Upload
elcid1043
View
737
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 1/56
Tchekhov em Moscou, 1897. Foto de Alieksandr Tchekhov.
Anton Tchekhov
A GAIVOTA
T r a du fa o e p o s fa c io
Rubens Figueiredo
Cosac & Naify
2.et lC- !
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 2/56
A GAIVOTA C am ed ia e m q ua tro a to s
PERSONAGENS
Esboco de Stanislavski para 0primeiro ato.
-------------------------------------------------------------~--------~I~~NA~~K~A~~¥~-ARK~~~F~aova~msdeauBdu
KONSTANTIN GAVRILOVITCH TREPLIOV seujilho,jqvem
PIOTR NIKOLAIEVITCH SORIN i rmdo dela
NINAMIKHAILOVNA ZARIETCHNAIA mO fa ,j il ha d e u ? "' lr ic o
p ro pr ie ta ri o d e t er ra s
ILIA AFANASSIEVITCH CHAMRAIEV t e nen te r e fo rmado ,
a dm in ls tr ad or a s er oito d e Sarin
POLINA ANDREIEVNA s ua e sp os a
MACHA sua j i lha
BORIS ALEKS:EIEVITCH TRIGORIN escritor
IEVGUENI SIERGUEIEVITCH DORN medico
SIEl\lION SIEMIONOVITCH MIEDVIEDIENKO professor
IAKOY t rabalbador
COZINHEIRO
CRIADA
-1 - , . ; : - , - , ' t - c ' _ - v , - - . - , ~ - , _ ::=JI _
A a~ao s e pass a na propr~~e ~e Sorin, Entre 0 terceiro e 0 quarto
ato, hi urn intervalo e O l s ' - i i 1 O s : - -09 I~.,,-,( .-
IJ
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 3/56
PRIMEIRO ATO
Urn trecho do parque na fazenda de Sarin. Urnaalameda lar-
ga , que parte da plateia e ent ra pelo parque, rumo a urn lago,
esta parc ia lmente encoberta por urn tablado constru ido as
pressas a fim de servir a apresentacao de urn espetaculo teatral
dornest ico, de modo que nao e possivel ver 0 lago. Hi arbus-
tos a direita e a esquerda do tablado.
Algumas cadeiras, uma mesinha.
Agaivota encenada peloTeatro deArte deMoscou. Primeiro ate: Sarin
(V . V.Lujski),Trepliov (V.E. Meierhold), Nina (M. L.Roksanova). o sol acabade§.e_p..or.No tablado, atras da cortina baixada, estao~ " , ~, , , . . _ ." ~ , ," . ., . ,. , _~ < . , .'
Iakov e outros trabalhadores; som de tosse e marreladas. Macha
e Miedviedienko entram a esquerda, de volta de urn passeio.
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 4/56
MIEDVIEDIENKO Por que a senhorita anda sempre de preto?
MACHA Estou de luto pela minha vida. Sou infeliz .
MIEDVIEDIENKO Por que? [ Com a rpe n sa t iv o ] Nao entendo ...
A senhorita e saudavel, e seu pai, embora nao seja rico,tern uma situacao bastante confortavel, A vida para mim e
bern mais dificil do que para a senhorita. Ganho apenas
vinte e tres rublos por mes, uma parte ainda e descontada
para 0 fundo de pensao, e nem por isso ando de luto.
[ Se nt am - se . ]
MACHA A questao nao e 0 dinheiro. Mesmo urn pobre pode
ser feliz.
MIEDVIEDIENKO S6 na teoria, pois na pratica a situacao e a
seguinte: eu, minha mae, duas irrnas, um irmao pequeno e
um salario de apenas vinte e tres rublos. Por acaso nao te-
mos de comer e beber? Nao precisamos de chi e acucar?
E 0 tabaco? Nao hicomo dar jeito nisso.
MACHA [ o /h a nd o p a ra a t ab /a d o] 0 espetaculo vai come<;ar daqui
a pouco.
MIEDVIEDIENKO Sim. Zarietchnaia vai se apresentar e a pe<;a
e uma obra de Konstantin Gavrilovitch. Os dois estao
apaixonados e hoje suas almas vao se unir na aspiracao de
criar uma representacao artfstica unica. Mas entre a minha
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 5/56
alma e a sua nao existem pontos de contato. Amo a se- me sinto abatido, e como se vivesse num pesadelo, no fim
nhorita e, de tanta saudade, nao consigo ficar em casa, das contas ...
percorro seis verstas ape todos os dias para vir aqui, outras TREPLIOV De fate, seria melhor voce morar na cidade. [V e
seis para voltar e, da sua parte, s6 encontro indiferenca, Mac ha e M i ed v ie d ie nk o J Senhores, serao chamados quando
Mas eu compreendo. Tenho poucos recursos, minha fami- a pec;a comecar, mas agora nao podem ficar aqui. Vao
lia e grande ... Qpal mulher vai querer urn homem que embora, por gentileza.
mal consegue ter 0 que comer? SORIN [ pa ra Ma c ha ] Maria Ilinitchna, tenha a gentileza de pe-
MACHA Bobagem. [ A sp ir a r ap e ] 0 seu amor me comove, mas dir ao seu paizinho que mande soltar 0 cachorro para e1e
nao consigo corresponder, s6 isso. [O fe re ce a e le a c a ix in h a d e parar de latir. Minha irma passou outra vez a noite inteira
rape] Sirva-se. sem dormir.
--~·---1MvIlEfWTE1)'I-:EN-K-erNa-o--es-t-ou-eem--v(mtadee.:----------------t----------'M*eH-A---Fa±e--e--senh-e-r--m-es-mo-eom-metl.-pai,--eti--n.~lar.:__--
Por favor, me dispense disso. [Para Miedv iedienko] Vamos!
MIEDVIEDIENKO [ pam T re p li ov ] Entao, antes que a pec;acome-
ce, 0 senhor mande alguern nos chamar.
[Pausa.]
MACHA Esta abafado, deve cair uma tempestade esta noite.
o senhor esta sempre filosofando ou falando de dinhei-
rooPara 0 senhor, nao existe infelicidade maior do que a
pobreza, enquanto para mim emil vezes mais facil vestir
andrajos e pedir esmolas do que ... Mas 0 senhor nao
compreende isso...
[ Sa em o s d o i s. ]
SORIN [ ap o ia nd o -s e n a b en ga la ] No campo, meu caro, nao me
sinto a vontade e, sem duvida alguma, nunca vou me habi-
tuar a isto. Ontem fui deitar as dez horas e hoje de manha
acordei as nove com a sensacao de que, de tanto dormir,
meu cerebro havia grudado no cranio. [Ri ] Depois do
almoco, para minha surpresa, cai no sono de novo, e agora
SORIN Oyer dizer que, mais uma vez, 0cachorro vai ficar latin-
do a noite inteira. Esta vendo s6? No campo, nunca vivo do
jeito que quero. Antigamente, me davarn vinte e oito dias
de folga e eu vinha para ca, para descansar, mas aqui me
aborreciam com tantas coisas absurdas que, desde 0 pri-
meiro dia, minha vontade era ir embora. [Ri] Eu sempre
me sentia contente de ir embora daqui ... Mas agora estou
aposentado e, no fim das contas, nao tenho outro lugar
para ficar, Bern ou mal, vou vivendo ...
IAKOV Vamos tomar banho, Konstantin Gavrilitch.
TREPLIOV Muito bern, mas estejam em seus lugares daqui a dez
minutos. [O lha par a 0 relagio] Cornecaremos daqui a pouco.
[ Sa rin e T re pl io v e nt ra m p el a d ir ei ta .]
c ro » (II)
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 6/56
IAKOV [para Trep li ov] Pode deixar. [Sai]
TREPLIOV [ o lh ando d e r e la n ce pa ra 0 tablado] Isto sim e urn tea-
tro. A cortina, depois 0 primeiro bastidor, 0 segundo basti-
dor e, em seguida, 0espas:ovazio. Nenhum cenario, A vista
se abre direto para olago e para 0horizonte. Levantaremos
a cortina exatamente as oito e meia, quando a lua surgir.
SORIN Excelente.
TREPLIOV Se Zarietchnaia se atrasar, 0 efeito estara perdido,
e claro. J a era hora de ela estar aqui. 0pai e a madrasta a
controlam muito e,para ela, sair de casa e tao diflcil como
sair de uma prisao. [A jeita a gravata do tio] Sua barba e
seu cabelo estao muito compridos. Seria melhor aparar
urn pouco, nao acha?
SORIN [ pe nte an do a b ar ba ] Esta e a tragedia da minha vida.
Na mocidade, eu tinha sempre 0aspecto de urn beberrao,
voce nem imagina. As mulheres jamais gostaram de mim.
[Senta-se] Por que minha irma anda de mau humor?
TREPLIOV Por que? Esta entediada. [ Se nt a- se a se u lado] Sente
ciumes, J a esta ate contra mim, contra 0 espetaculo e
contra a minha pe<;a,porque nao e ela que vai represen-
tar, e sim Zarietchnaia. Nem conhece a minha pe<;amas
ja a odeia.
SORIN [ri] Voce esta imaginando coisas, francamente ...
TREPLIOV Ela ja esta aborrecida porque, nesse palco minus-
culo, Zarietchnaia vai brilhar, e nao ela. [Olha para 0 re16gio]
Minha mae e urn caso psicologico muito curioso. Uma
muIher de urn talento inegavel , intel igente, capaz de cho-
rar sobre as paginas de urn livro e repetir de cor todos os
versos de Niekrassov; cuida dos doentes como urn anjo;
mas experimenteelogiar Duse diante dela para ver 0que
acontece. Ah! S6 se pode elogiar a eia e a mais ninguem,
so se pode escrever sobre ela e aclama-la e se entusiasmar
com a sua extraordinaria interpretacao em A dama das
camelias ou em 0 enleoo d a v id a, mas como aqui no campo
nao existe esse sedativo, ela se aborrece e se irri ta , e todos
nos viramos seus inimigos, todos nos somos culpados.
Alern disso, e supersticiosa, tern medo de tres velas acesas
e do mimero treze. : I t avarenta. No banco, em Odessa, tern
guardados setenta mil rublos, sei disso com absoluta certe-
za. Mas tente pedir urn emprestimo e vai ver como na
mesma hora eia se poe a chorar.
SORIN Voce imaginou que sua pes:a nao ira agradar a sua mae
e logo ficou alvorocado. Acalme-se, sua mae tern adoracao
por voce.
TREPUOY [ ar ra n c an do a s pi ta la s d e um a fl or ] Bern me quer, mal
me quer, bern me quer, mal me quer, bern me quer, mal me
quer. [Ri] Esta vendo? Minha mae nao me ama. E nao e
de admirar! Ela quer viver,amar, vestir blusas de cores vis-
tosas, mas eu j a tenho vinte e cinco anos e, 0 tempo todo,
a faco lembrar que nfio e mais jovem. Quando nao estou
presente, mamae tern so trinta e dois anos mas, ao meu
Iado, tern quarenta e tres e por isso me odeia. Ela tambern
sabe que eu nao tenho grande consideracao pelo teatro.
Ela ama 0 teatro e Ihe parece que, com isso, presta urn
grande service a humanidade, a arte sagrada, mas para
mim 0 teatro contemporaneo nao passa de rotina e su-
perst icao. Quando a cort ina sobe e, a luz da noite, entre as
tres paredes, esses talentos formidaveis, os sacerdotes da
< 12 > < 13 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 7/56
arte sagrada, representam como as pessoas comem, be-
bern, amam, andam, vestem seus casacos; quando, das
cenas e das frases mais banais, tentam desencavar uma
moral - pequenina, facil de entender, util para fins
domesticos; quando, em mil variantes, me apresentam
sempre a mesma coisa, a mesma coisa e a mesma coisa,
entao eu fujo correndo, como Maupassant fugia da torre
Eiffel, que lhe oprimia 0 cerebro com sua vulgaridade.
SORIN E impossfvel viver sern 0 teatro.
TREPLIOV Precisamos de formas novas. Formas novas sao in-
dispensaveis e, se nao exist irem, entao e melhor que nao
haja nada. [ O lh a p ar a 0 relagio] Amo minha mae, amo de
todo coracao; mas e1avive de urn modo absurdo, sempre as
voltas com esse literato, 0nome dela aparece toda hora nos
jornais, e isso me aborrece. As vezes, 0 egoismo do mais
comum dos mortais toma conta de mimi sinto magoa por
minha mae ser uma atriz famosa e tenho a irnpressao de
que eu seria mais feliz se ela Fosse uma mulher comum.
Tio, me diga que situacao poderia ser mais desesperadora
e mais tola: asvezes, na companhia de minha mae, hiuma
multidao de ce1ebridades, artistas e escritores, e entre eles
so eu nfio sou nada, todos 56 me aturam porque sou filho
dela. Quem sou? 0 que sou? Tive de deixar a faculdade no
terceiro ano, por circunstancias independentes da minha
vontade, como costumam dizer, nao tenho nenhum talen-
to, nenhum centavo no bolso e, segundo a minha carteira
de identidade, nao passo de urn pequeno-burgues de Kiev.
Tambern 0meu pai foi urn pequeno-burgues de Kiev,em-
bora tenha sido urn ator famoso. Entao, quando todos
aqueles artistas e escritores reunidos no salao de visi tas da
minha mae se dignavam a me dar atencao, eu tinha a im-
pressao de que, com seus olhares, eles mediam a 'minha
insignificancia. . . Eu adivinhava os pensamentos dessa
gente e a humilhacao me fazia sofrer . ..
SORIN A proposito, me explique, por favor, que tipo de ho-
mem e esse escritor? Eu nao 0 entendo. Vive calado.
TREPLIOV Urn homem inteligente, simples, urn pouquinho
melanc6lico, voce sabe como e.Muito honesto. Ainda esta
longe dos quarenta anos, mas ja e famoso e se sente farto
da vida... Com relacao ao que ele escreve.. . como posso lhe
dizer? Tern beleza, tern talento ... Mas ... depois de Tolstoi
ou de Zola, nao da vontade de ler Trig6rin.
SORIN Pois quanto a mim, meu caro, adoro escri tores. No passa-
do, eu desejava apaixonadamente duas coisas: casar e ser urn
escri tor , mas nao consegui nem uma coisa nem outra. Pois e .
No fim das contas, ate ser urn escri tor menor e agradavel .
TREPLIOV [p on do -s e a ouoir c om a te n faO] Ouco passos ... [Abrara
o t io ] Nao posso viver sem e1a... Ate 0som dos seus passos e
bonito ... Fico louco de felicidade. [ V a i a s p r es sa s a o e nc on tr o
de N ina Z arie tcbnaia, que entra] Feiticeira, meu sonho ...
NINA [emocionadaJ Nao cheguei atrasada .. . Sei que nao estou
atrasada, estou?
TREPLIOV [ be ija nd o a s mdos dela] Nao, nao, nao ...
NINA Fiquei agitada 0 dia inteiro, senti tanto medo! Tive medo
de que papai nao me deixasse vir ... Mas ele saiu com minha
madrasta. 0 ceu esta vermelho, a lua ja esta cornecando
a subir e eu fiz meu cavalo correr e correr tanto! [Ri] Mas
estou contente. [A perta com f orfa a m ao de Sarin]
(IS>
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 8/56
SORIN [Ri] Seus olhinhos parecem ter chorado ... Ora, ora!
Isso nao e born!
NINA Nao foi nada .. . Vejam, estou ate sem folego. Tenho de
voltar daqui a meia hora, precisamos nos apressar. Nao
posso, nao posso, nao me detenham, pelo amor de Deus.
Papai nao sabe que estou aqui.
TREPLIOV Na verdade.ji e hora de comecar, Temos de chamar
a todos.
SORIN Eu YOUbused-los. Num minuto. [Seguepara a direita e
canta] "Dois granadeiros foram para a Franca ... " [O lhapara
tras] Uma vez cantei assim e urn colega procurador me
disse: "Vossa Excelencia tern a voz possante ... " Depois pen-
sou urn pouco e acrescentou: "Mas ... enjoativa". [R i e sail
NINA Papai e sua esposa nao me deixam vir para c a . Dizern
que aqui s6 ha boernios Eles tern medo de que eu acabe
me tornando uma atriz Mas eu me sinto atraida para ca,
para 0lago, como uma gaivota ... Meu coracao e todo seu.
[O lh a p a ra t ra s]
TREPLIOV Estamos sozinhos.
NINA Parece que tern alguem hi. . .
TREPLIOV Nao hi ninguern. [Beijam-se]
NINA Qpe more e esta?
TREPLIOV Urn olmo.
NINA Por que esta tao escuro?
TREPLIOV Ja esta anoitecendo, todas as coisas fieam escuras.
Nao va embora tao cedo, eu imploro.
NINA E impossfvel.
TREPLIOV E se eu tarnbern for a sua casa, Nina? Vou ficar no
jardim a noite inteira e olhar para a sua janela.
NINA E impossivel. 0 cao de guarda iria perceber. Tresor ainda
nao esta habituado com voce e iria comes:ar a latir.
TREPLIOV Arno voce.
NINA Psss ...
TREPLIOV [ ouv indo pass o s] Quem esta ai? E voce, Iakov?
IAKOV [ a tr a s do t abl ado] Sim, senhor.
TREPLIOV Tomem seuslugares. Esta na hora. A lua esta subindo?
IAKOV Sim, senhor.
TREPLIOV 0 alcool esta ai? 0 enxofre tambern? Qpando apare-cerem os olhos vermelhos, tern de haver urn cheiro de enxo-
fre. [ Pa ra N in a ] Va, ja esta tudo preparado. Esta nervosa? ..
NINA Sim, muito. Sua mae Nao, dela eu nao receio nada,
mas Trig6rin esta aqui Tenho medo e vergonha de re-
presentar diante dele... Urn escritor famoso ... E jovem?
TREPLIOV E.NINA Como os contos dele sao maravilhosos!
TREPLIOV [comfrieza] Nao sei, nunca Ii.
NINA E diffcil representar a pe<;a que voce escreveu. Nso tern
personagens VlVOS.
TREPLIOV Personagens vivos! Nao se deve representar a vida do
jeito que ela e , nem do jeito que devia ser, mas sim como ela
se apresenta nos sonhos.
NINA Na sua pe<;ahi pouca acao, e s6 declamacao, do inicio ao
fim. E, para mim, uma pes:a precisa ter amor .. .
[ Saem par trds do tab/ado. Entrant Po li n a r ln d re ie u na e D a rn .]
POLINA Esta ficando umido. Volte e cake as galochas.
DORN Estou com calor.
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 9/56
POLINA 0 senhor nao se cuida direito. E pura teimosia, 0 se-
nhor e medico e sabemuito bern que 0ar timido Ibefaz mal,
mas insiste nisso so para me fazer sofrer, Ontem,o senhor
passou a noite inteira sentado na varanda, de propOsito...
DORN [cantarala] "Nao diga que a mocidade esta perdida."
POLINA 0 senhor ficou tao empolgado com a conversa com
Irina Nikolaievna .. . que nem notou 0 frio. Confesse que
gostou dela.
DORN Tenho cinquenta e cinco anos.
POLINA Deixe disso: para urn homem, isso nao e velhice.
o senhor esta esplendidamente conservado e ainda agra-
da as mulheres.
DORN Mas o que a senhora quer dizer, afinal?
POLINA Diante de uma atriz, todos voces estao sempre dispos-
tos a ficar de joe1hos. Todos!
