56

A Gaivota Tchecov

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 1/56

 

Tchekhov em Moscou, 1897. Foto de Alieksandr Tchekhov.

Anton Tchekhov

A GAIVOTA

T r a du fa o e p o s fa c io

Rubens Figueiredo

Cosac & Naify

2.et lC- !

Page 2: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 2/56

 

A GAIVOTA C am ed ia e m q ua tro a to s

PERSONAGENS

Esboco de Stanislavski para 0primeiro ato.

-------------------------------------------------------------~--------~I~~NA~~K~A~~¥~-ARK~~~F~aova~msdeauBdu

KONSTANTIN GAVRILOVITCH TREPLIOV seujilho,jqvem

PIOTR NIKOLAIEVITCH SORIN i rmdo dela

NINAMIKHAILOVNA ZARIETCHNAIA mO fa ,j il ha d e u ? "' lr ic o

p ro pr ie ta ri o d e t er ra s

ILIA AFANASSIEVITCH CHAMRAIEV t e nen te r e fo rmado ,

a dm in ls tr ad or a s er oito d e Sarin

POLINA ANDREIEVNA s ua e sp os a

MACHA sua j i lha

BORIS ALEKS:EIEVITCH TRIGORIN escritor

IEVGUENI SIERGUEIEVITCH DORN medico

SIEl\lION SIEMIONOVITCH MIEDVIEDIENKO professor

IAKOY t rabalbador

COZINHEIRO

CRIADA

-1 - , . ; : - , - , ' t - c ' _ - v , - - . - , ~ - , _ ::=JI _

A a~ao s e pass a na propr~~e ~e Sorin, Entre 0 terceiro e 0 quarto

ato, hi urn intervalo e O l s ' - i i 1 O s : - -09 I~.,,-,( .-

IJ

Page 3: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 3/56

 

PRIMEIRO ATO

Urn trecho do parque na fazenda de Sarin. Urnaalameda lar-

ga , que parte da plateia e ent ra pelo parque, rumo a urn lago,

esta parc ia lmente encoberta por urn tablado constru ido as

pressas a fim de servir a apresentacao de urn espetaculo teatral

dornest ico, de modo que nao e possivel ver 0 lago. Hi arbus-

tos a direita e a esquerda do tablado.

Algumas cadeiras, uma mesinha.

Agaivota encenada peloTeatro deArte deMoscou. Primeiro ate: Sarin

(V . V.Lujski),Trepliov (V.E. Meierhold), Nina (M. L.Roksanova). o sol acabade§.e_p..or.No tablado, atras da cortina baixada, estao~ " , ~, , , . . _ ." ~ , ," . ., . ,. , _~ < . , .'

Iakov e outros trabalhadores; som de tosse e marreladas. Macha

e Miedviedienko entram a esquerda, de volta de urn passeio.

Page 4: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 4/56

 

MIEDVIEDIENKO Por que a senhorita anda sempre de preto?

MACHA Estou de luto pela minha vida. Sou infeliz .

MIEDVIEDIENKO Por que? [ Com a rpe n sa t iv o ] Nao entendo ...

A senhorita e saudavel, e seu pai, embora nao seja rico,tern uma situacao bastante confortavel, A vida para mim e

bern mais dificil do que para a senhorita. Ganho apenas

vinte e tres rublos por mes, uma parte ainda e descontada

para 0 fundo de pensao, e nem por isso ando de luto.

[ Se nt am - se . ]

MACHA A questao nao e 0 dinheiro. Mesmo urn pobre pode

ser feliz.

MIEDVIEDIENKO S6 na teoria, pois na pratica a situacao e a

seguinte: eu, minha mae, duas irrnas, um irmao pequeno e

um salario de apenas vinte e tres rublos. Por acaso nao te-

mos de comer e beber? Nao precisamos de chi e acucar?

E 0 tabaco? Nao hicomo dar jeito nisso.

MACHA [ o /h a nd o p a ra a t ab /a d o] 0 espetaculo vai come<;ar daqui

a pouco.

MIEDVIEDIENKO Sim. Zarietchnaia vai se apresentar e a pe<;a

e uma obra de Konstantin Gavrilovitch. Os dois estao

apaixonados e hoje suas almas vao se unir na aspiracao de

criar uma representacao artfstica unica. Mas entre a minha

Page 5: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 5/56

 

alma e a sua nao existem pontos de contato. Amo a se- me sinto abatido, e como se vivesse num pesadelo, no fim

nhorita e, de tanta saudade, nao consigo ficar em casa, das contas ...

percorro seis verstas ape todos os dias para vir aqui, outras TREPLIOV De fate, seria melhor voce morar na cidade. [V e

seis para voltar e, da sua parte, s6 encontro indiferenca, Mac ha e M i ed v ie d ie nk o J Senhores, serao chamados quando

Mas eu compreendo. Tenho poucos recursos, minha fami- a pec;a comecar, mas agora nao podem ficar aqui. Vao

lia e grande ... Qpal mulher vai querer urn homem que embora, por gentileza.

mal consegue ter 0 que comer? SORIN [ pa ra Ma c ha ] Maria Ilinitchna, tenha a gentileza de pe-

MACHA Bobagem. [ A sp ir a r ap e ] 0 seu amor me comove, mas dir ao seu paizinho que mande soltar 0 cachorro para e1e

nao consigo corresponder, s6 isso. [O fe re ce a e le a c a ix in h a d e parar de latir. Minha irma passou outra vez a noite inteira

rape] Sirva-se. sem dormir.

--~·---1MvIlEfWTE1)'I-:EN-K-erNa-o--es-t-ou-eem--v(mtadee.:----------------t----------'M*eH-A---Fa±e--e--senh-e-r--m-es-mo-eom-metl.-pai,--eti--n.~lar.:__--

Por favor, me dispense disso. [Para Miedv iedienko] Vamos!

MIEDVIEDIENKO [ pam T re p li ov ] Entao, antes que a pec;acome-

ce, 0 senhor mande alguern nos chamar.

[Pausa.]

MACHA Esta abafado, deve cair uma tempestade esta noite.

o senhor esta sempre filosofando ou falando de dinhei-

rooPara 0 senhor, nao existe infelicidade maior do que a

pobreza, enquanto para mim emil vezes mais facil vestir

andrajos e pedir esmolas do que ... Mas 0 senhor nao

compreende isso...

[ Sa em o s d o i s. ]

SORIN [ ap o ia nd o -s e n a b en ga la ] No campo, meu caro, nao me

sinto a vontade e, sem duvida alguma, nunca vou me habi-

tuar a isto. Ontem fui deitar as dez horas e hoje de manha

acordei as nove com a sensacao de que, de tanto dormir,

meu cerebro havia grudado no cranio. [Ri ] Depois do

almoco, para minha surpresa, cai no sono de novo, e agora

SORIN Oyer dizer que, mais uma vez, 0cachorro vai ficar latin-

do a noite inteira. Esta vendo s6? No campo, nunca vivo do

jeito que quero. Antigamente, me davarn vinte e oito dias

de folga e eu vinha para ca, para descansar, mas aqui me

aborreciam com tantas coisas absurdas que, desde 0 pri-

meiro dia, minha vontade era ir embora. [Ri] Eu sempre

me sentia contente de ir embora daqui ... Mas agora estou

aposentado e, no fim das contas, nao tenho outro lugar

para ficar, Bern ou mal, vou vivendo ...

IAKOV Vamos tomar banho, Konstantin Gavrilitch.

TREPLIOV Muito bern, mas estejam em seus lugares daqui a dez

minutos. [O lha par a 0 relagio] Cornecaremos daqui a pouco.

[ Sa rin e T re pl io v e nt ra m p el a d ir ei ta .]

c ro » (II)

Page 6: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 6/56

 

IAKOV [para Trep li ov] Pode deixar. [Sai]

TREPLIOV [ o lh ando d e r e la n ce pa ra 0 tablado] Isto sim e urn tea-

tro. A cortina, depois 0 primeiro bastidor, 0 segundo basti-

dor e, em seguida, 0espas:ovazio. Nenhum cenario, A vista

se abre direto para olago e para 0horizonte. Levantaremos

a cortina exatamente as oito e meia, quando a lua surgir.

SORIN Excelente.

TREPLIOV Se Zarietchnaia se atrasar, 0 efeito estara perdido,

e claro. J a era hora de ela estar aqui. 0pai e a madrasta a

controlam muito e,para ela, sair de casa e tao diflcil como

sair de uma prisao. [A jeita a gravata do tio] Sua barba e

seu cabelo estao muito compridos. Seria melhor aparar

urn pouco, nao acha?

SORIN [ pe nte an do a b ar ba ] Esta e a tragedia da minha vida.

Na mocidade, eu tinha sempre 0aspecto de urn beberrao,

voce nem imagina. As mulheres jamais gostaram de mim.

[Senta-se] Por que minha irma anda de mau humor?

TREPLIOV Por que? Esta entediada. [ Se nt a- se a se u lado] Sente

ciumes, J a esta ate contra mim, contra 0 espetaculo e

contra a minha pe<;a,porque nao e ela que vai represen-

tar, e sim Zarietchnaia. Nem conhece a minha pe<;amas

ja a odeia.

SORIN [ri] Voce esta imaginando coisas, francamente ...

TREPLIOV Ela ja esta aborrecida porque, nesse palco minus-

culo, Zarietchnaia vai brilhar, e nao ela. [Olha para 0 re16gio]

Minha mae e urn caso psicologico muito curioso. Uma

muIher de urn talento inegavel , intel igente, capaz de cho-

rar sobre as paginas de urn livro e repetir de cor todos os

versos de Niekrassov; cuida dos doentes como urn anjo;

mas experimenteelogiar Duse diante dela para ver 0que

acontece. Ah! S6 se pode elogiar a eia e a mais ninguem,

so se pode escrever sobre ela e aclama-la e se entusiasmar

com a sua extraordinaria interpretacao em A dama das

camelias ou em 0 enleoo d a v id a, mas como aqui no campo

nao existe esse sedativo, ela se aborrece e se irri ta , e todos

nos viramos seus inimigos, todos nos somos culpados.

Alern disso, e supersticiosa, tern medo de tres velas acesas

e do mimero treze. : I t avarenta. No banco, em Odessa, tern

guardados setenta mil rublos, sei disso com absoluta certe-

za. Mas tente pedir urn emprestimo e vai ver como na

mesma hora eia se poe a chorar.

SORIN Voce imaginou que sua pes:a nao ira agradar a sua mae

e logo ficou alvorocado. Acalme-se, sua mae tern adoracao

por voce.

TREPUOY [ ar ra n c an do a s pi ta la s d e um a fl or ] Bern me quer, mal

me quer, bern me quer, mal me quer, bern me quer, mal me

quer. [Ri] Esta vendo? Minha mae nao me ama. E nao e

de admirar! Ela quer viver,amar, vestir blusas de cores vis-

tosas, mas eu j a tenho vinte e cinco anos e, 0 tempo todo,

a faco lembrar que nfio e mais jovem. Quando nao estou

presente, mamae tern so trinta e dois anos mas, ao meu

Iado, tern quarenta e tres e por isso me odeia. Ela tambern

sabe que eu nao tenho grande consideracao pelo teatro.

Ela ama 0 teatro e Ihe parece que, com isso, presta urn

grande service a humanidade, a arte sagrada, mas para

mim 0 teatro contemporaneo nao passa de rotina e su-

perst icao. Quando a cort ina sobe e, a luz da noite, entre as

tres paredes, esses talentos formidaveis, os sacerdotes da

< 12 > < 13 >

Page 7: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 7/56

 

arte sagrada, representam como as pessoas comem, be-

bern, amam, andam, vestem seus casacos; quando, das

cenas e das frases mais banais, tentam desencavar uma

moral - pequenina, facil de entender, util para fins

domesticos; quando, em mil variantes, me apresentam

sempre a mesma coisa, a mesma coisa e a mesma coisa,

entao eu fujo correndo, como Maupassant fugia da torre

Eiffel, que lhe oprimia 0 cerebro com sua vulgaridade.

SORIN E impossfvel viver sern 0 teatro.

TREPLIOV Precisamos de formas novas. Formas novas sao in-

dispensaveis e, se nao exist irem, entao e melhor que nao

haja nada. [ O lh a p ar a 0 relagio] Amo minha mae, amo de

todo coracao; mas e1avive de urn modo absurdo, sempre as

voltas com esse literato, 0nome dela aparece toda hora nos

jornais, e isso me aborrece. As vezes, 0 egoismo do mais

comum dos mortais toma conta de mimi sinto magoa por

minha mae ser uma atriz famosa e tenho a irnpressao de

que eu seria mais feliz se ela Fosse uma mulher comum.

Tio, me diga que situacao poderia ser mais desesperadora

e mais tola: asvezes, na companhia de minha mae, hiuma

multidao de ce1ebridades, artistas e escritores, e entre eles

so eu nfio sou nada, todos 56 me aturam porque sou filho

dela. Quem sou? 0 que sou? Tive de deixar a faculdade no

terceiro ano, por circunstancias independentes da minha

vontade, como costumam dizer, nao tenho nenhum talen-

to, nenhum centavo no bolso e, segundo a minha carteira

de identidade, nao passo de urn pequeno-burgues de Kiev.

Tambern 0meu pai foi urn pequeno-burgues de Kiev,em-

bora tenha sido urn ator famoso. Entao, quando todos

aqueles artistas e escritores reunidos no salao de visi tas da

minha mae se dignavam a me dar atencao, eu tinha a im-

pressao de que, com seus olhares, eles mediam a 'minha

insignificancia. . . Eu adivinhava os pensamentos dessa

gente e a humilhacao me fazia sofrer . ..

SORIN A proposito, me explique, por favor, que tipo de ho-

mem e esse escritor? Eu nao 0 entendo. Vive calado.

TREPLIOV Urn homem inteligente, simples, urn pouquinho

melanc6lico, voce sabe como e.Muito honesto. Ainda esta

longe dos quarenta anos, mas ja e famoso e se sente farto

da vida... Com relacao ao que ele escreve.. . como posso lhe

dizer? Tern beleza, tern talento ... Mas ... depois de Tolstoi

ou de Zola, nao da vontade de ler Trig6rin.

SORIN Pois quanto a mim, meu caro, adoro escri tores. No passa-

do, eu desejava apaixonadamente duas coisas: casar e ser urn

escri tor , mas nao consegui nem uma coisa nem outra. Pois e .

No fim das contas, ate ser urn escri tor menor e agradavel .

TREPLIOV [p on do -s e a ouoir c om a te n faO] Ouco passos ... [Abrara

o t io ] Nao posso viver sem e1a... Ate 0som dos seus passos e

bonito ... Fico louco de felicidade. [ V a i a s p r es sa s a o e nc on tr o

de N ina Z arie tcbnaia, que entra] Feiticeira, meu sonho ...

NINA [emocionadaJ Nao cheguei atrasada .. . Sei que nao estou

atrasada, estou?

TREPLIOV [ be ija nd o a s mdos dela] Nao, nao, nao ...

NINA Fiquei agitada 0 dia inteiro, senti tanto medo! Tive medo

de que papai nao me deixasse vir ... Mas ele saiu com minha

madrasta. 0 ceu esta vermelho, a lua ja esta cornecando

a subir e eu fiz meu cavalo correr e correr tanto! [Ri] Mas

estou contente. [A perta com f orfa a m ao de Sarin]

(IS>

Page 8: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 8/56

 

SORIN [Ri] Seus olhinhos parecem ter chorado ... Ora, ora!

Isso nao e born!

NINA Nao foi nada .. . Vejam, estou ate sem folego. Tenho de

voltar daqui a meia hora, precisamos nos apressar. Nao

posso, nao posso, nao me detenham, pelo amor de Deus.

Papai nao sabe que estou aqui.

TREPLIOV Na verdade.ji e hora de comecar, Temos de chamar

a todos.

SORIN Eu YOUbused-los. Num minuto. [Seguepara a direita e

canta] "Dois granadeiros foram para a Franca ... " [O lhapara

tras] Uma vez cantei assim e urn colega procurador me

disse: "Vossa Excelencia tern a voz possante ... " Depois pen-

sou urn pouco e acrescentou: "Mas ... enjoativa". [R i e sail

NINA Papai e sua esposa nao me deixam vir para c a . Dizern

que aqui s6 ha boernios Eles tern medo de que eu acabe

me tornando uma atriz Mas eu me sinto atraida para ca,

para 0lago, como uma gaivota ... Meu coracao e todo seu.

[O lh a p a ra t ra s]

TREPLIOV Estamos sozinhos.

NINA Parece que tern alguem hi. . .

TREPLIOV Nao hi ninguern. [Beijam-se]

NINA Qpe more e esta?

TREPLIOV Urn olmo.

NINA Por que esta tao escuro?

TREPLIOV Ja esta anoitecendo, todas as coisas fieam escuras.

Nao va embora tao cedo, eu imploro.

NINA E impossfvel.

TREPLIOV E se eu tarnbern for a sua casa, Nina? Vou ficar no

jardim a noite inteira e olhar para a sua janela.

NINA E impossivel. 0 cao de guarda iria perceber. Tresor ainda

nao esta habituado com voce e iria comes:ar a latir.

TREPLIOV Arno voce.

NINA Psss ...

TREPLIOV [ ouv indo pass o s] Quem esta ai? E voce, Iakov?

IAKOV [ a tr a s do t abl ado] Sim, senhor.

TREPLIOV Tomem seuslugares. Esta na hora. A lua esta subindo?

IAKOV Sim, senhor.

TREPLIOV 0 alcool esta ai? 0 enxofre tambern? Qpando apare-cerem os olhos vermelhos, tern de haver urn cheiro de enxo-

fre. [ Pa ra N in a ] Va, ja esta tudo preparado. Esta nervosa? ..

NINA Sim, muito. Sua mae Nao, dela eu nao receio nada,

mas Trig6rin esta aqui Tenho medo e vergonha de re-

presentar diante dele... Urn escritor famoso ... E jovem?

TREPLIOV E.NINA Como os contos dele sao maravilhosos!

TREPLIOV [comfrieza] Nao sei, nunca Ii.

NINA E diffcil representar a pe<;a que voce escreveu. Nso tern

personagens VlVOS.

TREPLIOV Personagens vivos! Nao se deve representar a vida do

jeito que ela e , nem do jeito que devia ser, mas sim como ela

se apresenta nos sonhos.

NINA Na sua pe<;ahi pouca acao, e s6 declamacao, do inicio ao

fim. E, para mim, uma pes:a precisa ter amor .. .

[ Saem par trds do tab/ado. Entrant Po li n a r ln d re ie u na e D a rn .]

POLINA Esta ficando umido. Volte e cake as galochas.

DORN Estou com calor.

Page 9: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 9/56

 

POLINA 0 senhor nao se cuida direito. E pura teimosia, 0 se-

nhor e medico e sabemuito bern que 0ar timido Ibefaz mal,

mas insiste nisso so para me fazer sofrer, Ontem,o senhor

passou a noite inteira sentado na varanda, de propOsito...

DORN [cantarala] "Nao diga que a mocidade esta perdida."

POLINA 0 senhor ficou tao empolgado com a conversa com

Irina Nikolaievna .. . que nem notou 0 frio. Confesse que

gostou dela.

DORN Tenho cinquenta e cinco anos.

POLINA Deixe disso: para urn homem, isso nao e velhice.

o senhor esta esplendidamente conservado e ainda agra-

da as mulheres.

DORN Mas o que a senhora quer dizer, afinal?

POLINA Diante de uma atriz, todos voces estao sempre dispos-

tos a ficar de joe1hos. Todos!

