8
7 Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004 A Física nas Transmissões Esportivas O s narradores esportivos costumam afirmar, com um certo tom de ironia, que dentro de cada torcedor mora um técnico de futebol que opina indevida- mente sobre assuntos nos quais ele não é um especialista. Este “discurso da competência” parece conferir aos refe- ridos narradores um direito inaliená- vel de exprimir-se sobre tais assuntos de modo praticamente inquestionável. Ao falarem de esportes esses mesmos narradores e comentaristas tentam emprestar aos seus discursos um certo tom de certeza calcado muitas vezes em afirmações pretensamente cientí- ficas. Poderíamos, assim, de modo aná- logo, afirmar que no coração de cada narrador e de cada comentarista esportivo mora um cientista, um físico para ser mais preciso, que professa, entretanto, uma Física um tanto sur- realista. É sobre o surrealismo desta ‘Física alternativa’, sobre os equívo- cos nos quais ela se fundamenta, que lançamos aqui um breve olhar analítico. Não pretendemos, nem de longe, abarcar todo o universo de pré-con- ceitos emitidos nem toda a variedade de equívocos usualmente veiculados. Pretendemos, apenas, fundados em alguns exemplos coletados, através de gravações em fita magnética de algumas transmissões esportivas, exemplificar a visão extre- mamente distorcida da Física comu- nicada em tais eventos. De início, é preciso salientar que, de fato, a conexão entre a Física e os esportes é bastante íntima. Fenôme- nos ocorridos em competições esporti- vas parecem às vezes coisas milagro- sas, mas podem ser freqüentemente explicados pelas leis da Física de modo conveniente e racional. Explicações simples emergem através do estabele- cimento de modelos simplificadores da realidade demonstrando como a Física pode ser útil na análise dos fenômenos esportivos. Tais explicações parecem exercer um efeito bastante motivador na aprendizagem da Física [4]. Isso tem levado, desde a década de 70, à incor- poração da Física dos esportes como um elemento curricular em várias experiências educacionais pelo mundo [1, 11, 19]. Um grande número de conceitos físicos pode ser discutido de um modo agradável em tais experiên- cias pedagógicas envolvendo as mais diversas atividades esportivas. Mesmo esportes não tão conhecidos, como o rapel, por exemplo, permitem lidar com conceitos os mais variados, tais como: atrito, movimento retilíneo uniforme, aceleração e decomposição de forças, energia potencial gravitacional e ener- gia cinética [16]. A conexão da Física com os esportes, assim como o desenvolvimento de técnicas especiais de análise instru- mental em tais cursos (como, por exemplo, a utilização de plataformas de força e fotografias estroboscópicas), tem contribuído para melhorar a própria performance dos atletas [7, 20]. Entretanto, como observam Gomes e Partelli [12], apesar de quase todos os resultados discutidos em uma Física dos esportes serem já coisas conhecidas e muito básicas da Física aplicada aos seres vivos, eles são ainda muito pouco Alexandre Medeiros Scienco Materiais Pedagógicos e Experimentais, Recife, PE Este trabalho analisa algumas das muitas distorções conceituais em Física apresentadas por narradores e comentaristas esportivos em suas transmissões no rádio e na TV. A análise de tais distorções permite construir um panorama que parece caracterizar um certo tipo de Física alternativa usada comu- mente nas transmissões esportivas. Tal pa- norama revela o freqüente uso inadequado de conceitos físicos e a crença em certos pre- ceitos que substituem as leis de Newton e os princípios de conservação. Os narradores dizem que cada torcedor é um técnico. Por nossa vez, podemos dizer que cada narrador é (quase) um físico...

A Física nas Transmissões Esportivas: Uma Mecânica de Equívocos

Embed Size (px)

Citation preview

7Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004 A Física nas Transmissões Esportivas

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Os narradores esportivoscostumam afirmar, com umcerto tom de ironia, que

dentro de cada torcedor mora umtécnico de futebol que opina indevida-mente sobre assuntos nos quais ele nãoé um especialista. Este “discurso dacompetência” parece conferir aos refe-ridos narradores um direito inaliená-vel de exprimir-se sobre tais assuntosde modo praticamente inquestionável.Ao falarem de esportes esses mesmosnarradores e comentaristas tentamemprestar aos seus discursos um certotom de certeza calcado muitas vezesem afirmações pretensamente cientí-ficas. Poderíamos, assim, de modo aná-logo, afirmar que no coração de cadanarrador e de cada comentaristaesportivo mora um cientista, um físicopara ser mais preciso, que professa,entretanto, uma Física um tanto sur-realista. É sobre o surrealismo desta‘Física alternativa’, sobre os equívo-cos nos quais ela se fundamenta, quelançamos aqui umbreve olhar analítico.Não pretendemos,nem de longe,abarcar todo ouniverso de pré-con-ceitos emitidos nemtoda a variedade de equívocosusualmente veiculados. Pretendemos,apenas, fundados em alguns exemploscoletados, através de gravações em fitamagnética de algumas transmissõesesportivas, exemplificar a visão extre-mamente distorcida da Física comu-nicada em tais eventos.

De início, é preciso salientar que,de fato, a conexão entre a Física e osesportes é bastante íntima. Fenôme-nos ocorridos em competições esporti-

vas parecem às vezes coisas milagro-sas, mas podem ser freqüentementeexplicados pelas leis da Física de modoconveniente e racional. Explicaçõessimples emergem através do estabele-cimento de modelos simplificadores darealidade demonstrando como a Físicapode ser útil na análise dos fenômenosesportivos. Tais explicações parecemexercer um efeito bastante motivadorna aprendizagem da Física [4]. Isso temlevado, desde a década de 70, à incor-poração da Física dos esportes comoum elemento curricular em váriasexperiências educacionais pelo mundo[1, 11, 19]. Um grande número deconceitos físicos pode ser discutido deum modo agradável em tais experiên-cias pedagógicas envolvendo as maisdiversas atividades esportivas. Mesmoesportes não tão conhecidos, como orapel, por exemplo, permitem lidar comconceitos os mais variados, tais como:atrito, movimento retilíneo uniforme,aceleração e decomposição de forças,

energia potencialgravitacional e ener-gia cinética [16]. Aconexão da Físicacom os esportes,assim como odesenvolvimento de

técnicas especiais de análise instru-mental em tais cursos (como, porexemplo, a utilização de plataformasde força e fotografias estroboscópicas),tem contribuído para melhorar aprópria performance dos atletas [7, 20].Entretanto, como observam Gomes ePartelli [12], apesar de quase todos osresultados discutidos em uma Físicados esportes serem já coisas conhecidase muito básicas da Física aplicada aosseres vivos, eles são ainda muito pouco