DORN [cantarala] "Estou de novo diante de ti . .. " Seos atores
sao admirados na sociedade e recebem urn tratamento d~fe-
rente do que se dispensa, por exemplo, aos comerciantes,
isso e perfeitamente natural. E 0 idealismo.
POLINA As mulheres sempre se apaixonavam pelo senhor e se
atiravam nos seus braces. Isso tambem era idealismo?
DORN [ da nd a d e ambr os ] Ora! Havia muita coisa boanas aten-
<;6esque as mulheres me dedicavam. Em mim, elssestima-
yam sobretudo 0medico competente. Uns dez ... 0Iiquinze
anos arras, a senhora se lembra, eu era 0 unico obstetra
capaz em toda a provincia. Alem do mais, sempre fu i urn
homem honrado.
POLINA [ se g ur a a ma o d e le ] Meu querido!
DORN Fale baixo, vern gente.
[ En tr am A rk dd in a e S ar in d e b ra ce s d a do s, T ri ga ri n, C h am r aie v,
M i e do ie d ie nk o eM a c ha .]
CHAMRAIEV Em 1873, na feira de Poltava, ela representou de
forma magnifica. Uma maravilha! Urn milagre! [ParaArkd-
dina] Por acaso a senhora nao sabe por onde anda agora 0
cornice Pavel Siernionitch Tchadin? Ele era incomparavel
no papel de Raspliuiev, melhor do que Sadovski, eu juro,
minha cara. Por onde ele anda agora?
ARKADINA 0 senhor sempre pergunta a respeito dessas pessoas
antediluvianas. Como YOU saber? [Senta-se]
CHAMRAIEV [suspira] Pachka Tchadin! Nao existem mais ato-
res como ele! 0 teatro entrou em decadencia, Irina Niko-
laievna! Antigamente, havia carvalhos grandiosos; hoje, so
vemos uns toquinhos de arvore.
DORN Hoje hi poucos talentos brilhantes, e verdade, mas 0
niveldos atores medianos melhorou muito.
CHAMRAIEV Nao posso concordar com 0 senhor. Alias, esta e
uma questao de gosto. D e g us ti bu s a ut b en e, a ut n ih if .1
[ Tr ep lio v e nt ra , v in do d e trds do tab lado .]
ARKADINA [para 0j i lho] Meu filho querido, quando a pe<;avai
comecar?
TREPLIOV Num minuto. Tenha paciencia.
I Em latim no original:"Sabre 0gosto, fale-se bern ou nada se fale". 0 per-
sonagem mistura dois prover-bios:"sabre 0 gosto, nao se discute" e "sabre as
mortos, fale-se bern au nada se fale". ( N . T . ]
< 19 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 10/56
ARKADINA [recita um trechodeHamlet] "Meu filho, Hamlet!Tu" "
fizeste meus olhos sevoltarem para dentro da minhaalma
e eu a descobri tao coberta de sangue e de chagas murtais
que nao pode mais haver salvacaol"
TREPLIOV ~tambim de Hamlet] "Entao para que te entmgaste
ao vicio e foste bus car 0 amor num abismo de criIlK'.?"
[Por trds do tablado, tocam um clarini.]
TREPLIOV Senhores, vai comecarl Peco a atencao de todos!Eu
corneco. [Bate com um bastao efala bem alto] 6,vener:iveis
sombras antigas, que nas horas noturnas pairam sm este
lago, facam-nos dormir e sonhar com aquilo que h: i de
acontecer daqui a duzentos mil anos!
SORIN Daqui a duzentos mil anos, nao existira mais nada
TREPLIOV Pois entao que nos mostrem como sera esse nada.
ARKADINA Assim seja. J a estamos dorm indo.
[A cortina se leuanta, surge a vista do lago; a lua, logoaamado
bortzonte, reflete-se na agua; sobre uma pedra grande, estd sentada
Nina Zarittcbnaia, toda debranco.]
NINA Hornens, leoes, aguias e perdizes, cervos de grandeschifres,
gansos, aranhas, peixes silenciosos que habitavam as:iguas,
estrelas do mar e criaturas que os olhos nao eram capazesde
ver- em suma, todas asv idas, todas as vidas, todas asvidas,
depois de concluirern seu triste ciclo, se extinguiram. .. Hi
muitos milhares de anos nao existe mais uma unica eriatura
viva sabre a terra e esta pobre lua acende sua lanternaem vao.
< 20 >
No prado, as grous ja nao despertam com urn grito, nem se
ouvem os besouros nos bosques de tilias, Frio, frio, frio.
Deserto, deserto, "deserto. Horror, horror, horror.
[Pausa.]
NINA Os corpos dos seres vivos se desfizeram em p6 e a materia
eterna os transformou em pedra, agua, nuvens, e as almas
de todos os seres vivos fundiram-se em uma s6. A alma do
mundo sou eu . .. eu . .. Em mim, habita a alma de Alexandre
o Grande, de Cesar, de Shakespeare, de Napoleao e a alma
da mais reles sanguessuga. Em mim, as consciencias de
todos fundiram-se com os instintos dos animais e - eu me
lembro de tudo, de tudo, e sinto em mim todas as vidas
viverem de novo.
[Rebrilham fogos-Jatuos nopantano.]
\.
ARKADINA [em voz baixa] Isso esta urn tanto decadentista.
TREPLIOV [em tom desziplicae de censura] Mae!
NINA Estou s6. Uma vez a cada cern anos, abro a boca para
falar e minha voz ressoa neste deserto tristonho, mas nin-
guern escuta ... E voces, 6 palidas luzes dos fogos-fatuos,
nao me escutam ... De madrugada, a pantano putrido as
traz ao mundo e voces, palidas luzes, vagueiam ate a aurora,
mas sem pensamentos, sem vontade, sem os tremores da
vida. Receoso de que a vida irrompa em voces, 0pai da ma-
teria eterna, 0 diabo, promove urn fluxo incessante de ato-
mas, como acontece com as pedras e a agua, e voces sao
< 2I >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 11/56
continuamente transformadas. No universo, s6 0 espirito
permanece constante e invariavel,
TREPLIOV [ c om ra iv a , erguendo a vo z] A pes:a acabou! Chega!
Baixem a cortina!
ARKADINA Por que voce ficou zangado?
TREPLIOV Chega! Cortina! Baixem a cortina! [Bate 0pi ] Cortina!Pausa.]
NINA Como urn prisioneiro lancado num pos:o prof undo e
vazio, nao sei onde estou e 0 que me espera. Para mim, s6
e claro que, na batalha encarnicada e cruel contra 0diabo,
origem das forcas materiais , estou destinado a sair vence-
dor, e, depois disso, a materia e 0 espfrito se fundirao em
uma harmonia maravilhosa e tent inicio 0 reino da vontade
universal . Mas isso 56acontecera quando, pouco a pouco,
ao fim de uma longa serie de milenios, a lua, a luminosa
Sirius e a terra se houverem transform ado em poeira ...
Ate la, 0horror, 0horror ...
[ A c o rt in a i b a ix a da .]
[Pal / sa;no outre l ad o d o l ag o , s u r gem dois p o nt in h os v e rm e lh o s. ]
TREPLIOV Peco desculpas! Esqueci que s6 uns poucos e1eitos
podem escrever pes:ase representar num palco. Perturbei 0
monopoliol Para mim . .. eu... [ Ain da d es eja falar alguma
c oi sa , m a s a ba na a m ii o e s ai p e la e sq ue rd a]
ARKADINA Mas 0 que deu nele?
SORIN Voce 0 ofendeu.
ARKADINA Ele mesmo avisou que era uma brincadeira, entao
tratei sua pes:a como uma brincadeira.
SORIN Mesmo assim...
ARKAOINA Pois, entao, agora fieamos sabendo que ele escreveu
uma obra genial! Era so 0 que faltava! Quer dizer que ele
montou esse espetaculo e soltou essa fumaceira com cheiro
de enxofre nao por brincadeira, mas como urn protesto . ..
Quer nos ensinar como se deve escrever e 0 que se deve
representar . .. No fim, tudo isso me da tedio, Esses ataques
constantes contra mim, ou essas pirracas, se preferirem, sao
de encher a paciencia de qualquer pessoa! Urn menino
mimado e birrento.
SORIN Ele quis the oferecer uma diversao,
ARKAOINA Ah, e ? No entanto, em vez de escolher uma pes:a
comum, ele nos obrigou a escutar esse disparate decaden-
tista. Pois estou disposta a ouvir uma brincadeira, e ate urn
NINA Eis que se aproxima meu poderoso adversario, 0 diabo.
Vejo seus olhos rubros e medonhos . ..
ARKADINA Sinto cheiro de enxofre. Sera mesmo necessario?
TREPLIOV
£,sim.
ARKADINA [ri] Ah, e urn efeito especial.
TREPLIOV Mae!
NINA Ele se entedia, sem ninguern .. .
POLINA [ p ar a D o r n] 0 senhor tirou 0 chapeu, Cubra-se, ou
vai se resfriar.
ARKADINA 0 medico tirou 0 chapeu porque esta diante do
diabo, 0pai da materia eterna.
< 22 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 12/56
disparate, mas nao essas pretensoes a formas novas e a
uma nova era na arte. Para mim, nao se trata de formas
novas, 0 que ha aqui e apenas rna indole.
TRIGORIN Cada urn escreve como quer e como pode.
ARKA.DINA Pois que ele escreva como quiser e como puder,
mas que me deixe em paz.
DORN JUpiter, estas irado ...2
ARK.ADINA Nao sou JUpiter, sou uma mulher. [Ac ende um c iga r ro]
Nao estou irada, solamento que urn jovem passe seu tempo
de modo tao enfadonho. Eu nao queria ofende-lo.
MIEDVIED[ENKO Ninguem dispoe dos meios de separar 0 espi-
rito da materia, pais talvez 0proprio espirito seja urn con-
junto de atomos, [An imado ,pa r a T r igo r in ] Qpe tal escrever
uma pes:asobre como vivem os nossos irmaos professores e
leva-la ao palco? E uma vida dificil, muito dificil!
ARKA.DINA E uma ideia justa, mas nao vamos falar mais de
pes:as, nem de atomos. A noite esta tao agradavell Escu-
tern! Nao estao cantando? [O uv e c om a t e nf ao ] Que bonito!
POLINA Vern da outra margem.
[Pausa.]
ARKA.DINA [para Tr igorin] Sente-se ao meu lado. Uris dez ou
quinze anos atras, aqui no lago, quase todas as noites se
ouvia rmisica e cantoria. Aqui, na beira do lago, existem seis
grandes casas de campo. Lembro-me dos risos, das vozes,
2 Inicio de urn proverbio latino: "Jupiter, estas irado; significa que estds enga-
nado". [N . T.] .
! dos tiros das cacadas, dos namoros, tantos namoros ...
o j eu n e p r em ie r, 0 gala e Idolo das seis propriedades, na
epoca, permitam que lhes apresente [a ce na c om a cabeia
n a d ire fa o d e D o rn ] , era 0 doutor Ievgueni Siergueievitch.
Hoje, e urn homem encantador, mas era irresistivel naque-
Ie tempo. Pronto, minha consciencia ja cornecou a me tor-
turar . Por que fui ofender 0meu pobre menino? Estou tao
aflita. [E m vo z m ais a lta ] Kostia! Meu filho! Kostia!
MACHA Vou orocura-lo.L
ARKADINA Muito obrigada, querida.
MACHA [ sa in d o p e la e sq u er d a] Ei! Konstantin Gavrilovitch ...
Ei! [Sai]
NINA [ vin do d e trd s d o ta bla do ] Esta claro que a pes:a nao vai
mais continuar, por issoja posso sair. Boa noite para todos!
[ Be ija Ark dd ina e P olin a A n dr eie vn a] .
SORIN Bravo! Bravo!
ARKADINA Bravo, bravo! Ficamos encantados. Com essa apa-
rencia, com essa voz tao fora do comum, e ate urn peeado
ficar escondida aqui no campo. A senhorita parece ter
muito talento. Esta ouvindo? Seu dever e subir ao palco!
NINA Ah, esse e 0 meu sonho! [Suspira] Mas nunca se torna-
ra realidade.
ARKADINA Quem pode saber? Permita que lhe apresente
Boris Alekseievitch Trigorin,
NINA Ah, muito prazer . .. [Encabulada] Leio sempre 0 que 0
senhor escreve ...
ARKADINA [ sen tando -s e ao l ado de la ] Nao fique encabulada, mi-
nha querida. Trigorin e uma celebridade mas, por dentro, e
urn homem simples. Veja, ele mesmo esta encabulado.
<25 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 13/56
DORN Creio que agora ja podemos levan tar a cortina, pais deste
jeito fica tetrico.
CHAMRAIEV [e m ooz alta] Iakov.Ievante a cortina, meu rapaz!
abaixo ... Assim: [ co m v oz g ra ve ] "Bravo, Silva!". O teatro
como que congelou.
[Pausa.]
[Ergu e -s e a co rt in a .]
NINA [para Tr igor in] Nao achou estranha essa peca?
TRIGORIN Nao compreendi nada. Mesmo assim, _acampanhei
tudo com mazer. A senhorita reoresentou com muita sin-• •
ceridade. E 0 cenario era magnifico.
DORN Passou um anjo por aqui.
NINA Esta na minha hora. Adeus.
ARKADINA Aonde vai? Aonde vai tao cedo? Nao a deixaremos
ir embora.
NINA Papai esta a minha espera.
ARKADINA Como ele pode fazer isso conosco?
[Pausa.]
[Beijam-se.]
TRIGORIN Nesse lago deve haver muitos peixes.
NINA Ha, s im .
TRIGORIN Adora pescar. Para mim, nao existe prazer maior do
que ficar sentado na beira de um lago, a tardinha, olhando
para a b6ia presa a linha.
NINA Mas eu imagino que, para quem experimentou a prazer
da criacao artistica, todos os outros prazeres perdem 0
sentido.
ARKADINA [ri] Nfio fale assim. Quando lhe dizem coisas gen-t is , ele fica muito sem gras:a.
CHAMRAIEV Lembro que, certa vez, no teatro de 6pera em
Moscou, 0 famoso Silva cantou 0 d o mais grave. Nessa
ocasiao, como que de prop6sito, estava sentado na galeria
um dos baixos do cora da nossa arquidiocese, e de repen-
te, os senhores podem calcular 0 nosso espanto, ouvimos
uma voz l:i na galeria: "Bravo, Silva!". Uma oitava inteira
ARKADINA Bem, 0 que se vai fazer? It uma pena que a senho-
rita tenha de ir embora.
NINA A senhora nern imaginacomo eu.lamento ter de partir.
ARKADINA Alguem devia acompanha-la ate sua casa, meu anja.
NINA [assustada] Ah, nao, Naol
SORIN [ pa m e la , e m to m d e S lip lic a] Fique!
NINA Nao posso, Piotr Nikolaievitch,
SORIN Fique s6 mais uma hora, Por favor . ..NINA [ ap a s r ef le ti r, em l dg rimas ] It impossivel! [Abana a m ao e
sa i l igei ro]
ARKADINA Uma jovem muitissimo infeliz . Dizem que sua fale-
cida mae deixou de heranca para 0marido toda a sua imensa
fortuna, ate 0 ultimo cope que, e agora essa mocinha ficou
sem nada, pois 0 pai ja deixou tudo de heranca para a se-
gunda esposa. It revoltante.
< 26 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 14/56
DORN Sim, 0 pai dela.justica seja feita, e urn verdadeiro bocal.
SORIN [esf regandoas mi iosge ladas] Vamos entrar, senhores, antes
que fique muito iimido. Minhas pernas estao doendo.
ARKADINA Suas pernas parecem de madeira, quase nao se
mexem. Vamos la, velho desafortunado. [ S egura -o pe lo
brafo]
CHAMRAIEV [oferecendo 0 brafo it esposa] Madame?
SORIN Estou ouvindo 0 cachorro uivar de novo. [ Pa ra Ch am -
raiev] Ilia Afanassievitch, faca a gentileza de mandar sol-
tar esse cachorro.
CHAMRAIEV E impossivel, Piotr Nikolaievitch. Tenho medo
de que os ladr6es entrem no celeiro. La, eu guardo 0meu
painco. [ Pa ra M ie do ie die nk o, q ue c am in ha a se u la do ] Pois
foi assim mesmo, uma oitava inteira abaixo: "Bravo,
Silva!". E nem era urn cantor de 6pera, mas urn simples
cantor do coro da arquidiocese.
MIEDVIEDIENKO E quanto ganha urn cantor do cora da
arquidiocese?
DORN Eu estou aqui.
TREPLIOV A Machenka andou arras de mim pelo parque
inteiro. Criatur'a insuportavel. .
DORN Konstantin Gavrilovitch, a pec;a do senhor me agradou
imensamente. E um tanto estranha e nao pude ver 0final,
mesmo assim 0 efeito e forte. 0 senhor e urn homem de
talento, deve persistir.
[ Todos s aem , e x ce to Dor n. ]
[T rep lio v a pe rta c om fo rca su a m ao e 0 abraca, impe tuoso.]
DORN [sozinho] Nao sei, talvez eu nao entenda mesmo nada,
ou esteja maluco, mas gostei da pec;a.Ha alguma coisa, ali.
Qpando aquela mocinha falou sobre solidao e depois, quan-
do surgiram os olhos vermelhos do diabo, minhas rnaos tre-
meram de ernocao. Ha um frescor, uma inocencia ... Ah,
parece ser ele quem vem ali. Eu gostaria de the dizer mui-
tas coisas agradaveis.
TREPLIOV [ e n l r a ] J a nao tern mais ninguern.
DORN Puxa, como esta nervoso! Tern lagrimas nos olhos ...
Mas 0 que era mesmo que eu queria the dizer? 0 senhor
foicolher seu assunto na esfera das ideias abstratas. E isso
e muito born, porque uma obra de arte deve necessaria-
mente expressar um pensamento elevado. So 0que e serio
pode ser belo. Mas como 0 senhor esta palidol
TREPLIOV Entao 0 senhor diz que devo persistir?
DORN Sim ... Mas s6 ponha em cena 0 que for importante e
eterno.O senhor sabe, levei uma vida bem variada e apro-
veitei bastante 0meu tempo, nao tenho do que me queixar,
mas se me tivesse acontecido de experimentar uma elevacao
do espirito, como ocorre com as artistas na hora da cria-
c;ao, acho que eu teria desprezado 0meu inv6lucro mate-
rial e tudo 0 que e proprio dele, e me deixado levar para as
alturas, para bern longe da terra.
TREPLIOV Perdao, mas onde esta Zarietchnaia?
DORN E mais uma coisa, Nas obras de arte, cleve haver urn
pensamento claro, bern definido. 0 senhor precisa saber
para que escreve, senao, ao tr ilhar esse caminho pitoresco
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 15/56
sern ter urn objetivo bern definido, vai acabar se perdendo
e 0 seu talento sera a sua perdicao.
TREPLIOV [impaciente] Onde esta Zarietchnaia?
DORN Foi para casa.
TREPLIOV [ em de s es per o] 0 que YOUfazer agora? Qperia falar
com ela... Preciso ve-la de qualquer jeito ... Vou atras dela...
[ En tr a Ma c ha .]
DORN [ pa ra T r ep l io v ] Acalme-se, meu amigo.
TREPLIOV 1rei atras dela, seja como for. Tenho de ir.
MACHA E melhor ir para casa, Konstantin Gavrilovitch. Sua
mae espera pelo senhor, Esta preocupada.
