais de
transmissão acima descritos, e dos canais indiretos que consideramos mais
relevantes: taxa de desemprego e aumento de preços domésticos. Iniciemos com os
termos de troca, problema clássico para países em desenvolvimento ou
subdesenvolvidos. Os dados apresentados foram resgatados desde 1980, para
ilustrar como a volatilidade dos termos de troca é uma idiossincrasia dos países do
MERCOSUL. De fato, observa-se uma valorização nos quatro países em algum
momento da década de 2000, e inclusive no começo de 2010. A partir de 2011 para
Brasil e 2012 para Argentina, há uma abrupta queda, ilustrativo de como o choque
de preços afetou esses países. As mudanças para as cifras do Paraguai não se
apresentaram tão significativas, tendo experimentado melhores números nos anos
5 Sobre a variação nos preços internacionais de commodities, ver FAO et al, 2019, p. 63.
1990. O Uruguai igualmente não apresentou uma volatilidade diretamente
relacionada com o fenômeno de 2011.
Gráfico 2: Termos de troca, 1980 - 2017 (2000 = 100).
Fonte: Indicadores del Desarrollo Mundial.
Gráfico 3: Taxa de câmbio oficial (UMN6 por US$, média por período), 2003 - 2017
Fonte: Indicadores del Desarrollo Mundial Nota 1: Os valores referentes ao Paraguai foram dividido por 1000, para possibilitar uma melhor visualização. Logo, em 2004 em que aparece 6 Unidades de Moeda Nacional (Guarany), são 6000 para um dólar. Em relação ao Uruguai, foram divididos por 10.
A taxa de câmbio é outro elemento central na política econômica dos países
em desenvolvimento. Na literatura, há diversos estudos que apontam como a
valorização da taxa de câmbio em países em desenvolvimento pode levar à uma
6 Unidade de Moeda Nacional.
situação de perda de competitividade, impactando diretamente nas exportações de
produtos manufaturados e na geração de emprego, a chamada “doença holandesa”
(BRESSER-PEREIRA, 2009). No gráfico acima, fica evidenciado como Brasil,
Paraguai e Uruguai tiveram suas taxas de câmbio valorizadas durante o superciclo
de commodities, e mais recentemente desvalorizadas, especialmente após 2011.
No caso argentino, ocorreu uma leve desvalorização entre 2003 e 2013, e
vertiginosa desvalorização de 2013 em diante. Como argumentado, tais oscilações
impactam diretamente nos preços domésticos e capacidade de importação de um
país, incluindo a compra de alimentos e outros produtos essenciais. Todo caso, de
todos os países analisados, a Argentina é o caso de maior gravidade em relação à
queda de preços observada a partir de 2011.
Em relação à balança de conta corrente, se o boom das commodities
possibilitou que todos os países ganhassem fôlego em termos de receitas, não foi
duradouro. De 18 anos avaliados, o Brasil e Uruguai apresentaram 5 anos de
balanço positivo, e a Argentina 8. A exceção fica para o Paraguai, com 12 anos de
saldo positivo. Novamente, os maiores impactos ficaram para os dois maiores
produtores e exportadores de produtos naturais da região, os quais apresentaram
deterioração dos indicadores antes mesmo de 2011, efeito derivado diretamente da
crise mundial de 2008.
Gráfico 4: Balança de Conta Corrente (US$ dólares correntes).
Fonte: Indicadores del Desarrollo Mundial / Banco Mundial. Elaboração própria.
O último canal direto refere-se à conta capital, outro elemento componente
do balanço de pagamentos.
Gráfico 5: Conta Capital líquida (US$ dólares correntes)
Fonte: Indicadores del Desarrollo Mundial / Banco Mundial. Elaboração própria.
Como se observa, desde 2008 todos os países apresentam saldo positivo.
Porém, o que chama a atenção é a acentuada volatilidade a partir de 2011, o que
implica em imprevisibilidade na arrecadação fiscal dos Estados. Em anos de altas,
com maiores receitas, políticas públicas em programas sociais possuem maior
viabilidade se serem empregadas; o mesmo não é possível em anos de baixa. Logo,
isso impacta diretamente na capacidade de planejamento e execução de políticas
de longo prazo, dado o constante sobe e desce de valores.
Todos os países sofreram impactos diretos com a queda de preços
internacionais, com ênfase para Argentina e Brasil. A dependência, portanto, além
de comprovada formalmente de acordo com a classificação da UNCTAD, se mostra
como um elemento estrutural dos rumos políticos, econômicos e sociais do
MERCOSUL. No quadro abaixo, temos uma síntese do desempenho dos canais de
transmissão indiretos selecionados, separados em dois períodos: 2003 - 2011 (alta)
e 2012 - 2018 (queda).
Quadro 2: Comparação de indicadores em dois períodos.
Indicador → Crescimento do PIB (média % por
Renda total de recursos naturais (% do PIB)
Desemprego total (% população ativa total / OIT)
período)
Período → 2003-2011
2012 - 2018
2003- 2011
2012 - 2018 2003- 2011
2012 - 2018
Argentina 6,44 -0,04 4,72 2,32 10,03 7,86
Brasil 4,06 0,1 4,71 3,86 8,45 9,46
Paraguai 4,69 4,10 1,67 1,53 5,25 4,66
Uruguai 5,36 2,52 1,21 1,52 9,72 7,23
Fonte: Indicadores de Desarrollo Mundial / Banco Mundial. Elaboração própria.