Alexandre MedeirosScienco Materiais Pedagógicos eExperimentais, Recife, PE

Este trabalho analisa algumas das muitasdistorções conceituais em Física apresentadaspor narradores e comentaristas esportivosem suas transmissões no rádio e na TV. Aanálise de tais distorções permite construirum panorama que parece caracterizar umcerto tipo de Física alternativa usada comu-mente nas transmissões esportivas. Tal pa-norama revela o freqüente uso inadequadode conceitos físicos e a crença em certos pre-ceitos que substituem as leis de Newton e osprincípios de conservação.

Os narradores dizem quecada torcedor é um técnico.

Por nossa vez, podemos dizerque cada narrador é (quase)

um físico...

8 Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004A Física nas Transmissões Esportivas

difundidos entre os físicos e osprofessores de Física em geral. O quedizer, portanto, sobre o conhecimentodos mesmos fenômenos por comuni-dades como a de narradores e comen-taristas esportivos? Já em 1974,Salmela, em um estudo avançado sobreginástica, havia constatado a existên-cia de um certo número de concepçõesalternativas sobre Biomecânica entreatletas e treinadores. Não temos, entre-tanto, conhecimento de estudos seme-lhantes entre profissionais da mídiaesportiva.

O estudo aqui apresentado tentadar conta de parte do que aparece costu-meiramente a respeito dos fenômenosfísicos no imaginário de locutores ecomentaristas nas transmissõesesportivas e que poderíamos, de início,caracterizar como uma ‘mecânica deequívocos’. Por uma questão ética,omitimos propositalmente os nomesdos personagens envolvidos, mencio-nando-os genericamente de modo anão poderem ser facilmente identifi-cados.

O surrealismo de umamecânica de equívocos

As afirmações comentadas a seguirabrangem um amplo leque de con-teúdos no tocante à Mecânica. Tome-mos, por exemplo, o seguinte comen-tário de um radialista em meio a umatransmissão de corrida de automóveis:Que infelicidade! Justo na última curva omotor fumaçou! E aí companheiro, não temprá ninguém. É uma lei básica da Física:sem força, não há movimento. Observe-se o tom professoral em que tal afirma-ção está contida. O narrador não secontenta em co-mentar a impossibi-lidade do corredorprosseguir na com-petição. Ele enunciaem alto e bom tomuma “lei” de suaFísica alternativa:sem força, não hámovimento, em flagrante desrespeito àprimeira lei de Newton. Que ele penseassim, de acordo com o senso comum,seria compreensível. Ele, entretanto,não apenas enuncia sua concepçãoalternativa sobre o movimento doscorpos, mas cuida, também, de traves-

ti-la com a importância de uma equi-vocada “lei da Física”. Pela forma comofoi expressa, não se trata, portanto, deuma simples afirmação do sensocomum; mas, sim, de algo enraizadono imaginário e expresso irrefleti-damente com ares de um preceito ci-entífico. É difícil avaliar o poder deconvencimento que uma afirmaçãodeste porte pode exercer,inadvertidamente,nas mentes aindaem formação dosnossos jovens afi-cionados pelascorridas automobi-lísticas.

Substitutos para a 2a lei de New-ton são também encontrados entre asmáximas presentes nas transmissõesesportivas. Em outra circunstância, umnarrador afirmou do alto de sua vastaexperiência futebolística: Para segurarchutes fortes, o goleiro tem que pegar bemencaixado. Por isso, além de ágil, ele precisaser também bastante forte. Seu colegacomentarista acrescentou, ainda, que:O Brasil nunca teve bons goleiros. Talvezo Gilmar! Mas mesmo o Gilmar não secomparava aos grandes goleiros argentinosou europeus. O Lev Yashin, o AranhaNegra, da União Soviética, seguravaqualquer tiro, de média ou longadistância. Eu não sei como ele fazia, masele parecia ter cola nas mãos. Era bemalto e jogava em frente ao gol e quasesempre abaixado e com os braços esticadospara a frente. Essas duas afirmaçõessobre as habilidades dos goleiros emsegurarem chutes muito fortes deixamtransparecer a compreensão ingênuaque esses profissionais da crônica es-

portiva têm do papelda 2a lei de Newton.Note-se que o narra-dor acima mencio-nado faz alusão àidéia de que parapegar chutes fortes épreciso “encaixar”bem a bola. Entre-

tanto, isso é justamente o oposto da-quilo que um bom goleiro deve tentarfazer. Se o chute for muito violento, ogoleiro precisará, antes de tudo, amor-tecê-lo. E um tal amortecimento sedará, precisamente, com o recurso,ainda que inconsciente, da 2a lei de

Newton: F∆t = m∆v; ou seja, encolhen-do os braços ao receber o impacto, ogoleiro aumenta o tempo de contatode suas mãos com a bola e assim reduzo valor da força F. Neste sentido, ocomentarista aproxima-se um poucomais da explicação física correta aoobservar que braços longos parecem serum interessante atributo para os go-leiros. Eles, efetivamente, contraem

intuitivamente osbraços aumentandoassim o valor de ∆t.O fato, tambémobservado pelo co-mentarista, de queos goleiros se colo-

cam à frente de suas metas e de que seabaixam no momento de tentarempegar um chute mais forte é igual-mente procedente. Os goleiros tentam,deste modo, utilizar os músculos dacoxa para saltarem para trás, se neces-sário, caso o impacto com a bola sejamuito violento. Este comportamentointuitivo do goleiro, que corresponde auma tentativa extrema de aumentarainda mais o valor de ∆t, significa umuso intuitivo adicional da 2a lei deNewton. Entretanto, apesar de parecerestar na direção certa para obter umaboa explicação física para o fenômeno,o nosso comentarista não vê nenhumalei presidindo um tal ato; antes, recorreà crença de que o goleiro possui umcerto tipo de “cola” mágica nas mãosque o faz reter a bola. A segunda lei deNewton é substituída, deste modo, poralgo simplesmente “pegajoso”.