DORN [cantarala] "Estou de novo diante de ti . .. " Seos atores

sao admirados na sociedade e recebem urn tratamento d~fe-

rente do que se dispensa, por exemplo, aos comerciantes,

isso e perfeitamente natural. E 0 idealismo.

POLINA As mulheres sempre se apaixonavam pelo senhor e se

atiravam nos seus braces. Isso tambem era idealismo?

DORN [ da nd a d e ambr os ] Ora! Havia muita coisa boanas aten-

<;6esque as mulheres me dedicavam. Em mim, elssestima-

yam sobretudo 0medico competente. Uns dez ... 0Iiquinze

anos arras, a senhora se lembra, eu era 0 unico obstetra

capaz em toda a provincia. Alem do mais, sempre fu i urn

homem honrado.

POLINA [ se g ur a a ma o d e le ] Meu querido!

DORN Fale baixo, vern gente.

[ En tr am A rk dd in a e S ar in d e b ra ce s d a do s, T ri ga ri n, C h am r aie v,

M i e do ie d ie nk o eM a c ha .]

CHAMRAIEV Em 1873, na feira de Poltava, ela representou de

forma magnifica. Uma maravilha! Urn milagre! [ParaArkd-

dina] Por acaso a senhora nao sabe por onde anda agora 0

cornice Pavel Siernionitch Tchadin? Ele era incomparavel

no papel de Raspliuiev, melhor do que Sadovski, eu juro,

minha cara. Por onde ele anda agora?

ARKADINA 0 senhor sempre pergunta a respeito dessas pessoas

antediluvianas. Como YOU saber? [Senta-se]

CHAMRAIEV [suspira] Pachka Tchadin! Nao existem mais ato-

res como ele! 0 teatro entrou em decadencia, Irina Niko-

laievna! Antigamente, havia carvalhos grandiosos; hoje, so

vemos uns toquinhos de arvore.

DORN Hoje hi poucos talentos brilhantes, e verdade, mas 0

niveldos atores medianos melhorou muito.

CHAMRAIEV Nao posso concordar com 0 senhor. Alias, esta e

uma questao de gosto. D e g us ti bu s a ut b en e, a ut n ih if .1

[ Tr ep lio v e nt ra , v in do d e trds do tab lado .]

ARKADINA [para 0j i lho] Meu filho querido, quando a pe<;avai

comecar?

TREPLIOV Num minuto. Tenha paciencia.

I Em latim no original:"Sabre 0gosto, fale-se bern ou nada se fale". 0 per-

sonagem mistura dois prover-bios:"sabre 0 gosto, nao se discute" e "sabre as

mortos, fale-se bern au nada se fale". ( N . T . ]

< 19 >

Page 10: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 10/56

 

ARKADINA [recita um trechodeHamlet] "Meu filho, Hamlet!Tu" "

fizeste meus olhos sevoltarem para dentro da minhaalma

e eu a descobri tao coberta de sangue e de chagas murtais

que nao pode mais haver salvacaol"

TREPLIOV ~tambim de Hamlet] "Entao para que te entmgaste

ao vicio e foste bus car 0 amor num abismo de criIlK'.?"

[Por trds do tablado, tocam um clarini.]

TREPLIOV Senhores, vai comecarl Peco a atencao de todos!Eu

corneco. [Bate com um bastao efala bem alto] 6,vener:iveis

sombras antigas, que nas horas noturnas pairam sm este

lago, facam-nos dormir e sonhar com aquilo que h: i de

acontecer daqui a duzentos mil anos!

SORIN Daqui a duzentos mil anos, nao existira mais nada

TREPLIOV Pois entao que nos mostrem como sera esse nada.

ARKADINA Assim seja. J a estamos dorm indo.

[A cortina se leuanta, surge a vista do lago; a lua, logoaamado

bortzonte, reflete-se na agua; sobre uma pedra grande, estd sentada

Nina Zarittcbnaia, toda debranco.]

NINA Hornens, leoes, aguias e perdizes, cervos de grandeschifres,

gansos, aranhas, peixes silenciosos que habitavam as:iguas,

estrelas do mar e criaturas que os olhos nao eram capazesde

ver- em suma, todas asv idas, todas as vidas, todas asvidas,

depois de concluirern seu triste ciclo, se extinguiram. .. Hi

muitos milhares de anos nao existe mais uma unica eriatura

viva sabre a terra e esta pobre lua acende sua lanternaem vao.

< 20 >

No prado, as grous ja nao despertam com urn grito, nem se

ouvem os besouros nos bosques de tilias, Frio, frio, frio.

Deserto, deserto, "deserto. Horror, horror, horror.

[Pausa.]

NINA Os corpos dos seres vivos se desfizeram em p6 e a materia

eterna os transformou em pedra, agua, nuvens, e as almas

de todos os seres vivos fundiram-se em uma s6. A alma do

mundo sou eu . .. eu . .. Em mim, habita a alma de Alexandre

o Grande, de Cesar, de Shakespeare, de Napoleao e a alma

da mais reles sanguessuga. Em mim, as consciencias de

todos fundiram-se com os instintos dos animais e - eu me

lembro de tudo, de tudo, e sinto em mim todas as vidas

viverem de novo.

[Rebrilham fogos-Jatuos nopantano.]

\.

ARKADINA [em voz baixa] Isso esta urn tanto decadentista.

TREPLIOV [em tom desziplicae de censura] Mae!

NINA Estou s6. Uma vez a cada cern anos, abro a boca para

falar e minha voz ressoa neste deserto tristonho, mas nin-

guern escuta ... E voces, 6 palidas luzes dos fogos-fatuos,

nao me escutam ... De madrugada, a pantano putrido as

traz ao mundo e voces, palidas luzes, vagueiam ate a aurora,

mas sem pensamentos, sem vontade, sem os tremores da

vida. Receoso de que a vida irrompa em voces, 0pai da ma-

teria eterna, 0 diabo, promove urn fluxo incessante de ato-

mas, como acontece com as pedras e a agua, e voces sao

< 2I >

Page 11: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 11/56

 

continuamente transformadas. No universo, s6 0 espirito

permanece constante e invariavel,

TREPLIOV [ c om ra iv a , erguendo a vo z] A pes:a acabou! Chega!

Baixem a cortina!

ARKADINA Por que voce ficou zangado?

TREPLIOV Chega! Cortina! Baixem a cortina! [Bate 0pi ] Cortina!Pausa.]

NINA Como urn prisioneiro lancado num pos:o prof undo e

vazio, nao sei onde estou e 0 que me espera. Para mim, s6

e claro que, na batalha encarnicada e cruel contra 0diabo,

origem das forcas materiais , estou destinado a sair vence-

dor, e, depois disso, a materia e 0 espfrito se fundirao em

uma harmonia maravilhosa e tent inicio 0 reino da vontade

universal . Mas isso 56acontecera quando, pouco a pouco,

ao fim de uma longa serie de milenios, a lua, a luminosa

Sirius e a terra se houverem transform ado em poeira ...

Ate la, 0horror, 0horror ...

[ A c o rt in a i b a ix a da .]

[Pal / sa;no outre l ad o d o l ag o , s u r gem dois p o nt in h os v e rm e lh o s. ]

TREPLIOV Peco desculpas! Esqueci que s6 uns poucos e1eitos

podem escrever pes:ase representar num palco. Perturbei 0

monopoliol Para mim . .. eu... [ Ain da d es eja falar alguma

c oi sa , m a s a ba na a m ii o e s ai p e la e sq ue rd a]

ARKADINA Mas 0 que deu nele?

SORIN Voce 0 ofendeu.

ARKADINA Ele mesmo avisou que era uma brincadeira, entao

tratei sua pes:a como uma brincadeira.

SORIN Mesmo assim...

ARKAOINA Pois, entao, agora fieamos sabendo que ele escreveu

uma obra genial! Era so 0 que faltava! Quer dizer que ele

montou esse espetaculo e soltou essa fumaceira com cheiro

de enxofre nao por brincadeira, mas como urn protesto . ..

Quer nos ensinar como se deve escrever e 0 que se deve

representar . .. No fim, tudo isso me da tedio, Esses ataques

constantes contra mim, ou essas pirracas, se preferirem, sao

de encher a paciencia de qualquer pessoa! Urn menino

mimado e birrento.

SORIN Ele quis the oferecer uma diversao,

ARKAOINA Ah, e ? No entanto, em vez de escolher uma pes:a

comum, ele nos obrigou a escutar esse disparate decaden-

tista. Pois estou disposta a ouvir uma brincadeira, e ate urn

NINA Eis que se aproxima meu poderoso adversario, 0 diabo.

Vejo seus olhos rubros e medonhos . ..

ARKADINA Sinto cheiro de enxofre. Sera mesmo necessario?

TREPLIOV

£,sim.

ARKADINA [ri] Ah, e urn efeito especial.

TREPLIOV Mae!

NINA Ele se entedia, sem ninguern .. .

POLINA [ p ar a D o r n] 0 senhor tirou 0 chapeu, Cubra-se, ou

vai se resfriar.

ARKADINA 0 medico tirou 0 chapeu porque esta diante do

diabo, 0pai da materia eterna.

< 22 >

Page 12: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 12/56

 

disparate, mas nao essas pretensoes a formas novas e a

uma nova era na arte. Para mim, nao se trata de formas

novas, 0 que ha aqui e apenas rna indole.

TRIGORIN Cada urn escreve como quer e como pode.

ARKA.DINA Pois que ele escreva como quiser e como puder,

mas que me deixe em paz.

DORN JUpiter, estas irado ...2

ARK.ADINA Nao sou JUpiter, sou uma mulher. [Ac ende um c iga r ro]

Nao estou irada, solamento que urn jovem passe seu tempo

de modo tao enfadonho. Eu nao queria ofende-lo.

MIEDVIED[ENKO Ninguem dispoe dos meios de separar 0 espi-

rito da materia, pais talvez 0proprio espirito seja urn con-

junto de atomos, [An imado ,pa r a T r igo r in ] Qpe tal escrever

uma pes:asobre como vivem os nossos irmaos professores e

leva-la ao palco? E uma vida dificil, muito dificil!

ARKA.DINA E uma ideia justa, mas nao vamos falar mais de

pes:as, nem de atomos. A noite esta tao agradavell Escu-

tern! Nao estao cantando? [O uv e c om a t e nf ao ] Que bonito!

POLINA Vern da outra margem.

[Pausa.]

ARKA.DINA [para Tr igorin] Sente-se ao meu lado. Uris dez ou

quinze anos atras, aqui no lago, quase todas as noites se

ouvia rmisica e cantoria. Aqui, na beira do lago, existem seis

grandes casas de campo. Lembro-me dos risos, das vozes,

2 Inicio de urn proverbio latino: "Jupiter, estas irado; significa que estds enga-

nado". [N . T.] .

! dos tiros das cacadas, dos namoros, tantos namoros ...

o j eu n e p r em ie r, 0 gala e Idolo das seis propriedades, na

epoca, permitam que lhes apresente [a ce na c om a cabeia

n a d ire fa o d e D o rn ] , era 0 doutor Ievgueni Siergueievitch.

Hoje, e urn homem encantador, mas era irresistivel naque-

Ie tempo. Pronto, minha consciencia ja cornecou a me tor-

turar . Por que fui ofender 0meu pobre menino? Estou tao

aflita. [E m vo z m ais a lta ] Kostia! Meu filho! Kostia!

MACHA Vou orocura-lo.L

ARKADINA Muito obrigada, querida.

MACHA [ sa in d o p e la e sq u er d a] Ei! Konstantin Gavrilovitch ...

Ei! [Sai]

NINA [ vin do d e trd s d o ta bla do ] Esta claro que a pes:a nao vai

mais continuar, por issoja posso sair. Boa noite para todos!

[ Be ija Ark dd ina e P olin a A n dr eie vn a] .

SORIN Bravo! Bravo!

ARKADINA Bravo, bravo! Ficamos encantados. Com essa apa-

rencia, com essa voz tao fora do comum, e ate urn peeado

ficar escondida aqui no campo. A senhorita parece ter

muito talento. Esta ouvindo? Seu dever e subir ao palco!

NINA Ah, esse e 0 meu sonho! [Suspira] Mas nunca se torna-

ra realidade.

ARKADINA Quem pode saber? Permita que lhe apresente

Boris Alekseievitch Trigorin,

NINA Ah, muito prazer . .. [Encabulada] Leio sempre 0 que 0

senhor escreve ...

ARKADINA [ sen tando -s e ao l ado de la ] Nao fique encabulada, mi-

nha querida. Trigorin e uma celebridade mas, por dentro, e

urn homem simples. Veja, ele mesmo esta encabulado.

<25 >

Page 13: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 13/56

 

DORN Creio que agora ja podemos levan tar a cortina, pais deste

jeito fica tetrico.

CHAMRAIEV [e m ooz alta] Iakov.Ievante a cortina, meu rapaz!

abaixo ... Assim: [ co m v oz g ra ve ] "Bravo, Silva!". O teatro

como que congelou.

[Pausa.]

[Ergu e -s e a co rt in a .]

NINA [para Tr igor in] Nao achou estranha essa peca?

TRIGORIN Nao compreendi nada. Mesmo assim, _acampanhei

tudo com mazer. A senhorita reoresentou com muita sin-• •

ceridade. E 0 cenario era magnifico.

DORN Passou um anjo por aqui.

NINA Esta na minha hora. Adeus.

ARKADINA Aonde vai? Aonde vai tao cedo? Nao a deixaremos

ir embora.

NINA Papai esta a minha espera.

ARKADINA Como ele pode fazer isso conosco?

[Pausa.]

[Beijam-se.]

TRIGORIN Nesse lago deve haver muitos peixes.

NINA Ha, s im .

TRIGORIN Adora pescar. Para mim, nao existe prazer maior do

que ficar sentado na beira de um lago, a tardinha, olhando

para a b6ia presa a linha.

NINA Mas eu imagino que, para quem experimentou a prazer

da criacao artistica, todos os outros prazeres perdem 0

sentido.

ARKADINA [ri] Nfio fale assim. Quando lhe dizem coisas gen-t is , ele fica muito sem gras:a.

CHAMRAIEV Lembro que, certa vez, no teatro de 6pera em

Moscou, 0 famoso Silva cantou 0 d o mais grave. Nessa

ocasiao, como que de prop6sito, estava sentado na galeria

um dos baixos do cora da nossa arquidiocese, e de repen-

te, os senhores podem calcular 0 nosso espanto, ouvimos

uma voz l:i na galeria: "Bravo, Silva!". Uma oitava inteira

ARKADINA Bem, 0 que se vai fazer? It uma pena que a senho-

rita tenha de ir embora.

NINA A senhora nern imaginacomo eu.lamento ter de partir.

ARKADINA Alguem devia acompanha-la ate sua casa, meu anja.

NINA [assustada] Ah, nao, Naol

SORIN [ pa m e la , e m to m d e S lip lic a] Fique!

NINA Nao posso, Piotr Nikolaievitch,

SORIN Fique s6 mais uma hora, Por favor . ..NINA [ ap a s r ef le ti r, em l dg rimas ] It impossivel! [Abana a m ao e

sa i l igei ro]

ARKADINA Uma jovem muitissimo infeliz . Dizem que sua fale-

cida mae deixou de heranca para 0marido toda a sua imensa

fortuna, ate 0 ultimo cope que, e agora essa mocinha ficou

sem nada, pois 0 pai ja deixou tudo de heranca para a se-

gunda esposa. It revoltante.

< 26 >

Page 14: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 14/56

 

DORN Sim, 0 pai dela.justica seja feita, e urn verdadeiro bocal.

SORIN [esf regandoas mi iosge ladas] Vamos entrar, senhores, antes

que fique muito iimido. Minhas pernas estao doendo.

ARKADINA Suas pernas parecem de madeira, quase nao se

mexem. Vamos la, velho desafortunado. [ S egura -o pe lo

brafo]

CHAMRAIEV [oferecendo 0 brafo it esposa] Madame?

SORIN Estou ouvindo 0 cachorro uivar de novo. [ Pa ra Ch am -

raiev] Ilia Afanassievitch, faca a gentileza de mandar sol-

tar esse cachorro.

CHAMRAIEV E impossivel, Piotr Nikolaievitch. Tenho medo

de que os ladr6es entrem no celeiro. La, eu guardo 0meu

painco. [ Pa ra M ie do ie die nk o, q ue c am in ha a se u la do ] Pois

foi assim mesmo, uma oitava inteira abaixo: "Bravo,

Silva!". E nem era urn cantor de 6pera, mas urn simples

cantor do coro da arquidiocese.

MIEDVIEDIENKO E quanto ganha urn cantor do cora da

arquidiocese?

DORN Eu estou aqui.

TREPLIOV A Machenka andou arras de mim pelo parque

inteiro. Criatur'a insuportavel. .

DORN Konstantin Gavrilovitch, a pec;a do senhor me agradou

imensamente. E um tanto estranha e nao pude ver 0final,

mesmo assim 0 efeito e forte. 0 senhor e urn homem de

talento, deve persistir.

[ Todos s aem , e x ce to Dor n. ]

[T rep lio v a pe rta c om fo rca su a m ao e 0 abraca, impe tuoso.]

DORN [sozinho] Nao sei, talvez eu nao entenda mesmo nada,

ou esteja maluco, mas gostei da pec;a.Ha alguma coisa, ali.

Qpando aquela mocinha falou sobre solidao e depois, quan-

do surgiram os olhos vermelhos do diabo, minhas rnaos tre-

meram de ernocao. Ha um frescor, uma inocencia ... Ah,

parece ser ele quem vem ali. Eu gostaria de the dizer mui-

tas coisas agradaveis.

TREPLIOV [ e n l r a ] J a nao tern mais ninguern.

DORN Puxa, como esta nervoso! Tern lagrimas nos olhos ...

Mas 0 que era mesmo que eu queria the dizer? 0 senhor

foicolher seu assunto na esfera das ideias abstratas. E isso

e muito born, porque uma obra de arte deve necessaria-

mente expressar um pensamento elevado. So 0que e serio

pode ser belo. Mas como 0 senhor esta palidol

TREPLIOV Entao 0 senhor diz que devo persistir?

DORN Sim ... Mas s6 ponha em cena 0 que for importante e

eterno.O senhor sabe, levei uma vida bem variada e apro-

veitei bastante 0meu tempo, nao tenho do que me queixar,

mas se me tivesse acontecido de experimentar uma elevacao

do espirito, como ocorre com as artistas na hora da cria-

c;ao, acho que eu teria desprezado 0meu inv6lucro mate-

rial e tudo 0 que e proprio dele, e me deixado levar para as

alturas, para bern longe da terra.

TREPLIOV Perdao, mas onde esta Zarietchnaia?

DORN E mais uma coisa, Nas obras de arte, cleve haver urn

pensamento claro, bern definido. 0 senhor precisa saber

para que escreve, senao, ao tr ilhar esse caminho pitoresco

Page 15: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 15/56

 

sern ter urn objetivo bern definido, vai acabar se perdendo

e 0 seu talento sera a sua perdicao.

TREPLIOV [impaciente] Onde esta Zarietchnaia?

DORN Foi para casa.

TREPLIOV [ em de s es per o] 0 que YOUfazer agora? Qperia falar

com ela... Preciso ve-la de qualquer jeito ... Vou atras dela...

[ En tr a Ma c ha .]

DORN [ pa ra T r ep l io v ] Acalme-se, meu amigo.

TREPLIOV 1rei atras dela, seja como for. Tenho de ir.

MACHA E melhor ir para casa, Konstantin Gavrilovitch. Sua

mae espera pelo senhor, Esta preocupada.