TREPLIOV Diga a ela que parti. Peco a todos voces que me
deixem em paz! Deixem-me! Nao venham atras de mim!
DORN Ora, ora, ora, meu caro . .. Nao se pode agir assim . .. Nao
e bom.
TREPLIOV [ ent re l dg rimas] Adeus, doutor. Muito obrigado ...
[Sai]
DORN [suspira] Mocidade, mocidade!
MACHA Quando nao temos mais nada para dizer, dizemos:
"ah, mocidade, mocidade ... ". [ A sp ir a r ap e ]DORN [to ma a c aix in ha d e ra pe d a m ao d ela e a a tira e ntr e a s m o i-
tas] Isto e nojento!
[Pausa.]
DORN Parece que estao tocando musica 1 a dentro. Vamos ate la.
MACHA Espere.
DORN 0 que e?
MACHA Ainda quero the dizer uma coisa. Quero falar com 0
senhor ... [Emociona-se] Nao gosto do meu pai ... mas meu
coracao tern urn fraco pelo senhor. Nao sei por que, mas
sinto com toda minha alma que 0 senhor e alguern proximo
de mim ... Ajude-me, ajude-me, para que eu nao cometa
uma estupidez, nao estrague minha vida, nao a desper-
dice .. . Nao aguento mais . ..
DORN Mas 0 que ha? Ajuda-la como?
MACHA Estou sofrendo. Ninguem, ninguem conhece meus 50-
frimentos. [ Re cli na a c ab ec a n o p e ito d ele ,f a1 a e m v oz b aix a]
Amo Konstantin.
DORN Como todos estao nervosos! Como todos estao nervo-
sos! E quanto amor ... 6, laga enfeiticado! [ C om t er nu ra J
Mas 0que posso fazer, minha crianca? 0 que? 0 que?
[Cort ina.]
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 16/56
Segundo ate: Nina (M. 1.Roksanova),
Trigorin (K. S. Stanislavski).
SEGUNDO ATO
Campo de croque, No canto direito, uma casa com uma ampla
varanda; a esquerda, ve=se o-lagon-o qual 0 solserefleteebri"-
lha , F lores. Meio-dia, Calor . A bei ra do campo, a sombra de
uma velha tilia, estao Arkadina, Do rn e Macha, sentados num
banco . Sob re o s j oelhos de Dorn, urn livr o aber to .
Agai'lJota encenada pelo Tea tro de Ar te
de Moscou. Segundo ato: Polina (E. M. -
Raievskaia), Darn (A. K. Vichnievski).
. '~"_'. --_ ~", 1. '. . _i
-·" 1 __
- ·~ '_ I . .'.. · '~_ . , '
'I -,
,-;
' · - l '
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 17/56
...
ARKADINA [para Macha] Vamos nos levantar.
[A s dua s s e l e van tam . ]
ARKADINA Vamos ficar lado a lado. A senhorita tem vinte e dois
anos e eu tenho quase 0dobro.Ievgueni Siergueievitch.qual
de n6s duas parece mais jovem?
DORN A senhora, e claro.
ARKADINA Viu? E por que? Porque eu trabalho, eu sinto, vivo
atarefada, enquanto a senhorita fica 0 tempo todo parada,
no mesmo lugar, nao vive. " E eu tenho uma regra: nao
dirigir meu olhar para 0futuro. Nunca penso na velhice,
nem na morte. De que adianta, se nao hi como evitar?
MACHA Pois tenho a sensacao de que nasci hi muito, muito
tempo; arrasto a minha vida, como uma interrninavel cauda
de vestido ... E muitas vezes nao sinto a menor vontade de
viver. [Senta-se] Eu sei, tudo isso e bobagem. E preciso ani-mar-se, livrar-se disso tudo.
DaRN [can taro lando ba ix inho] "Vao, minhas flores, e digam a
e la . . . "
ARKADINA Alern do mais, sou muito regrada, como urn ingles.
Eu, minha cara, ando sempre na linha, como dizern, estou
sempre vestida e penteada comme i lf o ut . Para que vou sair
de casa de blusao ou despenteada, ainda que s6 para vir ao
<3 5 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 18/56
jardim? Jamais. Pois eu sempre soube me cuidar.saecafui
uma desleixada, nao relaxei, como fazem algumas..•' [ P o e as
mdos n a c in tu ra , p as se ia p elo c am p o d e c ro qu e] Vejam:pares:o
uma crianca! Poderia representar 0papel de umamenina
de quinze anos.
DORN Muito bern, no entanto vou prosseguir a leitura.[Apanha
o l iv r o] Paramos no vendedor de cereais e nas ratu:mas...
ARKA.DINA Sim, nas ratazanas. Leia. [Senta-se] Ou tlldhor, me
de 0 l ivro, eu vou ler. E minha vez, [Pega o l ivT f J ep rocu ra
c om a s o lh os 0 l ug ar c er to ] As ratazanas ... Aqui e s a . • . [Li]
"E, naturalmente, adular e atrair escritores e taoariscado
para pessoas da sociedade como, para urn vendede rde ce-
reais, criar ratazanas em seus celeiros. Mesmo assim, essas
pessoas adoram os escritores. Pois bem, quandouma mu-
lher escolhe urn escritor que deseja cativar, ela 0assedia
com mil elogios, amabil idades e gentilezas ... " Oa, pode
ate ser assim entre os franceses, mas entre nos t: muito
diferente, em todos os aspectos. Nossas mulbees, em
geral , antes de cativarem um escritor , ja estao completa-
mente apaixonadas por e1e, nao tenham duvidz, Nem e
preciso ir muito longe, pensem em mim e em Trig6rin...
[Entra Sorin, apoiando-se numa ben ga la d e bambu, 1m lado de
Nina; Miedoiedienl» empurra uma cadeira d e r o da s a tr ii :J tl e. ]
SORIN [no tom de quem m im a uma aianra] E entao?F..stamos
alegres? Finalmente estamos felizes? [ Pa ra s ua i r m a ] Sim,
hoje estamos so alegria! 0 pai e a madrasta partimn para
Tvier e agora estamos livres por tres dias inteir<)5.
NINA [senta-se ao lado de A rkadina e a abra ra] Estou tao feliz!
Eu agora pertens:o a senhora.
SORIN [senta-se na s u a c a de ir a ] Ela esta l inda hoje.
ARKA.DINA Elegante, atraente ... E, alem de tudo, a senhorita e
inteligente. [ B ei ja N i na ] Mas nao devemos elogiar demais,
para evitar 0olho grande. Onde esta Boris Alekseievitchr
NINA Esta pescando no lugar reservado para banhos.
ARKA.DINA Como e que nao enjoa disso? [Q ue r c on ti nu ar a le r]
NINA 0que a senhora esta 1endo?
ARKA.DINA "Sobre a agua", de Maupassant, minha querida. [Ie
a lg um as lin h as s o para si] Ora, daqui para diante 0 conto
fica falso e sem gras:a. [Pecha 0 livroJ Estou muito preocu-
pada. Diga-me, 0que hi com meu filho? Por que anda tao
aborrecido e tr istonho? Passa dias inteiros na beira do lago
e quase nao 0vejo.
MACHA Ele esta magoado. [ P ar a N in a, t im i da m en te ] Por favor,
a senhorita poderia recitar urn trecho da pes:a dele?
NINA [ en c ol he ndo o s omb ro 5 ] Quer mesmo? Mas e tao sem gracal
MACHA [ co n t e n d o 0 entusiasmo] Quando ele Ie alguma coisa, os
olhos bri lham e 0 rosto empalidece. Sua voz e linda, triste;
e ele tern urn jeito de poeta.
[Q uvem -se os roncos d e S 6 r in .]
DORN Que tarde serena!
ARKA.DINA Pietrucha!
SORIN Ah? 0 que?
ARKA.DINA Pegou no sono?
SORIN De jeito nenhum.
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 19/56
[Pausa.]
ARKADINA Voce nao se trata, e isso nao e born, meu irmao.
SORIN Eu bern que gostaria de me tratar , mas 0 medico nao quer.
DORN Tratar-se aos sessenta anos!
SORIN Mesmo aos sessenta anos, a pessoa tern vontade de viver.
DORN [aborrecido] Ah, entao tome urn as gotinhas de valeriana.
ARKADINA Acho que ele devia passar uma temporada numa
estacao de aguas.
DORN Ora, tanto faz. Pode ir, como pode nao ir.
ARKADINA Nao entendi.
DORN Nao himesmo nada para entender. Esta tudo muito claro.
[Pausa.]
MIEDVIEDIENKO Piotr Nikolaievitch devia parar de fumar.
SORIN Bobagem.
DORN Nao, nao e bobagem. A bebida e 0 fumo destroem a
personalidade. Depois de alguns charutos ou de alguns
calices de vodca, 0 senhor ja nao e mais Piotr Nikolaie-
vitch, mas sim Piotr Nikolaievitch acrescido de uma outra
pessoa; 0seu eu se dilui e 0 senhor se refere a si mesmo na
. "I"erceira pessoa: e e .
SORIN [ri] 0 senhor sabe se expressar muito bern. Aprovei-
tou a vida, mas e eu? Trabalhei numa reparticao da jus-
tica durante vinte e oito anos e, no final das contas,
ainda nao vivi, ainda nao experimentei coisa alguma e,
nao admira, sinto uma enorme vontade de viver. 0 se-
nhor ja esta saciado, nao se importa mais, por isso tern
uma inclinacao para a filosofia, ao passo que eu desejo
viver e por isso, depois do jantar, bebo xerez, fumo cha-
rutos e tudo 0mais.
DORN E precise encarar a vida com seriedade, mas bus car tra-
tamento medico aos sessenta anos e ficar se lamuriando
por ter t ido poucos prazeres na juventude, isso, queira me
desculpar, nao passa de uma leviandade.
MACHA [levanta-se] J a deve estar na hora do almoco. [Cami -
nba compr egu i ra , apas s o sf rouxo s] Minha perna ficou dor-
mente ... [Ret ira-se]
DORN La vai ela tomar dois calicezinhos, antes do almoco.
SORIN A pobrezinha nao conhece felicidade alguma.
DORN Tolices, Sua Excelencia.
SORIN 0senhor se expressa como urn homem saciado de viver.
ARKADINA Ah,o que pode ser mais enfadonho do que esse
doce tedio rural? Calor, silencio, nunca ninguem faz coisa
alguma, e todos filosofam .. . Qpanto aos senhores, meus
amigos, esta tudo bern, e agradavel ouvi-los, mas ... Ficar
sozinha num quarto de hotel e decorar as fa las de uma per-
sonagem e muito melhor!
NINA [empolgada] E verdade! Eu entendo a senhora.
SORIN Naturalmente, na cidade vive-se melhor. Podemos
ficar sossegados no nosso gabinete de estudo, ° criado
nao deixa ninguem entrar sem nossa perrnissao, temos
o telefone ... Na rua, hi carruagens de aluguel e tudo 0
mats ...
DORN [cantarola] "Vao, minhas flores, e digam a ela . .. "
[ En tr a Ch am ra ie v. A tr as d e le , P o li n a A n dr ii ev na .]
<39 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 20/56
CHAMRAIEV Aqui esta ela.Born dial [ B e~ : ; aa ma o de drkddina
e d ep ois a d e N i na ] It uma alegria imensa encontra-la com
boa saude. [ Pa ra A r k ad i na ] Minha esposa disse que a se-
nhora tern a intencao de ir a cidade hoje, em companhia
dela. E verdade?
ARKADINA Sim, e nossa intencao.
CHAMRAIEV Hum .. . Isto e otimo, mas de que modo pretende
ir, prezadissima senhora? Hoje, temos de transportar 0
centeio, todos os trabalhadores estao ocupados! E, se me
permite a pergunta, que cavalos pretende usar?
ARKADINA Que cavalos? Como YOU saber, que cavalos?
SORIN Mas nos temos cavalos para 0 coche.
CHAMRAIEV [agi tado] Cavalos para 0 coche? E onde YOU arran-
jar os arreios? Onde YOU arranjar os arreios? E espantoso!
E inconcebivel! Estimadissima senhora! Perdoe-rne, te-
nho enorme reverencia pelo seu talento e estou disposto a
lhe dar dez anos da minha propria vida mas, cavalos, eu
nao posso dar!
ARKADINA Mas como assim, se eu preciso ir a cidade? Que
coisa estranha!
CHAMRAIEV Prezadissima senhora! A senhora nao sabe 0 que
significa administrar uma propriedade rural!
ARKADINA [ irri tada] E sempre a mesma historic! Nesse caso,
parto hoje mesmo para Moscou. Mande alugar urn coche
para mirn, na cidade, senao irei para a estacao ape!
CHAMRAIEV [ irri tado] Se e assim, eu me demito do meu car-
go! Tratem de arranjar outro administrador. [Sai l
ARKADINA Todo verao e a mesma historia, todo verao venho
aqui para ser insultada! Nunca mais porei os pes neste
IItII
lugar! [ S ai p e la esquerda, o nd e s e s up oe j ic ar o l oc al r es er va do
p ar a b an ho s; a pa s u m m in ute , oe-se A rk dd in a c am in ba nd o p ar a
ca sa; atrds de la , uai Trigorin, com cam eos e um balde] .
SORIN [ irri tado] Ope desaforo! Onde e que ja se viu? Ja estou
farto dessa historia, Tragam aqui, imediatamente, todos
os cavalos!
NINA [ pa ra P ol in a A nd re ie vn aJ Recusar urn pedido de Irina
Nikolaievna, uma atrizfamosal Sera que urn desejo dela,
mesmo quando forum simples capricho, nao e mais impor-
tante do que toda a propriedade dos senhores? Isto e sim-
plesmente inacreditavel!
POLINA [ em d e s es p er o J 0 que posso fazer? Ponha-se na minha
situacao: 0que posso fazer?
SORIN [ pa ra N in a ] Vamos falar com a minha irma... Vamosjun-
tos implorar a ela que fique. Nao e melhor assim? [Olhando
p ar a a d ir e i ta , p or o n de s e r etir ou C ha mr aie v] Mas que ho-
rnem insuportavell Ope tirano!
NINA [ im p ed in do q ue e le s e l ev an te ] Fique onde esta, espere ...
Nos 0 levaremos ... [N ina e M ieduied ieni» em purram a ca-
d eir a d e r od a s ] Ah, que coisa horrivel!
SORIN Sim, sim, e mesmo horrivel . . . Mas ele nao vai se derni-
t iroVou agora mesmo conversar com de.
[S ae m. F ica m a pen as D or n e P olin a A n dr iie vn a.]
DORN Ope gente enfadonha. Na verdade, 0 marido da senho-
ra devia ser posta para fora daqui com uma boa surra, mas
no fim esse velhote molenga do Piotr Nikolaievitch e a ir-
ma dele ainda van the pedir desculpas, A senhora vai vert
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 21/56
POLINA Ate os cavalos de atrelar no coche ele mandou para 0
campo. Todo dia hidesentendimentos desse tipo. Se 0se-
nhor soubesse como isso me perturba! Chego a ficar doente;
veja, estou tremendo .. . Nao suporto as grosserias dele . ..
[C om a r d e slip lic a] Ievguieni, querido, adorado, leve-me
com voce . .. 0 nosso tempo esta passando, ja nao somos
jovens. Se pelo menos no fim da vida pudessemos nao fin-
gir, nao mentir ...
[Pausa.]
DORN Tenho cinquenta e cinco anos, e tarde demais para um
homem mudar de vida.
POLINA Eu entendo, 0senhor me rejei ta porque, alem de mim,
existem outras mulheres que lhe sao caras. E nao pode
levar todas consigo. Eu entendo. Desculpe, estou aborre-
cendo 0 senhor.
[Ve -s e N ina p er to da ca sa; co lb ej lo r e s. ]
DORN Nao e nada disso.
POLINA
Sofro por causa dos ciumes. Claro,0
senhor e medico,nao pode evitar as mulheres. Eu entendo .. .
DORN [paraNina , qu e seaproxima] Como estao as coisas la dentro?
NINA Irina Nikolaievna esta chorando e Piotr Nikolaievitch esta
com um acesso de asma.
DORN Eselevanta] Vou dar a eles umas gotinhas de valeriana ...
.NINA [ddj lo r es pa ra Do rn ] Por favor!
DORN Me rc i b ie n. [ Ca m in ha n a d ir er ao d a c as a]
POLINA [ ca m in ha nd o a o l a do d e D om ] Que flores lindas! [Perto
d a c as a, a ba ix a a v oz ] Me de essas flores! Me de essas flo-
res.ja! [D e p o s s e dasf lores , e la a s e st ra c al ba e jo g a p a ra o l ad o ;
a mb os e ntra m n a c asa ]
NINA [sozinha] Como e estranho ver que uma atriz famosa
chora, e ainda por cima por urn motivo tao fiitil! E como
tarnbem e estranho que urn escritor celebre, adorado pelo
publico, sobre quem todos os jornais escrevem, cujo retra-
to e vendido em toda parte, urn escritor que ja foi tradu-
zido em outras l inguas, passe 0dia todo pescando no lago
e fique tao contente por ter apanhado duas carpas. Pensei
que pessoas famosas fossem inacessiveis, que desprezassem
a multidao e que, com a sua gloria, corn 0 esplendor de
seus nomes, como que se vingassem da multidao, porque a
multidao d a mais valor a origem nobre e a r iqueza. Mas
na verdade essas pessoas choram, pescam, jogam cartas,
riem e se zangam como todo 0mundo ...
TREPLIOV C e nt ra s e m c ha pe u, c om um a e sp in ga rd a e u m a g ai vo ta
abatida] Esta aqui sozinha?
NINA Estou.
[ Tr ep lio v p oe a g a iv ota a os p es d e N in a. ]
NINA 0 que significa isto?
TREPLIOV Hoje, cometi a infamia de matar essa gaivota. Eu a
deponho aos seus pes.
NINA Mas 0 que deu no senhor? [ E rg u e a g a iv o ta e o lh a p a ra e la ]
TREPLIOV [apa s uma pau sa ] Em breve, desse mesmo modo, eu
vou me matar.
I < 43 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 22/56
NINA Nao estou reconhecendo 0 senhor.
TREPLlOV Sim, depois que eu mesmo deixei de reconhece-la.
Voce mudou com relacao a mim. 0 seu olhar ficou frio,
minha presenc;a a constrange.
NINA Dltimamente,o senhor se irrita a toa, se expressa deurn
modo totalmente incompreensive1, como se usasse simbo-
los. Veja aqui esta gaivota, tambem deve ser urn simbolo,
ao que parece, mas, me desculpe, eu nao entendo ... [ P oe a
gairuota sobre 0 banco] Sou simples demais para compreen-
der 0senhor.