Também a terceira lei de Newtonsofre e encontra seus substitutos nastransmissões esportivas. Tomemos aseguinte afirmativa de um locutor:‘Matar no peito’ com categoria é sempreuma jogada muito difícil de realizar. Ojogador precisa estufar o peito e fazer nabola uma força exatamente igual à que abola faz nele. Qualquer errinho, para maisou para menos, a bola salta fora. Ob-serve-se como tal afirmação contrariaa 3a lei de Newton. O locutor pareceadmitir intuitivamente que a forçaexercida pela bola no peito do jogadoré igual (em módulo) e oposta àquelaque o peito do jogador faz na bola,apenas no caso em que a jogada é bemsucedida; talvez, guiado por umaconcepção igualmente equivocada de

Os fenômenos físicos, noimaginário de locutores e

comentaristas nastransmissões esportivas,

poderiam ser caracterizadoscomo uma ‘mecânica de

equívocos’

Diz o locutor: “É uma leibásica da Física: sem força,

não há movimento...”

...e Newton que role em seucaixão...

9Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004 A Física nas Transmissões Esportivas

que tais forças deveriam se anular paraque a jogada fosse bem executada. Isto,entretanto, é um absurdo, uma vez queação e reação atuam em corposdistintos e por isso jamais podemanular uma à outra. De qualquermodo, o nosso locutor parece imaginarque é possível que tais forças sejamdiferentes. Para ele, apenas o bomjogador obedece à 3a lei de Newton.

Um outro locutor grita ao micro-fone: A bola bateu na trave e voltou commais força ainda. A força foi tanta quepegou na nuca do goleiro e o deixou desa-cordado. Também, aqui, temos umadesobediência à 3a lei de Newton. Ochoque da bola com a trave fez, se-gundo nosso narrador esportivo, comque a bola ganhasse momento linear edesta forma transferisse tal momentolinear para a cabeça do goleiro exercen-do, assim, uma força ainda maior queaquela porventura comunicada pelo pédo atacante. Não apenas nenhumamortecimento, ou qualquer tipo deperda energética foi considerado em talchoque; pior: o narrador imaginou umsurpreendente aumento no momentolinear da bola ao se chocar com o tra-vessão.

Não apenas as leis de Newton e osprincípios de conservação sofrem nasafirmações de nossos locutores esporti-vos. Tomemos, por exemplo, a seguinteafirmativa em meio a uma corridaautomobilística: O novo controle de tra-ção permite um freio mais eficiente. A ro-da, ao ser freada, gira para trás como asrodas das diligências dos filmes de bang-bang. O nosso narrador não parece tera menor idéia do que esteja ocorrendo;não percebe que o que ocorre é um des-casamento entre afreqüência de giro daroda em relação afreqüência de expo-sição do filme e, pordecorrência, em re-lação ao tempo depercepção do olhohumano (deaproximadamente1/16 s). A roda, de fato, parece atrasar-se e isso pode ser bem acompanhadopor um estroboscópio, demonstrandoo descasamento na freqüência de rota-ção. Em vez disso, o nosso locutor pre-fere imaginar que a roda ao ser freada

passa efetivamente a girar para trás.Outro equívoco comum é a con-

fusão conceitual entre o peso de umcorpo e o seu momento linear. Tome-mos, como exemplo, a seguinte afir-mação de um locutor esportivo duranterecente jogo de Hóquei na TV: NoHóquei sobre patins a bola chutada temmuito peso. Num chute forte, ela vem comum impacto de 200 kg. Certamente, nãofaz sentido dizer que a bolinha vemcom muito peso, pois o peso da mes-ma é constante, dado que não hávariação na aceleração da gravidade.Em segundo lugar, a Física de umimpacto não é descrita simplesmentepor uma massa (200 kg); mas, sim, por

uma transferênciade energia cinética ede momento linear.De um modosemelhante, duran-te uma partida detênis recente, umcomentarista afir-mou: A bola do Gugaestá muito pesada. Ele

tem sacado a 200 km/h. Novamente, onarrador confundiu as idéias demomento linear e energia cinética como peso do corpo. Sua intenção de dizerque a bola fica mais pesada parece sersimplesmente a de passar a idéia de

que o efeito de um impacto a sercausado por uma bola com tal veloci-dade (200 km/h) seria muito forte.Estas confusões ficam mais evidentesem uma outra frase de um locutordurante um jogo recente do campeo-nato alemão: A bola está muito pesada ecom isso ela pega muita velocidade.Equívoco ainda maior pode ser encon-trado, entretanto, na seguinte frase deum outro comentarista: O chute doNelinho era muito perigoso, principal-mente de longe, pois a bola tinha maistempo de pegar embalagem no ar. Nestecaso, temos algo realmente inusitado:a idéia de que o momento linear au-menta durante o percurso da bola noar. Não bastasse não estar em alertapara o amortecimento causado pelo ar,o comentarista ainda imagina um im-provável aumento de velocidade (algumvento misterioso?). No tocante aos cho-ques, algumas afirmações são corretas,ainda que expressas de maneira nãomuito clara: O ‘bicudo’ é um chute feio,geralmente vai sem direção, mas quandopega ‘na veia’ não tem pra ninguém. Aidéia aqui implícita e correta é a de queem um choque frontal ocorre umatransferência máxima de momento lin-ear. Outros locutores parecem estaratentos para os efeitos de dissipação,confundindo, entretanto, os conceitos

O locutor grita ao microfone:“A bola bateu na trave e

voltou com mais força ainda!”