TREPLIOV Diga a ela que parti. Peco a todos voces que me

deixem em paz! Deixem-me! Nao venham atras de mim!

DORN Ora, ora, ora, meu caro . .. Nao se pode agir assim . .. Nao

e bom.

TREPLIOV [ ent re l dg rimas] Adeus, doutor. Muito obrigado ...

[Sai]

DORN [suspira] Mocidade, mocidade!

MACHA Quando nao temos mais nada para dizer, dizemos:

"ah, mocidade, mocidade ... ". [ A sp ir a r ap e ]DORN [to ma a c aix in ha d e ra pe d a m ao d ela e a a tira e ntr e a s m o i-

tas] Isto e nojento!

[Pausa.]

DORN Parece que estao tocando musica 1 a dentro. Vamos ate la.

MACHA Espere.

DORN 0 que e?

MACHA Ainda quero the dizer uma coisa. Quero falar com 0

senhor ... [Emociona-se] Nao gosto do meu pai ... mas meu

coracao tern urn fraco pelo senhor. Nao sei por que, mas

sinto com toda minha alma que 0 senhor e alguern proximo

de mim ... Ajude-me, ajude-me, para que eu nao cometa

uma estupidez, nao estrague minha vida, nao a desper-

dice .. . Nao aguento mais . ..

DORN Mas 0 que ha? Ajuda-la como?

MACHA Estou sofrendo. Ninguem, ninguem conhece meus 50-

frimentos. [ Re cli na a c ab ec a n o p e ito d ele ,f a1 a e m v oz b aix a]

Amo Konstantin.

DORN Como todos estao nervosos! Como todos estao nervo-

sos! E quanto amor ... 6, laga enfeiticado! [ C om t er nu ra J

Mas 0que posso fazer, minha crianca? 0 que? 0 que?

[Cort ina.]

Page 16: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 16/56

 

Segundo ate: Nina (M. 1.Roksanova),

Trigorin (K. S. Stanislavski).

SEGUNDO ATO

Campo de croque, No canto direito, uma casa com uma ampla

varanda; a esquerda, ve=se o-lagon-o qual 0 solserefleteebri"-

lha , F lores. Meio-dia, Calor . A bei ra do campo, a sombra de

uma velha tilia, estao Arkadina, Do rn e Macha, sentados num

banco . Sob re o s j oelhos de Dorn, urn livr o aber to .

Agai'lJota encenada pelo Tea tro de Ar te

de Moscou. Segundo ato: Polina (E. M. -

Raievskaia), Darn (A. K. Vichnievski).

. '~"_'. --_ ~", 1. '. . _i

-·" 1 __

- ·~ '_ I . .'.. · '~_ . , '

'I -,

,-;

' · - l '

Page 17: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 17/56

 

...

ARKADINA [para Macha] Vamos nos levantar.

[A s dua s s e l e van tam . ]

ARKADINA Vamos ficar lado a lado. A senhorita tem vinte e dois

anos e eu tenho quase 0dobro.Ievgueni Siergueievitch.qual

de n6s duas parece mais jovem?

DORN A senhora, e claro.

ARKADINA Viu? E por que? Porque eu trabalho, eu sinto, vivo

atarefada, enquanto a senhorita fica 0 tempo todo parada,

no mesmo lugar, nao vive. " E eu tenho uma regra: nao

dirigir meu olhar para 0futuro. Nunca penso na velhice,

nem na morte. De que adianta, se nao hi como evitar?

MACHA Pois tenho a sensacao de que nasci hi muito, muito

tempo; arrasto a minha vida, como uma interrninavel cauda

de vestido ... E muitas vezes nao sinto a menor vontade de

viver. [Senta-se] Eu sei, tudo isso e bobagem. E preciso ani-mar-se, livrar-se disso tudo.

DaRN [can taro lando ba ix inho] "Vao, minhas flores, e digam a

e la . . . "

ARKADINA Alern do mais, sou muito regrada, como urn ingles.

Eu, minha cara, ando sempre na linha, como dizern, estou

sempre vestida e penteada comme i lf o ut . Para que vou sair

de casa de blusao ou despenteada, ainda que s6 para vir ao

<3 5 >

Page 18: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 18/56

 

jardim? Jamais. Pois eu sempre soube me cuidar.saecafui

uma desleixada, nao relaxei, como fazem algumas..•' [ P o e as

mdos n a c in tu ra , p as se ia p elo c am p o d e c ro qu e] Vejam:pares:o

uma crianca! Poderia representar 0papel de umamenina

de quinze anos.

DORN Muito bern, no entanto vou prosseguir a leitura.[Apanha

o l iv r o] Paramos no vendedor de cereais e nas ratu:mas...

ARKA.DINA Sim, nas ratazanas. Leia. [Senta-se] Ou tlldhor, me

de 0 l ivro, eu vou ler. E minha vez, [Pega o l ivT f J ep rocu ra

c om a s o lh os 0 l ug ar c er to ] As ratazanas ... Aqui e s a . • . [Li]

"E, naturalmente, adular e atrair escritores e taoariscado

para pessoas da sociedade como, para urn vendede rde ce-

reais, criar ratazanas em seus celeiros. Mesmo assim, essas

pessoas adoram os escritores. Pois bem, quandouma mu-

lher escolhe urn escritor que deseja cativar, ela 0assedia

com mil elogios, amabil idades e gentilezas ... " Oa, pode

ate ser assim entre os franceses, mas entre nos t: muito

diferente, em todos os aspectos. Nossas mulbees, em

geral , antes de cativarem um escritor , ja estao completa-

mente apaixonadas por e1e, nao tenham duvidz, Nem e

preciso ir muito longe, pensem em mim e em Trig6rin...

[Entra Sorin, apoiando-se numa ben ga la d e bambu, 1m lado de

Nina; Miedoiedienl» empurra uma cadeira d e r o da s a tr ii :J tl e. ]

SORIN [no tom de quem m im a uma aianra] E entao?F..stamos

alegres? Finalmente estamos felizes? [ Pa ra s ua i r m a ] Sim,

hoje estamos so alegria! 0 pai e a madrasta partimn para

Tvier e agora estamos livres por tres dias inteir<)5.

NINA [senta-se ao lado de A rkadina e a abra ra] Estou tao feliz!

Eu agora pertens:o a senhora.

SORIN [senta-se na s u a c a de ir a ] Ela esta l inda hoje.

ARKA.DINA Elegante, atraente ... E, alem de tudo, a senhorita e

inteligente. [ B ei ja N i na ] Mas nao devemos elogiar demais,

para evitar 0olho grande. Onde esta Boris Alekseievitchr

NINA Esta pescando no lugar reservado para banhos.

ARKA.DINA Como e que nao enjoa disso? [Q ue r c on ti nu ar a le r]

NINA 0que a senhora esta 1endo?

ARKA.DINA "Sobre a agua", de Maupassant, minha querida. [Ie

a lg um as lin h as s o para si] Ora, daqui para diante 0 conto

fica falso e sem gras:a. [Pecha 0 livroJ Estou muito preocu-

pada. Diga-me, 0que hi com meu filho? Por que anda tao

aborrecido e tr istonho? Passa dias inteiros na beira do lago

e quase nao 0vejo.

MACHA Ele esta magoado. [ P ar a N in a, t im i da m en te ] Por favor,

a senhorita poderia recitar urn trecho da pes:a dele?

NINA [ en c ol he ndo o s omb ro 5 ] Quer mesmo? Mas e tao sem gracal

MACHA [ co n t e n d o 0 entusiasmo] Quando ele Ie alguma coisa, os

olhos bri lham e 0 rosto empalidece. Sua voz e linda, triste;

e ele tern urn jeito de poeta.

[Q uvem -se os roncos d e S 6 r in .]

DORN Que tarde serena!

ARKA.DINA Pietrucha!

SORIN Ah? 0 que?

ARKA.DINA Pegou no sono?

SORIN De jeito nenhum.

Page 19: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 19/56

 

[Pausa.]

ARKADINA Voce nao se trata, e isso nao e born, meu irmao.

SORIN Eu bern que gostaria de me tratar , mas 0 medico nao quer.

DORN Tratar-se aos sessenta anos!

SORIN Mesmo aos sessenta anos, a pessoa tern vontade de viver.

DORN [aborrecido] Ah, entao tome urn as gotinhas de valeriana.

ARKADINA Acho que ele devia passar uma temporada numa

estacao de aguas.

DORN Ora, tanto faz. Pode ir, como pode nao ir.

ARKADINA Nao entendi.

DORN Nao himesmo nada para entender. Esta tudo muito claro.

[Pausa.]

MIEDVIEDIENKO Piotr Nikolaievitch devia parar de fumar.

SORIN Bobagem.

DORN Nao, nao e bobagem. A bebida e 0 fumo destroem a

personalidade. Depois de alguns charutos ou de alguns

calices de vodca, 0 senhor ja nao e mais Piotr Nikolaie-

vitch, mas sim Piotr Nikolaievitch acrescido de uma outra

pessoa; 0seu eu se dilui e 0 senhor se refere a si mesmo na

. "I"erceira pessoa: e e .

SORIN [ri] 0 senhor sabe se expressar muito bern. Aprovei-

tou a vida, mas e eu? Trabalhei numa reparticao da jus-

tica durante vinte e oito anos e, no final das contas,

ainda nao vivi, ainda nao experimentei coisa alguma e,

nao admira, sinto uma enorme vontade de viver. 0 se-

nhor ja esta saciado, nao se importa mais, por isso tern

uma inclinacao para a filosofia, ao passo que eu desejo

viver e por isso, depois do jantar, bebo xerez, fumo cha-

rutos e tudo 0mais.

DORN E precise encarar a vida com seriedade, mas bus car tra-

tamento medico aos sessenta anos e ficar se lamuriando

por ter t ido poucos prazeres na juventude, isso, queira me

desculpar, nao passa de uma leviandade.

MACHA [levanta-se] J a deve estar na hora do almoco. [Cami -

nba compr egu i ra , apas s o sf rouxo s] Minha perna ficou dor-

mente ... [Ret ira-se]

DORN La vai ela tomar dois calicezinhos, antes do almoco.

SORIN A pobrezinha nao conhece felicidade alguma.

DORN Tolices, Sua Excelencia.

SORIN 0senhor se expressa como urn homem saciado de viver.

ARKADINA Ah,o que pode ser mais enfadonho do que esse

doce tedio rural? Calor, silencio, nunca ninguem faz coisa

alguma, e todos filosofam .. . Qpanto aos senhores, meus

amigos, esta tudo bern, e agradavel ouvi-los, mas ... Ficar

sozinha num quarto de hotel e decorar as fa las de uma per-

sonagem e muito melhor!

NINA [empolgada] E verdade! Eu entendo a senhora.

SORIN Naturalmente, na cidade vive-se melhor. Podemos

ficar sossegados no nosso gabinete de estudo, ° criado

nao deixa ninguem entrar sem nossa perrnissao, temos

o telefone ... Na rua, hi carruagens de aluguel e tudo 0

mats ...

DORN [cantarola] "Vao, minhas flores, e digam a ela . .. "

[ En tr a Ch am ra ie v. A tr as d e le , P o li n a A n dr ii ev na .]

<39 >

Page 20: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 20/56

 

CHAMRAIEV Aqui esta ela.Born dial [ B e~ : ; aa ma o de drkddina

e d ep ois a d e N i na ] It uma alegria imensa encontra-la com

boa saude. [ Pa ra A r k ad i na ] Minha esposa disse que a se-

nhora tern a intencao de ir a cidade hoje, em companhia

dela. E verdade?

ARKADINA Sim, e nossa intencao.

CHAMRAIEV Hum .. . Isto e otimo, mas de que modo pretende

ir, prezadissima senhora? Hoje, temos de transportar 0

centeio, todos os trabalhadores estao ocupados! E, se me

permite a pergunta, que cavalos pretende usar?

ARKADINA Que cavalos? Como YOU saber, que cavalos?

SORIN Mas nos temos cavalos para 0 coche.

CHAMRAIEV [agi tado] Cavalos para 0 coche? E onde YOU arran-

jar os arreios? Onde YOU arranjar os arreios? E espantoso!

E inconcebivel! Estimadissima senhora! Perdoe-rne, te-

nho enorme reverencia pelo seu talento e estou disposto a

lhe dar dez anos da minha propria vida mas, cavalos, eu

nao posso dar!

ARKADINA Mas como assim, se eu preciso ir a cidade? Que

coisa estranha!

CHAMRAIEV Prezadissima senhora! A senhora nao sabe 0 que

significa administrar uma propriedade rural!

ARKADINA [ irri tada] E sempre a mesma historic! Nesse caso,

parto hoje mesmo para Moscou. Mande alugar urn coche

para mirn, na cidade, senao irei para a estacao ape!

CHAMRAIEV [ irri tado] Se e assim, eu me demito do meu car-

go! Tratem de arranjar outro administrador. [Sai l

ARKADINA Todo verao e a mesma historia, todo verao venho

aqui para ser insultada! Nunca mais porei os pes neste

IItII

lugar! [ S ai p e la esquerda, o nd e s e s up oe j ic ar o l oc al r es er va do

p ar a b an ho s; a pa s u m m in ute , oe-se A rk dd in a c am in ba nd o p ar a

ca sa; atrds de la , uai Trigorin, com cam eos e um balde] .

SORIN [ irri tado] Ope desaforo! Onde e que ja se viu? Ja estou

farto dessa historia, Tragam aqui, imediatamente, todos

os cavalos!

NINA [ pa ra P ol in a A nd re ie vn aJ Recusar urn pedido de Irina

Nikolaievna, uma atrizfamosal Sera que urn desejo dela,

mesmo quando forum simples capricho, nao e mais impor-

tante do que toda a propriedade dos senhores? Isto e sim-

plesmente inacreditavel!

POLINA [ em d e s es p er o J 0 que posso fazer? Ponha-se na minha

situacao: 0que posso fazer?

SORIN [ pa ra N in a ] Vamos falar com a minha irma... Vamosjun-

tos implorar a ela que fique. Nao e melhor assim? [Olhando

p ar a a d ir e i ta , p or o n de s e r etir ou C ha mr aie v] Mas que ho-

rnem insuportavell Ope tirano!

NINA [ im p ed in do q ue e le s e l ev an te ] Fique onde esta, espere ...

Nos 0 levaremos ... [N ina e M ieduied ieni» em purram a ca-

d eir a d e r od a s ] Ah, que coisa horrivel!

SORIN Sim, sim, e mesmo horrivel . . . Mas ele nao vai se derni-

t iroVou agora mesmo conversar com de.

[S ae m. F ica m a pen as D or n e P olin a A n dr iie vn a.]

DORN Ope gente enfadonha. Na verdade, 0 marido da senho-

ra devia ser posta para fora daqui com uma boa surra, mas

no fim esse velhote molenga do Piotr Nikolaievitch e a ir-

ma dele ainda van the pedir desculpas, A senhora vai vert

Page 21: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 21/56

 

POLINA Ate os cavalos de atrelar no coche ele mandou para 0

campo. Todo dia hidesentendimentos desse tipo. Se 0se-

nhor soubesse como isso me perturba! Chego a ficar doente;

veja, estou tremendo .. . Nao suporto as grosserias dele . ..

[C om a r d e slip lic a] Ievguieni, querido, adorado, leve-me

com voce . .. 0 nosso tempo esta passando, ja nao somos

jovens. Se pelo menos no fim da vida pudessemos nao fin-

gir, nao mentir ...

[Pausa.]

DORN Tenho cinquenta e cinco anos, e tarde demais para um

homem mudar de vida.

POLINA Eu entendo, 0senhor me rejei ta porque, alem de mim,

existem outras mulheres que lhe sao caras. E nao pode

levar todas consigo. Eu entendo. Desculpe, estou aborre-

cendo 0 senhor.

[Ve -s e N ina p er to da ca sa; co lb ej lo r e s. ]

DORN Nao e nada disso.

POLINA

Sofro por causa dos ciumes. Claro,0

senhor e medico,nao pode evitar as mulheres. Eu entendo .. .

DORN [paraNina , qu e seaproxima] Como estao as coisas la dentro?

NINA Irina Nikolaievna esta chorando e Piotr Nikolaievitch esta

com um acesso de asma.

DORN Eselevanta] Vou dar a eles umas gotinhas de valeriana ...

.NINA [ddj lo r es pa ra Do rn ] Por favor!

DORN Me rc i b ie n. [ Ca m in ha n a d ir er ao d a c as a]

POLINA [ ca m in ha nd o a o l a do d e D om ] Que flores lindas! [Perto

d a c as a, a ba ix a a v oz ] Me de essas flores! Me de essas flo-

res.ja! [D e p o s s e dasf lores , e la a s e st ra c al ba e jo g a p a ra o l ad o ;

a mb os e ntra m n a c asa ]

NINA [sozinha] Como e estranho ver que uma atriz famosa

chora, e ainda por cima por urn motivo tao fiitil! E como

tarnbem e estranho que urn escritor celebre, adorado pelo

publico, sobre quem todos os jornais escrevem, cujo retra-

to e vendido em toda parte, urn escritor que ja foi tradu-

zido em outras l inguas, passe 0dia todo pescando no lago

e fique tao contente por ter apanhado duas carpas. Pensei

que pessoas famosas fossem inacessiveis, que desprezassem

a multidao e que, com a sua gloria, corn 0 esplendor de

seus nomes, como que se vingassem da multidao, porque a

multidao d a mais valor a origem nobre e a r iqueza. Mas

na verdade essas pessoas choram, pescam, jogam cartas,

riem e se zangam como todo 0mundo ...

TREPLIOV C e nt ra s e m c ha pe u, c om um a e sp in ga rd a e u m a g ai vo ta

abatida] Esta aqui sozinha?

NINA Estou.

[ Tr ep lio v p oe a g a iv ota a os p es d e N in a. ]

NINA 0 que significa isto?

TREPLIOV Hoje, cometi a infamia de matar essa gaivota. Eu a

deponho aos seus pes.

NINA Mas 0 que deu no senhor? [ E rg u e a g a iv o ta e o lh a p a ra e la ]

TREPLIOV [apa s uma pau sa ] Em breve, desse mesmo modo, eu

vou me matar.

I < 43 >

Page 22: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 22/56

 

NINA Nao estou reconhecendo 0 senhor.

TREPLlOV Sim, depois que eu mesmo deixei de reconhece-la.

Voce mudou com relacao a mim. 0 seu olhar ficou frio,

minha presenc;a a constrange.

NINA Dltimamente,o senhor se irrita a toa, se expressa deurn

modo totalmente incompreensive1, como se usasse simbo-

los. Veja aqui esta gaivota, tambem deve ser urn simbolo,

ao que parece, mas, me desculpe, eu nao entendo ... [ P oe a

gairuota sobre 0 banco] Sou simples demais para compreen-

der 0senhor.