TREPLIOV Tudo cornecou naquela noite em que rninha pec;a
redundou num fracasso tao esnipido. As mulheres nao per-
doam 0 fracasso. Queimei tudo, tudo, ate 0 ultimo pedaco
de papel . Se soubesse como me sinto infeliz! Sua frieza e
terrivel, inacreditavel, e como se eu acordasse e visse, dere-
pente, que 0 lago havia secado ou que a agua toda havia
escoado para 0 fundo da terra. A senhorita acabou dedizer
que e simples demais para me compreender. Ah, mas 0que
ha aqui para compreender? Minha peC;aa decepcionou,
voce despreza a minha inspiracao.ja me considera medio-
cre, insignificante, igual a tantos outros ... [Bate 0pi no chao]
Compreendo tudo isso muito bern, ah, como compreendo!Pareee que hiurn prego cravado no meu cerebra, maldito
seja e1ee a minha vaidade, que suga 0meu sangue, suga,
como uma serpente ... [V t T r ig o r in , qu e c am in ba n a direfao
d el es , l en do u m a c ad er ne ta ] L a vern 0 verdadeiro talento;
entra em cena como Hamlet , e tambern traz nas rnaosurn
livro. [ Com s ar ca sm 0] "Palavras, palavras, palavras ..." Esse
sol nem a alcancou ainda, mas a senhorita ja sorri, seuolhar
<44>
ja se derreteu aos raios dele. Nao YOU ficar aqui, para nao
atrapalhar, [ Sa i d ep re ssa ]
TRIGORIN [ to ma nd on ota s n a s ua c ad er ne ta ] Cheira rape e bebe
vodca ... Sempre de preto. 0professor esta apaixonado por
ela...
NINA Born dia, Boris Aleksieievitchl
TRIGORIN Born dia. As circunstancias mudaram de forma ines-
perada, e agora, ao que parece, temos de ir embora hoje
mesmo. It pouco provavel que voltemos a ver a senhorita
algum dia. It uma pena. Tenho poucas oportunidades de
conhecerrnocas jovens e interessantes, ate ja esqueci como
sao e nao consigo imaginar com clareza como elas se sentem
aos dezoito ou dezenove anos; por isso, nos meus contos e
nas minhas novelas, as mocinhas em geral parecem falsas.
Eu adoraria poder ficar no lugar da senhorita, ainda que
Fosses6 por uma hora, para saber como pens a e tudo 0mais.
NINA E eu tarnbern adoraria poder ficar no lugar do senhor.
TRIGORIN Para que?
NINA Para saber como se sente urn escri tor talentoso e celebre.
Qual a sensacao da fama? Como 0 senhor experirnenta 0
fato de ser famoso?
TRIGORIN Como me sinto? Nao sinto nada, eu acho. Nunca pen-
so no assunto. [Pensativo] Das duas, uma: ou a senhorita exa-
gera a minha fama, ou ela nao me afeta de maneira alguma.
NINA E quando Ie 0 que escrevem a seu respeito nos jornais?
TRIGORIN Quando elogiam, e agradavel , mas quando insul-
tam, dois dias depois ainda me sinto de mau humor.
NINA Que mundo maravilhoso! Como invejo 0 senhor, ah, se
soubesse! Como 0 destino das pessoas e diferente. Uns mal
< 45 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 23/56
conseguem arrastar a sua existencia tediosa e apagada,sem-
pre igual as outras, sempre infeliz; mas, para algunswtros,
como 0 senhor, por exemplo - urn em urn milhiO-, 0
destino reserva uma vida interessante, radiosa, rqleta de
sentido, " 0 senhor e feliz ...
TRIGORIN Eu? [E nc ol he nd o o s o m br os ] Hum ... A senhorita
esta aqui falando da fama, da felicidade, de umaDla ra-
diosa e interessante, mas para mim todas essas bdas pala-
vras, me perdoe, sao geleia de frutas, urn doce que eu
jamais como. A senhorita e muito jovem e muito gmerosa.
NINA A vida do senhor e deslumbrante!
TRIGORIN Mas 0 que ela tern de especialmente bom? [Olha
para 0 re 16g iode pu l so] Agora tenho de ir para casae.escre-
ver. Desculpe, nao tenho mais tempo ... [Ri] A seshorita,
como dizem, pisou no meu calo e ja estou comeeando a
ficar agitado e urn pouco aborrecido. Pensando m.elhor,
vamos conversar. Vamos conversar sobre a minha1iIa rna-
ravilhosa e radiante ... Pois bern, por onde vamoscesiecar?
[ De po is d e r ejl et ir u m in sta nte ] As vezes, ha ideiasqse nos
dominam, como quando uma pessoa fica 0 tempo todo,
dia e noite, pensando na lua, por exemplo, e aconteceque
eu tambern tenho a minha lua. Dia e noite, uma ideiaobsessiva me persegue: tenho de escrever, tenho deescrever,
tenho ... Mal termino uma nove1a, nem sei por qui.preciso
logo comes:ar uma outra, e depois uma terceira, e depois
dessa uma quarta ... Escrevo sem interrupcao, comoquem
viaja numa carruagem em que os cavalos sao substituidos a
cada parada, e nao consigo viver de outro modo.Pes entao,
eu lhe pergunto, 0que ha nisso de maravilhoso endiante?
iI!1
I
III
Ah, que vida absurda! Agora estou aqui com a senhorita,
estou emocionado, e enquanto isso, a todo instante, lembro
que uma novela inacabada espera por mim. Vejo 'uma
nuvem parecida com urn piano. Penso: em algum trecho de
urn conto, terei de citar que pairava no ceu uma nuvem
parecida com urn piano. 0 ar cheira a heliotropic. Anoto
depressa no pensamento urn perfume adocicado, uma flor-
de-viuva: usar na descricao de uma noite de verao. Agarro
cada frase, as minhas e as da senhorita, cada palavra, e me
apresso a trancar logo essas frases e essas palavras no meu
deposito li terario: urn dia podem ser uteisl Assim que ter-
mino urn trabalho, corro ao teatro ou YOU pescar: quem
sabe assim eu consiga descansar, me esquecer de mim mes-
mo, ah... Nada disso: dentro da minha cabeca, logo come-
s:aagirar uma pesada bola de ferro fundi do, urn novo tema
para urn conto, e logo me arrasto ate a mesa e de novo te-
nho de escrever e escrever 0 mais depressa possivel . E e
sempre assim, sempre, nunca dou sossego a mim mesmo e
tenho a sensacao de que estou devorando a minha propria
vida, tenho a sensacao de que, para fabricar 0 mel que
entre go, num vazio, a pessoas que nem mesmo sei quem
sao, eu retiro 0polen das minhas melhores flores, arrancoda terra essas mesmas flores e pisoteio suas raizes, Sera que
nao estou louco? Sera que meus conhecidos e amigos sedi-
rigem a mim como a uma pessoa sa? "0 que 0 senhor
anda escrevendo? Com que nos brindara a seguir?" Sem-
pre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, e fico com a im-
pressao de que essa atencao de meus conhecidos, os elogios,
a admiracao, tudo isso e uma mentira, tenho a sensacao de
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 24/56
que estao me enganando, como fazem com uma pes so a
doente, e as vezes tenho medo de que eles se aproximem
sorrateiramente pelas minhas costas, me agarrem e me
arrastem para 0 hospfcio, como ocorreu a Poprichin, 0per-
sonagem de Gogol , E antigamente, nos anos dajuventude,
nos bons tempos, quando comecei, escrever era para mim
um martirio incessante. Urn escritor menor, sobretudo
quando nao tem sorte, parece um desajei tado aos proprios
olhos, um desastrado, um imitil, vive com os nervos tensos,
esgotados; procura irresistivelmente estar perto de pessoas
ligadas a l iteratura e a arte, sem ser reconhecido, sem ser
sequer notado, sempre com medo de encarar os outros nos
olhos, como um jogador inveterado que esta sem urn cen-
tavo no bolso para apostar. Eu nao conhecia 0meu leitor
mas, por algum motivo, na minha imaginacao, ele se mos-
trava hostil, desconfiado. Eu temia 0publico, para mim ele
era uma coisa assustadora e,toda vez que eu tinha de apre-
sentar uma pes;a nova, me parecia que as pessoas morenas
tinham um animo hostil e que as pessoas loiras eram frias
e indiferentes. Ah, como era horrivel! Que tormento!
NINA Perdoe-rne, mas acaso a inspiracao e 0mesmo pro-
I cesso de criacao nao lhe proporcionam momentos ele-
I vados e felizes?
TRIGORIN Sim. Quando escrevo, e born. E ler as provas
impressas e born. Mas . .. tao logo 0 livro e publicado, vejo
que nao era nada daquila, vejo as erros e entendo que 0
livro nao deveria absolutamente ter sido escrito e ai fico
aborrecido, me sinto pessimo ... [Ri] Mas 0 publico Ie e
diz: "Sim, e bonito, tern talento ... E bonito, mas fica
)
longe de Tolstoi". Ou entao: "Uma obra magnifica, mas
Pais efilhos, de Turgueniev, e melhor". E assim, ate a
sepultura, tudo sera apenas bonito e talentoso, bonito e
talentoso, nada mais do que isso e, quando eu morrer e ja
for bern conhecido, VaG passar pelo meu tumulo e falar
assim: "Aqui jaz Trig6rin. Foi urn born escritor, mas nao
escrevia tao bern quanto Turgueniev".
NINA Nao me leve a mal, mas nao posso entender 0 senhor.
o sucesso deixou-o simplesmente mal-acostumado.
TRIGORIN ~e sucesso? Eu nunca agradei a mim mesmo.
i Nao gosto de mim como escritor. 0 pior de tudo e que
\
me sinto numa especie de embriaguez e muitas vezes nem
entendo 0 que escrevo . .. Veja, eu adoro essa agua, essas
arvores, esse ceu, sinto a natureza, ela desperta em mim
urn entusiasmo, urn desejo irresistfvel de escrever. Mas
nao .sou apenas urn paisagista, sou tarnbem urn cidadao,
amo 0 pais, 0 povo, sinto que, se sou urn escritor, estou
obrigado a falar do povo, dos seus sofrimentos, do seu
futuro, a falar da ciencia, dos direitos do homem etc etc, e
entao falo sobre tudo, me afobo, me pressionam de todos
os lados, se irritam comigo, eu corro de urn lade para 0
outro, como uma raposa acossada par dies de cac;:a,vejo
que a vida e a ciencia avancam cada vez mais, enquanto eu
YOU ficando sempre para tras, como urn mujique que che-
\
. gou atrasado para pegar 0 trem, e no fim tenho a sensacao
de que so sei mesmo descrever paisagens e em tudo 0mais
sou falso, sou falso ate a medula dos ossos.
NINA 0 senhor trabalhou em excesso e nao teve tempo nem
vontade de reconhecer a propria importancia, Talvez esteja
< 49 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 25/56
descontente consigo mesmo, mas para os outros 0 senhor
e brilhante e extraordinario! Se eu fosse um escritor como
o senhor, entregaria a minha vida inteira para a multidao,
mas com a consciencia de que, para eles, a felicidade esta-
ria apenas em elevar-se a minha altura, e aia multidao me
puxaria emuma carruagem.
TRIGORIN Numa carruagem... Por acaso sou 0 rei Agamenon?
[ O s d a is s or ri em . ]
NINA Em troca da felicidade de ser uma escritora ou uma
atriz, eu suportaria 0 desprezo dos meus conhecidos, a
penuria, as desilusoes, eu moraria num sotao, so comeria
pao de centeio, suportaria a insatisfacao comigo mesma,
sofreria com a consciencia das minhas imperfeicoes, mas
em compensacao eu exigiriapara mim a gloria... a gloria
autentica, estrondosa [Esconde 0 r os to n as m ao s] Minha
cabeca esta rodando Ah!
[ D a c as a, s oa a v o z d e A r kc id in a: " B or is A le ks ie ie vi tc h! ". ]
TRIGORIN Estao me chamando... Tenho de fazer as malas,Mas nao sinto a menor vontade de partir . [ Vo lta a s o lh os
para 0 lago] Qpe lugar maravilhoso! E lindo!
NINA Esta vendo uma casae umjardim do outro lado do lago?
TRIGORIN Estou.
NINA E a propriedade de minha falecida mae. Nasci hi. Passei
a vida toda nas margens deste lago e conheco muito bern
cada ilhota.
< 50 )
TRIGORIN A senhorita vivenum lugar lindo! [ V end o a g a iv o ta ]
E isso, 0que e?
NINA Uma gaivota. Konstantin Gavrilitch a matou.
TRIGORIN E urn passaro bonito. Na verdade, nao sinto a
menor vontade de partir. Quem sabe, sea senhorita pe-
disse,Irina Nikolaievna ficaria aqui mais uns dias? [Escreve
no c a de r ni n ho ]
NINA 0 que esta escrevendo?
TRIGORIN Estou fazendo anotacoes ... E que me veio uma
ideia ... [Guarda 0 caderninho] Uma ideia para urn conto
curto: uma jovem vivena beira de um lago, desde a infan-
cia, como a senhorita; ama 0 lago, como uma gaivota, e e
feliz e livre, como uma gaivota. Mas de repente aparece
urn homem, ele a avista e,por pura falta do que fazer, ele
a destroi, assim como aconteceu a essa gaivota.
[ Pa us a. N a ja ne la , s ur ge A rk eid in a.]
ARKADINA Boris Aleksieievitch, onde esta 0 senhor?
TRIGORIN Aqui! [C am inha e o lha pa ra trds, para N ina; ao cbe-
ga r a ja ne la , fa la p ar a A rk dd in a] 0 que foi?
ARKADINA Nos vamos ficar.
[T rig or in e ntr a n a ca sa .]
NINA [ ap ro xi ma -s e d o ta bl ad o, r ej le te u m p al /c o] Isto e urn sonho!
[Cort ina .]
<50
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 26/56
Agaivota encenada peloTeatro
deArte de Moscou. Terceiro ate
(':Agora ele e rneu"):Trig6rin
(K. S. Stanislavski), Arkidina
(0. L . Knipper);
Sala dejantar , na casa de Sarin. Portas a direita e a esquerda.
Urn bufe. Urn arrnario de remedies. Uma mesa no meio da
sala. Uma mala e caixas de papelao, evidentes preparatives
para uma viagem. Trigorin toma 0 cafe da manha, Macha esta
de pe ao lado da mesa.
TERCEIRO ATO
Terceiro ate (':Aquiesta,urn rublo para os tres").
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 27/56
MACHA Conto tudo isso porque 0 senhor e urn escritor. Pode
usar. Digo com toda sinceridade: se ele t ivesse ficado gra-
vemente ferido, eu nao aguentaria viver nem mais urn
minuto. Mas sou corajosa. Tomei uma decisao: vou arran-
car este amor do meu coracao, e vou arran car pela raiz.
TRIGORIN De que modo?
MACHA Vou me casar. Com Miedviedienko.
TRIGORIN 0professor?
MACHA Sim.
TRIGORIN Nao entendo qual a necessidade disso.
MACHA Amar sem ter esperans:a, f icar anos inteiros a espera
de que uma coisa aconteca . .. Depois que eu casar, nao vou
mais nem pensar em amor, preocupacoes novas van abafar
tudo 0 que e antigo. Vai ser mesmo uma transforrnacao,
sabe? Vamos tomar mais uma?
TRIGORIN Nao sera demais?
MACHA
Ora, vamos hi! [ En ch e a s c a li ce s] Nao olhe para mimdesse jeito. As mulheres bebem mais vezes do que os ho-
mens imaginam. S6 uma minoria bebe na frente dos outros,
como eu; a maioria bebe asescondidas. E e sempre vodca ou
conhaque. [ B ri nd am, t oe a nd o a s c a li ce s] Saiide! 0 senhor e
um homem simples, e uma pena que va embora.
[Bebem.]
< 55 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 28/56
TRIGORIN Eu mesmo nao tenho vontade de partir.
MACHA Por que nao pede para ela ficar?
TRIGORIN Nao, agora ela n ao vai mais ficar. 0f ilho tem se
comportado de modo muito inconveniente. Primeiro, ten-
tou se matar , e agora, pelo que dizem, vai me desafiar para
um duelo. Equal 0motivo? Ele se enfurece, bufa e apre-
goa formas novas . .. Mas hi lugar para todos, os novos e os
velhos - para que brigar?
MACHA Tambem hi 0 c iume. Mas issoji nao e da minha conta.
[Pausa.]
[ Pa us a. I ak ou a tr av es sa 0p alc o d a esquerda pa ra a d ire i ta com uma
m ala; entra Nina e s e detem a o l ad o d a ja n el a. ]
NINA Vamos nos separar e.. . talvez nao nos vejamos mais, Peco
ao senhor que aceite, como uma lembranca minha, este
pequeno meda lhao . Mandei gravar suas iniciais... e do
outro lado, 0 titulo de um livro seu: D ia s e n oite s.
TRIGORIN Mas que beleza! [Bei/a 0 medalhao] Que presente
encantador!
NINA Lembre-se de mim, de vez em quando.
TRIGORIN Lembrarei. Vou me lembrar da senhorita tal como
estava naquele dia de sol,lembra? Uma semana arras, quando
a senhorita estava com um vestido claro . .. Nos conversa-
mos ... Havia uma gaivota branca estirada sobre 0 banco.
NINA [pensativa] Sim, a gaivota ...ACHA 0meu professor nao e himuito inteligente, mas e um
homem bom e pobre, e me ama com ardor. Sinto pena dele.
Tenho pena da sua mae idosa. Mas, entao, permits que eu
lhe deseje tudo de bom. Na o me queira mal. [ Ape l· ta c om
for ra a m ao d e T rig ar in] Sou muito grata ao senhor por sua
generosidade. Mande-rne seus livros - e tern de serauto-
grafados. Mas nao escreva "prezada senhora", mas apenas
"para Maria, que nao sabe de onde veio nem para que vive
neste mundo". Adeus! [Sai]
NINA [ es te nd e a m ao J ec ha da n a diretdo de Tr iga r in] Par ou impar?
TRIGORIN Par.
NINA [suspira] Errou. S6 tenho urn grao de ervilha na mao.
Resolvi tirar a sorte para saber se devo ou nao ser atriz.
Quem dera alguern me orientasse.
TRIGORIN Nesse tipo de coisa, e impossivel dar conselhos.
[Pausa.]
NINA Agora nao podemos mais conversar, vem gente ai. ..
Antes de ir embora, me de dois minutos, eu the imploro .. .
[S ai p ela e sq ue rd a; a o m es mo te mp o, entram p el a d ir ei ta A r kd -
din a, Sa rin , de fr aq ue com uma m eda lha em f or ma d e estrela no
p ei to , e e m s eg uid a I dk ou ; a ta re fa do c om a s ba ga ge ns ]
ARKADINA Vamos, f ique em casa, meu velho. Com esse seu
reumatismo, acha conveniente sair para fazer visitas? [Para
Trigarin] Qpern acabou de sair daqui? Nina?
TRIG ORIN Sim.
ARKADINA Pardon, nos 0 atrapalhamos ... [Senta-se] Acho que
as malas ja estao prontas. Fiquei cansada.
TRIGORIN [I e 0 m edalhao] D ias e noires, pagina 121, linhas II e 12.
< 56 > <57>
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 29/56
IA.KOV [ tir an do a m es a] 0 senhor quer que eu embale tmnbem
as varas de pescar?
TRIGORIN Quero, sim, ainda vou precisar delas. Qyanto aos
livros, de para alguem,
IA.KOVPerfeitamente.
TRIGORIN V ala nd o c on sig o m es mo ] Pagina 121, linhasn e 12.
o que havera nessas linhas? [ParaArkadina] Ha eaempla-
res de meus livros aqui, nesta casa?
ARKA.DINA No escritorio do meu irmao, na estante do canto.
TRIGORIN Pagina 121••• [Sai]
ARKA.DINA Sinceramente, Pietruchka, era melhor vore ficar
em casa.
SaRIN Voces VaG embora e vai ser triste para mim : f i r : a r sem
voces nesta casa.
ARKA.DINA E 0 que ha de born na cidade?