...porque deve ser naturaldas bolas o desejo de

desobedecer à 3a lei deNewton...

Chute forte em uma partida de Hóquei: o peso da bola é sempre o mesmo.

10 Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004A Física nas Transmissões Esportivas

envolvidos: Ele chutou com muita forçae à queima roupa. O goleiro não teve culpano gol; a bola praticamente não tevetempo de gastar a força. Neste caso, ficaevidente que o narrador imagina que aforça exercida pelo pé do atacante nomomento do chute fica impressa nabola, gastando-se paulatinamente. Éuma concepção que muito se asse-melha à idéia medieval de impetus.

Outro equívoco interessante é aconvicção existente entre os narrado-res esportivos de que o peso é algo quepode ser transferido. Este equívocoaparece, freqüentemente, associado àincompreensão da idéia de torque. Emum jogo de tênis recente, o narradorafirmou, por exemplo: Guga transferebem o peso do corpo para frente e solta aparalela. Certamente isto é um absur-do, pois o peso é a força com que aTerra atrai um certo corpo e, portanto,aponta sempre para o centro deste pla-neta. Guga não poderia jamais trans-ferir o seu próprio peso para frente; issonão faz nenhum sentido. O que onarrador, poderia dizer é que Guga fle-xiona todo o seu corpo para frente enão apenas o braço, transferindo, as-sim, uma maior energia cinética eum maior momento linear à bola.Note-se, ainda, que em uma tal cir-cunstância o aumento deveu-se, prin-cipalmente, ao jogador haver au-

mentado o “braço de alavanca”, a dis-tância em torno da qual a ponta daraquete executará um giro. Sendo oseu pé (como no caso exemplificado)o centro da referida rotação da raquete,a velocidade (ν = ωr) da extremidadeda raquete será maior que no caso noqual o jogadorapenas gira o braço.Entretanto, o fato dever o movimento dojogador, todo estica-do, girando comoum todo em tornoda ponta do seu pé,é descrito pelo lo-cutor como se omesmo houvessetransferido o seupeso para a bola, o que evidentementenão poderia jamais acontecer. Isto fazcom que tenistas mais altos possamfazer a ponta de suas raquetes atingiremmaiores velocidades que outros tenis-tas mais baixos, transferindo, assim,uma maior quantidade de movimento(p = mv) à bola. Tal fato não tem esca-pado da observação mais cuidadosadaqueles que acompanham o tênis hámuito tempo, mesmo sem seremfísicos. Tome-se, por exemplo, o perti-nente comentário sobre a evolução dapotência dos saques dos tenistas feitapor Carneiro [6], constante no sitePlayTenis, sobre a importância do sa-que: cada dia vemos aumentar a impor-tância do saque no circuito profissional detênis. Com o aumento da envergadura dostenistas, onde um jogador com 1,80 m(Agassi) é considerado baixinho, a potên-cia do saque tem decidido muitos e muitosjogos.

Às vezes as concepções alternati-vas exibidas pelos narradores estãoligadas a questões biomecânicas maiscomplexas, como por exemplo a afir-mação de que O saque do Ivanisevic émuito forte. Isso lhe causa problemas nosjoelhos devido à sobrecarga causada pelapotência do seu saque. Entretanto, comorevelam estudos de biomecânica, po-de-se perceber que a sobrecarga que ocorpo do atleta suporta durante qual-quer fase do saque é relativamentebaixa [24]. Na mesma linha encontra-mos equívocos como O problema dosaque com um salto para cima é que ao sechocar com o solo o atleta vem muito mais

pesado. Estes mesmos pesquisadoresmostram que estudos empíricos reve-lam que mesmo levando-se em contaos efeitos de um salto no momento dosaque, salto este que ocasiona umamaior transferência de momento linearno instante que os pés tornam a tocar

o solo, a força dereação vertical co-municada pelo solo éde aproximadamente1,33 vezes o pesocorporal do tenista.

Ainda relacio-nados aos saques notênis encontramosafirmações como ASerena Williams sacamuito forte para os

padrões femininos. O segredo do seu sa-que parece estar na combinação exata deforça e rapidez com que executa o movi-mento. Um bom saque precisa ser forte ede rápida execução. Mais uma vez, en-contramos, aqui, um equívoco sobre aBiomecânica da situação. Certamente,saques praticamente indefensáveis sãocada vez mais freqüentes no jogo detênis atual. Naturalmente, isto motivao interesse em estudar o saque, pois seconstitui em um elemento técnicoaltamente determinante do rendimen-to do praticante, já que o jogador possuitotal controle durante a execução destahabilidade fechada, onde o ambientevaria muito pouco [3, 10, 17]. Apesardesta vantagem, entretanto, a execu-ção do saque é de difícil domínio, jáque, como revelam estes pesquisadores,o braço que lança a bola deve serlevantado lentamente com a finalidadede colocar a bola no ponto ideal decontato, enquanto o braço que seguraa raquete deve balançar em um padrãocomplexo para golpear a bola, combi-nando potência e coordenação. Nãosomente os braços descrevem padrõesde movimento e ritmos diferentes; elestambém devem sincronizar-se aosmovimentos dos membros inferiores edo tronco [10, 22].

Ainda do tênis, retiramos o se-guinte diálogo envolvendo conceitosem Física:

Narrador: Roland Garros é umaquadra lenta, por ser de saibro. Isso é umavantagem para o Guga que não se adaptabem a quadras rápidas como Wimbledon.

Saque violento do Guga: a flexão de todo oseu corpo para frente, e não apenas dobraço, transfere uma maior energia cinéticae um maior momento linear à bola

Segundo o narrador, “Gugatransfere bem o peso do corpopara frente e solta a paralela”

...a despeito do peso ser umaforça que aponta para o centro

do planeta, não possuindocomponente que possa alterara componente horizontal da

velocidade da bola...

11Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004 A Física nas Transmissões Esportivas

Comentarista: Isso é um tanto pro-blemático! Se você prestar atenção, veráque o tenista desliza mais rapidamenteno saibro que na grama. Para mim, asquadras de saibro é que deveriam serdenominadas de quadras rápidas.

Narrador: Mas essa é uma conven-ção, creio que universal.

Em outra transmissão, ouvimos,mais ou menos, o seguinte comentá-rio do narrador:

A quadra de saibro está coberta poruma areia fina. Os organizadores deve-riam ter limpado a quadra antes do jogo.

Embora coletados em ocasiões dis-tintas, esses dois comentários dizemrespeito a uma mesma situação: a con-ceituação do que vem a ser umaquadra rápida e uma quadra lenta. Noprimeiro diálogo, o comentarista e onarrador discordam sobre o fato dasquadras de saibro serem ditas lentasou rápidas. O narrador diz ser esta con-ceituação uma convenção. Na verdade,trata-se de uma questão de critério aser adotado na referida conceituação.

Como esclarece Cross [9], há doismodos de se definir uma quadra quantoà velocidade: pode-se falar em relaçãoà velocidade que a bola pode atingirno choque com o solo ou em relação àvelocidade que o jogador desliza sobrea quadra. E é neste aspecto de desliza-mento que entra o papel da areia que écolocada propositadamente sobre asquadras de saibro para reduzir o coefi-ciente de atrito entre os sapatos dostenistas e a superfície, fazendo comque ele deslize mais facilmente semescorregar. A areia atua como umlubrificante para as quadras de saibro.O coeficiente de atrito no saibro é daordem de 0,8, enquanto para a gramaé da ordem de apenas 0,5. Como con-seqüência de apresentar um maiorcoeficiente de atrito, o saibro retarda acomponente horizontal da velocidadeda bola quando a mesma se choca como solo. Neste sentido, a quadra desaibro é, de fato, mais lenta. Alémdisso, o coeficiente de restituição noschoques entre a bola e o solo é maior

no saibro do que na grama. Isso fazcom que haja, no topspin, um aumen-to no ângulo de repique da bola. Entre-tanto, a fina camada de areia colocadasobre o saibro faz com que os jogadoresdeslizem mais facilmente que nagrama, movendo-se mais rapidamentede um lado para o outro da quadra.Neste sentido, portanto, a quadra desaibro é, de fato, mais rápida que a degrama. Tudo, portanto, é uma questãodo critério a ser adotado na concei-tuação da rapidez de uma quadra.

Relacionada com este mesmo fa-to, ouvimos certa vez a seguinte obser-vação de um narrador: Geralmente osjogadores que se adaptam bem ao saibrosão mais leves e sacam sem tanta forçaquanto aqueles que jogam bem na grama.

A questão está, certamente, malcolocada. De fato, usualmente, o sa-que no saibro é mais lento que na gra-ma, mas isso não se deve à possívelfragilidade ou à força dos jogadores.Trata-se, antes, de uma questão táticaadotada pelos tenistas, de um modo

mvh

mvv

mvh

mvv

(a)

(b)

(c)

backspin

trajetóriasem spin

trajetóriacom spin

força exercida pelosolo sobre a bola

força exercida pelabola sobre o solo

topspin

trajetóriasem spin

trajetóriacom spin

força exercida pelosolo sobre a bola

força exercida pelabola sobre o solo

a) Colisão ideal semb) Colisão comc) Colisão com

spinbackspintopspin

Entenda as quadras de tênisPrecisamos atentar para o fato de

que o papel das forças de atrito en-tre a bola e a quadra é muito impor-tante! Assim, apesar do coeficiente derestituição entre a bola e o solo sermaior no saibro, é nesse piso que osimpactos apresentam menor potência.Nas rebatidas mais simples, a bolade tênis bate obliqüamente com o so-lo, não tendo velocidade de rotação,tendo apenas sua translação. Consi-derando um choque quase elásticocomo no saibro(mais “duro” quea grama), a bolasofre uma peque-na perda de mo-mento linear. As-sim, ao batermos“de chapa” na bola, é razoável queela tenha maior velocidade conformebatemos com mais força. Contudo,os jogadores profissionais tocam abola de raspão, acrescentando umefeito de giro (spin) à bola, na ten-tativa de tornar a recepção para oadversário mais difícil.

No backspin a bola recebe um gol-pe que a faz girar para trás, empur-rando o solo para frente quando elaquica. O solo, pela terceira lei de New-

ton, empurra a bola para trás, mudan-do sua trajetória para um ângulo maispróximo da horizontal. A forca exerci-da pelo solo causa, assim, uma redu-ção na velocidade da bola e no seu mo-mento linear, fazendo-a saltar menosdo que se não houvesse o efeito back-spin. Como o coeficiente de atrito émaior no saibro, esse piso faz com queo momento linear da bola sofra maiorredução do que na grama, onde o coe-ficiente de atrito é menor!

No topspin a bola é forçada a girarpara frente, e os efei-tos acontecem aocontrário: a bola ga-nha velocidade adi-cional justamenteporque recebe do so-lo uma reação para

frente ao empurrá-lo para trás, afas-tando-se da horizontal ao tocar o solo.

A conclusão é que o jogador profis-sional abre mão da força em favor do“jeito”, e o jogo na quadra de saibro émais lento à medida em que a bola ésacada e rebatida com menor força mascom muito mais spin do que na grama.O jogo fica mais plástico e mesmo mais“surpreendente”, já que a bola acabaassumindo trajetórias diferentes da-quelas que o senso comum indicaria.