TREPLIOV Tudo cornecou naquela noite em que rninha pec;a

redundou num fracasso tao esnipido. As mulheres nao per-

doam 0 fracasso. Queimei tudo, tudo, ate 0 ultimo pedaco

de papel . Se soubesse como me sinto infeliz! Sua frieza e

terrivel, inacreditavel, e como se eu acordasse e visse, dere-

pente, que 0 lago havia secado ou que a agua toda havia

escoado para 0 fundo da terra. A senhorita acabou dedizer

que e simples demais para me compreender. Ah, mas 0que

ha aqui para compreender? Minha peC;aa decepcionou,

voce despreza a minha inspiracao.ja me considera medio-

cre, insignificante, igual a tantos outros ... [Bate 0pi no chao]

Compreendo tudo isso muito bern, ah, como compreendo!Pareee que hiurn prego cravado no meu cerebra, maldito

seja e1ee a minha vaidade, que suga 0meu sangue, suga,

como uma serpente ... [V t T r ig o r in , qu e c am in ba n a direfao

d el es , l en do u m a c ad er ne ta ] L a vern 0 verdadeiro talento;

entra em cena como Hamlet , e tambern traz nas rnaosurn

livro. [ Com s ar ca sm 0] "Palavras, palavras, palavras ..." Esse

sol nem a alcancou ainda, mas a senhorita ja sorri, seuolhar

<44>

ja se derreteu aos raios dele. Nao YOU ficar aqui, para nao

atrapalhar, [ Sa i d ep re ssa ]

TRIGORIN [ to ma nd on ota s n a s ua c ad er ne ta ] Cheira rape e bebe

vodca ... Sempre de preto. 0professor esta apaixonado por

ela...

NINA Born dia, Boris Aleksieievitchl

TRIGORIN Born dia. As circunstancias mudaram de forma ines-

perada, e agora, ao que parece, temos de ir embora hoje

mesmo. It pouco provavel que voltemos a ver a senhorita

algum dia. It uma pena. Tenho poucas oportunidades de

conhecerrnocas jovens e interessantes, ate ja esqueci como

sao e nao consigo imaginar com clareza como elas se sentem

aos dezoito ou dezenove anos; por isso, nos meus contos e

nas minhas novelas, as mocinhas em geral parecem falsas.

Eu adoraria poder ficar no lugar da senhorita, ainda que

Fosses6 por uma hora, para saber como pens a e tudo 0mais.

NINA E eu tarnbern adoraria poder ficar no lugar do senhor.

TRIGORIN Para que?

NINA Para saber como se sente urn escri tor talentoso e celebre.

Qual a sensacao da fama? Como 0 senhor experirnenta 0

fato de ser famoso?

TRIGORIN Como me sinto? Nao sinto nada, eu acho. Nunca pen-

so no assunto. [Pensativo] Das duas, uma: ou a senhorita exa-

gera a minha fama, ou ela nao me afeta de maneira alguma.

NINA E quando Ie 0 que escrevem a seu respeito nos jornais?

TRIGORIN Quando elogiam, e agradavel , mas quando insul-

tam, dois dias depois ainda me sinto de mau humor.

NINA Que mundo maravilhoso! Como invejo 0 senhor, ah, se

soubesse! Como 0 destino das pessoas e diferente. Uns mal

< 45 >

Page 23: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 23/56

 

conseguem arrastar a sua existencia tediosa e apagada,sem-

pre igual as outras, sempre infeliz; mas, para algunswtros,

como 0 senhor, por exemplo - urn em urn milhiO-, 0

destino reserva uma vida interessante, radiosa, rqleta de

sentido, " 0 senhor e feliz ...

TRIGORIN Eu? [E nc ol he nd o o s o m br os ] Hum ... A senhorita

esta aqui falando da fama, da felicidade, de umaDla ra-

diosa e interessante, mas para mim todas essas bdas pala-

vras, me perdoe, sao geleia de frutas, urn doce que eu

jamais como. A senhorita e muito jovem e muito gmerosa.

NINA A vida do senhor e deslumbrante!

TRIGORIN Mas 0 que ela tern de especialmente bom? [Olha

para 0 re 16g iode pu l so] Agora tenho de ir para casae.escre-

ver. Desculpe, nao tenho mais tempo ... [Ri] A seshorita,

como dizem, pisou no meu calo e ja estou comeeando a

ficar agitado e urn pouco aborrecido. Pensando m.elhor,

vamos conversar. Vamos conversar sobre a minha1iIa rna-

ravilhosa e radiante ... Pois bern, por onde vamoscesiecar?

[ De po is d e r ejl et ir u m in sta nte ] As vezes, ha ideiasqse nos

dominam, como quando uma pessoa fica 0 tempo todo,

dia e noite, pensando na lua, por exemplo, e aconteceque

eu tambern tenho a minha lua. Dia e noite, uma ideiaobsessiva me persegue: tenho de escrever, tenho deescrever,

tenho ... Mal termino uma nove1a, nem sei por qui.preciso

logo comes:ar uma outra, e depois uma terceira, e depois

dessa uma quarta ... Escrevo sem interrupcao, comoquem

viaja numa carruagem em que os cavalos sao substituidos a

cada parada, e nao consigo viver de outro modo.Pes entao,

eu lhe pergunto, 0que ha nisso de maravilhoso endiante?

iI!1

I

III

Ah, que vida absurda! Agora estou aqui com a senhorita,

estou emocionado, e enquanto isso, a todo instante, lembro

que uma novela inacabada espera por mim. Vejo 'uma

nuvem parecida com urn piano. Penso: em algum trecho de

urn conto, terei de citar que pairava no ceu uma nuvem

parecida com urn piano. 0 ar cheira a heliotropic. Anoto

depressa no pensamento urn perfume adocicado, uma flor-

de-viuva: usar na descricao de uma noite de verao. Agarro

cada frase, as minhas e as da senhorita, cada palavra, e me

apresso a trancar logo essas frases e essas palavras no meu

deposito li terario: urn dia podem ser uteisl Assim que ter-

mino urn trabalho, corro ao teatro ou YOU pescar: quem

sabe assim eu consiga descansar, me esquecer de mim mes-

mo, ah... Nada disso: dentro da minha cabeca, logo come-

s:aagirar uma pesada bola de ferro fundi do, urn novo tema

para urn conto, e logo me arrasto ate a mesa e de novo te-

nho de escrever e escrever 0 mais depressa possivel . E e

sempre assim, sempre, nunca dou sossego a mim mesmo e

tenho a sensacao de que estou devorando a minha propria

vida, tenho a sensacao de que, para fabricar 0 mel que

entre go, num vazio, a pessoas que nem mesmo sei quem

sao, eu retiro 0polen das minhas melhores flores, arrancoda terra essas mesmas flores e pisoteio suas raizes, Sera que

nao estou louco? Sera que meus conhecidos e amigos sedi-

rigem a mim como a uma pessoa sa? "0 que 0 senhor

anda escrevendo? Com que nos brindara a seguir?" Sem-

pre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, e fico com a im-

pressao de que essa atencao de meus conhecidos, os elogios,

a admiracao, tudo isso e uma mentira, tenho a sensacao de

Page 24: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 24/56

 

que estao me enganando, como fazem com uma pes so a

doente, e as vezes tenho medo de que eles se aproximem

sorrateiramente pelas minhas costas, me agarrem e me

arrastem para 0 hospfcio, como ocorreu a Poprichin, 0per-

sonagem de Gogol , E antigamente, nos anos dajuventude,

nos bons tempos, quando comecei, escrever era para mim

um martirio incessante. Urn escritor menor, sobretudo

quando nao tem sorte, parece um desajei tado aos proprios

olhos, um desastrado, um imitil, vive com os nervos tensos,

esgotados; procura irresistivelmente estar perto de pessoas

ligadas a l iteratura e a arte, sem ser reconhecido, sem ser

sequer notado, sempre com medo de encarar os outros nos

olhos, como um jogador inveterado que esta sem urn cen-

tavo no bolso para apostar. Eu nao conhecia 0meu leitor

mas, por algum motivo, na minha imaginacao, ele se mos-

trava hostil, desconfiado. Eu temia 0publico, para mim ele

era uma coisa assustadora e,toda vez que eu tinha de apre-

sentar uma pes;a nova, me parecia que as pessoas morenas

tinham um animo hostil e que as pessoas loiras eram frias

e indiferentes. Ah, como era horrivel! Que tormento!

NINA Perdoe-rne, mas acaso a inspiracao e 0mesmo pro-

I cesso de criacao nao lhe proporcionam momentos ele-

I vados e felizes?

TRIGORIN Sim. Quando escrevo, e born. E ler as provas

impressas e born. Mas . .. tao logo 0 livro e publicado, vejo

que nao era nada daquila, vejo as erros e entendo que 0

livro nao deveria absolutamente ter sido escrito e ai fico

aborrecido, me sinto pessimo ... [Ri] Mas 0 publico Ie e

diz: "Sim, e bonito, tern talento ... E bonito, mas fica

)

longe de Tolstoi". Ou entao: "Uma obra magnifica, mas

Pais efilhos, de Turgueniev, e melhor". E assim, ate a

sepultura, tudo sera apenas bonito e talentoso, bonito e

talentoso, nada mais do que isso e, quando eu morrer e ja

for bern conhecido, VaG passar pelo meu tumulo e falar

assim: "Aqui jaz Trig6rin. Foi urn born escritor, mas nao

escrevia tao bern quanto Turgueniev".

NINA Nao me leve a mal, mas nao posso entender 0 senhor.

o sucesso deixou-o simplesmente mal-acostumado.

TRIGORIN ~e sucesso? Eu nunca agradei a mim mesmo.

i Nao gosto de mim como escritor. 0 pior de tudo e que

\

me sinto numa especie de embriaguez e muitas vezes nem

entendo 0 que escrevo . .. Veja, eu adoro essa agua, essas

arvores, esse ceu, sinto a natureza, ela desperta em mim

urn entusiasmo, urn desejo irresistfvel de escrever. Mas

nao .sou apenas urn paisagista, sou tarnbem urn cidadao,

amo 0 pais, 0 povo, sinto que, se sou urn escritor, estou

obrigado a falar do povo, dos seus sofrimentos, do seu

futuro, a falar da ciencia, dos direitos do homem etc etc, e

entao falo sobre tudo, me afobo, me pressionam de todos

os lados, se irritam comigo, eu corro de urn lade para 0

outro, como uma raposa acossada par dies de cac;:a,vejo

que a vida e a ciencia avancam cada vez mais, enquanto eu

YOU ficando sempre para tras, como urn mujique que che-

\

. gou atrasado para pegar 0 trem, e no fim tenho a sensacao

de que so sei mesmo descrever paisagens e em tudo 0mais

sou falso, sou falso ate a medula dos ossos.

NINA 0 senhor trabalhou em excesso e nao teve tempo nem

vontade de reconhecer a propria importancia, Talvez esteja

< 49 >

Page 25: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 25/56

 

descontente consigo mesmo, mas para os outros 0 senhor

e brilhante e extraordinario! Se eu fosse um escritor como

o senhor, entregaria a minha vida inteira para a multidao,

mas com a consciencia de que, para eles, a felicidade esta-

ria apenas em elevar-se a minha altura, e aia multidao me

puxaria emuma carruagem.

TRIGORIN Numa carruagem... Por acaso sou 0 rei Agamenon?

[ O s d a is s or ri em . ]

NINA Em troca da felicidade de ser uma escritora ou uma

atriz, eu suportaria 0 desprezo dos meus conhecidos, a

penuria, as desilusoes, eu moraria num sotao, so comeria

pao de centeio, suportaria a insatisfacao comigo mesma,

sofreria com a consciencia das minhas imperfeicoes, mas

em compensacao eu exigiriapara mim a gloria... a gloria

autentica, estrondosa [Esconde 0 r os to n as m ao s] Minha

cabeca esta rodando Ah!

[ D a c as a, s oa a v o z d e A r kc id in a: " B or is A le ks ie ie vi tc h! ". ]

TRIGORIN Estao me chamando... Tenho de fazer as malas,Mas nao sinto a menor vontade de partir . [ Vo lta a s o lh os

para 0 lago] Qpe lugar maravilhoso! E lindo!

NINA Esta vendo uma casae umjardim do outro lado do lago?

TRIGORIN Estou.

NINA E a propriedade de minha falecida mae. Nasci hi. Passei

a vida toda nas margens deste lago e conheco muito bern

cada ilhota.

< 50 )

TRIGORIN A senhorita vivenum lugar lindo! [ V end o a g a iv o ta ]

E isso, 0que e?

NINA Uma gaivota. Konstantin Gavrilitch a matou.

TRIGORIN E urn passaro bonito. Na verdade, nao sinto a

menor vontade de partir. Quem sabe, sea senhorita pe-

disse,Irina Nikolaievna ficaria aqui mais uns dias? [Escreve

no c a de r ni n ho ]

NINA 0 que esta escrevendo?

TRIGORIN Estou fazendo anotacoes ... E que me veio uma

ideia ... [Guarda 0 caderninho] Uma ideia para urn conto

curto: uma jovem vivena beira de um lago, desde a infan-

cia, como a senhorita; ama 0 lago, como uma gaivota, e e

feliz e livre, como uma gaivota. Mas de repente aparece

urn homem, ele a avista e,por pura falta do que fazer, ele

a destroi, assim como aconteceu a essa gaivota.

[ Pa us a. N a ja ne la , s ur ge A rk eid in a.]

ARKADINA Boris Aleksieievitch, onde esta 0 senhor?

TRIGORIN Aqui! [C am inha e o lha pa ra trds, para N ina; ao cbe-

ga r a ja ne la , fa la p ar a A rk dd in a] 0 que foi?

ARKADINA Nos vamos ficar.

[T rig or in e ntr a n a ca sa .]

NINA [ ap ro xi ma -s e d o ta bl ad o, r ej le te u m p al /c o] Isto e urn sonho!

[Cort ina .]

<50

Page 26: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 26/56

 

Agaivota encenada peloTeatro

deArte de Moscou. Terceiro ate

(':Agora ele e rneu"):Trig6rin

(K. S. Stanislavski), Arkidina

(0. L . Knipper);

Sala dejantar , na casa de Sarin. Portas a direita e a esquerda.

Urn bufe. Urn arrnario de remedies. Uma mesa no meio da

sala. Uma mala e caixas de papelao, evidentes preparatives

para uma viagem. Trigorin toma 0 cafe da manha, Macha esta

de pe ao lado da mesa.

TERCEIRO ATO

Terceiro ate (':Aquiesta,urn rublo para os tres").

Page 27: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 27/56

 

MACHA Conto tudo isso porque 0 senhor e urn escritor. Pode

usar. Digo com toda sinceridade: se ele t ivesse ficado gra-

vemente ferido, eu nao aguentaria viver nem mais urn

minuto. Mas sou corajosa. Tomei uma decisao: vou arran-

car este amor do meu coracao, e vou arran car pela raiz.

TRIGORIN De que modo?

MACHA Vou me casar. Com Miedviedienko.

TRIGORIN 0professor?

MACHA Sim.

TRIGORIN Nao entendo qual a necessidade disso.

MACHA Amar sem ter esperans:a, f icar anos inteiros a espera

de que uma coisa aconteca . .. Depois que eu casar, nao vou

mais nem pensar em amor, preocupacoes novas van abafar

tudo 0 que e antigo. Vai ser mesmo uma transforrnacao,

sabe? Vamos tomar mais uma?

TRIGORIN Nao sera demais?

MACHA

Ora, vamos hi! [ En ch e a s c a li ce s] Nao olhe para mimdesse jeito. As mulheres bebem mais vezes do que os ho-

mens imaginam. S6 uma minoria bebe na frente dos outros,

como eu; a maioria bebe asescondidas. E e sempre vodca ou

conhaque. [ B ri nd am, t oe a nd o a s c a li ce s] Saiide! 0 senhor e

um homem simples, e uma pena que va embora.

[Bebem.]

< 55 >

Page 28: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 28/56

 

TRIGORIN Eu mesmo nao tenho vontade de partir.

MACHA Por que nao pede para ela ficar?

TRIGORIN Nao, agora ela n ao vai mais ficar. 0f ilho tem se

comportado de modo muito inconveniente. Primeiro, ten-

tou se matar , e agora, pelo que dizem, vai me desafiar para

um duelo. Equal 0motivo? Ele se enfurece, bufa e apre-

goa formas novas . .. Mas hi lugar para todos, os novos e os

velhos - para que brigar?

MACHA Tambem hi 0 c iume. Mas issoji nao e da minha conta.

[Pausa.]

[ Pa us a. I ak ou a tr av es sa 0p alc o d a esquerda pa ra a d ire i ta com uma

m ala; entra Nina e s e detem a o l ad o d a ja n el a. ]

NINA Vamos nos separar e.. . talvez nao nos vejamos mais, Peco

ao senhor que aceite, como uma lembranca minha, este

pequeno meda lhao . Mandei gravar suas iniciais... e do

outro lado, 0 titulo de um livro seu: D ia s e n oite s.

TRIGORIN Mas que beleza! [Bei/a 0 medalhao] Que presente

encantador!

NINA Lembre-se de mim, de vez em quando.

TRIGORIN Lembrarei. Vou me lembrar da senhorita tal como

estava naquele dia de sol,lembra? Uma semana arras, quando

a senhorita estava com um vestido claro . .. Nos conversa-

mos ... Havia uma gaivota branca estirada sobre 0 banco.

NINA [pensativa] Sim, a gaivota ...ACHA 0meu professor nao e himuito inteligente, mas e um

homem bom e pobre, e me ama com ardor. Sinto pena dele.

Tenho pena da sua mae idosa. Mas, entao, permits que eu

lhe deseje tudo de bom. Na o me queira mal. [ Ape l· ta c om

for ra a m ao d e T rig ar in] Sou muito grata ao senhor por sua

generosidade. Mande-rne seus livros - e tern de serauto-

grafados. Mas nao escreva "prezada senhora", mas apenas

"para Maria, que nao sabe de onde veio nem para que vive

neste mundo". Adeus! [Sai]

NINA [ es te nd e a m ao J ec ha da n a diretdo de Tr iga r in] Par ou impar?

TRIGORIN Par.

NINA [suspira] Errou. S6 tenho urn grao de ervilha na mao.

Resolvi tirar a sorte para saber se devo ou nao ser atriz.

Quem dera alguern me orientasse.

TRIGORIN Nesse tipo de coisa, e impossivel dar conselhos.

[Pausa.]

NINA Agora nao podemos mais conversar, vem gente ai. ..

Antes de ir embora, me de dois minutos, eu the imploro .. .

[S ai p ela e sq ue rd a; a o m es mo te mp o, entram p el a d ir ei ta A r kd -

din a, Sa rin , de fr aq ue com uma m eda lha em f or ma d e estrela no

p ei to , e e m s eg uid a I dk ou ; a ta re fa do c om a s ba ga ge ns ]

ARKADINA Vamos, f ique em casa, meu velho. Com esse seu

reumatismo, acha conveniente sair para fazer visitas? [Para

Trigarin] Qpern acabou de sair daqui? Nina?

TRIG ORIN Sim.

ARKADINA Pardon, nos 0 atrapalhamos ... [Senta-se] Acho que

as malas ja estao prontas. Fiquei cansada.

TRIGORIN [I e 0 m edalhao] D ias e noires, pagina 121, linhas II e 12.

< 56 > <57>

Page 29: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 29/56

 

IA.KOV [ tir an do a m es a] 0 senhor quer que eu embale tmnbem

as varas de pescar?

TRIGORIN Quero, sim, ainda vou precisar delas. Qyanto aos

livros, de para alguem,

IA.KOVPerfeitamente.

TRIGORIN V ala nd o c on sig o m es mo ] Pagina 121, linhasn e 12.

o que havera nessas linhas? [ParaArkadina] Ha eaempla-

res de meus livros aqui, nesta casa?

ARKA.DINA No escritorio do meu irmao, na estante do canto.

TRIGORIN Pagina 121••• [Sai]

ARKA.DINA Sinceramente, Pietruchka, era melhor vore ficar

em casa.

SaRIN Voces VaG embora e vai ser triste para mim : f i r : a r sem

voces nesta casa.

ARKA.DINA E 0 que ha de born na cidade?