SaRIN Nada de especial, mas nao importa. [Ri ] Vao lancar a
pedra fundamental da casa do conselho rural e outras coi-
sas assim ... Quem dera, pelo menos uma vez on outra,
poder me livrar desta vida de peixinho de aquario, ja
estou farto de me sentir irnprestavel, como se en Fosse
uma piteira velha. Mandei que os cavalos estivessem
prontos quando desse uma hora, assim vamos todos par-tir ao mesmo tempo.
ARKA.DINA [apas urna pausa] Escute, va levan do sua vida,nao
se aborreca, nao se resfrie. Cuide bern do meu filho.Pro-
teja -0. De conselhos.
ARKA.DINA Vou partir daqui a pouco sem saber por que Kons-
tan t in tentou se matar com urn tiro. Acho que 0motivo
principal foi 0 ciume e, quanto mais depressa eu levar'Tri-
gorin embora daqui, melhor.
SaRIN Como posso explicar a voce? Houve tambem outros
motivos. E uma coisa compreensivel: urn jovem inteligen-
te, que mora no campo, metido neste fim de mundo, sem
dinheiro, sem emprego, sem futuro. Ignorado por todos.
Tern vergonha e medo da sua ociosidade. Eu gosto imen-
samente de Konstantin, e ele, por sua vez, e muito apega-
do a mim, mas, apesar de tudo, ele tern a sensacao de ser
desnecessario nesta casa, de que nao passa de urn vadio,
urn parasita. E uma coisa compreensivel , uma questao de
amor-proprio ...
ARKA.DINA Ele me da muito desgosto! [Pensat iva] Ese arran-
jassemos urn emprego para ele, quem sabe. "
SaRIN [as sov ia , depoi s hes i ta] Acho que seria melhor se voce . ..
lhe desse algum dinheiro. Ele precisa, antes de tudo, vestir-
se de modo apropriado, Usa 0mesmo casaquinho velho hi
tres anos, porque nao tem urn p al et o, " [ R £ ] E passear um
POLCO tambern nao ia fazer mal nenhum ... Viajar para 0
exterior, quem sabe.. . Nao custa tao caro.
ARKA.DINA Mesmo assim . .. Talvez ell ainda possa pagar uma
roupa nova, mas uma viagem para 0exterior . . ,Nao, e para
dizer a verdade, nao tenho condicoes nem de pagar uma
roupa nova. [Categoricamente] Nao tenho dinheiro!
[Pausa.] [S6rin ri.]
< 58 > < 59 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 30/56
ARKADINANa o tenho!
S6RIN [assobia] Esta certo. Por favor, querida, nao se irrite
comigo. Acredito em voce... E uma mulher generosa e de
born coracao.
ARKADINA [ en tre l ag rimas] Nao tenho dinheiro!
S6RIN Se eu tivesse dinheiro, e claro que eu mesmo daria
algum para ele, mas nao tenho nada, nem urn centavo.
[Ri] 0administrador fica com todo 0 dinheiro da minha
aposentadoria e gasta na lavoura, no gado, nas abelhas, 0
meu dinheiro vai-se todo embora, em vao. As abelhas
morrem, as vacas morrem, nunca me trazem cavalos
quando pe~o...
ARKADINAEsta bem, eu tenho dinheiro, mas sou uma atriz; s6
as roup as ja consomem 0 dinheiro todo.
s6RIN Voce e boa, minha querida ... Costo de voce ... Mas ...
Ha algurna coisa errada comigo de novo . .. [Cambale ia]
Minha cabeca esta rodando. [ Se gu ra -s e n a m es a] Estou me
sentindo mal.
ARKADINA[assustada] Petruchka! [ T en ta amp ara -l o] Petruchka,
meu querido ... [GritaJ Venham me ajudar! Ajudem!
[Entram T repliov, com um a atadura na cabeia, e Miedviedienko.]
ARKADINAEle esta passando mal!
SORIN Nao e nada, nao e nada ... [ So rr i e b eb e a gu a] J a passou...
pronto ...
TREPLIOV [pa ra a m ae ] Nao se assuste, mamae, nao e grave.
Isso tern acontecido muitas vezes com 0 titio. [Para 0 tio]
E melhor ir deitar, titio.
< 60 >
S6RIN Sim, vou me deitar urn. pouco ... Mesmo assim, nao
deixarei de ir a cidade ... Vou me deitar urn pouco, ?las
depois irei ate h i . . . Podem ter certeza ... [ C am i nh a a po ia nd o-
s e n a b en ga la ]
MIEDVIEDIENKO [l ev a- o p elo br ar o] 0 senhor conhece esta
charada: 0 que e que de manha and a com quatro pernas,
ao meio-dia, com duas, e a tardinha, com tres?
S6RIN [Ri] E exatamente assim. E a noite fica deitado de cos-
tas. Muito obrigado, posso andar sozinho ...
MIEDVIEDIENKO Ora, deixe de cerim6nias! [Ele e S6rin se
re t iram]
ARKADINA Que susto ele me deu!
TREPLIOV Nao e born para a saude do titio morar aqui no
campo. Fica triste. Se voce, mamae, por urn momento se
mostrasse generosa e emprestasse ao titio uns mil e qui-
nhentos ou uns dais mil rublos, ele poderia morar na cida-
de um ana inteiro.
ARKADINA Nao tenho dinheiro. Sou uma atriz, e nao uma
banqueira.
[Pausa.]
TREPLIOVMae, troque a minha atadura. Voce faz isso tao bern.
ARKADINA[a pa nh a, n um armdrto de remedies, iodo e um a caixa
c om ma t er ia l para curativos] 0medico ja devia ter chegado.
TREPLIOV Prometeu vir as dez horas e ja e meio-dia.
ARKADINA Sente-se, [R etira a atadura da cabeca do jilho ] Ate
parece que voce esta de turbante. Ontem, na cozinha, uma
pessoa que nao e de cas a viu voce assim e perguntou aos
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 31/56
outros de que pais voce tinha vindo. Olhe s6, ja esta quase
curado. So restou uma coisinha a toa. [ Be ij a- o n a c ab ef a]
Quando eu for embora, voce nao vai fazer clique-clique
outra vez, nao e?
TREPLIOV Nao, mamae, Foi urn minuto de desespero e loucura,
nao consegui me dominar. Isso nao serepetira mais. [Beiia a
mao de la ] Voce tern maos de ouro. Lembro que, muito
tempo arras, quando voce ainda representava em teatrosestatais e eu era muito pequeno, houve uma briga no predio
onde moravarnos e uma inquilina lavadeira levou uma tre-
menda surra. Lembra? Eles a deixaram inconsciente ... Voce
ia sempre visita-Ia, levava remedies, dava banho nos filhos
dela, numa tina. Sera que voce nao lembra mais?
ARKADINA Nao. [ Po e uma a ta du ra n ov a]
TREPLIOV Na epoca, duas bailarinas moravam naquele mes-
mo predio em que n6s ... Elas costumavam vir tomar cafe
corn voce.
ARKADINADisso eu me lembro.
TREPLIOV Eram muito religiosas. [Pausa] Ultimamente, de
uns dias para ca, eu tenho amado voce com ternura e
devocao, como na infmcia. Agora, nao tenho mais nin-
guern, s6 voce. Mas por que, por que voce se submete a
influencia daquele homem?
ARKADINA Voce nao 0 compreende, Konstantin. Ele e uma
personalidade de grande nobreza ...
TREPLIOV No entanto, quando ele soube que eu pretendia
desafia-lo para urn duelo, a nobreza nao 0 impediu de
fazer papel de covarde. Esta indo embora. E uma fuga
vergonhosa!
ARKADINAMas que absurdo! Fui eu mesma que pedi a ele que.
fosse embora.
TREPLIOv Urna personalidads de grande nobreza! Aqui esta-
mos nos dois, quase brigando por causa desse sujeito,
enquanto ele, neste exato momento, and a metido em algum
canto por ai, na sala de visitas ou no jardim, e ri de nos . ..
Exibe Sua cultura para Nina, tenta convence-Ia de que e
urn genio.ARKADINA Voce tern mesmo prazer ern me dizer coisas desa-
gradaveis. Eu respeito esse hornem e peco que nao diga
coisas ruins sobre ele na minha presenca.
TREPLIOV Pois eu nao 0 respeito. Voce quer que eu tambem 0
considere urn genic, mas, me desculpe, nao sei rnentir, as
obras dele me dao enjco.
ARKADINA Isto e inveja. Para aspessoas sem talento, mas pre-
tensiosas, nao resta outra coisa senao cri ticar os verdadei-
ros talentos. Que triste consolo!
TREPLIOV [ i r o n i c o ] Os verdadeiros talentos! [ R a i ' V o s o ] Pois, se
quer mesmo saber, eu tenho mais talento do que todos vo-
ces! [ Ar ra nc a a a ta du ra d a c ab efa ] Voces sao apenas banais,
tornaram a arte em seu poder e so julgam legitime e auten-
t ico aquilo que voces mesmos fazem, e quanto ao resto, tra-
tam de perseguir e sufocar! Nao reconheco 0valor de voces!
Nao reconheco nem a ele nem a voce!
ARKADINA Seu decadente!
TREPLIOV Volte para oseu adorado teatro e represente as suas
pecinhas mediocres e lamenraveis]
ARKADINA Nunca, em toda minha vida, representei em ,
pec;as desse tipo. Deixe-me em paz! Voce nao e capaz
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 32/56
nem de escrever urn reles vaudevil le. Seu burguesinho de
Kiev! Parasita!
TREPLIOV Sovina!
ARKADINA Seu esmolambado!
[ T re p li ov s en ta -s e e c bo r a em s i! en c io .]
ARKADINA Voce e uma nulidade! [ C am in h a a g it ad a ] Nao chore!
Nao hipor que chorar... [Chora]Nao deve chorar... [Beija-o
n a t es ta , n a fa ce , n a c ab er a]Minha crianca querida, me des-
culpe... Perdoe a sua mae pecadora. Perdoe esta infeliz.
TREPLIOV [abrafa-a] Sevoce soubesse! Eu perdi tudo. Ela nao
me ama, eu ja nem consigo mais escrever... Todas as espe-
ranyas acabaram ...
ARKADINA Nao se desespere ... Tudo se resolved. Trig6rin vai
embora, daqui a pouco, e ela vai amar voce de novo.
[ En x ug a a s l dg ri m as d of il ho ] Chega. J a fizemos as pazes.
TREPLIOV [ be ij a a m a o d el a] Sim, mae.
ARKADINA [ c om car inho] Faca as pazes corn ele tambem. Nao
himotivo para urn duelo... Nao e verdade?
TREPLIOV Esta bern ... S6 peyo uma coisa, mae: que eu nao
tenha de falar corn ele. Seria demais para mim ... Estaalem das minhas forcas ...
[En tr a T r igo r in .]
TREPLIOV Pronto ... J a vou indo ... [ A s p re ss as , g u a r d a o s r em e-
d io s n o a rm a ri o] Daqui a pouco 0medico vai fazer urn
novo curativo ...
TRIGORIN [ pr oc ur a n as f olh a s d e um l iv ro ] Pagina 121... linhas
II e 12••• Aqui esta.. . [Ll] "Se algum dia voce precisar da
minha vida, venha e tome-a."
[ Tr ep li o· v p e ga d o c ha o a a ta du ra e s ai.]
ARKADINA [ depo i s de o l ba r par a 0 relogio] Logo trarao os cavalos.
TRIGORIN [p ara si m esm o] "Se algum dia voce precisar da
minha vida, venha e tome-a."
ARKADINA Suas malas ja estao prontas?
TRIGORIN [ c om impaci e nc ia ] Sim, sim ... [Pensat ivo] Por que
este apelo de uma alma pura me da uma sensacao de tr is-
teza e deixa meu coracao tao angustiado? "Se algum dia
voce precisar da minha vida, venha e tome-a." [ParaArka-
dina] Podemos ficar mais urn dia?
[ Ar kd d in a b al an ca a c ab ec ap a ra n eg a r 0pedido.]
TRIGORIN Vamos ficar!
ARKADINA Meu querido, eu sei 0 que prende voce aqui. Mas
tente se controlar . Voce esta urn pouco embriagado, s6 isso;
f ique s6brio de novo.
TRIGORIN Seja sensata, voce tambem, seja razoavel, ponderada,
eu lhe imploro, encare tudo isto como faria uma verdadeira
amiga ... [A perta a m ao dela] Voce e capaz de fazer um
sacrificio ... Seja minha amiga, me de a liberdade ...
ARKADINA [ com fo r te em o fa o ] Esta tao apaixonado assim?
TRIGORIN Sinto-rne atraido para ela! Quem sabe nao e disso
exatamente que eu preciso?
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 33/56
ARKAD"INA 0 amor de uma mocinha do campo? Ab, como
voce se conhece pouco!
TRIGORIN As vezes sonhamos acordados e eu mesmo,
enquanto converso corn voce, adormeco e vejo Nina num
sonho. .. sonhos doces, maravilhosos tomam conta de
mim ... Liberte-me ...
ARKADINA [tremula] Nao, nao ... Sou uma mulher comum, e
impossfvel esperar de mim uma coisa dessas ... Nao me
torture, Boris . .. Tenho medo ...
TRIGORIN Se voce quiser , pode se tornar uma mulher extraor-
dinaria. Urn amor jovem, fascinante, poetico, que nos leva
para urn mundo de sonhos - nesta vida, s6 isso e nada
mais pode nos trazer a felicidade! Ate hoje, nao experi-
mentei urn amor assim ... Na juventude, eu tive de ficar
batendo a porta de todas as redacoes de jornal, tive de
lutar contra a miseria Agora, ai esta ele, esse amor che-
gou, afinal, e me seduz Qual 0 sentido de fugir?
f ARKADINA [ c om ra iv a] Voce perdeu a cabecal
TRIGORIN E 0 que importa?
ARKADINA Hoje, parece que todos voces se combinaram para
me fazer sofrer! [Cham]
TRIGORIN [ se g ur an d o a p r o pr ia c a be ra } Voce nao entende! Naoquer entender.
ARKADINA Sera que ja estou tao velha e tao feia que voce
nem mais se acanha de falar comigo sobre outras mulhe-
res? [ Ab ra ra -o e b ei ia -o } Ah, voce enlouqueceu! Meu
lindo, meu maravilhoso ... Voce e a ultima pagina da
minha vida! [Poe- se de joe /has] Minha alegria, meu orgu-
lho, minha felicidade suprema ... [ A bm r a- o p e /o s j oe /h a s]
< 66 >
Se voce me abandonar, ainda que so por uma hora, nao
vou sobreviver, ficarei louca, meu bravo, meu glorioso,
meu soberano ... "
TRIGORIN Alguern pode vir. [A ju da -a a se le va n ta r]
ARKADINA Nao importa, eu n ao me envergonho do meu arnor
por voce. [ Be i/ a s ua s m a os ] Meu tesouro, meu desmiolado,
voce quer fazer loucuras, mas eu nao quero, nao vou dei-
xar... [Ri] Voce e meu ... e meu ... Esta testa e rninha, estes
olhos sao meus, estes lindos cabelos sedosos tambern sao
meus ... Voce e todo meu. Voce e tao talentoso e intel igen-
te, e 0melbor de todos os escri tores contemporaneos, e a
unica esperan<;a da Russia ... No que voce escreve, hi tanta
sinceridade, simplicidade, tanto frescor, e urn humor tao
sadio ... Com urn unico trace, voce e capaz de revelar 0
que hi de mais importante e caracterfstico num persona-
gem ou numa paisagem, e como sao vivas as pessoas que
voce cria. Ah, e impossrvel ler voce e nao se entusiasmar!
Acha que isto e bajulacao? ~le quero lisonjear voce?
Entao olhe-rne bern nos olhos .. . olhe .. . Pareco uma men-
tirosa? Abra os olhos, so eu sei apreciar 0 seu valor; so eu
Ihe digo a verdade, meu querido, meu admiravel. Vai vir
comigo? Vai? Nao vai me abandonar?TRIGORIN Nao tenho vontade propria . .. Nunca tive vontade
propria ... l\Iole, frouxo, sempre submisso - como sera
possivel que isto agrade a uma mulher? Leve-rne embora,
tire-me daqui, mas nfio deixe que eu me afaste de voce
nem urn pas so .. .
"\ ARKADINA [consigo mesma] Agora ele e meu. [Com na tu r a /i dade ,
c om o se n ad a tiu es se o co rr id o] Olhe, se voce quiser, pode
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 34/56
f icar. Irei sozinha e voce seguira depois, daqui a uma serna-
na. Na verdade, por que tanta pressa?
TRIG6RIN Nao, iremos juntos.
ARKADlNA Como preferir, iremos juntos, entao ...
[Pausa. Trigorin escreue no seucaderno.]
ARKADINA 0 que foi?
TRIG6RIN Ouvi, de manha, uma expressao bonita: "0 bosque das
donzelas" ... Vai me servir para alguma coisa. [Espreguifa]
Quer dizer que vamos partir? Novamente os vagoes de trem,
as estacoes, as cantinas, os bifes empanados, as conversas ...
CHAMRAIEV Centra] Tenho a triste honra de anunciar que os
cavalos estao prontos. Ji e hora de ir para a estacao, minha
prezadissima senhora; 0 trem chega as duas horas e cinco
minutos. Mas entao, Irina Nikolaievna, por favor, nao se
esque<;a de tomar informacoes sobre aquele assunto: por
onde anda 0ator Susdaltsev? Esta vivo? Esta bern de saude?
Naquele tempo, nos bebiamos juntos .. . Na pe<;a0 correio
roubado, ele representou de forma i n i gu al ave l , . . Lembro
que, em Ielizavetgrad, contracenava com ele 0 ator tragi co
Izmailov, outra personalidade admiravel. .. Ndo se apresse,
minha prezadissima senhora, ainda temos mais cinco rni-
nutos. Certa vez, num melodrama, e1es representavam 0
papel de conspiradores e, na hora em que, de subito, eram
apanhados em flagrante, era preciso exclamar: "Cairnes
numa cilada!". E 0 Izmailov disse: "Caimos numa salada!".
[Gargalha] Numa salada!
[Enquanto Cbamraleu fala, Iako» se ocupa das malas, a criada
traz para Arkddina 0 chapiu, 0 manto, 0 guarda-chuva e as luuas;
todos ajudam Arkddinaa se agasalhar. 0cozinbeiro espia da porta
da esquerda e, depois de esperar urn pouco, auarua hesitante.
Entram Polin a rlndreieuna e, depois, Sarin eMiedviedienko.]
POLINA [com urn cestinho] Ameixas para a senhora comer na
viagem .. . Estao muito doces. Talvez sinta vontade de be-
liscar alguma coisa ...
ARKADINA A senhora e muito boa, Polina Andreievna.
POLINA Adeus, minha cara! Desculpe se alguma coisa nao
correu como devia. [Chora]
ARKADINA [abrafa-a] Tudo correu muito bern, tudo esteve
otimo, Ora, nao e preciso chorar.
POLINA Nosso tempo ji esta passando!
ARKADINA 0que se pode fazer?
S6RIN [de casaco, capa, chapeu e bengala, entra pela porta da es-
querda, atrauessa 0 aposento] Irma, esta na hora, senao vai
acabar se atrasando. Vou tomar 0meu lugar.
MIEDVIEDIENKO Eu irei a pe ate a estacao ... para acompa-
nhar a sua partida. Eu sou ligeiro .. . [SaiJ
ARKADINA Adeus, meus queridos ... Se estivermos vivos e com
saude, nos veremos de novo no proximo verao .. .