No jogo entre profissionais,não é apenas o coeficiente de

restituição que conta; asforças de atrito também são

muito importantes

12 Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004A Física nas Transmissões Esportivas

geral. Como a bola no saibro repica commenor velocidade, mas em ângulosmais acentuados, os tenistas aprovei-tam este efeito para colocar umarotação extra na mesma (veja o quadroda página anterior). Deste modo, osjogos no saibro têm menor potência nossaques, mas maiores efeitos de spin.Eles sacrificam a velocidade do saqueno saibro, que tem uma média de160 km/h, comparados aos 185 km/h na grama, em troca dos efeitosobtidos na rotação da bola e suas decor-rentes e surpreendentes mudanças decurso também devidas ao efeitoMagnus. A força de Magnus é umaconseqüência do princípio de Bernoullie é a principal responsável, por exem-plo, pelos surpreendentes desvios so-fridos pelas bolas em cobranças de faltaem partidas de futebol. Não é im-pressionante que este complexo efeitoseja tão pouco compreendido e tãodeturpado nas transmissões esportivas.Em uma ocasião, por exemplo, ouvi-mos o seguinte diálogo:

Narrador: Ninguém cobrava faltaigual ao Didi. A sua ‘folha seca’ enga-nava qualquer goleiro. A bola ia em umalinha reta e de repente mudava de dire-ção.

Comentarista: O Didi curvava o péna hora do chute e a bola pegava essacurva e ia no ângulo, cobrindo a barreira.

O narrador e o comentarista estãobastante equivocados. Em primeirolugar, não é verdade que a bola sigaem linha reta e curve “de repente”. Esteequívoco assemelha-se aos desenhosde movimentos de projéteis contidosnos estudos renascentistas de Tartaglia.De fato, o Didi raspava a bola lateral-mente com a parte externa do pé, aomesmo tempo em que a impulsionavapara frente. Essa combinação demovimentos de rotação e translaçãoda bola fazia com que pontos simétri-cos na mesma em relação ao centro demassa adquirissem distintas composi-ções vetoriais de velocidade (rotação +translação). Era essa diferença lateraldas velocidades que causava umadiferença de pressão no ar devido aoprincípio de Bernoulli, gerando ochamado “efeito Magnus”, fazendocom que a mesma executasse umacurva ao redor da barreira. A afirma-ção, por outro lado, de que a bola pegavaa curva do pé do Didi é completamenteabsurda. Um detalhamento maior do

efeito Magnus foge ao escopo dopresente trabalho, mas pode serencontrado em várias referências [2,5, 13, 14, 15, 18].

De toda forma, equívocos na aná-lise de situações envolvendo o efeitoMagnus e o princípio de Bernoulli, es-tão entre os mais frequentes nas trans-missões esportivas. Em uma certaocasião, um conhecido comentaristada TV afirmou: Tem jogadores quepossuem um certo magnetismo com a bola.Eles prendem a bola facilmente aos pés,mesmo em alta velocidade. O Rivelino iaalém. Ele tinha o famoso ‘drible doelástico’, que ele jogava a bola para frentee a atraía de volta. Em uma talafirmativa, as composições vetoriaisentre a translação e a rotação da bolaaparecem substituídas por umamisteriosa “atra-ção magnética”.Há, entretanto,muitas outras“jóias” da Físicasurrealista dosnarradores e co-m e n t a r i s t a sesportivos rela-cionadas ao as-sunto. Dentreelas, destaca-mos, ainda, asseguintes:

Os aerofólios traseiros foram proibi-dos porque apesar de tornarem o carromais aerodinâmico, faziam com que eleficasse muito instável devido ao ‘efeitoasa’.

O equívoco aqui é evidente para o

profissional de Física. O narrador nãopercebe que um aerofólio é justamenteuma asa invertida e que o seu efeitonão seria, jamais, o de fazer um carrodecolar. Ao contrário, o aerofólioprovoca o surgimento de forças decompressão descendentes sobre a es-trutura do carro que aumentam a for-ça de atrito pelo aumento da força nor-mal. O carro torna-se, na verdade,mais estável, mais “preso ao chão”.

Com o aerofólio o carro fica mais pe-sado e tem maior aderência. Neste caso,o nosso narrador chegou mais pertoda visão de que com o aerofólio o carroadquire maior estabilidade; mas, nãocompreendeu que esse aumento deestabilidade provém da pressão aero-dinâmica exercida sobre o aerofólio. Deforma ingênua, ele imagina que o peso

do carro tenha aumen-tado. De modo seme-lhante, em outra oca-sião, o mesmo narradorafirmou em alto e bomtom para os seus teles-pectadores: A aderênciaao solo perto dos 300 km/hfica muito prejudicada,pois a essa velocidade ocarro fica mais leve equalquer erro pode serfatal. Trata-se do mes-

mo equívoco, acima comentado, masem um outro contexto.

Ainda relacionado com o princípiode Bernoulli, ouvimos na abertura deum jogo de futebol comemorativo doDia do Trabalho: O helicóptero agora jáse aproxima do estádio. Vamos esperar que

“Os aerofólios traseiros foramproibidos porque apesar de

tornarem o carro maisaerodinâmico, faziam com

que ele ficasse muito instáveldevido ao efeito asa”

É verdade que o aerofólio éuma asa... invertida! E isso

proporciona estabilidade aoscarros durante as corridas...

A folha seca de Didi: o efeito Magnus sempre foi o responsável pela incrível façanha dobrasileiro.

13Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004 A Física nas Transmissões Esportivas

esta maravilha tecnológica que voa semasas lance do alto a bola do espetáculo.Neste caso, o narrador exprime umacrença que parece ser compartilhadapor um número grande de pessoas: ade que o helicóptero não tem asas, ouseja, a não compreensão do papelexercido por sua enorme asa rotativaque é vista, talvez, como sendosimplesmente uma hélice propulsora.

Outro ponto comum nas narraçõesesportivas é a crença na existência deuma certa “força do vácuo”, como, porexemplo, na seguinte afirmação, emmeio a uma corrida: Os retardatáriosao serem ultrapassados tentam usar a‘força do vácuo’ dos líderes para acompa-nhá-los por alguns segundos. Na verdade,o arrasto provocado pelo carro da frentecria uma zona de descompressão nasua parte traseira, mas é a pressãomaior na parte de trás do carroultrapassado que cria um gradiente depressões impulsionando-o efetivamen-te, durante um curto espaço de tempopara frente. A idéia da existência,entretanto, de uma “força do vácuo”parece estar em consonância com osenso comum e com a crença aristo-télica de que a natureza teria “horrorao vácuo”.