Todos os países apresentaram desempenho econômico pior pós-2011, em
comparação a 2003 - 2011. As rendas arrecadadas com a produção de recursos
naturais também apresentou queda na participação percentual no PIB, com exceção
para o Uruguai. O único canal de transmissão indireto que apresentou melhores
cifras no período de 2012 a 2018 na maioria dos países foi a taxa de desemprego,
com estimativas baseadas na Organização Internacional do Trabalho. Nesse canal,
apenas Brasil mostrou um aumento da taxa de desemprego7.
Fica evidenciado como a situação de dependência em commodities se
traduziu em consequências deletérias para as economias desses países, o que se
transmitiu para a situação de segurança alimentar de toda a América do Sul. De
fato, a “prevalência de subalimentação subiu de 4,6% em 2013 para 5,5% em
2017”8 na América do Sul, com aumento tanto de pessoas que passam fome como
de pessoas obesas, ambas em situação de insegurança alimentar e nutricional. O
caso Argentino, por sua vez, tem se mostrado um dos mais agudos, com uma
combinação recente de aumento dos preços de alimentos, recessão, desemprego e
aumento das taxas de pobreza (32% em 2018)9.
Além dos aspectos econômicos, outra dimensão é diretamente afetada pela
condição de superexploração da terra, derivada da dependência das commodities: a
dimensão ambiental. Como argumenta Vitte (2013),
7 Aqui caberia a crítica sobre a qualidade dos empregos e sobre o “inchaço” do setor de serviços em uma região que passa por intenso processo de desindustrialização. 8https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/07/15/fome-cresce-na-america-latina-e-afeta-425-milhoes-de-pessoas-diz-onu.ghtml 9 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47780629
...a exportação de commodities, em especial as agrícolas, acaba por favorecer uma política de privatização de terras em larga escala e preveem um possível aumento maciço de atividades que requerem grandes quantidades de água como as do agronegócio, das atividades mineradoras e industriais, e um aumento de outras atividades de impactos ambientais evidentes como hidrovias, hidrelétricas e barragens, sem considerar políticas de racionalização e gestão de uso (MARRERO, 2007, apud VITTE, 2013, p. 79).
Logo, toda a cadeia de produção envolvida possui consequências
socioambientais, com destaque para a chamada “água virtual”, ou seja, água
utilizada durante o processo de produção desses produtos naturais (ALLAN, 1998),
o que indica que há uma necessidade de política pública para gerenciamento e
possível taxação de recursos hídricos. Além disso, há os riscos em relação à
monoculturas transgênicas cultivadas em larga escala. Pegando o caso da Soja,
principal produto exportado pelo MERCOSUL, temos riscos à biodiversidade da
região e, como apontam Altieri e Pengue (2005), riscos de contaminação do solo,
impactos em ecossistemas, desflorestamento e desvios de verbas públicas, entre
outros.
Assim, fica clara que a situação de dependência em exportação de
commodities é muito além de uma esfera estritamente econômica, pois envolve
disputa políticas sobre recursos naturais em espaços geográficos. Ou seja, trata-se
de uma temática de geopolítica.
Conclusões
O artigo procurou estabelecer uma relação entre a dependência em
commodities, a segurança alimentar e nutricional, e a disputa geopolítica
internacional por recursos escassos. Para tanto, resgatamos a importância de se
colocar a geografia e os recursos naturais no centro do tabuleiro, enfatizando o
papel da segurança alimentar da população como um aspecto de segurança
nacional.
Não obstante, demonstramos como países como a China colocam no centro
de suas políticas públicas a garantia de acesso a alimentos e recursos energéticos
para sua população. Trata-se de um tema estratégico para a estabilidade do país, e,
para tanto, é tema de política de Estado. A questão identificada é que, países que
não tratam a temática como vital para a sobrevivência geopolítica, como os
membros do MERCOSUL, passam a sofrer uma série de constrangimentos
políticos, econômicos, ambientais e sociais.
A geopolítica tem a “capacidade de oferecer ao Estado as ferramentas para
impedir que acontecimentos negativos, caso existam, tenham efeitos deletérios. A
importância dos planos governamentais reside no fato de procurar sanar questões
que poderiam ser comprometedoras. Caso elas [as questões comprometedoras,
como a subnutrição] ganhem vida, o poder político teria condições de resistir aos
possíveis efeitos negativos” (HAGE E FERNANDES, 2016, p. 7). Logo entendemos
ser a segurança alimentar de um país um elemento central para a geopolítica, uma
vez que uma situação de insegurança alimentar, como a fome, é fonte indubitável
de conflitos.
Se tomarmos que a fome é fruto direto de escolhas políticas (CASTRO,
1974), o planejamento governamental estratégico para se reverter esse quadro é
fundamental, ainda mais se tratando de um elemento que compromete a segurança
nacional, coesão social e desempenho econômico. E, como identificamos, por se
tratar de um problema regional, afetando todos os países da América do Sul,
soluções igualmente regionais são requeridas. Para tanto, recomenda-se a criação
de órgãos e conselhos específicos no âmbito do MERCOSUL para a análise e
formulação de políticas conjuntas de garantia da segurança alimentar e nutricional,
levando-se em conta as múltiplas dimensões que envolvem a temática, dentre as
quais buscamos trabalhar nesse artigo.
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