[A criada de quarto, leikov t? 0 cozinbeiro beljam a mao de/a.]
ARKADINA Nilo se esque<;am de mim. [Dei urn ruble ao cozi-
nheiro] Aqui esta, urn rublo para os tres,
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 35/56
COZINHEIRO Agradecernos rnuitissirno, senhora patroa. Qpe
faca uma 6tirna viagern! E urna enorrne satisfacao servir a
senhora!
IAKOV Qpe Deus a acornpanhe!
CHAMRAIEV Urna cartinha nos deixaria muito felizes! Adeus,
Boris Aleksieievitch,
ARKADINA Onde esta Konstantin? Avisem a ele que estou de
partida. Ternos de nos despedir. Entao, nao me queirarn
mal. [ Pa ra J d ko v ] Dei urn rublo para 0 cozinheiro. Mas e
para os tres,
[ To d os s ae m p el a d ir ei ta . ap alco fica v az io . O uu e-s e, v in do d e tr ds
d o p a lc o , 0 rum or das d espedida s. A criada vo lta p ara p eg ar a
c es ta d e a me ixa s s obr e a m es a e s ai d e n ov o.]
TRIGORIN [re tornando] Esqueci minha bengala. Acho que
ficou na varanda. [C am inha para ld e, na porta da esquerda,
e nc on tr a -s e c om N in a , q u ee nt ra ] E a senhorita? Estarnos de
partida ...
NINA Tive 0 pressentimento de que ainda nos veriamos uma
vez. [Agi tada] Boris Aleksieievitch, tomei uma decisao
irrevogavel , minha sorte esta lancada, you seguir a carrei-
ra de atriz. Arnanha, ja nao estarei mais aqui, vou deixar
meu pai, you abandonar tudo e cornecar uma vida nova.. .
Vou partir para Moscou, assim como 0 senhor. Nos nos
veremos por lao
TRIGORIN [o lh an do p ar a tr as ] Hospede-se no hotel Bazar
Eslavo ... Avise-me assim que chegar ... Ru~ Moltchanovka,
edificio Grokholski . .. Nao tenho mais tempo ...
[Pausa.]
NINA So mais urn minuto .. .
TRIGORIN [e m oaz baixa] A senhorita e tao linda ... Ah, que
felicidade saber que, em breve, nos veremos!
[ El a s e e n co st a a o p eit o d e T rig or in .]
TRIGORIN Verei de novo estes olhos deslumbrantes, este sorri-
so indescritive1mente belo, rneigo Estas feicoes doceis,
este rosto de uma pureza angelical Minha querida ...
CUm b e ij o p r o lo ng ad o .]
[Cort ina .]
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 36/56
QUARTO ATO
Entre 0 terceiro e 0 quarto ato, hi urn intervalo de dois anos.
Agaivota encenada peloTeatro de Arte deMoscou.
Qparto ate: 0jogo de cartas.
Uma das salas na casa de Sorin, que Konstantin Trepliov
transformou em escrit6rio. Portas it direita e a esquerda, dando
para os aposentos internos. Defronte, uma porta de vidro que
da para a varanda. Alern dos m6veis habituais numa sala, hi
uma escrivaninha no can to dire ito, urn diva turco perto da
porta da esquerda e uma estante de livros; l ivros nas janelas ,
nas cadeiras. Noire. Urn lampiao esta aceso arrasde urn quebra-
luz. Ouve-se 0 rumor das arvores e 0 u ivo do vento nas cha-
mines. Soam as batidas do vigia noturno. Miedviedienko e
Macha entram.
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 37/56
MACHA [ g ri ta , c hamando] Konstantin Gavrilitch! Konstantin
Gavrilitch! [ Ol ha e m v ol ta ] Nao hi ninguem, Toda hora, 0
velho pergunta onde esta Kostia, onde esta Kostia? Nao
consegue viver sem 0 sobrinho ...
MIEDVIEDIENKO Tern medo da solidao, [Escuta] Mas que
tempo horrivel! J a faz dois dias que esta assim.
MACHA [a um enta a ch am a d o la mp ia o] Ha ondas no lago.
Ondas enormes.
MIEDVIEDIENKO 0 jardim esta com urn aspecto tenebroso.
Deviam man dar desmontar aquele palco no meio do jar-
dim. Continua hi, nu, macabro, como urn esqueleto, e a
cortina balanca ao vento. Quando passei por la, ontem :i t
noite, tive a impressao de que alguern estava chorando.
MACHA Ora, deixe de bobagem ...
[Pausa.]
MIEDVIEDIENKO Vamos para casa, Macha!
MACHA [ ba lan ra a cabeca , n egando] Vou passar a noite aqui.
MIEDVIEDIENKO [supl ieanle] Macha, vamos embora! Nosso
bebe deve estar com fome.
MACHA Bobagem. Matriona vai amamenta-lo,
[Pausa.]
< 75 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 38/56
- i-
MIEDVIEDIENKO Da ate pena.ja e a terceira noite que ele fica
longe da mae.
MACHA Voce e urn estorvo. No inicio, so queria saber de f ! . 1 0 -
sofar e agora so fala do bebe e de ir para casa, do bebe e de
ir para casa . .. nao se ouve outra coisa da sua boca.
MIEDVIEDIENKO Vamos para casa, Macha!
MACHA Va voce sozinho.
MIEDVIEDIENKO 0seu pai nao vai me emprestar os cavalos.
MACHA Vai, sim. E s6 voce pedir que ele empresta.
MIEDVIEDIENKO Por favor, eu implore. Entao, amanha voce
- vira para casa?-
MACHA [ as pir a r ap e] Esta bern, amanha, Mas que coisa en-
joada ...
[T re plio v e ste nd e a m ao e m sile ncio ; M ied vie die nk o sa i.]
FOLINA [ ol ha nd o p a ra 0 manuscri to] Ninguem pensava; nin-
guem podia sequer imaginar que voce ainda vir ia a ser um
escritor de verdade. E agora, grac;as a Deus, ate as revistas
comecaram a lhe mandar dinheiro. [P assa a m ao p elo cabelo
dele] Alem do mais, ficou bonito ... Querido Kostia, seja
bondoso, seja mais carinhoso com a minha Machenkal
MACHA [ta ze nd o a c am a] Deixe-o em paz, mae.
FOLINA [ p ar a T r ep li o v] E uma boa moc;a.
[Pausa.]
[ En t ram T re p li o· v e Pa l in a Andri ievna; T re pl io u t ra z a lm o fa da s e
um cobe r to r , P o li na tr az r ou pa s d e c ama ; p oe m tudo s ob re a s of a turco;
em seguida, Trepliou v ai p ara a su a m esa e s e nta -se .]
FOLINA Uma mulher nao precisa de quase nada, Kostia, basta
serolhada com carinho. Sei disso por experiencia pr6pria.
[T re plio v se le va nta d a m esa e s ai e m s iI en ci o. ]
MACHA Para que isso, rnamfie?
POLINA Piotr Nikolaievitch pediu para fazer a cama dele nos
aposentos de K6stia.
MACHA
Deixe-rne ajudar ... [Fa z a cama]POLINA [suspira] 0velho esta igual a uma crianca ... [Apl"Oxi -
r na -s e d a e sc rl oa ni nb a e , a po ia nd o- se n o c oto v e la , o lh a p ar a
u rn m a n u sc ri to ; p a ll sa ]
MIEDVIEDIENKO Entao vou embora. Ate logo, Macha. [Beija
su a m ao ] Adeus, mamae. [Tenta beijar a m ao da so gra ]
POLINA [aborrecida] Ora! Va com Deus.
MIEDVIEDIENKO Adeus, Konstantin Gavrilitch.
MACHA Pronto, a senhora 0 irritou. Sera que nao consegue
deixa-lo em paz?
POLINA Sinto pena por voce, Machenka.
MACHA Nao precisa ter penalPOLINA Meu coracao sofre par voce. Pais eu vejo tudo, enten-
do tudo.
MACHA :I t tudo bobagem. Arnor sem esperanca ... essas coisas so
existem nos romances. Tolices. Nao se pode amolecer, nao se
pode ficar a vida toda na beira da praia, esperando que. 0
tempo melhore ... Quando 0 amor se instala no coracao, e
preciso expulsa-lo .ja prometeram transferir meu marido para
< 77 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 39/56
outro distrito. Depois que eu e ele nos mudarmos para la ,
tudo isso sera esquecido ... YOU arrancar do coracao, pela raiz.
[A dois comodos dali, tocam um a oalsa melancollca.s
POLINA Kostia esta tocando. Quer dizer que esta triste .
MACHA [sem ruido, dd alguns passos de valsa] 0 principal , rna-
mae, e que meus olhos nao 0vejam. Assim que derem essatransferencia ao meu Siemion, acredite, esquecerei Kostia
em urn mesoTudo isso e uma bobagem.
[Abre-se a porta da esquerda. Dorn e Miedviedienko empurram a
cadeira de rodas de Sarin.]
MIEDVIEDIENKO Agora somos seis em casa. E a farinha custa
setenta copeques 0pud.
DORN L a vem ele com a mesma hist6ria.
MIEDVIEDIENKO Para 0 senhor e facil zombar. Tern dinheiro
de sobra.
DORN Dinheiro? Depois de trabalhar tr inta anos como medi-
co, meu amigo, e trabalhar sem descanso, sem poder dispor
so para mim nem do dia nem da noite, consegui economi-
zar apenas dois mil rublos, que gastei faz pouco tempo,
numa viagem ao exterior. Nao possuo nada.
MACHA [para 0 marido] Mas voce nao ia embora?
MIEDVIEDIENKO [com ar wlpado] De que jeito, se nao me
emprestam os cavalos?
MACHA [ irri tada e amarga, a meia voz] Eu gostaria de nunca
mais ver voce na minha [rente!
[A cadeira de rodas s~ de tim na parte esquerda do comodo; Polino
Andriievna, Macha e Dorn sentam-se junto a ela;Mieduiedienko,
entristecido, sepoe a parte.] .
DORN Mas quantas novidades, por aqui! Transformaram a sala
de visitas em urn escritorio de trabalho.
MACHA Aqui e mais comodo para Konstantin Gavrili tch tra-
balhar. Ele pode sair para 0 jardim, quando tern vontade, e
ficar la, pensando.
- - [Ouvem-se as batidas do-vigia noturno.]
SaRIN Onde esta minha irma?
DORN Foi a estacao, encontrar-se com Trig6rin. Daqui a pouco,
estara de volta.
SaRIN Se 0 senhor achou necessario escrever para a minha
irma e pedir que viesse para ca, isso so pode significar que
meu estado de saude e mesmo grave. [Apas um mornento de
silencio] Essa e boa! Estou gravemente enfermo e ninguern
me da nenhum remedio.
DORN Mas que rernedio 0 senhor quer? Gotas de valeriana?
Bicarbonato de sodio? Quinine?SaRIN Pronto, la vem sermao, Ah, que suplicio! [Acena com a
cabeca na direaio do so/fi] Fizeram essa cama para mim?
POLINA Sim, para 0 senhor, Piotr Nikolaievitch.
SaRIN Muito obrigado.
DORN [can taro/a] "A lua flutua no ceu da noite . .. "
SaRIN Eu queria sugerir ao Kostia 0 tema para uma historia. 0 ti-
tulo deve ser 0 seguinte "0 ho~em que queria", "L'Homme
<7 9 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 40/56
q u i a v ou lu " .Nos bons tempos, quando era moco, eu queria ser
escritor, e nao fui; queria falar bonito, e falava pessimamente
[ zom ban do d e si mesmo] . "E portanto, nao obstante, conforme
eu ia dizendo, outrossim ... " E acontecia que, em vez de fazer
urn resumo, eu me alongava, a ponto de ficar todo suado.
Qperia casar, e nao casei; queria muito viver na cidade, e fui
acabar minha vida no campo, e assim por diante.
DORN Queria ser urn autentico Conselheiro de Estado, e foi.
S6RIN [ri] Nao foi algo que desejei com ardor. Simplesmente,
aconteceu.
DORN Expressar descontentamento com a vida, aos sessenta e
dois anos de idade, 0 senhor hi de convir, nao e uma atitu-
de generosa,
S6RIN Mas que sujeito cabeca-dura! Entenda, isto e vontade
de viver!
DORN 1s50nao passa de leviandade. Segundo as leis da nature-
za, toda vida precis a ter urn fim.
S6RIN 0 senhor raciocina como urn homem saciado. 0 senhor
esta saciado e por isso e indiferente a vida; para 0 senhor, tanto
faz.Mas espere s6 a hora de morrer e aivera como e horrivel.
DORN 0temor da morte e urn medo animal ... E preciso sufoca-
10.S6 temem a morte de forma consciente aqueles que creernna vida eterna e sentem urn medo terrivel de seus pecados.
Mas 0 senhor, em primeiro lugar, nao acredita nisso; em
segundo lugar... quais sao os seus pecados? 0 senhor traba-
lhou durante vinte e cinco anos numa repart icao dajustica,
S6 isso e nada mais.
S6RIN [ri] Vinte e oito anos .. .
< SO)
[ En tr a T re p li ov e senta-se num banquinho aosp es d e S ar in . M a ch a
ndo d e sv ia d e le 0 olbar; nem po r um mom en ta . ]
DORN Estamos atrapalhando 0 t rabalho de Konstantin Gavrf-
lovitch.
TREPLIOV Nao, de maneira alguma.
[Pausa.]
MIEDVIEDIENKO Permita que the pergunte, doutor, que cida-
de mais the agradou, quando esteve no exterior?
DORN Genova.
TREPLIOV Por que Genova?
DORN A multidao nas ruas e uma coisa magnifica. A noite,
quando voce sai do hotel, a rua inteira esta apinhada de
gente. Entao voce se deixa levar pela multidao, carninha
ao leu, para urn lado e para 0 outro, em ziguezague, voce
se sente unido as pessoas, funde-se a psique da mulridao e
corneca ate a acreditar na possibilidade real de existir uma
alma do mundo, semelhante aquela alma do mundo que
Nina Zarietchnaia representou na sua pe<;a,naquela oca-
siao. Por falar nisso, por onde anda a senhorita Zarietch-
naia? Como vai ela?
TREPLIOV Deve estar bern.
DORN Ouvi dizer que levava uma vida urn tanto fora do co-
mum. E verdade?
TREPLIOV Essa, doutor, e uma longa hist6ria.
DORN Pois faca urn resumo.
< 8r )
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 41/56
[Pausa.]
TREPLIOV Ela fugiu de casa e foi viver com Trigorin. 0 se-
nhor sabia disso?
DORN Sabia.
TREPLIOV Ela teve urn filho. A crianca morreu. Trigorin se
cansou dela e voltou para os seus amores de antes, como ja
era de esperar. Alias, ele nunca abandonou seus antigos
amores e, como nao tern nenhum carater, sempre conse-
guiu dar urn jeitinho para estar dos dois lados. Ate onde
posso avaliar, por tudo 0 que soube, a vida particular de
Nina foi urn redundante fracasso.
DORN Mas .. . eo teatro?
TREPLIOV Pior ainda, ao que parece. Ela estreou num teatro
pequeno, em uma estacao de veraneio nos arredores de
Moscou, e depois seguiu para 0 campo. Eu nunca a perdia
de vista e, por algum tempo, onde quer que ela estivesse,
eu tambem estaria. Ela sempre era escalada para papeis
importantes, mas representava de forma tosca, com mau
gosto, aos berros e com gestos bruscos. Em alguns mo-
mentos, erguia a voz com talento, morria com talento, mas
eram s6 alguns momentos.
DORN Entao, apesar de tudo, e1atern talento?
TREPLIOV It diflcil avaliar.Talvez tenha. Eu a via, mas ela nfio
queria me ver, e a empregada nao me deixava entrar no
seu quarto de hotel. Eu entendia os sentimentos dela e
nao insistia para ve-la.
[Pal/sa.]
< 8z >
TREPLIOV 0 que mais posso lhe dizer? Depois, quando voltei
para casa, recebi cartas de Nina. Cartas sensatas, cordiais,
interessantes; ela nao se queixava, mas eu percebia que
estava profundamente infeliz; cada linha era urn nervo
retesado, doente. A imaginacao tambern estava urn pouco
abalada. Ela assinava A Gaivota. Na pes:a A sere ia , de
Puchkin, 0 moleiro diz que e urn corvo, da mesma forma
que Nina, nas cartas, sempre repetia que era uma gaivota.
Agora ela esra aqui.
DORN Como assirn, esta aqui?
TREPLIOV Na cidade, numa hospedaria. Jifaz uns cinco dias
que esta hospedada nurn quarto. Fui ate la para ve-la, e
f,:s\<PM:j.ria Ilinitchna tambern foi, mas ela nao recebe nin-
guem, Siemion Siemi6novitch garante que ontem, apes 0
almoco, esteve com ela no campo, a duas verstas daqui.
MIEDVIEDIENKO It verdade, eu a vi. Ela estava voltando de la
para a cidade. Eu a cumprimentei, perguntei por que nao
vinha nos visitar. Respondeu que viria.
TREPLIOV Nao vai vir.
[Pausa.]
TREPLIOV 0 pai e a madrasta nem querem ouvir falar dela.
Puseram vigias em toda parte, para impedir que a filha
sequer se aproxime da propriedade. Uuntamente com 0 me-
d i c o , d i r ig e -se a escrivaninha] Como e Hcil ser fi16sofo no
papel , doutor, e como e diflcil, na vida real!
SORIN Era uma jovem fascinante.
DORN Como disse?
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 42/56
SORIN Eu disse que era urna jovem fascinante. Durante urn tempo,
ate 0Conselheiro de Estado Sarin esteve apaixonado por ela.
DORN Seu velhote namorador.
[O uv e-se u ma risa da d e C ha mra ie v.]
POLINA Parece que ja estao de volta da estacao .. .
TREPLIOV Sim, estou ouvindo a voz de mamae.
[EntramArkddina, T rig or in e , atrds deles , Chamraiev .]
I!I
CHAMRAIEV [entrando] Todos nos estamos envelhecendo, nos
degradando sob 0 efeito das intemperies, mas a prezadfssi-
rna senhora continua sempre jovem ... de blusinha clara,
cheia de vida ... cheia de gras:a.. .
ARKADINA 0 senhor esta querendo par mau olhado em mim
de novo, homem enfadonho!
TRIGORIN [ pa ra S a ri n] Como vai, Piotr Nikolaievitch? Conti-
nua adoentado? Mas isso nao e born! [A o oer M ac ha , se a le -
gra] Maria Ilmitchnal
MACHA 0 senhor me reconheceu? [A per ta a m ao d ele]
TRIGORIN Casou-se?MACHA Ha muito tempo.
TRIGORIN Esta feliz? [C um prim enta D arn e M ied viedienko e, em
s eg uid a, h es it a a nt es d e s e a p ro xi ma r d e T re pl io v] Irina Niko-
laievna me disse que 0 senhor ja esqueceu 0 que houve e
deixou sua raiva para tras,
[T re plio v es te nd e a m ao p ara e le .]
ARKADINA [ p ar a a f il h o] Boris Aleksieievitch trouxe a revista
que publicou 0seu novo canto.
TREPLIOV [a pa nh a a v olu me; p ara T rig arin J Muito obrigado.
o senhor e muito gentil.