A questão dos projéteis aparece emvários esportes nas narrações espor-tivas. No basquete, por exemplo, as-sistimos ao seguinte trecho: O ShaquileO’Neil erra muitos lances livres porquecoloca muita força na bola. Embora umatal explicação para o insucesso nosarremessos livres do grande pivô não

seja desprovida de sentido, ela, certa-mente, não é a única explicação pos-sível. Uma observação atenta dosarremessos do gigante do Lakers podenos revelar que parte relevante do pro-blema está no ângulo de arremessomuito pequeno, quase rasante. O nar-rador parece não atentar para o fatode que não apenas a força empregadano arremesso determina o sucesso doalcance obtido [21].

Do futebol vem outro interessanteexemplo de equívoco em uma narra-ção esportiva, desta vez ligado àquestão do equilíbrio. Em meio a umdebate na TV, um comentarista afir-mou o seguinte: O Garrincha driblavarápido e na carreira. Ele balançava o corpoe puxava a bola rapidamente para o lado;quase sempre o lado direito. E fazia issosem abrir os braços para não dar pista aomarcador para onde e quando ele ia sair.Certamente isto é um absurdo, mesmopara um fenômeno como foi o Garrin-cha. Talvez traído pela memória, ocomentarista tenha exagerado nosdetalhes do drible de seu Mané. Ele, defato, driblava muito rapidamente equase sempre para a direita. E a rapi-dez com que executava este movimen-to era uma das chaves do seu sucesso.Entretanto, ele sempre abria os braçosao driblar (ver figura). Seus driblesdesconcertantes eram bem longos eele usava os braços com maestria paraequilibrar o corpo no exato momentoem que puxava a bola lateralmente.Sem essa compensação de torques, elefatalmente iria ao chão, fato que acon-tecia, freqüentemente, com os seusmarcadores, não tão hábeis na execu-ção de tão rápido bailado.

Um outro fato interessante presen-te nas transmissões esportivas residena crença na possibilidade de certosatletas desafiarem momentaneamentea lei da gravidade, levitando. Em umatransmissão de basquete o locutor foienfático ao afirmar que O Michael Jor-dan é realmente um jogador excepcional.Ele se diferencia dos demais jogadores, poisconsegue parar no ar por uma fração desegundo e isso lhe permite encestar commais precisão. Também no futebol estacrença parece presente: Hoje em dia jánão temos grandes cabeceadores. Mesmoo Jardel não se compara com o Dario. ODario era melhor que os outros porque eleparava no ar por um breve instante detempo, no momento de cabecear.

Também nas transmissões de atle-tismo pudemos perceber alguns equí-vocos. Em meio à disputa das Olimpía-das, um comentarista chamou a aten-ção do telespectador para o fato de quenovos recordes de curta e longa distân-cia nas corridas têm sido estabelecidosnos últimos anos em função da maiorestatura dos atletas. Entretanto, comoalertam, de modo pertinente, Gomes eParteli [12], isso não parece ter qualquerfundamento científico. A velocidademáxima nas corridas não é determi-nada pela altura do corredor. Estes pes-quisadores chegam a lembrar que boaparte dos recordistas de corridas sãoindivíduos de baixa estatura.

Nada, entretanto, parece superaras corridas de Fórmula 1, Fórmula Indye outras do gênero, como fonte deequívocos sobre a Física das situaçõesanalisadas. E ressalte-se, ainda, quepelo fato de tais corridas serem reves-tidas de todo um sofisticado aparatotecnológico, as explicações pseudo-científicas parecem ainda mais con-vidativas em tais circunstâncias. To-memos, por exemplo, o seguinte diá-logo em meio a uma corrida decaminhões na TV:

Narrador: Se um caminhão e umFórmula 1 entrassem juntos em uma cur-va, o caminhão, certamente, sairia comuma maior velocidade.

Comentarista: Claro, tendo mais pesoele tende a adquirir mais velocidade.

Tal afirmação está completamenteequivocada. Narrador e comentaristaparecem acreditar na relação entre opeso e a velocidade. Entretanto, o pesonão importa em uma tal situação. Seo caminhão e o carro executam amesma curva com a mesma veloci-dade, a mesma relação entre a força ea massa tem que ser observada. Destemodo, é necessário uma força maiorpara fazer o caminhão executar acurva. Esta força é devida ao atritoentre os pneus e a pista que é propor-cional ao peso (em um plano horizon-tal). Assim, a massa tem o seu efeitocancelado na relação mencionada en-tre a força e a massa do veículo [8].

Em outra ocasião, um equívocosemelhante foi constatado. O narra-dor, referindo-se a uma curva fecha-da, afirmou que Em uma curva fechada,um caminhão e um Fórmula 1 têm com-portamentos muito diferentes. Enquanto,ao tentar fazer a curva, o caminhão

Drible desconcertante de Garrincha: traídopela memória, o comentarista se esqueceque Mané abria os braços para se equilibrarno momento do drible.

14 Física na Escola, v. 5, n. 1, 2004A Física nas Transmissões Esportivas

Referências[1] A. Armenti Jr., The Physics Teacher

1212121212, 349 (1974).[2] T. Asai; T. Akatsuka e S. Haake, Phys-

ics World 1010101010, 25 (1998).[3] A. Ashe, Getting More Firepower into the

Cannonball. Tennis Strokes and Strate-gies (Simon & Shuster, New York,1975).

[4] J. Borkowski e E. Kawecka, in Con-gress GIREP: Physics in New Fields, Lund,Suécia, 2002.

[5] P. Brancazio, The Physics Teacher 2323232323,403 (1985).

[6] R. Carneiro, in A Importância do Saque,editado em PlayTenis, http://www.playtenis.com.br/hopiniao.htm.Acessado em 22 de julho de 2001.

[7] W. Connolly, The Physics Teacher 1616161616,392 (1978).