SaRIN Nada de especial, mas nao importa. [Ri ] Vao lancar a

pedra fundamental da casa do conselho rural e outras coi-

sas assim ... Quem dera, pelo menos uma vez on outra,

poder me livrar desta vida de peixinho de aquario, ja

estou farto de me sentir irnprestavel, como se en Fosse

uma piteira velha. Mandei que os cavalos estivessem

prontos quando desse uma hora, assim vamos todos par-tir ao mesmo tempo.

ARKA.DINA [apas urna pausa] Escute, va levan do sua vida,nao

se aborreca, nao se resfrie. Cuide bern do meu filho.Pro-

teja -0. De conselhos.

ARKA.DINA Vou partir daqui a pouco sem saber por que Kons-

tan t in tentou se matar com urn tiro. Acho que 0motivo

principal foi 0 ciume e, quanto mais depressa eu levar'Tri-

gorin embora daqui, melhor.

SaRIN Como posso explicar a voce? Houve tambem outros

motivos. E uma coisa compreensivel: urn jovem inteligen-

te, que mora no campo, metido neste fim de mundo, sem

dinheiro, sem emprego, sem futuro. Ignorado por todos.

Tern vergonha e medo da sua ociosidade. Eu gosto imen-

samente de Konstantin, e ele, por sua vez, e muito apega-

do a mim, mas, apesar de tudo, ele tern a sensacao de ser

desnecessario nesta casa, de que nao passa de urn vadio,

urn parasita. E uma coisa compreensivel , uma questao de

amor-proprio ...

ARKA.DINA Ele me da muito desgosto! [Pensat iva] Ese arran-

jassemos urn emprego para ele, quem sabe. "

SaRIN [as sov ia , depoi s hes i ta] Acho que seria melhor se voce . ..

lhe desse algum dinheiro. Ele precisa, antes de tudo, vestir-

se de modo apropriado, Usa 0mesmo casaquinho velho hi

tres anos, porque nao tem urn p al et o, " [ R £ ] E passear um

POLCO tambern nao ia fazer mal nenhum ... Viajar para 0

exterior, quem sabe.. . Nao custa tao caro.

ARKA.DINA Mesmo assim . .. Talvez ell ainda possa pagar uma

roupa nova, mas uma viagem para 0exterior . . ,Nao, e para

dizer a verdade, nao tenho condicoes nem de pagar uma

roupa nova. [Categoricamente] Nao tenho dinheiro!

[Pausa.] [S6rin ri.]

< 58 > < 59 >

Page 30: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 30/56

 

ARKADINANa o tenho!

S6RIN [assobia] Esta certo. Por favor, querida, nao se irrite

comigo. Acredito em voce... E uma mulher generosa e de

born coracao.

ARKADINA [ en tre l ag rimas] Nao tenho dinheiro!

S6RIN Se eu tivesse dinheiro, e claro que eu mesmo daria

algum para ele, mas nao tenho nada, nem urn centavo.

[Ri] 0administrador fica com todo 0 dinheiro da minha

aposentadoria e gasta na lavoura, no gado, nas abelhas, 0

meu dinheiro vai-se todo embora, em vao. As abelhas

morrem, as vacas morrem, nunca me trazem cavalos

quando pe~o...

ARKADINAEsta bem, eu tenho dinheiro, mas sou uma atriz; s6

as roup as ja consomem 0 dinheiro todo.

s6RIN Voce e boa, minha querida ... Costo de voce ... Mas ...

Ha algurna coisa errada comigo de novo . .. [Cambale ia]

Minha cabeca esta rodando. [ Se gu ra -s e n a m es a] Estou me

sentindo mal.

ARKADINA[assustada] Petruchka! [ T en ta amp ara -l o] Petruchka,

meu querido ... [GritaJ Venham me ajudar! Ajudem!

[Entram T repliov, com um a atadura na cabeia, e Miedviedienko.]

ARKADINAEle esta passando mal!

SORIN Nao e nada, nao e nada ... [ So rr i e b eb e a gu a] J a passou...

pronto ...

TREPLIOV [pa ra a m ae ] Nao se assuste, mamae, nao e grave.

Isso tern acontecido muitas vezes com 0 titio. [Para 0 tio]

E melhor ir deitar, titio.

< 60 >

S6RIN Sim, vou me deitar urn. pouco ... Mesmo assim, nao

deixarei de ir a cidade ... Vou me deitar urn pouco, ?las

depois irei ate h i . . . Podem ter certeza ... [ C am i nh a a po ia nd o-

s e n a b en ga la ]

MIEDVIEDIENKO [l ev a- o p elo br ar o] 0 senhor conhece esta

charada: 0 que e que de manha and a com quatro pernas,

ao meio-dia, com duas, e a tardinha, com tres?

S6RIN [Ri] E exatamente assim. E a noite fica deitado de cos-

tas. Muito obrigado, posso andar sozinho ...

MIEDVIEDIENKO Ora, deixe de cerim6nias! [Ele e S6rin se

re t iram]

ARKADINA Que susto ele me deu!

TREPLIOV Nao e born para a saude do titio morar aqui no

campo. Fica triste. Se voce, mamae, por urn momento se

mostrasse generosa e emprestasse ao titio uns mil e qui-

nhentos ou uns dais mil rublos, ele poderia morar na cida-

de um ana inteiro.

ARKADINA Nao tenho dinheiro. Sou uma atriz, e nao uma

banqueira.

[Pausa.]

TREPLIOVMae, troque a minha atadura. Voce faz isso tao bern.

ARKADINA[a pa nh a, n um armdrto de remedies, iodo e um a caixa

c om ma t er ia l para curativos] 0medico ja devia ter chegado.

TREPLIOV Prometeu vir as dez horas e ja e meio-dia.

ARKADINA Sente-se, [R etira a atadura da cabeca do jilho ] Ate

parece que voce esta de turbante. Ontem, na cozinha, uma

pessoa que nao e de cas a viu voce assim e perguntou aos

Page 31: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 31/56

 

outros de que pais voce tinha vindo. Olhe s6, ja esta quase

curado. So restou uma coisinha a toa. [ Be ij a- o n a c ab ef a]

Quando eu for embora, voce nao vai fazer clique-clique

outra vez, nao e?

TREPLIOV Nao, mamae, Foi urn minuto de desespero e loucura,

nao consegui me dominar. Isso nao serepetira mais. [Beiia a

mao de la ] Voce tern maos de ouro. Lembro que, muito

tempo arras, quando voce ainda representava em teatrosestatais e eu era muito pequeno, houve uma briga no predio

onde moravarnos e uma inquilina lavadeira levou uma tre-

menda surra. Lembra? Eles a deixaram inconsciente ... Voce

ia sempre visita-Ia, levava remedies, dava banho nos filhos

dela, numa tina. Sera que voce nao lembra mais?

ARKADINA Nao. [ Po e uma a ta du ra n ov a]

TREPLIOV Na epoca, duas bailarinas moravam naquele mes-

mo predio em que n6s ... Elas costumavam vir tomar cafe

corn voce.

ARKADINADisso eu me lembro.

TREPLIOV Eram muito religiosas. [Pausa] Ultimamente, de

uns dias para ca, eu tenho amado voce com ternura e

devocao, como na infmcia. Agora, nao tenho mais nin-

guern, s6 voce. Mas por que, por que voce se submete a

influencia daquele homem?

ARKADINA Voce nao 0 compreende, Konstantin. Ele e uma

personalidade de grande nobreza ...

TREPLIOV No entanto, quando ele soube que eu pretendia

desafia-lo para urn duelo, a nobreza nao 0 impediu de

fazer papel de covarde. Esta indo embora. E uma fuga

vergonhosa!

ARKADINAMas que absurdo! Fui eu mesma que pedi a ele que.

fosse embora.

TREPLIOv Urna personalidads de grande nobreza! Aqui esta-

mos nos dois, quase brigando por causa desse sujeito,

enquanto ele, neste exato momento, and a metido em algum

canto por ai, na sala de visitas ou no jardim, e ri de nos . ..

Exibe Sua cultura para Nina, tenta convence-Ia de que e

urn genio.ARKADINA Voce tern mesmo prazer ern me dizer coisas desa-

gradaveis. Eu respeito esse hornem e peco que nao diga

coisas ruins sobre ele na minha presenca.

TREPLIOV Pois eu nao 0 respeito. Voce quer que eu tambem 0

considere urn genic, mas, me desculpe, nao sei rnentir, as

obras dele me dao enjco.

ARKADINA Isto e inveja. Para aspessoas sem talento, mas pre-

tensiosas, nao resta outra coisa senao cri ticar os verdadei-

ros talentos. Que triste consolo!

TREPLIOV [ i r o n i c o ] Os verdadeiros talentos! [ R a i ' V o s o ] Pois, se

quer mesmo saber, eu tenho mais talento do que todos vo-

ces! [ Ar ra nc a a a ta du ra d a c ab efa ] Voces sao apenas banais,

tornaram a arte em seu poder e so julgam legitime e auten-

t ico aquilo que voces mesmos fazem, e quanto ao resto, tra-

tam de perseguir e sufocar! Nao reconheco 0valor de voces!

Nao reconheco nem a ele nem a voce!

ARKADINA Seu decadente!

TREPLIOV Volte para oseu adorado teatro e represente as suas

pecinhas mediocres e lamenraveis]

ARKADINA Nunca, em toda minha vida, representei em ,

pec;as desse tipo. Deixe-me em paz! Voce nao e capaz

Page 32: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 32/56

 

nem de escrever urn reles vaudevil le. Seu burguesinho de

Kiev! Parasita!

TREPLIOV Sovina!

ARKADINA Seu esmolambado!

[ T re p li ov s en ta -s e e c bo r a em s i! en c io .]

ARKADINA Voce e uma nulidade! [ C am in h a a g it ad a ] Nao chore!

Nao hipor que chorar... [Chora]Nao deve chorar... [Beija-o

n a t es ta , n a fa ce , n a c ab er a]Minha crianca querida, me des-

culpe... Perdoe a sua mae pecadora. Perdoe esta infeliz.

TREPLIOV [abrafa-a] Sevoce soubesse! Eu perdi tudo. Ela nao

me ama, eu ja nem consigo mais escrever... Todas as espe-

ranyas acabaram ...

ARKADINA Nao se desespere ... Tudo se resolved. Trig6rin vai

embora, daqui a pouco, e ela vai amar voce de novo.

[ En x ug a a s l dg ri m as d of il ho ] Chega. J a fizemos as pazes.

TREPLIOV [ be ij a a m a o d el a] Sim, mae.

ARKADINA [ c om car inho] Faca as pazes corn ele tambem. Nao

himotivo para urn duelo... Nao e verdade?

TREPLIOV Esta bern ... S6 peyo uma coisa, mae: que eu nao

tenha de falar corn ele. Seria demais para mim ... Estaalem das minhas forcas ...

[En tr a T r igo r in .]

TREPLIOV Pronto ... J a vou indo ... [ A s p re ss as , g u a r d a o s r em e-

d io s n o a rm a ri o] Daqui a pouco 0medico vai fazer urn

novo curativo ...

TRIGORIN [ pr oc ur a n as f olh a s d e um l iv ro ] Pagina 121... linhas

II e 12••• Aqui esta.. . [Ll] "Se algum dia voce precisar da

minha vida, venha e tome-a."

[ Tr ep li o· v p e ga d o c ha o a a ta du ra e s ai.]

ARKADINA [ depo i s de o l ba r par a 0 relogio] Logo trarao os cavalos.

TRIGORIN [p ara si m esm o] "Se algum dia voce precisar da

minha vida, venha e tome-a."

ARKADINA Suas malas ja estao prontas?

TRIGORIN [ c om impaci e nc ia ] Sim, sim ... [Pensat ivo] Por que

este apelo de uma alma pura me da uma sensacao de tr is-

teza e deixa meu coracao tao angustiado? "Se algum dia

voce precisar da minha vida, venha e tome-a." [ParaArka-

dina] Podemos ficar mais urn dia?

[ Ar kd d in a b al an ca a c ab ec ap a ra n eg a r 0pedido.]

TRIGORIN Vamos ficar!

ARKADINA Meu querido, eu sei 0 que prende voce aqui. Mas

tente se controlar . Voce esta urn pouco embriagado, s6 isso;

f ique s6brio de novo.

TRIGORIN Seja sensata, voce tambem, seja razoavel, ponderada,

eu lhe imploro, encare tudo isto como faria uma verdadeira

amiga ... [A perta a m ao dela] Voce e capaz de fazer um

sacrificio ... Seja minha amiga, me de a liberdade ...

ARKADINA [ com fo r te em o fa o ] Esta tao apaixonado assim?

TRIGORIN Sinto-rne atraido para ela! Quem sabe nao e disso

exatamente que eu preciso?

Page 33: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 33/56

 

ARKAD"INA 0 amor de uma mocinha do campo? Ab, como

voce se conhece pouco!

TRIGORIN As vezes sonhamos acordados e eu mesmo,

enquanto converso corn voce, adormeco e vejo Nina num

sonho. .. sonhos doces, maravilhosos tomam conta de

mim ... Liberte-me ...

ARKADINA [tremula] Nao, nao ... Sou uma mulher comum, e

impossfvel esperar de mim uma coisa dessas ... Nao me

torture, Boris . .. Tenho medo ...

TRIGORIN Se voce quiser , pode se tornar uma mulher extraor-

dinaria. Urn amor jovem, fascinante, poetico, que nos leva

para urn mundo de sonhos - nesta vida, s6 isso e nada

mais pode nos trazer a felicidade! Ate hoje, nao experi-

mentei urn amor assim ... Na juventude, eu tive de ficar

batendo a porta de todas as redacoes de jornal, tive de

lutar contra a miseria Agora, ai esta ele, esse amor che-

gou, afinal, e me seduz Qual 0 sentido de fugir?

f ARKADINA [ c om ra iv a] Voce perdeu a cabecal

TRIGORIN E 0 que importa?

ARKADINA Hoje, parece que todos voces se combinaram para

me fazer sofrer! [Cham]

TRIGORIN [ se g ur an d o a p r o pr ia c a be ra } Voce nao entende! Naoquer entender.

ARKADINA Sera que ja estou tao velha e tao feia que voce

nem mais se acanha de falar comigo sobre outras mulhe-

res? [ Ab ra ra -o e b ei ia -o } Ah, voce enlouqueceu! Meu

lindo, meu maravilhoso ... Voce e a ultima pagina da

minha vida! [Poe- se de joe /has] Minha alegria, meu orgu-

lho, minha felicidade suprema ... [ A bm r a- o p e /o s j oe /h a s]

< 66 >

Se voce me abandonar, ainda que so por uma hora, nao

vou sobreviver, ficarei louca, meu bravo, meu glorioso,

meu soberano ... "

TRIGORIN Alguern pode vir. [A ju da -a a se le va n ta r]

ARKADINA Nao importa, eu n ao me envergonho do meu arnor

por voce. [ Be i/ a s ua s m a os ] Meu tesouro, meu desmiolado,

voce quer fazer loucuras, mas eu nao quero, nao vou dei-

xar... [Ri] Voce e meu ... e meu ... Esta testa e rninha, estes

olhos sao meus, estes lindos cabelos sedosos tambern sao

meus ... Voce e todo meu. Voce e tao talentoso e intel igen-

te, e 0melbor de todos os escri tores contemporaneos, e a

unica esperan<;a da Russia ... No que voce escreve, hi tanta

sinceridade, simplicidade, tanto frescor, e urn humor tao

sadio ... Com urn unico trace, voce e capaz de revelar 0

que hi de mais importante e caracterfstico num persona-

gem ou numa paisagem, e como sao vivas as pessoas que

voce cria. Ah, e impossrvel ler voce e nao se entusiasmar!

Acha que isto e bajulacao? ~le quero lisonjear voce?

Entao olhe-rne bern nos olhos .. . olhe .. . Pareco uma men-

tirosa? Abra os olhos, so eu sei apreciar 0 seu valor; so eu

Ihe digo a verdade, meu querido, meu admiravel. Vai vir

comigo? Vai? Nao vai me abandonar?TRIGORIN Nao tenho vontade propria . .. Nunca tive vontade

propria ... l\Iole, frouxo, sempre submisso - como sera

possivel que isto agrade a uma mulher? Leve-rne embora,

tire-me daqui, mas nfio deixe que eu me afaste de voce

nem urn pas so .. .

"\ ARKADINA [consigo mesma] Agora ele e meu. [Com na tu r a /i dade ,

c om o se n ad a tiu es se o co rr id o] Olhe, se voce quiser, pode

Page 34: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 34/56

 

f icar. Irei sozinha e voce seguira depois, daqui a uma serna-

na. Na verdade, por que tanta pressa?

TRIG6RIN Nao, iremos juntos.

ARKADlNA Como preferir, iremos juntos, entao ...

[Pausa. Trigorin escreue no seucaderno.]

ARKADINA 0 que foi?

TRIG6RIN Ouvi, de manha, uma expressao bonita: "0 bosque das

donzelas" ... Vai me servir para alguma coisa. [Espreguifa]

Quer dizer que vamos partir? Novamente os vagoes de trem,

as estacoes, as cantinas, os bifes empanados, as conversas ...

CHAMRAIEV Centra] Tenho a triste honra de anunciar que os

cavalos estao prontos. Ji e hora de ir para a estacao, minha

prezadissima senhora; 0 trem chega as duas horas e cinco

minutos. Mas entao, Irina Nikolaievna, por favor, nao se

esque<;a de tomar informacoes sobre aquele assunto: por

onde anda 0ator Susdaltsev? Esta vivo? Esta bern de saude?

Naquele tempo, nos bebiamos juntos .. . Na pe<;a0 correio

roubado, ele representou de forma i n i gu al ave l , . . Lembro

que, em Ielizavetgrad, contracenava com ele 0 ator tragi co

Izmailov, outra personalidade admiravel. .. Ndo se apresse,

minha prezadissima senhora, ainda temos mais cinco rni-

nutos. Certa vez, num melodrama, e1es representavam 0

papel de conspiradores e, na hora em que, de subito, eram

apanhados em flagrante, era preciso exclamar: "Cairnes

numa cilada!". E 0 Izmailov disse: "Caimos numa salada!".

[Gargalha] Numa salada!

[Enquanto Cbamraleu fala, Iako» se ocupa das malas, a criada

traz para Arkddina 0 chapiu, 0 manto, 0 guarda-chuva e as luuas;

todos ajudam Arkddinaa se agasalhar. 0cozinbeiro espia da porta

da esquerda e, depois de esperar urn pouco, auarua hesitante.

Entram Polin a rlndreieuna e, depois, Sarin eMiedviedienko.]

POLINA [com urn cestinho] Ameixas para a senhora comer na

viagem .. . Estao muito doces. Talvez sinta vontade de be-

liscar alguma coisa ...

ARKADINA A senhora e muito boa, Polina Andreievna.

POLINA Adeus, minha cara! Desculpe se alguma coisa nao

correu como devia. [Chora]

ARKADINA [abrafa-a] Tudo correu muito bern, tudo esteve

otimo, Ora, nao e preciso chorar.

POLINA Nosso tempo ji esta passando!

ARKADINA 0que se pode fazer?

S6RIN [de casaco, capa, chapeu e bengala, entra pela porta da es-

querda, atrauessa 0 aposento] Irma, esta na hora, senao vai

acabar se atrasando. Vou tomar 0meu lugar.

MIEDVIEDIENKO Eu irei a pe ate a estacao ... para acompa-

nhar a sua partida. Eu sou ligeiro .. . [SaiJ

ARKADINA Adeus, meus queridos ... Se estivermos vivos e com

saude, nos veremos de novo no proximo verao .. .