[ S en ta - se . ]
TRIGORIN Seus admiradores Themandam cumprimentos ... Em
Petersburgo e em Moscou, todos estao muito interessados
pelo senhor e nao param de me fazer perguntas a seu res-
peito. Perguntam: como de e , quantos anos tern, e moreno
ou loire? Por alguma razao, imaginam que 0 senhor ja nao
e jovem. E ninguem sabe 0seu sobrenome verdadeiro, pois
o senhor assina com urn pseudonimo. 0 senhor e miste-
rioso, como 0Mascara de Ferro.
TREPLIOV Vai ficar muito tempo aqui?
TRIGORIN Nao, acho que amanha mesmo sigo para Moscou.
E preciso. Tenho de me apressar para terminar urn
romance e alern disso prometi mandar alguma coisa para
uma coletanea. Em suma, e a mesma historia de sempre.
[E nq ua nto a s d ais c on oe rsa m, A rk ad in a e P olin a A nd re ie un a p oe m
u ma m esa d ejo go n o c entro d a sa la e a d esd obr am ; Cbamraieu acen-
d e u ela s, a rru ma ca de ir as. R etir am d o a rm aria u mjo go d e v {sp or a.]
TRIGORIN 0 clima nao me deu uma acolhida muito aprazivel.
o vento esta cortante. Amanha de manha, se 0 vento
acalmar, irei ate 0 lago para pescar. Por falar nisso, preciso
rever 0jardim e aquele local onde .. . 0 senhor se lembra...
< 85 )
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 43/56
encenaram a sua pec;a. Tenho urn tema ji bern maduro
para desenvolver, s6 me falta recuperar a memoria do
local em que a acao se passa.
MACHA [para 0paiJ Papai, empreste um cavalo para 0 meu
marido! Ele precisa ir para casa.
CHAMRAIEV [irritado] Cavalo ... casa... [ Com s ev e ri da d e] Voce
mesma e testemunha: eles acabaram de chegar da estacao.
Nao se pode abusar dos cavalos.
MACHA Mas hi outros cavalos . .. [ Ve nd o q ue 0 pai se mantem
c ala do , a ba na a s m a os ] Nao adianta falar com 0 senhor .
MIEDVIEDIENKO Eu YOU a pe, Macha. Nao se preocupe .
POLINA [com um suspiro] Ape, num tempo desses ... [Senta-se
a me sa d ej og o] Por favor, senhores. Sentem-se.
MIEDVIEDIENKO Afinal, sao s6 seis verstas de distancia ...
Adeus ... [B eija a m ao da esp os a] Adeus, mamae. [A sogra ,
de md uontade, the dd a m ao para beijar] Eu bern que pre-
feria nao incomodar ninguem, mas 0 bebe [Faz um
cum prim ento com a cabeca p ar a to do s] Adeus [S ai, co m
urn ar d e c u lp a ]
CHAMRAIEV Isso, tern mesmo de ir ape. Nao e nenhum
general.
POLINA [ da nd o p an ca din ha s n a m es a] Por favor, senhores. Nao
vamos perder tempo, daqui a pouco VaG nos chamar para
o jantar.
jogo de vispora, 0mesmo que a falecida mamae ainda jo-
.gava conosco, quando eramos criancas. 0 senhor nao
gostaria de tomar parte do nosso jogo, ate a hora do jan-
tar? [Senta-se a me sa c om T ri go ri n] E um jogo enfadonho
mas, depois que a gente se acostuma, nao e tao ruim
assim. [D a trts c a rt as p a ra c a da jo g ad o r]
TREPLIOV V o lh ea nd o a r ev is ta ] Ele leu 0 proprio conto de fio
a pavio, mas nem soltou a ponta das folhas do meu con to.
[P oe a re vis ta s obr e a es cr iv an in ha , em s eg uid a s e d ir ig e p ara
a p or ta d a e sq uer da; a o pa ssa r p ela m ae, beija s ua c abe{a]
ARKADINA E voce, K6stia?
TREPLIOV Desculpe, nao estou com vontade ... Vou caminhar
urn pouco. [Sai]
ARKADINA A aposta e de dez copeques. Fac;a a aposta por
mim, doutor.
DORN Com todo prazer.
MACHA Todos ji apostaram? Entao YOU comec;:ar... Vinte
e dois!
ARKADINA Eu tenho.
MACHA Tres!
DORN E meu.
MACHA 0 senhor ja marcou 0 tres? Oito! Oitenta e urn! Dez!
CHAMRAIEV Nao corra.
ARKADINA Mas que recepcao consagradora eu tive em Khar-
kov, meu Deus, minha cabeca esta rodando ate agora!
MACHA Trinta e quatro!C ha mr aiev , M ach a e D o rn s en ta m-se a mesa.]
ARKADINA [ pa r a T r ig o ri n ] Aqui, quando comec;am as noites
longas de outono, e costume jogar vispora. Veja 56:0velho
[P or tra s d o p alc o, to ca m u ma v als a melancolica.i
< 86 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 44/56
, I
ARKADINA Os estudantes me aclamaram Tres corbelhas,
duas coroas e ainda por cima isto aqui [ Tir a u m b ro cb e
dopei to e 0joga sobre a m es aJ
CHAMRAIEV Sim, e autentica ...
MACHA Cinqiienta!
DORN Cinquenta redondos?
ARKADINA Usei roupas maravilhosas ... Digam 0 que disse-
rem, para me vestir, eu nao sou nada boba.
POLINA Kostia esta tocando piano. Esta triste, coitado.
CHAMRAIEV OS jornais 0 criticam demais.
MACHA Setenta e sete.
ARKADINA E sovontade de chamar atencao,
TRIGORIN Ele nao tern tido sorte. Nao consegue, de maneira
alguma, alcancar 0 seu tom autentico. Hi algo estranho,
vago, por vezes ate semelhante a loucura. Nenhum perso-
nagem com vida propria.
MACHA Onze!
ARKADINA [o lhando para trds, n a d ir ec do de Sa r in ] Petruchka,
esta aborrecido?
MACHA Vinte e oito!
TRIGORIN Pescar uma acerina ou uma perea, isto sim e 0 auge
da felicidade!
DORN Pois eu acredito em Konstantin Gavrili tch. Hi alguma
coisa nele! Hi alguma coisa! Ele sabe pensar por meio de
imagens, seus contos sao expressivos, vivazes, e provocam
em mim sentimentos fortes. So lamento que ele nao tenha
prop6sitos mais definidos. Cria impressoes e mais nada, e
o problema e que nao se pode ir muito longe apenas com
impress6es. Irina Nikolaievna, a senhora esta contente por
seu mho ser escritor?
ARKADINA Imaginem s6: eu ainda nao Ii.Nunca tenho tempo.
MACHA Vinte e seis!
[Trepliov entra em silencio e c am in ha a li a s ua e sc riv an in ha .]
CHAMRAIEV [para Tr igar inJ Ah, Boris Aleksieievitch, ficamos
com uma coisa que lhe pertence.
TRIGORIN Que coisa?
CHAMRAIEV Certa vez, Konstantin Gavril itch matou uma gai-
vota com urn tiro e 0 senhor me encarregou de pedir que
a empalhassem. .
TRIGORIN Nao me lembro disso. [Pensativo] Nao me lembro!
MACHA Sessenta e seis! Urn!
TREPLIOV [ ab rc ' a ja ne la , p o e- se a e SCZ lt ar ]Como esta escuro!
Nao entendo de onde me vern essa angustia.
ARKADINA Kostia, feche a jane1a, ha uma corrente de ar.
[Pawa.]
ARKADINA Pegou no sono.
DORN 0 Conselheiro de Estado dorme.
MACHA Sete! Noventa!
TRIGORIN Se eu morasse numa propriedade como esta, a beira
de urn lago, voces acham que eu teria vontade de escrever?
Eu trataria de sufocar essa loucura e nao faria outra coisa
senao pescar no lago. [ T re p li ov f le h a a j an da .]
< 88 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 45/56
MACHA Oitenta e oito!
TRIGORIN Cornpletei a minha carte1a, senhores.
ARKADINA [alegre] Bravo! Bravo!
CHAMRAIEV Bravo!
ARKADINA Esse homem sempre tern sorte em tudo. [Levan-
ta-se] E agora vamos beliscar alguma coisa. A nossa
celebridade nao almocou hoje. Depois do jantar, vamos
continuar 0 jogo. [Para 0ftlho] Kostia, largue os seus es-
cri tos e venha comer.
TREPLIOV Nao quero, marnae, nao estou com fome.
ARKADINA Como quiser . [ A co rd a S o ri n] Pietrucha, jantar!
[Dando 0 b ra co p ar a C h am r ai ev ] Vou contar ao senhor
como fui recebida em Kharkov...
sombra da roda de urn moinho se estende negra - e esta
pronta a noite de luar, mas para mim e preciso uma luz
bruxuleante, estrelas cintilantes e serenas, e sons longln-
quos de urn piano, que se extinguem no ar perfumado e
silencioso ... Isto e urn suplicio.
[Pal /sa .]
TREPLIOV Cada vez mais me convenco de que a questao nao
consiste em formas novas e formas velhas, mas sim em que
a pessoa escreva sem pensar em formas, sejam quais forem,
que ela escreva porque isso flui l ivremente da sua alma.
[P olin a a pa ga a s uelas s ob re a m esa , e m s eg uid a e la e D a rn em pu r-
r am a c ad ei ra d e r od as . T od os s ae m p ela p or ta d a e sq ue rd a; n o p al co ,
r es ta a p en a s T r ep li ov , s en ta d o it escrivaninha.]
[ AI gu im b at e ajanela prox ima a escrivaninha.]
". iI,
I
TREPLIOV [ po e- se a e sc re ve r; p as sa a s olbos p elo q ue ja escreveu]
Eu, que falava tanto em forrnas novas, agora sinto que,
pouco a pouco, YOU tambem caindo na rotina. [Li] "Urn
cartaz na cerca apregoava ... Urn rosto palido, emolduradopor cabelos escuros ... " Apregoava, emoldurado ... Isto e
mediocre. [Risea] Vou comecar com 0 heroi acordando
com 0 barulho da chuva, e todo 0 resto vai para 0 lixo.
A descricao da noite de luar esta longa e rebuscada. Trigo-
rin desenvolveu algumas tecnicas para uso proprio e assim
ficou facil para de ... Basta escrever que 0gargalo de uma
garrafa quebrada cintila na beira de urn acude e que a
TREPLIOV Quem e? [Olha pe laj ane la ] Nao vejo nada ... [A br e a
p or ta d e oidro e o lh a p a ra aj ar di m ] Alguem desceu correndo
pela escada. [E1gue a voz] Quem esta ai? [Sai; ouuem-se sells
p a ss os l ig ei ro s , el a oaranda; apos meio minute, retorn a em
c om p an bi a d e N i na Z ar ie tc hn ai a] Nina! Nina!
[N ina abraca a ca beca d e T rep liov contra 0 pe ito e tenta a bafara s so l u ro s . ]
TRE L [ 'J ] N' IN' 1£' • • F'10\, comov lUO Ina, mao voce .. , voce. . . 01como
se eu tivesse urn pressentimento, minha alma ficou terri-
velmente aflita 0 dia todo, [Tom a de N ina se ll chape ll e seu
manto] Ah, minha querida, minha adorada, ela voltou!
Nao vamos chorar, nada de choro.
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 46/56
NINA Tern alguem aqui.
TREPLIOV Ninguem,
NINA Tranque as portas para que nao entrem.
TREPLIOV Ninguern vai entrar.
NINA Eu sei que Irina Nikolaievna esta aqui. Tranque asportas...
TREPLIOV [fe ch a a p orta d a d ire ita a cbaue , d i r ige - se a p or ta d a
esquerda] Esta nao tem tranca. Vou barrar a entrada com uma
poltrona. [ Po e um a p olt ro na e ne os ta da a porta] Nao tenha
medo, ninguem vai entrar.
NINA [ o lha f ix amen te para 0 ros to de l e] Deixe-rne olhar para voce.
.-----+'[OJha-em-voltaJ-Aqui.dentro-esta qlJente,_agIadml A D t e . s _ , ~ _
aqui ficava a sala de visitas. Mudei muito?
TREPLIOV Sim ... emagreceu, e seus olhos ficaram maiores.
Nina, nem acredito que eu esteja vendo voce. Por que nao
quis me receber? Por que nao veio antes? Eu sei que voce
esta aqui ja faz quase uma semana ... Fui todos os dias ate
onde voce esta hospedada, varias vezes por dia, me plantei
ernbaixo da sua janela, como urn mendigo.
NINA Eu tinha medo de que voce estivesse com odio de mim.
Sonho todas as noites que voce olha para mim e nao me
reconhece. Se voce soubesse! Desde a minha chegada,
carninhei muitas vezes por aqui ... na beira do lago. Quan-tas vezes estive perto da sua casa e nao me atrevi a entrar,
Vamos sentar.
[Sentam-se.]
NINA Vamos sentar e £lc~r conversando, conversando. Aqui e
agradavel, quente, acolhedor ... Escute ... e 0vento? Ha em
Turgueniev um trecho que diz: "feliz de quem, numa noite
como esta, tem um teto para se abrigar e um cantinho
aquecido". Eu sou uma gaivota ... Nao, nao e isso. [Egrega
a t e st a ] 0 que eu estava dizendo? Ah, sim... Turgueniev ...
"E que Deus proteja todos as desabrigados que vagam sem
rumo . .. " Nao e nada. [Solufa]
TREPLIOV Nina, voce esta de novo... Nina!
NINA Nao e nada, isso me alivia... J a fazia dois anos que eu nao
chorava. Ontem, tarde da noite, fui ao jardim, ver se 0
nosso teatro ainda estava de pe , E ele esta la ate hoje .
-Glwrei-pe:la-primeiTa--ve-r,-em-dui-s-anuS)e--m-e-senti:-aii~····--···
viada, minha alma ficou mais serena. Veja, ja nao estou
mais chorando. [Seg ura a m ao dele] Mas quer dizer que
voce agora ja e um escritor ... Voce e um escritor e eu, uma
atriz ... Caimos nos dois no mesmo r u r bi l h ao . .. Eu vivia
alegre, como uma crianca . .. acordava de manha e come-
cava a cantar; amava voce, sonhava com a gloria, e agora?
Amanha, bern cedo, part irei para Ielets , num vagao de ter-
ceira classe . .. junto com os camponeses, e em Ielets os
comerciantes que sejulgam instruidos VaG me importunar
com as suas atencoes, C2lIevida sordidal
TREPLIOV Para que voce vai a Ielets?NINA Assinei um contrato para 0 inverno inteiro. Esta na hora
de partir.
TREPLIOV Nina, eu amaldicoei voce, senti odio, rasguei suas car-
tas e fotografias, mas sabia 0 tempo todo que minha alma
estava ligada a sua, para sempre. Deixar de amar voce, Nina,
e uma coisa que esta alern de minhas forcas, Desde que per-
di voce e desde que meus textos comes:aram a ser publicados,
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 47/56
a vida para mim se tornou insuportavel, .. eu sofro . .. De
uma hora para outra, minha juventude foi como que arran-
cada a forca, e eu me sinto como seja t ivesse vivido noven-
ta anos neste mundo. Eu chamo 0 seu nome ern voz alta,
beijo a terra em que voce pisou; para onde quer que eu olhe,
aparece sempre 0 seu rosto, este sorriso carinhoso, que me
iluminava nos melhores anos da minha vida.. .
NINA [desconcertada] Para que ele esta falando isso, para que ele
esta falando isso?
TREPLIOV Estou sozinho, nenhum afeto me conforta, estou
frio, como num sub-rerrIDieo~etm:too--qm;esnevo-e--~TI>,
duro, sombrio. Fique aqui, Nina, eu implore, ou entao per-
mita que eu va com voce!
[ Ni na , r ap id am e nte , p oe 0 c ha pe u e o es te 0 manto .]
TREPLIOV Por que? Pelo amor de Deus, Nina ... [Obse rva ,
enquanto e l a s e a r r uma ; p au s a ]
NINA Meus cavalos estao a minha espera, na porteira. Nao me
acompanhe, irei sozinha .. . [ En tr e l dg ri ma s] Me de urn
pouco de agua . ..
TREPLIOV [d d d e beber a e la ] Para onde vai agora?
NINA Para a cidade.
[Pausa.]
NINA Irina Nikolaievna esta aqui?
TREPLIOV Esta .. . Na quinta-feira, titio nao passou bern, nos
telegrafamos para ela, pedindo que viesse.
< 94 >
NINA Por que voce disse que beijava a terra em que eu pisava?
o certo seria me assassinar. [ In cli na -s e s ob re a m e sa ] Estou
tao esgotada! Quem me dera poder descansar ... descansar!
[ Le va nt a a c ab ef a] Eu sou uma gaivota ... Nao, nao e isso.
Eu sou uma atriz. E isto! [Ouve 0 r is o d eA 1'k dd in a e d e T ri-
g o r in , p o e -s e a e sc uta , e m s eg uid a c or re a te a p o rta d a esquerda
e o lh a p el o b ur ac o d a f e ch ad ur a] Ele tambem esta aqui .
[ Vo lt a p a ra p er to d e T re pl io v] Ora ... Nao e nada ... Sim .Ele nao acreditava no teatro, sempre ria dos meus sonhos,
e assim, pouco a pouco, eu tambem fui deixando de acre-
ditare-catnumc:l~imo .. , Eenfao vleramasafh~oes 00-----
arnor,os ciumes, os receios incessantes com ° bebe . .. Eu me
tornei mesquinha, f ii ti l, representava de forma leviana ...
Nao sabia 0 que fazer corn as maos, nao sabia como me
postar no palco, nao dominava a minha voz. Voce nem
pode imaginar ° que e isso, urn ator perceber que esta
representando pessimamente. Eu sou uma gaivota. Nao,
nao e isso... Lembra que voce matou uma gaivota com urn
tiro? Urn homem chegou por acaso, viu uma gaivota e,por
pura falta do que fazer, matou a gaivota ... 0 tema para
urn pequeno conto. Mas nao e isso.. , [E sfr eg a a te sta c om a
m a o ] Do que eu estava falando? .. Falava sobre 0 teatro.
Agora nao sou mais assim ... Sou uma atriz de verda de,
represento com satisfacao, com entusiasmo, uma embria-
guez me domina no palco e eu me sinto linda. Agora,
enquanto estou aqui, caminho 0 tempo todo, caminho e
penso, 0 tempo todo, caminho e sinto que meu espirito se
torna mais forte a cada dia ... Agora eu sei, Kostia, agora
eu compreendo que no nosso trabalho, representando no
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 48/56
palco ou escrevendo, 0que importa nao e a gloria, nao e 0
esplendor, nao e aquilo com que eu tanto sonhava, mas sim
a capacidade de suportar. Aprenda a carregar a sua cruz e
acredite . Eu acredito e, assim, nem sofro tanto e, quando
penso na minha vocacao, nao sinto medo da vida.
TREPLIOV [ c om t r is t e za] Voce encontrou 0 seu caminho, sabe
para onde ir , enquanto eu continuo mergulhado no caos
dos devaneios e dasvisoes, sem saber para que e para quem
isso serve. Eu nao acredito e nao sei qual a minha vocacao,
NINA [ e scu tando a t en tament e ] Psss... Eu ja you. Adeus. Quando
eu me tornar uma grande atriz, venha me ver. Pro mete?
Mas agora [ Ap er ta a m a o d ele ] 1 a e tarde. Mal me aglien-
to em pe Estou exausta, sinto fome . ..