[8] M. Crichton, On Two Cars Negotiating aCurve, edited in The Andromeda Strain(New York, 1993).

[9] R. Cross, The Physics Teacher 3939393939(2001).

[10] B. Elliott and R. Kilderry, The Art andScience of Tennis (Saunders, Philadelphia,1983).

[11] W. Elliott and C. Lowry, Journal of Col-lege Science Teaching 55555, 99 (1975).

[12] M. Gomes e E. Parteli, Revista Brasileirade Ensino de Física 2323232323 (2001).

[13] O. Haugland, The Physics Teacher 3939393939(2001).

[14] G. Ireson, Physics Education 3636363636, 10(2001).

[15] G. Ireson, in Congress GIREP: Physics inNew Fields, Lund, Suécia, 2002.

[16] R. Júdice e V. Veloso Jr, A Física na Escola33333(1) (2002).

[17] B. King, Play Better Tennis with BillieJean King (Octopus Books Ltd, Lon-don, 1981).

[18] M. MacMillan, Research Quarterly4646464646, 48 (1975).

[19] F. McKim, Physics Education 1818181818, 221(1983).

[20] K. Parker, Physics Education 3636363636, 18(2001).

[21] J. Pons, Ensenãnza de las Ciencias 1818181818,131 (2000).

[22] B. Price, Body Arc and Serving Power. Ten-nis Strokes and Strategies (Simon &Schuster, New York, 1975).

[23] J. Salmela, The Advanced Study of Gym-nastics (Charles C. Thomas Publisher,Springfield, Illinois, 1974).

[24] B. Van Gheluwe and M. Hebbelinck,International Journal of Sport Bio-mechanics 22222, 88 (1986).

desliza para fora da pista, o Fórmula 1faz a curva facilmente. Em resposta, ocomentarista concorda com o narra-dor, afirmando que Certamente, pois ocarro é mais leve, menor e mais rápido.Ele, deste modo, é mais apropriado parafazer curvas fechadas. Em curvas maisabertas, o caminhão e o carro de corridaconseguem executar a curva, mas em cur-vas fechadas apenas o carro consegue, porser mais leve e mais rápido. Como podeser percebido, o mesmo tipo de equí-voco anterior repete-se, em um con-texto um pouco diferente. Imaginemosque o carro e o caminhão estejam coma mesma velocidade, e admitamosainda que o coeficiente de atrito entreos pneus de ambos os veículos e o chãoseja o mesmo. Como vimos no casoanterior, a relação entre a força e amassa (aceleração) será a mesma paraque ambos façam a curva. Entretanto,o caminhão tem uma maior tendênciaa virar na curva, pois o seu centro demassa é mais alto. O que importa,neste caso, é a relação entre a alturado centro de massa e a largura da base,ou seja, a distância entre as rodasesquerda e direita. Esta relação é maiorno caso do caminhão que, deste modo,tem uma menor estabilidade nas cur-vas fechadas [8]. Portanto, embora ocaminhão tenha, realmente, maiordificuldade que o carro para fazer ascurvas mais fechadas, este fato nadatem a ver com a explicação esboçadapelo narrador e complementada pelocomentarista.

Muitos outros equívocos registra-dos em nosso estudo nas transmissões

esportivas dizem respeito a fenômenosrelacionados ao calor, à óptica e à ele-tricidade. O espaço do presente tra-balho, entretanto, não permite que nosalonguemos em suas análises, ficandoos mesmos para serem alvos de estu-dos e comentários em um outro texto.

Para complementar nossa coleçãode “ensinamentos surrealistas” de Físi-ca contidos nas transmissões espor-tivas, vale a pena citar uma jóia rarabem recente. Na final da ultima CopaAmérica, durante o jogo Brasil x Ar-gentina, o comentarista observou parao locutor: hoje à noite, no Fantástico,físicos da USP vão explicar os saltos daDaiane dos Santos. Imediatamente olocutor acrescentou de forma eloqüentee professoral: Eles vão tentar explicar,pois saltos são coisas artísticas; saltos nãotem nada a ver com a Física. Umaobservação realmente… fantástica!

ConclusõesO panorama geral que pode ser

auferido do presente estudo sobre avisão de Física contida nas transmis-sões esportivas não parece dos maisanimadores. Certamente tal panoramanão descreve rigorosamente aquilo quepensam os profissionais da mídia sobreo assunto, mas fornece, assim mesmo,uma visão calcada no registro e na aná-lise de algumas opiniões emitidas poralguns influentes narradores e comen-taristas. De todo modo, entretanto,ainda que a título apenas ilustrativo,o cenário dele decorrente parece preo-cupante. Sendo a mídia esportiva umpoderoso veículo formador de opinão,

é de se questionar o que poderia serfeito para, ao menos, suavizar este tipode influência na formação científicados nossos jovens. Não temos a res-posta para uma tal indagação, masassumimos a importância de que taisequívocos sejam discutidos com osalunos em sala de aula. Acreditamos,deste modo, que o presente estudo pos-sa servir de alerta para a existência doreferido problema e para que outras pes-quisas sejam realizadas com o intuitode investigar em maior amplitude estaquestão que se apresenta como degrande relevância educacional peloimpacto que pode exercer.

Uma tal relevância educacionalpode ser aquilatada pelo potencial moti-vador que as menções às transmissõesesportivas e aos seus personagens pare-cem exercer sobre parcela relevante danossa juventude. Neste sentido, umaanálise das concepções alternativas,sobre certos conteúdos da Física, apre-sentadas por tais personagens, podeservir como um complemento emabordagens educacionais mais ecléticas.Aliada a outras metodologias de ensinoque incluam, por exemplo, experimen-tos, informações históricas, dramati-zações, tecnologia educacional e tantasoutras coisas mais, a discussão das con-cepções sobre os fenômenos físicospresentes no imaginário dos profis-sionais da mídia desportiva, parece-nosapresentar-se como um complementodotado de um grande potencial de moti-vação que merece, portanto, ser con-venientemente explorado em nossassalas de aula.