[A criada de quarto, leikov t? 0 cozinbeiro beljam a mao de/a.]

ARKADINA Nilo se esque<;am de mim. [Dei urn ruble ao cozi-

nheiro] Aqui esta, urn rublo para os tres,

Page 35: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 35/56

 

COZINHEIRO Agradecernos rnuitissirno, senhora patroa. Qpe

faca uma 6tirna viagern! E urna enorrne satisfacao servir a

senhora!

IAKOV Qpe Deus a acornpanhe!

CHAMRAIEV Urna cartinha nos deixaria muito felizes! Adeus,

Boris Aleksieievitch,

ARKADINA Onde esta Konstantin? Avisem a ele que estou de

partida. Ternos de nos despedir. Entao, nao me queirarn

mal. [ Pa ra J d ko v ] Dei urn rublo para 0 cozinheiro. Mas e

para os tres,

[ To d os s ae m p el a d ir ei ta . ap alco fica v az io . O uu e-s e, v in do d e tr ds

d o p a lc o , 0 rum or das d espedida s. A criada vo lta p ara p eg ar a

c es ta d e a me ixa s s obr e a m es a e s ai d e n ov o.]

TRIGORIN [re tornando] Esqueci minha bengala. Acho que

ficou na varanda. [C am inha para ld e, na porta da esquerda,

e nc on tr a -s e c om N in a , q u ee nt ra ] E a senhorita? Estarnos de

partida ...

NINA Tive 0 pressentimento de que ainda nos veriamos uma

vez. [Agi tada] Boris Aleksieievitch, tomei uma decisao

irrevogavel , minha sorte esta lancada, you seguir a carrei-

ra de atriz. Arnanha, ja nao estarei mais aqui, vou deixar

meu pai, you abandonar tudo e cornecar uma vida nova.. .

Vou partir para Moscou, assim como 0 senhor. Nos nos

veremos por lao

TRIGORIN [o lh an do p ar a tr as ] Hospede-se no hotel Bazar

Eslavo ... Avise-me assim que chegar ... Ru~ Moltchanovka,

edificio Grokholski . .. Nao tenho mais tempo ...

[Pausa.]

NINA So mais urn minuto .. .

TRIGORIN [e m oaz baixa] A senhorita e tao linda ... Ah, que

felicidade saber que, em breve, nos veremos!

[ El a s e e n co st a a o p eit o d e T rig or in .]

TRIGORIN Verei de novo estes olhos deslumbrantes, este sorri-

so indescritive1mente belo, rneigo Estas feicoes doceis,

este rosto de uma pureza angelical Minha querida ...

CUm b e ij o p r o lo ng ad o .]

[Cort ina .]

Page 36: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 36/56

 

QUARTO ATO

Entre 0 terceiro e 0 quarto ato, hi urn intervalo de dois anos.

Agaivota encenada peloTeatro de Arte deMoscou.

Qparto ate: 0jogo de cartas.

Uma das salas na casa de Sorin, que Konstantin Trepliov

transformou em escrit6rio. Portas it direita e a esquerda, dando

para os aposentos internos. Defronte, uma porta de vidro que

da para a varanda. Alern dos m6veis habituais numa sala, hi

uma escrivaninha no can to dire ito, urn diva turco perto da

porta da esquerda e uma estante de livros; l ivros nas janelas ,

nas cadeiras. Noire. Urn lampiao esta aceso arrasde urn quebra-

luz. Ouve-se 0 rumor das arvores e 0 u ivo do vento nas cha-

mines. Soam as batidas do vigia noturno. Miedviedienko e

Macha entram.

Page 37: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 37/56

 

MACHA [ g ri ta , c hamando] Konstantin Gavrilitch! Konstantin

Gavrilitch! [ Ol ha e m v ol ta ] Nao hi ninguem, Toda hora, 0

velho pergunta onde esta Kostia, onde esta Kostia? Nao

consegue viver sem 0 sobrinho ...

MIEDVIEDIENKO Tern medo da solidao, [Escuta] Mas que

tempo horrivel! J a faz dois dias que esta assim.

MACHA [a um enta a ch am a d o la mp ia o] Ha ondas no lago.

Ondas enormes.

MIEDVIEDIENKO 0 jardim esta com urn aspecto tenebroso.

Deviam man dar desmontar aquele palco no meio do jar-

dim. Continua hi, nu, macabro, como urn esqueleto, e a

cortina balanca ao vento. Quando passei por la, ontem :i t

noite, tive a impressao de que alguern estava chorando.

MACHA Ora, deixe de bobagem ...

[Pausa.]

MIEDVIEDIENKO Vamos para casa, Macha!

MACHA [ ba lan ra a cabeca , n egando] Vou passar a noite aqui.

MIEDVIEDIENKO [supl ieanle] Macha, vamos embora! Nosso

bebe deve estar com fome.

MACHA Bobagem. Matriona vai amamenta-lo,

[Pausa.]

< 75 >

Page 38: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 38/56

 

- i-

MIEDVIEDIENKO Da ate pena.ja e a terceira noite que ele fica

longe da mae.

MACHA Voce e urn estorvo. No inicio, so queria saber de f ! . 1 0 -

sofar e agora so fala do bebe e de ir para casa, do bebe e de

ir para casa . .. nao se ouve outra coisa da sua boca.

MIEDVIEDIENKO Vamos para casa, Macha!

MACHA Va voce sozinho.

MIEDVIEDIENKO 0seu pai nao vai me emprestar os cavalos.

MACHA Vai, sim. E s6 voce pedir que ele empresta.

MIEDVIEDIENKO Por favor, eu implore. Entao, amanha voce

- vira para casa?-

MACHA [ as pir a r ap e] Esta bern, amanha, Mas que coisa en-

joada ...

[T re plio v e ste nd e a m ao e m sile ncio ; M ied vie die nk o sa i.]

FOLINA [ ol ha nd o p a ra 0 manuscri to] Ninguem pensava; nin-

guem podia sequer imaginar que voce ainda vir ia a ser um

escritor de verdade. E agora, grac;as a Deus, ate as revistas

comecaram a lhe mandar dinheiro. [P assa a m ao p elo cabelo

dele] Alem do mais, ficou bonito ... Querido Kostia, seja

bondoso, seja mais carinhoso com a minha Machenkal

MACHA [ta ze nd o a c am a] Deixe-o em paz, mae.

FOLINA [ p ar a T r ep li o v] E uma boa moc;a.

[Pausa.]

[ En t ram T re p li o· v e Pa l in a Andri ievna; T re pl io u t ra z a lm o fa da s e

um cobe r to r , P o li na tr az r ou pa s d e c ama ; p oe m tudo s ob re a s of a turco;

em seguida, Trepliou v ai p ara a su a m esa e s e nta -se .]

FOLINA Uma mulher nao precisa de quase nada, Kostia, basta

serolhada com carinho. Sei disso por experiencia pr6pria.

[T re plio v se le va nta d a m esa e s ai e m s iI en ci o. ]

MACHA Para que isso, rnamfie?

POLINA Piotr Nikolaievitch pediu para fazer a cama dele nos

aposentos de K6stia.

MACHA

Deixe-rne ajudar ... [Fa z a cama]POLINA [suspira] 0velho esta igual a uma crianca ... [Apl"Oxi -

r na -s e d a e sc rl oa ni nb a e , a po ia nd o- se n o c oto v e la , o lh a p ar a

u rn m a n u sc ri to ; p a ll sa ]

MIEDVIEDIENKO Entao vou embora. Ate logo, Macha. [Beija

su a m ao ] Adeus, mamae. [Tenta beijar a m ao da so gra ]

POLINA [aborrecida] Ora! Va com Deus.

MIEDVIEDIENKO Adeus, Konstantin Gavrilitch.

MACHA Pronto, a senhora 0 irritou. Sera que nao consegue

deixa-lo em paz?

POLINA Sinto pena por voce, Machenka.

MACHA Nao precisa ter penalPOLINA Meu coracao sofre par voce. Pais eu vejo tudo, enten-

do tudo.

MACHA :I t tudo bobagem. Arnor sem esperanca ... essas coisas so

existem nos romances. Tolices. Nao se pode amolecer, nao se

pode ficar a vida toda na beira da praia, esperando que. 0

tempo melhore ... Quando 0 amor se instala no coracao, e

preciso expulsa-lo .ja prometeram transferir meu marido para

< 77 >

Page 39: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 39/56

 

outro distrito. Depois que eu e ele nos mudarmos para la ,

tudo isso sera esquecido ... YOU arrancar do coracao, pela raiz.

[A dois comodos dali, tocam um a oalsa melancollca.s

POLINA Kostia esta tocando. Quer dizer que esta triste .

MACHA [sem ruido, dd alguns passos de valsa] 0 principal , rna-

mae, e que meus olhos nao 0vejam. Assim que derem essatransferencia ao meu Siemion, acredite, esquecerei Kostia

em urn mesoTudo isso e uma bobagem.

[Abre-se a porta da esquerda. Dorn e Miedviedienko empurram a

cadeira de rodas de Sarin.]

MIEDVIEDIENKO Agora somos seis em casa. E a farinha custa

setenta copeques 0pud.

DORN L a vem ele com a mesma hist6ria.

MIEDVIEDIENKO Para 0 senhor e facil zombar. Tern dinheiro

de sobra.

DORN Dinheiro? Depois de trabalhar tr inta anos como medi-

co, meu amigo, e trabalhar sem descanso, sem poder dispor

so para mim nem do dia nem da noite, consegui economi-

zar apenas dois mil rublos, que gastei faz pouco tempo,

numa viagem ao exterior. Nao possuo nada.

MACHA [para 0 marido] Mas voce nao ia embora?

MIEDVIEDIENKO [com ar wlpado] De que jeito, se nao me

emprestam os cavalos?

MACHA [ irri tada e amarga, a meia voz] Eu gostaria de nunca

mais ver voce na minha [rente!

[A cadeira de rodas s~ de tim na parte esquerda do comodo; Polino

Andriievna, Macha e Dorn sentam-se junto a ela;Mieduiedienko,

entristecido, sepoe a parte.] .

DORN Mas quantas novidades, por aqui! Transformaram a sala

de visitas em urn escritorio de trabalho.

MACHA Aqui e mais comodo para Konstantin Gavrili tch tra-

balhar. Ele pode sair para 0 jardim, quando tern vontade, e

ficar la, pensando.

- - [Ouvem-se as batidas do-vigia noturno.]

SaRIN Onde esta minha irma?

DORN Foi a estacao, encontrar-se com Trig6rin. Daqui a pouco,

estara de volta.

SaRIN Se 0 senhor achou necessario escrever para a minha

irma e pedir que viesse para ca, isso so pode significar que

meu estado de saude e mesmo grave. [Apas um mornento de

silencio] Essa e boa! Estou gravemente enfermo e ninguern

me da nenhum remedio.

DORN Mas que rernedio 0 senhor quer? Gotas de valeriana?

Bicarbonato de sodio? Quinine?SaRIN Pronto, la vem sermao, Ah, que suplicio! [Acena com a

cabeca na direaio do so/fi] Fizeram essa cama para mim?

POLINA Sim, para 0 senhor, Piotr Nikolaievitch.

SaRIN Muito obrigado.

DORN [can taro/a] "A lua flutua no ceu da noite . .. "

SaRIN Eu queria sugerir ao Kostia 0 tema para uma historia. 0 ti-

tulo deve ser 0 seguinte "0 ho~em que queria", "L'Homme

<7 9 >

Page 40: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 40/56

 

q u i a v ou lu " .Nos bons tempos, quando era moco, eu queria ser

escritor, e nao fui; queria falar bonito, e falava pessimamente

[ zom ban do d e si mesmo] . "E portanto, nao obstante, conforme

eu ia dizendo, outrossim ... " E acontecia que, em vez de fazer

urn resumo, eu me alongava, a ponto de ficar todo suado.

Qperia casar, e nao casei; queria muito viver na cidade, e fui

acabar minha vida no campo, e assim por diante.

DORN Queria ser urn autentico Conselheiro de Estado, e foi.

S6RIN [ri] Nao foi algo que desejei com ardor. Simplesmente,

aconteceu.

DORN Expressar descontentamento com a vida, aos sessenta e

dois anos de idade, 0 senhor hi de convir, nao e uma atitu-

de generosa,

S6RIN Mas que sujeito cabeca-dura! Entenda, isto e vontade

de viver!

DORN 1s50nao passa de leviandade. Segundo as leis da nature-

za, toda vida precis a ter urn fim.

S6RIN 0 senhor raciocina como urn homem saciado. 0 senhor

esta saciado e por isso e indiferente a vida; para 0 senhor, tanto

faz.Mas espere s6 a hora de morrer e aivera como e horrivel.

DORN 0temor da morte e urn medo animal ... E preciso sufoca-

10.S6 temem a morte de forma consciente aqueles que creernna vida eterna e sentem urn medo terrivel de seus pecados.

Mas 0 senhor, em primeiro lugar, nao acredita nisso; em

segundo lugar... quais sao os seus pecados? 0 senhor traba-

lhou durante vinte e cinco anos numa repart icao dajustica,

S6 isso e nada mais.

S6RIN [ri] Vinte e oito anos .. .

< SO)

[ En tr a T re p li ov e senta-se num banquinho aosp es d e S ar in . M a ch a

ndo d e sv ia d e le 0 olbar; nem po r um mom en ta . ]

DORN Estamos atrapalhando 0 t rabalho de Konstantin Gavrf-

lovitch.

TREPLIOV Nao, de maneira alguma.

[Pausa.]

MIEDVIEDIENKO Permita que the pergunte, doutor, que cida-

de mais the agradou, quando esteve no exterior?

DORN Genova.

TREPLIOV Por que Genova?

DORN A multidao nas ruas e uma coisa magnifica. A noite,

quando voce sai do hotel, a rua inteira esta apinhada de

gente. Entao voce se deixa levar pela multidao, carninha

ao leu, para urn lado e para 0 outro, em ziguezague, voce

se sente unido as pessoas, funde-se a psique da mulridao e

corneca ate a acreditar na possibilidade real de existir uma

alma do mundo, semelhante aquela alma do mundo que

Nina Zarietchnaia representou na sua pe<;a,naquela oca-

siao. Por falar nisso, por onde anda a senhorita Zarietch-

naia? Como vai ela?

TREPLIOV Deve estar bern.

DORN Ouvi dizer que levava uma vida urn tanto fora do co-

mum. E verdade?

TREPLIOV Essa, doutor, e uma longa hist6ria.

DORN Pois faca urn resumo.

< 8r )

Page 41: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 41/56

 

[Pausa.]

TREPLIOV Ela fugiu de casa e foi viver com Trigorin. 0 se-

nhor sabia disso?

DORN Sabia.

TREPLIOV Ela teve urn filho. A crianca morreu. Trigorin se

cansou dela e voltou para os seus amores de antes, como ja

era de esperar. Alias, ele nunca abandonou seus antigos

amores e, como nao tern nenhum carater, sempre conse-

guiu dar urn jeitinho para estar dos dois lados. Ate onde

posso avaliar, por tudo 0 que soube, a vida particular de

Nina foi urn redundante fracasso.

DORN Mas .. . eo teatro?

TREPLIOV Pior ainda, ao que parece. Ela estreou num teatro

pequeno, em uma estacao de veraneio nos arredores de

Moscou, e depois seguiu para 0 campo. Eu nunca a perdia

de vista e, por algum tempo, onde quer que ela estivesse,

eu tambem estaria. Ela sempre era escalada para papeis

importantes, mas representava de forma tosca, com mau

gosto, aos berros e com gestos bruscos. Em alguns mo-

mentos, erguia a voz com talento, morria com talento, mas

eram s6 alguns momentos.

DORN Entao, apesar de tudo, e1atern talento?

TREPLIOV It diflcil avaliar.Talvez tenha. Eu a via, mas ela nfio

queria me ver, e a empregada nao me deixava entrar no

seu quarto de hotel. Eu entendia os sentimentos dela e

nao insistia para ve-la.

[Pal/sa.]

< 8z >

TREPLIOV 0 que mais posso lhe dizer? Depois, quando voltei

para casa, recebi cartas de Nina. Cartas sensatas, cordiais,

interessantes; ela nao se queixava, mas eu percebia que

estava profundamente infeliz; cada linha era urn nervo

retesado, doente. A imaginacao tambern estava urn pouco

abalada. Ela assinava A Gaivota. Na pes:a A sere ia , de

Puchkin, 0 moleiro diz que e urn corvo, da mesma forma

que Nina, nas cartas, sempre repetia que era uma gaivota.

Agora ela esra aqui.

DORN Como assirn, esta aqui?

TREPLIOV Na cidade, numa hospedaria. Jifaz uns cinco dias

que esta hospedada nurn quarto. Fui ate la para ve-la, e

f,:s\<PM:j.ria Ilinitchna tambern foi, mas ela nao recebe nin-

guem, Siemion Siemi6novitch garante que ontem, apes 0

almoco, esteve com ela no campo, a duas verstas daqui.

MIEDVIEDIENKO It verdade, eu a vi. Ela estava voltando de la

para a cidade. Eu a cumprimentei, perguntei por que nao

vinha nos visitar. Respondeu que viria.

TREPLIOV Nao vai vir.

[Pausa.]

TREPLIOV 0 pai e a madrasta nem querem ouvir falar dela.

Puseram vigias em toda parte, para impedir que a filha

sequer se aproxime da propriedade. Uuntamente com 0 me-

d i c o , d i r ig e -se a escrivaninha] Como e Hcil ser fi16sofo no

papel , doutor, e como e diflcil, na vida real!

SORIN Era uma jovem fascinante.

DORN Como disse?

Page 42: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 42/56

 

SORIN Eu disse que era urna jovem fascinante. Durante urn tempo,

ate 0Conselheiro de Estado Sarin esteve apaixonado por ela.

DORN Seu velhote namorador.

[O uv e-se u ma risa da d e C ha mra ie v.]

POLINA Parece que ja estao de volta da estacao .. .

TREPLIOV Sim, estou ouvindo a voz de mamae.

[EntramArkddina, T rig or in e , atrds deles , Chamraiev .]

I!I

CHAMRAIEV [entrando] Todos nos estamos envelhecendo, nos

degradando sob 0 efeito das intemperies, mas a prezadfssi-

rna senhora continua sempre jovem ... de blusinha clara,

cheia de vida ... cheia de gras:a.. .

ARKADINA 0 senhor esta querendo par mau olhado em mim

de novo, homem enfadonho!

TRIGORIN [ pa ra S a ri n] Como vai, Piotr Nikolaievitch? Conti-

nua adoentado? Mas isso nao e born! [A o oer M ac ha , se a le -

gra] Maria Ilmitchnal

MACHA 0 senhor me reconheceu? [A per ta a m ao d ele]

TRIGORIN Casou-se?MACHA Ha muito tempo.

TRIGORIN Esta feliz? [C um prim enta D arn e M ied viedienko e, em

s eg uid a, h es it a a nt es d e s e a p ro xi ma r d e T re pl io v] Irina Niko-

laievna me disse que 0 senhor ja esqueceu 0 que houve e

deixou sua raiva para tras,

[T re plio v es te nd e a m ao p ara e le .]

ARKADINA [ p ar a a f il h o] Boris Aleksieievitch trouxe a revista

que publicou 0seu novo canto.

TREPLIOV [a pa nh a a v olu me; p ara T rig arin J Muito obrigado.

o senhor e muito gentil.