TREPLIOV Nao va embora, eu the trarei urn jantar . ..
NINA Nao, nao . .. Nao me acompanhe, eu irei sozinha ... Os
meus cavalos estao perto daqui ... Quer dizer que e1aveio
com ele? Ora, tanto faz. Quando estiver com Trigorin, nao
lhe conte nada Eu amo Trigorin. Eu 0 amo ainda mais
do que antes 0 tern a para urn pequeno conto ... Eu
amo, amo apaixonadamente, amo ate 0 desespero. Como
era born, nos ve1hos tempos, Kostia! Lembra? Que vida
radiante, afetuosa, alegre, pura, que sentimentos senti-mentos semelhantes a flores de1icadas, graciosas Lem-
bra? [Rec i ta] "Homens, leoes, aguias e perdizes, cervos de
gran des chifres, gansos, aranhas, peixes si lenciosos que
habitavam as aguas, estrelas do mar e criaturas que os
olhos nao eram capazes de ver - em suma, todas as vidas,
todas as vidas, todas as vidas, depois de concluirem seu
triste ciclo, se extinguiram ... Ha muitos milhares de anos
nao existe mais urna unica criatura viva sobre a terra e esta
pobre lua acende sua lantern a em vao. No prado, os grous
ja nao despertam com urn grito, nem se ouvem os bes;u-
ros nos bosques de tilias ... " [ Ab ra ra T re pl io v i mp et uo sa -
m en te eflge p ela po rta d e v id roJ
TREPLIOV [ ap os u m a p att sa ] Nao vai ser nada born se alguem
topar com ela no jardim e depois contar para mamae, 1550
pode deixar mamae transtornada ... [ D ur an te d o is m i nu te s,em sllenc io , e le ra sga to do s o s s eus m anu scra os e o s a tira em -
b aixo d a m es a, d ep ois d es tr an ca a p o rta d a d ir eita e s a i]
DORN [te nta nd o a br ir a p or ta d a e sq ue rd aJ Que estranho. Pare-
ce que ,a porta esta trancada. " [Entra e poe a p oltrona no
lugar] E como uma corrida de obstaculos,
[Entram Arkddina, P olina Andreievna, m ais Ic fkov , que traz
a lg um as g ar ra fa s, e M a ch a, e m s eg uid a C ha mr aie v e T rig or in .]
ARKADI~A Ponha 0 vinho tinto e a cerveja aqui na mesa, para
Bons Aleksieievitch. Vamos jogar e beber. Sentem-se,
senhores.
POLINA [ pa ra I dk ov ] Traga logo 0 cha, tambern, [ Ac en de a s
o e la s , s e nt a -s e it m e sa d e jo go ]
CHAMRAIEV [ le va T ri go rin a te 0 anndrio] Eis 0 objeto a respeito
do qual eu the falei hi pouco .. . [ Re ti ra d o a rm c fr io a g a iv o ta
empa lhada] A encomenda que 0 senhor me fez.
TRIGORIN [ ex aln in an do a g aiv ota ] Nao me lembro! [ De po is d e
p em a ]" u m p ou co ] Nao me lembro!
[A d ir e i t a d o p a lc o, o tt ve -s e 0 s om d e u m ti ro ; t od os s e s ob re ss alt am .]
< 97 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 49/56
ARKA.DINA [assustada] 0 que foi isso?
DORN Nao foi nada. Na certa estourou algum frascona minha
valise de remedies. Nao se preocupe. [ Sa i p ela p or ta d a d i-
re ita e v olta m eio m in uto d ep ois] Exatamente 0 que pensei.
Um frasco de eter estourou. [Cantarola] "De novo enfeiti-
cado estou diante de ti . .. "
ARKA.DINA [senta-se a mesa] Puxa, que susto levei. Isso me fez
lembrar 0dia em que [Cobre a r os to c om a s m a os ] Meus
olhos ate escureceram .
DORN [{olheando uma rev is ta , para Tr igor in] Uns dois meses arras,
saiu publicado aqui urn artigo . .. uma carta da America, e
eu gostaria de perguntar ao senhor, a respeito disso... [puxa
T rig orin p ela c in tu ra e 0 co nd uz p ara a frente d o p alc o] ...
pois estou muito interessado nesse assunto .. . [Em tom
grave, a m e ia v oz ] Leve Irina Nikolaievna embora daqui,
para qualquer lugar. A verdade e que Konstantin Gavrilo-
vitch se matou ...
UM PASSARO NA MAO Posfacio
[Cort ina.]
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 50/56
j
/
Numa carta de r892, Anton Tchekhov relatou: "0 pintor Levi-
tan esta passando uns dias no meu sit io. Ontem, ao entardecer,
eu e ele fomos a zona de cas:aas galinholas. Levitan disparou e
uma ave, ferida na asa, caiu num charco. Eu a levantei. Tinha
urn bico comprido, olhos grandes e pretos e uma plumagem
bonita. Olhava para nos, espantada. 0 que podiamos fazer?
Levitan franziu a testa, fechou os olhos e me suplicou, com voz
tremula: 'Por favor, esmague a cabeca dela com a coronha do
rifle.' Respondi que nao podia. Ele nao parava de sacudir os
ombros, nervoso, contraia 0 rosto e suplicava. A galinhola olha-
va para mim, espantada. Tive de obedecer a Levitan e mata-la,
E, enquanto dois imbecis voltavam para casa e sentavam-se
para jantar , havia uma criatura fascinante a menos no mundo."
Esse episodic ira ecoar na pes:a que Tchekhov escrevera
tres anos depois, em 1895 . No lugar da galinhola, uma gaivota:
alvejada por urn escri tor e empalhada par outro. Mas 0pressen-
timento da indole predatoria que assornbra a atividade doart ista e a inevitavel frieza com que 0 forte desfruta a fraco se
fazem presentes na pe<;acom a mesrna revolta impotente que
marca a recordacao anotada naquela carta .
"Estou escrevendo uma pe<;aque na certa nao terminarei
antes do fim de novembro. Nao posso negar que me agrada es-
creve-la, embora esteja obviamente desrespeitando as principios
elementares do teatro. A comedia tern tres papeis femininos,
. ... . . . . ~.- ,-
, '
i i
IDr. Tchekhov, medico rural emMelikhovo, 1892.
I
I
, I< 101 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 51/56
seis masculinos, quatro atos, uma paisagem (uma vista para um
lago), muita conversa sobre literatura, pouca acao e cinco arro-
bas de amor." Assim T chekhov, numa carta de 21de outubro de
1895, deu noticia de sua pec;:aA gaivota. Cinco dias depois,
esereveu para outra pessoa: "Terminei minha pec;:a.Nao e nada
demais. No conjunto, dir ia que sou um dramaturgo mediocre".
Mas parece que a reescreveu e, no dia zr de novembro, em
outra carta, registrou: "Terminei minha pec;:a.A despeito detodas as regras da arte drarnatica, eu a comecei forte e acabei
pianissimo [... J . Estou antes de tudo insatisfeito e vejo que nao
sou de forma alguma dramaturgo". Tchekhov enviou 0manus-
crito para 0 amigo e pediu: "Nao mostre para nin~e~". Con-
tinuou a reeserever e s6 em julho de r896 mandou 0 texto final
para a aprovacao da censura.
A gaivota foi a primeira pec;:aa que Tchekhov eonseguiu
dar uma feicao equivalente ao modo como.ja havia algum tem-
po, construia seus contos. Suas primeiras obras para 0 teatro
foram eurtas e humorist icas. Duas tentativas mais ambiciosas,
Ivanov e 0demonic daf l o r e s t a , 0 frustraram e atrairam criticas.
Nao foi diferente 0 destino de A gaivota, pelo menos em sua
primeira apresentacao, na noite de 17 de outubro de r896, em
Sao Petersburgo. A plateia vaiou, gri tou, zombou dos atores em
cena, alguns espectadores levantaram-se para conversar aos
brados. Tchekhov assistiu aos dois primeiros atos e depois se
refugiou nos bastidores. Ao fim do primeiro ato, jornalistas e
criticos de teatro correram ao bar e exc1amavam: "Onde esta a
acao?", "Ele esta acabado", "Perdeu 0 talento", " E tudo tao insi-
pido". E os jornais da manha seguinte, em eoro, publicaram
criticas asperas.
Por mais que isso 0 tenha abalado, Tchekhov nao foi apa-
nhado de surpresa. Numa carta escrita poucos dias antes da
estreia, ja registrara sua apreensao e ate relatara um pesadelo:
"casam-me com uma mulher que nao amo e sou insultado nos
jornais".O escritor vinha acompanhando os ensaios apressados
e caira em desanimo, ante 0desempenho dos atores. Alem disso,
Tchekhov sabia nao contar com muita simpatia nos meios lite-
rarios de Sao Petersburgo. 0 ambiente pretensioso da capitalquase sempre 0 aborrecera e 0 animo poueo sociavel demons-
trado por T chekhov em suas estadas na cidade havia de ixado
um rastro de ressentimento, "Meus amigos e conhecidos de
Petersburgo estao aborrecidos comigo? [... J Pois que fiquem",
escreveu numa carta em 1890. E, urn ana depois, descreveu
Agaivota, primeiro ato, na estreia em Sao Petersburgo, 1896.
< I02 > (103 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 52/56
, I
Charge de epoca : "Agaivo ta nas
garras cia decadencia", 1896.
deixar um bilhete para 0amigo em cuja casa estava hospedado:
"Nunc a mais escreverei outra peca", Este amigo, mas depois, 0
censurou pela sua partida precipitada eTchekhov assim se ex-
plicou: ''Agi com a sensatez e a frieza de um homem que apre-
sentou urn pedido de casamento e foi recusado [ ... J . Quando
cheguei a minha casa, bebi 6leo de ricino, tomei urn banho de
agua fria e agora estou pronto para escrever outra peca".
Antes de ser retirada de cartaz, A gaivota teve mais oito
apresentacoes em Sao Petersburgo, diante de um publico mais
apropriado. As noticias que chegaram a Tchekhov davam con-
ta da boa recepcao do espetaculo, mas nada disso alcancou os
nestes term os uma nova visita a capital: "Eu me vi cercado por
uma atmosfera de absurda e indefinfvel rna vontade [ .. . J . Eles
me entopem com jantares, me cobrem de elogios triviais e ao
mesmo tempo gostariam de me comer vivo [... J. Nao sao
gente, mas algum tipo de mofo ambulante".
Porern a causa imediata do fracasso da primeira montagem
pode ter sido algo mais simples. Vigorava, na epoca, a tradicao
de dedicar a estreia em beneficio de urn ator famoso. As vezes,
nessas ocasioes, duas pes:as eram encenadas na mesma noite eassim aconteceu a I7 de outubro. A homenageada foi a atriz
c6mica Levkeieva, que entraria em cena numa comedia apos a
apresentacao deAgaivota. A plateia, em sua maior parte [or-
mada por admiradores de Levkeieva, estava ansiosa para rir de
suas personagens burlescas.
o fiasco da estreia deA gaivota levou T chekhov a partir
de Sao Petersburgo bern cedo na manha seguinte, depois deCharge de epoca : "Caca it
gaivota", 1896.
< 104 > < 105 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 53/56
'I
Em vez de faze r soa r 0 coaxar
dos sapos na cena da pe~a de
Trepliov, Nemir6vitch-
Diintchenko preferia "0 com-
pleto e enigmatico silencio",
Konstantin Stanislavski:
Tchekhov reprovou su a
ideia de trazer para 0 palco
urn grupo de maes e c rian-
cas chorosas, na cena final
do terceiro ato.
jornais e a pessima impressao da estreia nao se desfez. Embora
Tchekhov nao autorizasse a montagem da pes:a nas principais
cidades do pais, A gaivota foi representada por companhias
modestas, em Kiev, Odessa e em varias provincias do imperio
russo, com boa repercussao, e houve ate uma montagem em
Praga, numa traducao para 0 tcheco. Desse modo, quando apes:a afinal chegou a Moscou, em I 898 , por iniciativa do recern-
criado Teatro de Arte de Moscou, os comentarios em favor da
obra ja vinham se acumulando gradualmente.
Coube ao ator e diretor Nernirovitch-Dantchenko dobrar
a resistencia de Tchekhov, apes 0 fiasco de 1 8 96 , e convence-lo
a ceder a pes:a a sua companhia: "Eu the asseguro, voce nao en-
contrara urn diretor que 0 idolatre mais ou uma companhia que
o admire mais". Coube tambern a ele, mais afeito a obra de
Tchekhov, orienta! os companheiros na montagem dessa pes:a
que exigia uma producao, conforme insistia Dantchenko, "livre
de toda rotina". Konstantin Stanislavski, tambern diretor da
nova companhia, representou 0papel de Trig6rin, enquanto 0
jovem Meierhold representou 0 papel de Trepliov. A atrizOlga Knipper, futura esposa de Tchekhov, coube 0 papel de
Irina Nikolaievna.
o exito nao poderia ter sido rnaior e abriu caminho para 0
talento renovador desses art istas, que viriam a deixar sua marca
no teatro do seculo xx. Tchekhov, de fato, se empolgou com 0
grupo de atores, cujos ensaios por vezes presenciou. Mas adver-
tia a Stanislavski que Trig6rin devia usar urn sapato furado,
< I06 > < 107>
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 54/56
, J U~-I.n J~"n~ I.M ~ . 1eu..
~~~~~~~~=::~£~~;'~J:~~:':"A;:~~.=-1!t~r:S. , " ~ ~. ft n."...... t I. " " ~ ~. J " . " . ·.L",,__ r ., .. ., .. .. _· · · . . .. .. . _
!••. K. C. CtuIlCAltidl. &tB b lI pO • ...,,·!"nuno
H a ' t a J l ; t ; ; iR
{ ~ . . ' ; ' ; 0 - ; ; ili~.O"II.~a. 3 a nl te n w iR C I I I II n ip s OI n p eA C T ll ll ll li a . ap U bi M " ai lk a -, G A a fl lB O A ll li o_ n on Y '! 1 IU 6 1 11 1 '
lbl. ll.o4·XlI'f lC.Cp!,Ilbl.16-roJlOtll6pl.noclit 'lerOIlKlaOCTItfliIOTltI1tllO'4ylllnp_. , .
B'L nJITB l l l t y . Itl.f.' ;\t ' ltliOPII, W )R. w - tlJj nB T PI J D U f T H K t rU tL r " " " i t A .a nA.
I . I: I >HA . l .I 13CTAM' I> OBb lRHOBEHHA .H .L'are30Tl ip lmmJ()* !3I" ,YTpa ;108q3( , lmf lS ,
r~,\,.~~·~""..e.1~It C. C I I IAc ~ ~K l1 . "" " 1.,..,,11.;-' Ia. H. HCIpmrD a-1IO
Cartaz da estr eia de
.A gaivota na encenacao do
Teatro de Arte de Moscou,
dezembro de 1898 .
vestir calca xadrez e fumar urn charuto fedorento, em vez de
mostrar-se como urn dandi. 0 dramaturgo tambern reprovou a
concepcao de Stanislavski para 0final do terceiro ate - a ' cena
da despedida -, em que 0 diretor imaginara trazer para 0 palco
urn grupo de rnaes e criancas chorosas. No geral, Tchekhov
insistia em que os atores evitassem toda enfase sentimental.
Isso talvez ajude a esclarecer uma duvida frequente entre os
seus leitores: a rubrica que Tchekhov acrescentou ao titulo da
pes:a - "comed ia " ,
Afinal, sao raros os momentos de riso ou de mera alegria
em Agaivota, ao passo que nao faltam, para os personagens,
motivos para tristeza ou mesmo para 0desespero. 0 problema
pode se tomar compreensfvel se lembrarmos que a nocao rigo-
rosa de cornedia equivale menos ao riso do que ao estilo baixo -
em contraste com 0estilo elevado, da tragedia. Tchekhov negava
credito aos ideais alcados alern da medida do cotidiano e da vi-
da comum. Nao pretendia por em cena genios, her6is ou marti-
res desses ideais, nem os viloes que por forca os acompanham.
Em vez de fazer soar, no palco, falas graves a todo instante em
meio a uma sucessao de acontecimentos terriveis, Tchekhov ima-
ginara personagens que comentavam 0 calor, 0 frio ou as doen-
cas, calavam-se por falta de assunto e pouco agiam em umahistoria quase desprovida de acontecimentos. Pois assim a vida
se mostrava, na maior parte do tempo, aos seus olhos.
A rigor, em Agaivota, h:i antes coisas que nfio acontecem,
em urn enredo que parece nao caminhar para parte alguma. No
entanto, entre dialogos triviais, aspiracoes e desavericas corri-
queiras, apenas rompidas por reflexoes nada idealizadas sobre a
atividade do artista, uma crise obscura se avoluma pouco a pouco.
» ~ ! ~ ~ ~ ~ W H K... 'teTBepr-., .7-ro AeHsllpRJ
'I A M - i I A
Agaivota, segundo ato, 1898 .
< 109 >
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 55/56
Urn desajuste sutil impede que ospersonagens entendam uns aos
outros e subtrai de cada urn a compreensao do que eles mesmos
desejam e pensam. Esse desajuste e essa crise fazem asvezes de
uma estrutura para a pes:a,soldam aspartes que parecerna deri-
va. Ao mesmo tempo, perrnitem pressentir 0 que hi subjacente
as camadas de banalidade e de frustracao,
Em uma cornposicao desse tipo, mesmo que sobrevenha
ao final urn acontecimento de imp acto - como e0
easo emA gaivota -, nao havera urn desfecho propriamente dito. Tal
acontecimento, por mais dramatico que pares:a, por mais sofri-
~ imento que concentre em si, nao representa nem solucao, nem
" desvelamento, nem catarse. 0 espectador subentende que a
mesma crise e 0mesmo desajuste prosseguirao intactos e ape-
nas se agravarao na vida futura dos personagens.
Agaivota foi a primeira das quatro pes:as que Tchekhov
esereveria ate 1904 e que 0 tornaram urn classico do teatro.
Reune, mais do que as outras, as reflexoes Iiterarias do autor,
em especial no tocante a degradacao do impulso eriador do
art ista , quando se integra ao curso da sociedade. Os dois escri-
tores e as duas atrizes que formam 0 nucleo dos personagens
configuram um movimento de eontrastes, ao qual no entanto
falta urn eixo, ou qualquer ponto de apoio constante. Nenhum
deles tern urn modelo em que confiar, nem urn caminho por
onde fugir.
Tchekhov inseriu no primeiro ate uma pequena pes:aden-
tro da sua pes:a, em urn esquema que alude a Hamlet. Reforcou
essa alusao nos dialogos entre Trepliov e sua mae, uma atriz
famosa, com caprichos de rainha. A linguagem usada na pes:a
dentro da pes:a nos parece estranha, mas representa, demaneira
algo deformada, uma alusao a poetica simbolista, que se intro-
duzira pouco tempo antes na Russia e causava certa sensacao.
A mae de Trepliov classifica a obra do fi1ho de "decadente",
termo usado entao de forma rotineira para desdenhar das
obras simbolistas. Liev Tolst6i , par sua vez, tambern classif i-
cou A gaivota de decadente. Assim, sem notar , com uma unica
palavra, ergueu urn tablado sob os proprios pes e transformou
a si, mas tarnbern a nos, em personagens de uma outra pes:a.Por sinal, a mesma a que ainda assistimos.
Rubens Figueiredo
(lID) < III )
5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 56/56