[ S en ta - se . ]

TRIGORIN Seus admiradores Themandam cumprimentos ... Em

Petersburgo e em Moscou, todos estao muito interessados

pelo senhor e nao param de me fazer perguntas a seu res-

peito. Perguntam: como de e , quantos anos tern, e moreno

ou loire? Por alguma razao, imaginam que 0 senhor ja nao

e jovem. E ninguem sabe 0seu sobrenome verdadeiro, pois

o senhor assina com urn pseudonimo. 0 senhor e miste-

rioso, como 0Mascara de Ferro.

TREPLIOV Vai ficar muito tempo aqui?

TRIGORIN Nao, acho que amanha mesmo sigo para Moscou.

E preciso. Tenho de me apressar para terminar urn

romance e alern disso prometi mandar alguma coisa para

uma coletanea. Em suma, e a mesma historia de sempre.

[E nq ua nto a s d ais c on oe rsa m, A rk ad in a e P olin a A nd re ie un a p oe m

u ma m esa d ejo go n o c entro d a sa la e a d esd obr am ; Cbamraieu acen-

d e u ela s, a rru ma ca de ir as. R etir am d o a rm aria u mjo go d e v {sp or a.]

TRIGORIN 0 clima nao me deu uma acolhida muito aprazivel.

o vento esta cortante. Amanha de manha, se 0 vento

acalmar, irei ate 0 lago para pescar. Por falar nisso, preciso

rever 0jardim e aquele local onde .. . 0 senhor se lembra...

< 85 )

Page 43: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 43/56

 

encenaram a sua pec;a. Tenho urn tema ji bern maduro

para desenvolver, s6 me falta recuperar a memoria do

local em que a acao se passa.

MACHA [para 0paiJ Papai, empreste um cavalo para 0 meu

marido! Ele precisa ir para casa.

CHAMRAIEV [irritado] Cavalo ... casa... [ Com s ev e ri da d e] Voce

mesma e testemunha: eles acabaram de chegar da estacao.

Nao se pode abusar dos cavalos.

MACHA Mas hi outros cavalos . .. [ Ve nd o q ue 0 pai se mantem

c ala do , a ba na a s m a os ] Nao adianta falar com 0 senhor .

MIEDVIEDIENKO Eu YOU a pe, Macha. Nao se preocupe .

POLINA [com um suspiro] Ape, num tempo desses ... [Senta-se

a me sa d ej og o] Por favor, senhores. Sentem-se.

MIEDVIEDIENKO Afinal, sao s6 seis verstas de distancia ...

Adeus ... [B eija a m ao da esp os a] Adeus, mamae. [A sogra ,

de md uontade, the dd a m ao para beijar] Eu bern que pre-

feria nao incomodar ninguem, mas 0 bebe [Faz um

cum prim ento com a cabeca p ar a to do s] Adeus [S ai, co m

urn ar d e c u lp a ]

CHAMRAIEV Isso, tern mesmo de ir ape. Nao e nenhum

general.

POLINA [ da nd o p an ca din ha s n a m es a] Por favor, senhores. Nao

vamos perder tempo, daqui a pouco VaG nos chamar para

o jantar.

jogo de vispora, 0mesmo que a falecida mamae ainda jo-

.gava conosco, quando eramos criancas. 0 senhor nao

gostaria de tomar parte do nosso jogo, ate a hora do jan-

tar? [Senta-se a me sa c om T ri go ri n] E um jogo enfadonho

mas, depois que a gente se acostuma, nao e tao ruim

assim. [D a trts c a rt as p a ra c a da jo g ad o r]

TREPLIOV V o lh ea nd o a r ev is ta ] Ele leu 0 proprio conto de fio

a pavio, mas nem soltou a ponta das folhas do meu con to.

[P oe a re vis ta s obr e a es cr iv an in ha , em s eg uid a s e d ir ig e p ara

a p or ta d a e sq uer da; a o pa ssa r p ela m ae, beija s ua c abe{a]

ARKADINA E voce, K6stia?

TREPLIOV Desculpe, nao estou com vontade ... Vou caminhar

urn pouco. [Sai]

ARKADINA A aposta e de dez copeques. Fac;a a aposta por

mim, doutor.

DORN Com todo prazer.

MACHA Todos ji apostaram? Entao YOU comec;:ar... Vinte

e dois!

ARKADINA Eu tenho.

MACHA Tres!

DORN E meu.

MACHA 0 senhor ja marcou 0 tres? Oito! Oitenta e urn! Dez!

CHAMRAIEV Nao corra.

ARKADINA Mas que recepcao consagradora eu tive em Khar-

kov, meu Deus, minha cabeca esta rodando ate agora!

MACHA Trinta e quatro!C ha mr aiev , M ach a e D o rn s en ta m-se a mesa.]

ARKADINA [ pa r a T r ig o ri n ] Aqui, quando comec;am as noites

longas de outono, e costume jogar vispora. Veja 56:0velho

[P or tra s d o p alc o, to ca m u ma v als a melancolica.i

< 86 >

Page 44: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 44/56

 

, I

ARKADINA Os estudantes me aclamaram Tres corbelhas,

duas coroas e ainda por cima isto aqui [ Tir a u m b ro cb e

dopei to e 0joga sobre a m es aJ

CHAMRAIEV Sim, e autentica ...

MACHA Cinqiienta!

DORN Cinquenta redondos?

ARKADINA Usei roupas maravilhosas ... Digam 0 que disse-

rem, para me vestir, eu nao sou nada boba.

POLINA Kostia esta tocando piano. Esta triste, coitado.

CHAMRAIEV OS jornais 0 criticam demais.

MACHA Setenta e sete.

ARKADINA E sovontade de chamar atencao,

TRIGORIN Ele nao tern tido sorte. Nao consegue, de maneira

alguma, alcancar 0 seu tom autentico. Hi algo estranho,

vago, por vezes ate semelhante a loucura. Nenhum perso-

nagem com vida propria.

MACHA Onze!

ARKADINA [o lhando para trds, n a d ir ec do de Sa r in ] Petruchka,

esta aborrecido?

MACHA Vinte e oito!

TRIGORIN Pescar uma acerina ou uma perea, isto sim e 0 auge

da felicidade!

DORN Pois eu acredito em Konstantin Gavrili tch. Hi alguma

coisa nele! Hi alguma coisa! Ele sabe pensar por meio de

imagens, seus contos sao expressivos, vivazes, e provocam

em mim sentimentos fortes. So lamento que ele nao tenha

prop6sitos mais definidos. Cria impressoes e mais nada, e

o problema e que nao se pode ir muito longe apenas com

impress6es. Irina Nikolaievna, a senhora esta contente por

seu mho ser escritor?

ARKADINA Imaginem s6: eu ainda nao Ii.Nunca tenho tempo.

MACHA Vinte e seis!

[Trepliov entra em silencio e c am in ha a li a s ua e sc riv an in ha .]

CHAMRAIEV [para Tr igar inJ Ah, Boris Aleksieievitch, ficamos

com uma coisa que lhe pertence.

TRIGORIN Que coisa?

CHAMRAIEV Certa vez, Konstantin Gavril itch matou uma gai-

vota com urn tiro e 0 senhor me encarregou de pedir que

a empalhassem. .

TRIGORIN Nao me lembro disso. [Pensativo] Nao me lembro!

MACHA Sessenta e seis! Urn!

TREPLIOV [ ab rc ' a ja ne la , p o e- se a e SCZ lt ar ]Como esta escuro!

Nao entendo de onde me vern essa angustia.

ARKADINA Kostia, feche a jane1a, ha uma corrente de ar.

[Pawa.]

ARKADINA Pegou no sono.

DORN 0 Conselheiro de Estado dorme.

MACHA Sete! Noventa!

TRIGORIN Se eu morasse numa propriedade como esta, a beira

de urn lago, voces acham que eu teria vontade de escrever?

Eu trataria de sufocar essa loucura e nao faria outra coisa

senao pescar no lago. [ T re p li ov f le h a a j an da .]

< 88 >

Page 45: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 45/56

 

MACHA Oitenta e oito!

TRIGORIN Cornpletei a minha carte1a, senhores.

ARKADINA [alegre] Bravo! Bravo!

CHAMRAIEV Bravo!

ARKADINA Esse homem sempre tern sorte em tudo. [Levan-

ta-se] E agora vamos beliscar alguma coisa. A nossa

celebridade nao almocou hoje. Depois do jantar, vamos

continuar 0 jogo. [Para 0ftlho] Kostia, largue os seus es-

cri tos e venha comer.

TREPLIOV Nao quero, marnae, nao estou com fome.

ARKADINA Como quiser . [ A co rd a S o ri n] Pietrucha, jantar!

[Dando 0 b ra co p ar a C h am r ai ev ] Vou contar ao senhor

como fui recebida em Kharkov...

sombra da roda de urn moinho se estende negra - e esta

pronta a noite de luar, mas para mim e preciso uma luz

bruxuleante, estrelas cintilantes e serenas, e sons longln-

quos de urn piano, que se extinguem no ar perfumado e

silencioso ... Isto e urn suplicio.

[Pal /sa .]

TREPLIOV Cada vez mais me convenco de que a questao nao

consiste em formas novas e formas velhas, mas sim em que

a pessoa escreva sem pensar em formas, sejam quais forem,

que ela escreva porque isso flui l ivremente da sua alma.

[P olin a a pa ga a s uelas s ob re a m esa , e m s eg uid a e la e D a rn em pu r-

r am a c ad ei ra d e r od as . T od os s ae m p ela p or ta d a e sq ue rd a; n o p al co ,

r es ta a p en a s T r ep li ov , s en ta d o it escrivaninha.]

[ AI gu im b at e ajanela prox ima a escrivaninha.]

". iI,

I

TREPLIOV [ po e- se a e sc re ve r; p as sa a s olbos p elo q ue ja escreveu]

Eu, que falava tanto em forrnas novas, agora sinto que,

pouco a pouco, YOU tambem caindo na rotina. [Li] "Urn

cartaz na cerca apregoava ... Urn rosto palido, emolduradopor cabelos escuros ... " Apregoava, emoldurado ... Isto e

mediocre. [Risea] Vou comecar com 0 heroi acordando

com 0 barulho da chuva, e todo 0 resto vai para 0 lixo.

A descricao da noite de luar esta longa e rebuscada. Trigo-

rin desenvolveu algumas tecnicas para uso proprio e assim

ficou facil para de ... Basta escrever que 0gargalo de uma

garrafa quebrada cintila na beira de urn acude e que a

TREPLIOV Quem e? [Olha pe laj ane la ] Nao vejo nada ... [A br e a

p or ta d e oidro e o lh a p a ra aj ar di m ] Alguem desceu correndo

pela escada. [E1gue a voz] Quem esta ai? [Sai; ouuem-se sells

p a ss os l ig ei ro s , el a oaranda; apos meio minute, retorn a em

c om p an bi a d e N i na Z ar ie tc hn ai a] Nina! Nina!

[N ina abraca a ca beca d e T rep liov contra 0 pe ito e tenta a bafara s so l u ro s . ]

TRE L [ 'J ] N' IN' 1£' • • F'10\, comov lUO Ina, mao voce .. , voce. . . 01como

se eu tivesse urn pressentimento, minha alma ficou terri-

velmente aflita 0 dia todo, [Tom a de N ina se ll chape ll e seu

manto] Ah, minha querida, minha adorada, ela voltou!

Nao vamos chorar, nada de choro.

Page 46: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 46/56

 

NINA Tern alguem aqui.

TREPLIOV Ninguem,

NINA Tranque as portas para que nao entrem.

TREPLIOV Ninguern vai entrar.

NINA Eu sei que Irina Nikolaievna esta aqui. Tranque asportas...

TREPLIOV [fe ch a a p orta d a d ire ita a cbaue , d i r ige - se a p or ta d a

esquerda] Esta nao tem tranca. Vou barrar a entrada com uma

poltrona. [ Po e um a p olt ro na e ne os ta da a porta] Nao tenha

medo, ninguem vai entrar.

NINA [ o lha f ix amen te para 0 ros to de l e] Deixe-rne olhar para voce.

.-----+'[OJha-em-voltaJ-Aqui.dentro-esta qlJente,_agIadml A D t e . s _ , ~ _

aqui ficava a sala de visitas. Mudei muito?

TREPLIOV Sim ... emagreceu, e seus olhos ficaram maiores.

Nina, nem acredito que eu esteja vendo voce. Por que nao

quis me receber? Por que nao veio antes? Eu sei que voce

esta aqui ja faz quase uma semana ... Fui todos os dias ate

onde voce esta hospedada, varias vezes por dia, me plantei

ernbaixo da sua janela, como urn mendigo.

NINA Eu tinha medo de que voce estivesse com odio de mim.

Sonho todas as noites que voce olha para mim e nao me

reconhece. Se voce soubesse! Desde a minha chegada,

carninhei muitas vezes por aqui ... na beira do lago. Quan-tas vezes estive perto da sua casa e nao me atrevi a entrar,

Vamos sentar.

[Sentam-se.]

NINA Vamos sentar e £lc~r conversando, conversando. Aqui e

agradavel, quente, acolhedor ... Escute ... e 0vento? Ha em

Turgueniev um trecho que diz: "feliz de quem, numa noite

como esta, tem um teto para se abrigar e um cantinho

aquecido". Eu sou uma gaivota ... Nao, nao e isso. [Egrega

a t e st a ] 0 que eu estava dizendo? Ah, sim... Turgueniev ...

"E que Deus proteja todos as desabrigados que vagam sem

rumo . .. " Nao e nada. [Solufa]

TREPLIOV Nina, voce esta de novo... Nina!

NINA Nao e nada, isso me alivia... J a fazia dois anos que eu nao

chorava. Ontem, tarde da noite, fui ao jardim, ver se 0

nosso teatro ainda estava de pe , E ele esta la ate hoje .

-Glwrei-pe:la-primeiTa--ve-r,-em-dui-s-anuS)e--m-e-senti:-aii~····--···

viada, minha alma ficou mais serena. Veja, ja nao estou

mais chorando. [Seg ura a m ao dele] Mas quer dizer que

voce agora ja e um escritor ... Voce e um escritor e eu, uma

atriz ... Caimos nos dois no mesmo r u r bi l h ao . .. Eu vivia

alegre, como uma crianca . .. acordava de manha e come-

cava a cantar; amava voce, sonhava com a gloria, e agora?

Amanha, bern cedo, part irei para Ielets , num vagao de ter-

ceira classe . .. junto com os camponeses, e em Ielets os

comerciantes que sejulgam instruidos VaG me importunar

com as suas atencoes, C2lIevida sordidal

TREPLIOV Para que voce vai a Ielets?NINA Assinei um contrato para 0 inverno inteiro. Esta na hora

de partir.

TREPLIOV Nina, eu amaldicoei voce, senti odio, rasguei suas car-

tas e fotografias, mas sabia 0 tempo todo que minha alma

estava ligada a sua, para sempre. Deixar de amar voce, Nina,

e uma coisa que esta alern de minhas forcas, Desde que per-

di voce e desde que meus textos comes:aram a ser publicados,

Page 47: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 47/56

 

a vida para mim se tornou insuportavel, .. eu sofro . .. De

uma hora para outra, minha juventude foi como que arran-

cada a forca, e eu me sinto como seja t ivesse vivido noven-

ta anos neste mundo. Eu chamo 0 seu nome ern voz alta,

beijo a terra em que voce pisou; para onde quer que eu olhe,

aparece sempre 0 seu rosto, este sorriso carinhoso, que me

iluminava nos melhores anos da minha vida.. .

NINA [desconcertada] Para que ele esta falando isso, para que ele

esta falando isso?

TREPLIOV Estou sozinho, nenhum afeto me conforta, estou

frio, como num sub-rerrIDieo~etm:too--qm;esnevo-e--~TI>,

duro, sombrio. Fique aqui, Nina, eu implore, ou entao per-

mita que eu va com voce!

[ Ni na , r ap id am e nte , p oe 0 c ha pe u e o es te 0 manto .]

TREPLIOV Por que? Pelo amor de Deus, Nina ... [Obse rva ,

enquanto e l a s e a r r uma ; p au s a ]

NINA Meus cavalos estao a minha espera, na porteira. Nao me

acompanhe, irei sozinha .. . [ En tr e l dg ri ma s] Me de urn

pouco de agua . ..

TREPLIOV [d d d e beber a e la ] Para onde vai agora?

NINA Para a cidade.

[Pausa.]

NINA Irina Nikolaievna esta aqui?

TREPLIOV Esta .. . Na quinta-feira, titio nao passou bern, nos

telegrafamos para ela, pedindo que viesse.

< 94 >

NINA Por que voce disse que beijava a terra em que eu pisava?

o certo seria me assassinar. [ In cli na -s e s ob re a m e sa ] Estou

tao esgotada! Quem me dera poder descansar ... descansar!

[ Le va nt a a c ab ef a] Eu sou uma gaivota ... Nao, nao e isso.

Eu sou uma atriz. E isto! [Ouve 0 r is o d eA 1'k dd in a e d e T ri-

g o r in , p o e -s e a e sc uta , e m s eg uid a c or re a te a p o rta d a esquerda

e o lh a p el o b ur ac o d a f e ch ad ur a] Ele tambem esta aqui .

[ Vo lt a p a ra p er to d e T re pl io v] Ora ... Nao e nada ... Sim .Ele nao acreditava no teatro, sempre ria dos meus sonhos,

e assim, pouco a pouco, eu tambem fui deixando de acre-

ditare-catnumc:l~imo .. , Eenfao vleramasafh~oes 00-----

arnor,os ciumes, os receios incessantes com ° bebe . .. Eu me

tornei mesquinha, f ii ti l, representava de forma leviana ...

Nao sabia 0 que fazer corn as maos, nao sabia como me

postar no palco, nao dominava a minha voz. Voce nem

pode imaginar ° que e isso, urn ator perceber que esta

representando pessimamente. Eu sou uma gaivota. Nao,

nao e isso... Lembra que voce matou uma gaivota com urn

tiro? Urn homem chegou por acaso, viu uma gaivota e,por

pura falta do que fazer, matou a gaivota ... 0 tema para

urn pequeno conto. Mas nao e isso.. , [E sfr eg a a te sta c om a

m a o ] Do que eu estava falando? .. Falava sobre 0 teatro.

Agora nao sou mais assim ... Sou uma atriz de verda de,

represento com satisfacao, com entusiasmo, uma embria-

guez me domina no palco e eu me sinto linda. Agora,

enquanto estou aqui, caminho 0 tempo todo, caminho e

penso, 0 tempo todo, caminho e sinto que meu espirito se

torna mais forte a cada dia ... Agora eu sei, Kostia, agora

eu compreendo que no nosso trabalho, representando no

Page 48: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 48/56

 

palco ou escrevendo, 0que importa nao e a gloria, nao e 0

esplendor, nao e aquilo com que eu tanto sonhava, mas sim

a capacidade de suportar. Aprenda a carregar a sua cruz e

acredite . Eu acredito e, assim, nem sofro tanto e, quando

penso na minha vocacao, nao sinto medo da vida.

TREPLIOV [ c om t r is t e za] Voce encontrou 0 seu caminho, sabe

para onde ir , enquanto eu continuo mergulhado no caos

dos devaneios e dasvisoes, sem saber para que e para quem

isso serve. Eu nao acredito e nao sei qual a minha vocacao,

NINA [ e scu tando a t en tament e ] Psss... Eu ja you. Adeus. Quando

eu me tornar uma grande atriz, venha me ver. Pro mete?

Mas agora [ Ap er ta a m a o d ele ] 1 a e tarde. Mal me aglien-

to em pe Estou exausta, sinto fome . ..

TREPLIOV Nao va embora, eu the trarei urn jantar . ..

NINA Nao, nao . .. Nao me acompanhe, eu irei sozinha ... Os

meus cavalos estao perto daqui ... Quer dizer que e1aveio

com ele? Ora, tanto faz. Quando estiver com Trigorin, nao

lhe conte nada Eu amo Trigorin. Eu 0 amo ainda mais

do que antes 0 tern a para urn pequeno conto ... Eu

amo, amo apaixonadamente, amo ate 0 desespero. Como

era born, nos ve1hos tempos, Kostia! Lembra? Que vida

radiante, afetuosa, alegre, pura, que sentimentos senti-mentos semelhantes a flores de1icadas, graciosas Lem-

bra? [Rec i ta] "Homens, leoes, aguias e perdizes, cervos de

gran des chifres, gansos, aranhas, peixes si lenciosos que

habitavam as aguas, estrelas do mar e criaturas que os

olhos nao eram capazes de ver - em suma, todas as vidas,

todas as vidas, todas as vidas, depois de concluirem seu

triste ciclo, se extinguiram ... Ha muitos milhares de anos

nao existe mais urna unica criatura viva sobre a terra e esta

pobre lua acende sua lantern a em vao. No prado, os grous

ja nao despertam com urn grito, nem se ouvem os bes;u-

ros nos bosques de tilias ... " [ Ab ra ra T re pl io v i mp et uo sa -

m en te eflge p ela po rta d e v id roJ

TREPLIOV [ ap os u m a p att sa ] Nao vai ser nada born se alguem

topar com ela no jardim e depois contar para mamae, 1550

pode deixar mamae transtornada ... [ D ur an te d o is m i nu te s,em sllenc io , e le ra sga to do s o s s eus m anu scra os e o s a tira em -

b aixo d a m es a, d ep ois d es tr an ca a p o rta d a d ir eita e s a i]

DORN [te nta nd o a br ir a p or ta d a e sq ue rd aJ Que estranho. Pare-

ce que ,a porta esta trancada. " [Entra e poe a p oltrona no

lugar] E como uma corrida de obstaculos,

[Entram Arkddina, P olina Andreievna, m ais Ic fkov , que traz

a lg um as g ar ra fa s, e M a ch a, e m s eg uid a C ha mr aie v e T rig or in .]

ARKADI~A Ponha 0 vinho tinto e a cerveja aqui na mesa, para

Bons Aleksieievitch. Vamos jogar e beber. Sentem-se,

senhores.

POLINA [ pa ra I dk ov ] Traga logo 0 cha, tambern, [ Ac en de a s

o e la s , s e nt a -s e it m e sa d e jo go ]

CHAMRAIEV [ le va T ri go rin a te 0 anndrio] Eis 0 objeto a respeito

do qual eu the falei hi pouco .. . [ Re ti ra d o a rm c fr io a g a iv o ta

empa lhada] A encomenda que 0 senhor me fez.

TRIGORIN [ ex aln in an do a g aiv ota ] Nao me lembro! [ De po is d e

p em a ]" u m p ou co ] Nao me lembro!

[A d ir e i t a d o p a lc o, o tt ve -s e 0 s om d e u m ti ro ; t od os s e s ob re ss alt am .]

< 97 >

Page 49: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 49/56

 

ARKA.DINA [assustada] 0 que foi isso?

DORN Nao foi nada. Na certa estourou algum frascona minha

valise de remedies. Nao se preocupe. [ Sa i p ela p or ta d a d i-

re ita e v olta m eio m in uto d ep ois] Exatamente 0 que pensei.

Um frasco de eter estourou. [Cantarola] "De novo enfeiti-

cado estou diante de ti . .. "

ARKA.DINA [senta-se a mesa] Puxa, que susto levei. Isso me fez

lembrar 0dia em que [Cobre a r os to c om a s m a os ] Meus

olhos ate escureceram .

DORN [{olheando uma rev is ta , para Tr igor in] Uns dois meses arras,

saiu publicado aqui urn artigo . .. uma carta da America, e

eu gostaria de perguntar ao senhor, a respeito disso... [puxa

T rig orin p ela c in tu ra e 0 co nd uz p ara a frente d o p alc o] ...

pois estou muito interessado nesse assunto .. . [Em tom

grave, a m e ia v oz ] Leve Irina Nikolaievna embora daqui,

para qualquer lugar. A verdade e que Konstantin Gavrilo-

vitch se matou ...

UM PASSARO NA MAO Posfacio

[Cort ina.]

Page 50: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 50/56

 

j

/

Numa carta de r892, Anton Tchekhov relatou: "0 pintor Levi-

tan esta passando uns dias no meu sit io. Ontem, ao entardecer,

eu e ele fomos a zona de cas:aas galinholas. Levitan disparou e

uma ave, ferida na asa, caiu num charco. Eu a levantei. Tinha

urn bico comprido, olhos grandes e pretos e uma plumagem

bonita. Olhava para nos, espantada. 0 que podiamos fazer?

Levitan franziu a testa, fechou os olhos e me suplicou, com voz

tremula: 'Por favor, esmague a cabeca dela com a coronha do

rifle.' Respondi que nao podia. Ele nao parava de sacudir os

ombros, nervoso, contraia 0 rosto e suplicava. A galinhola olha-

va para mim, espantada. Tive de obedecer a Levitan e mata-la,

E, enquanto dois imbecis voltavam para casa e sentavam-se

para jantar , havia uma criatura fascinante a menos no mundo."

Esse episodic ira ecoar na pes:a que Tchekhov escrevera

tres anos depois, em 1895 . No lugar da galinhola, uma gaivota:

alvejada por urn escri tor e empalhada par outro. Mas 0pressen-

timento da indole predatoria que assornbra a atividade doart ista e a inevitavel frieza com que 0 forte desfruta a fraco se

fazem presentes na pe<;acom a mesrna revolta impotente que

marca a recordacao anotada naquela carta .

"Estou escrevendo uma pe<;aque na certa nao terminarei

antes do fim de novembro. Nao posso negar que me agrada es-

creve-la, embora esteja obviamente desrespeitando as principios

elementares do teatro. A comedia tern tres papeis femininos,

. ... . . . . ~.- ,-

, '

i i

IDr. Tchekhov, medico rural emMelikhovo, 1892.

I

I

, I< 101 >

Page 51: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 51/56

 

seis masculinos, quatro atos, uma paisagem (uma vista para um

lago), muita conversa sobre literatura, pouca acao e cinco arro-

bas de amor." Assim T chekhov, numa carta de 21de outubro de

1895, deu noticia de sua pec;:aA gaivota. Cinco dias depois,

esereveu para outra pessoa: "Terminei minha pec;:a.Nao e nada

demais. No conjunto, dir ia que sou um dramaturgo mediocre".

Mas parece que a reescreveu e, no dia zr de novembro, em

outra carta, registrou: "Terminei minha pec;:a.A despeito detodas as regras da arte drarnatica, eu a comecei forte e acabei

pianissimo [... J . Estou antes de tudo insatisfeito e vejo que nao

sou de forma alguma dramaturgo". Tchekhov enviou 0manus-

crito para 0 amigo e pediu: "Nao mostre para nin~e~". Con-

tinuou a reeserever e s6 em julho de r896 mandou 0 texto final

para a aprovacao da censura.

A gaivota foi a primeira pec;:aa que Tchekhov eonseguiu

dar uma feicao equivalente ao modo como.ja havia algum tem-

po, construia seus contos. Suas primeiras obras para 0 teatro

foram eurtas e humorist icas. Duas tentativas mais ambiciosas,

Ivanov e 0demonic daf l o r e s t a , 0 frustraram e atrairam criticas.

Nao foi diferente 0 destino de A gaivota, pelo menos em sua

primeira apresentacao, na noite de 17 de outubro de r896, em

Sao Petersburgo. A plateia vaiou, gri tou, zombou dos atores em

cena, alguns espectadores levantaram-se para conversar aos

brados. Tchekhov assistiu aos dois primeiros atos e depois se

refugiou nos bastidores. Ao fim do primeiro ato, jornalistas e

criticos de teatro correram ao bar e exc1amavam: "Onde esta a

acao?", "Ele esta acabado", "Perdeu 0 talento", " E tudo tao insi-

pido". E os jornais da manha seguinte, em eoro, publicaram

criticas asperas.

Por mais que isso 0 tenha abalado, Tchekhov nao foi apa-

nhado de surpresa. Numa carta escrita poucos dias antes da

estreia, ja registrara sua apreensao e ate relatara um pesadelo:

"casam-me com uma mulher que nao amo e sou insultado nos

jornais".O escritor vinha acompanhando os ensaios apressados

e caira em desanimo, ante 0desempenho dos atores. Alem disso,

Tchekhov sabia nao contar com muita simpatia nos meios lite-

rarios de Sao Petersburgo. 0 ambiente pretensioso da capitalquase sempre 0 aborrecera e 0 animo poueo sociavel demons-

trado por T chekhov em suas estadas na cidade havia de ixado

um rastro de ressentimento, "Meus amigos e conhecidos de

Petersburgo estao aborrecidos comigo? [... J Pois que fiquem",

escreveu numa carta em 1890. E, urn ana depois, descreveu

Agaivota, primeiro ato, na estreia em Sao Petersburgo, 1896.

< I02 > (103 >

Page 52: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 52/56

 

, I

Charge de epoca : "Agaivo ta nas

garras cia decadencia", 1896.

deixar um bilhete para 0amigo em cuja casa estava hospedado:

"Nunc a mais escreverei outra peca", Este amigo, mas depois, 0

censurou pela sua partida precipitada eTchekhov assim se ex-

plicou: ''Agi com a sensatez e a frieza de um homem que apre-

sentou urn pedido de casamento e foi recusado [ ... J . Quando

cheguei a minha casa, bebi 6leo de ricino, tomei urn banho de

agua fria e agora estou pronto para escrever outra peca".

Antes de ser retirada de cartaz, A gaivota teve mais oito

apresentacoes em Sao Petersburgo, diante de um publico mais

apropriado. As noticias que chegaram a Tchekhov davam con-

ta da boa recepcao do espetaculo, mas nada disso alcancou os

nestes term os uma nova visita a capital: "Eu me vi cercado por

uma atmosfera de absurda e indefinfvel rna vontade [ .. . J . Eles

me entopem com jantares, me cobrem de elogios triviais e ao

mesmo tempo gostariam de me comer vivo [... J. Nao sao

gente, mas algum tipo de mofo ambulante".

Porern a causa imediata do fracasso da primeira montagem

pode ter sido algo mais simples. Vigorava, na epoca, a tradicao

de dedicar a estreia em beneficio de urn ator famoso. As vezes,

nessas ocasioes, duas pes:as eram encenadas na mesma noite eassim aconteceu a I7 de outubro. A homenageada foi a atriz

c6mica Levkeieva, que entraria em cena numa comedia apos a

apresentacao deAgaivota. A plateia, em sua maior parte [or-

mada por admiradores de Levkeieva, estava ansiosa para rir de

suas personagens burlescas.

o fiasco da estreia deA gaivota levou T chekhov a partir

de Sao Petersburgo bern cedo na manha seguinte, depois deCharge de epoca : "Caca it

gaivota", 1896.

< 104 > < 105 >

Page 53: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 53/56

 

'I

Em vez de faze r soa r 0 coaxar

dos sapos na cena da pe~a de

Trepliov, Nemir6vitch-

Diintchenko preferia "0 com-

pleto e enigmatico silencio",

Konstantin Stanislavski:

Tchekhov reprovou su a

ideia de trazer para 0 palco

urn grupo de maes e c rian-

cas chorosas, na cena final

do terceiro ato.

jornais e a pessima impressao da estreia nao se desfez. Embora

Tchekhov nao autorizasse a montagem da pes:a nas principais

cidades do pais, A gaivota foi representada por companhias

modestas, em Kiev, Odessa e em varias provincias do imperio

russo, com boa repercussao, e houve ate uma montagem em

Praga, numa traducao para 0 tcheco. Desse modo, quando apes:a afinal chegou a Moscou, em I 898 , por iniciativa do recern-

criado Teatro de Arte de Moscou, os comentarios em favor da

obra ja vinham se acumulando gradualmente.

Coube ao ator e diretor Nernirovitch-Dantchenko dobrar

a resistencia de Tchekhov, apes 0 fiasco de 1 8 96 , e convence-lo

a ceder a pes:a a sua companhia: "Eu the asseguro, voce nao en-

contrara urn diretor que 0 idolatre mais ou uma companhia que

o admire mais". Coube tambern a ele, mais afeito a obra de

Tchekhov, orienta! os companheiros na montagem dessa pes:a

que exigia uma producao, conforme insistia Dantchenko, "livre

de toda rotina". Konstantin Stanislavski, tambern diretor da

nova companhia, representou 0papel de Trig6rin, enquanto 0

jovem Meierhold representou 0 papel de Trepliov. A atrizOlga Knipper, futura esposa de Tchekhov, coube 0 papel de

Irina Nikolaievna.

o exito nao poderia ter sido rnaior e abriu caminho para 0

talento renovador desses art istas, que viriam a deixar sua marca

no teatro do seculo xx. Tchekhov, de fato, se empolgou com 0

grupo de atores, cujos ensaios por vezes presenciou. Mas adver-

tia a Stanislavski que Trig6rin devia usar urn sapato furado,

< I06 > < 107>

Page 54: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 54/56

 

, J U~-I.n J~"n~ I.M ~ . 1eu..

~~~~~~~~=::~£~~;'~J:~~:':"A;:~~.=-1!t~r:S. , " ~ ~. ft n."...... t I. " " ~ ~. J " . " . ·.L",,__ r ., .. ., .. .. _· · · . . .. .. . _

!••. K. C. CtuIlCAltidl. &tB b lI pO • ...,,·!"nuno

H a ' t a J l ; t ; ; iR

{ ~ . . ' ; ' ; 0 - ; ; ili~.O"II.~a. 3 a nl te n w iR C I I I II n ip s OI n p eA C T ll ll ll li a . ap U bi M " ai lk a -, G A a fl lB O A ll li o_ n on Y '! 1 IU 6 1 11 1 '

lbl. ll.o4·XlI'f lC.Cp!,Ilbl.16-roJlOtll6pl.noclit 'lerOIlKlaOCTItfliIOTltI1tllO'4ylllnp_. , .

B'L nJITB l l l t y . Itl.f.' ;\t ' ltliOPII, W )R. w - tlJj nB T PI J D U f T H K t rU tL r " " " i t A .a nA.

I . I: I >HA . l .I 13CTAM' I> OBb lRHOBEHHA .H .L'are30Tl ip lmmJ()* !3I" ,YTpa ;108q3( , lmf lS ,

r~,\,.~~·~""..e.1~It C. C I I IAc ~ ~K l1 . "" " 1.,..,,11.;-' Ia. H. HCIpmrD a-1IO

Cartaz da estr eia de

.A gaivota na encenacao do

Teatro de Arte de Moscou,

dezembro de 1898 .

vestir calca xadrez e fumar urn charuto fedorento, em vez de

mostrar-se como urn dandi. 0 dramaturgo tambern reprovou a

concepcao de Stanislavski para 0final do terceiro ate - a ' cena

da despedida -, em que 0 diretor imaginara trazer para 0 palco

urn grupo de rnaes e criancas chorosas. No geral, Tchekhov

insistia em que os atores evitassem toda enfase sentimental.

Isso talvez ajude a esclarecer uma duvida frequente entre os

seus leitores: a rubrica que Tchekhov acrescentou ao titulo da

pes:a - "comed ia " ,

Afinal, sao raros os momentos de riso ou de mera alegria

em Agaivota, ao passo que nao faltam, para os personagens,

motivos para tristeza ou mesmo para 0desespero. 0 problema

pode se tomar compreensfvel se lembrarmos que a nocao rigo-

rosa de cornedia equivale menos ao riso do que ao estilo baixo -

em contraste com 0estilo elevado, da tragedia. Tchekhov negava

credito aos ideais alcados alern da medida do cotidiano e da vi-

da comum. Nao pretendia por em cena genios, her6is ou marti-

res desses ideais, nem os viloes que por forca os acompanham.

Em vez de fazer soar, no palco, falas graves a todo instante em

meio a uma sucessao de acontecimentos terriveis, Tchekhov ima-

ginara personagens que comentavam 0 calor, 0 frio ou as doen-

cas, calavam-se por falta de assunto e pouco agiam em umahistoria quase desprovida de acontecimentos. Pois assim a vida

se mostrava, na maior parte do tempo, aos seus olhos.

A rigor, em Agaivota, h:i antes coisas que nfio acontecem,

em urn enredo que parece nao caminhar para parte alguma. No

entanto, entre dialogos triviais, aspiracoes e desavericas corri-

queiras, apenas rompidas por reflexoes nada idealizadas sobre a

atividade do artista, uma crise obscura se avoluma pouco a pouco.

» ~ ! ~ ~ ~ ~ W H K... 'teTBepr-., .7-ro AeHsllpRJ

'I A M - i I A

Agaivota, segundo ato, 1898 .

< 109 >

Page 55: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 55/56

 

Urn desajuste sutil impede que ospersonagens entendam uns aos

outros e subtrai de cada urn a compreensao do que eles mesmos

desejam e pensam. Esse desajuste e essa crise fazem asvezes de

uma estrutura para a pes:a,soldam aspartes que parecerna deri-

va. Ao mesmo tempo, perrnitem pressentir 0 que hi subjacente

as camadas de banalidade e de frustracao,

Em uma cornposicao desse tipo, mesmo que sobrevenha

ao final urn acontecimento de imp acto - como e0

easo emA gaivota -, nao havera urn desfecho propriamente dito. Tal

acontecimento, por mais dramatico que pares:a, por mais sofri-

~ imento que concentre em si, nao representa nem solucao, nem

" desvelamento, nem catarse. 0 espectador subentende que a

mesma crise e 0mesmo desajuste prosseguirao intactos e ape-

nas se agravarao na vida futura dos personagens.

Agaivota foi a primeira das quatro pes:as que Tchekhov

esereveria ate 1904 e que 0 tornaram urn classico do teatro.

Reune, mais do que as outras, as reflexoes Iiterarias do autor,

em especial no tocante a degradacao do impulso eriador do

art ista , quando se integra ao curso da sociedade. Os dois escri-

tores e as duas atrizes que formam 0 nucleo dos personagens

configuram um movimento de eontrastes, ao qual no entanto

falta urn eixo, ou qualquer ponto de apoio constante. Nenhum

deles tern urn modelo em que confiar, nem urn caminho por

onde fugir.

Tchekhov inseriu no primeiro ate uma pequena pes:aden-

tro da sua pes:a, em urn esquema que alude a Hamlet. Reforcou

essa alusao nos dialogos entre Trepliov e sua mae, uma atriz

famosa, com caprichos de rainha. A linguagem usada na pes:a

dentro da pes:a nos parece estranha, mas representa, demaneira

algo deformada, uma alusao a poetica simbolista, que se intro-

duzira pouco tempo antes na Russia e causava certa sensacao.

A mae de Trepliov classifica a obra do fi1ho de "decadente",

termo usado entao de forma rotineira para desdenhar das

obras simbolistas. Liev Tolst6i , par sua vez, tambern classif i-

cou A gaivota de decadente. Assim, sem notar , com uma unica

palavra, ergueu urn tablado sob os proprios pes e transformou

a si, mas tarnbern a nos, em personagens de uma outra pes:a.Por sinal, a mesma a que ainda assistimos.

Rubens Figueiredo

(lID) < III )

Page 56: A Gaivota Tchecov

5/10/2018 A Gaivota Tchecov - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-gaivota-tchecov-559e011b4d139 56/56