A Filosofia Da Pesquisa Social

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John HughesProfessor de Sociologia da Universidade de Lancaster

A FILOSOFIA DA PESQUISA SOCIALTraduo: Helosa Toller Gomes Reviso Tcnica: Menga LdkeProfessora de Metodologia da Pesquisa, Depto. de Educao, PUC-RJ

ZAHAR EDITORESRIO DE JANEIRO

Titulo original: The Philosophy

of Social Research

Traduo autorizada da primeira edio inglesa publicada em 1980 por Longman Group Limited, de Londres, Inglaterra. Copyright John Hughes, 1980 Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao, no todo ou em parte, constitui violao do copyright. (Lei 5.988)

Capa: rico Composio: Zahar Editores

1983 Direitos para a lngua portuguesa adquiridos porZAHAR E D I T O R E S S.A.

Caixa Postal 207 (ZC-00) Rio de Janeiro que se reservam a propriedade desta verso Impresso no Brasil

NDICE

Prefcio 1. A Filosofia da Pesquisa Social Introduo A natureza da filosofia Ontologia, epistemologia e autoridade intelectual A filosofia e o processo de pesquisa 2. A Ortodoxia Positivista O background intelectual Os elementos do positivismo O positivismo de Durkheim As lies de Durkheim 3. O Positivismo e a Linguagem da Pesquisa Social A linguagem de observao A linguagem de observao e a cincia social O problema dos todos sociais O status da teoria O positivismo e a teoria cientfica 4. A Alternativa Humanista Alguns precursores intelectuais A ao e o significado social Regras, motivos e descrio da ao social Razes versus causas 5. Os Significados e a Pesquisa Social A crtica da ontologia positivista e seus mtodos Conceitos leigos versus conceitos cientficos Os significados e a pesquisa social 6. Consideraes Finais

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Para Wesley John Que chegou no meio de tudo isto e provou que possvel sobreviver, apesar de sonos interrompidos e de manhs com olheiras.

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PREFCIO

Este livro uma introduo ao assunto e pode simplesmente fornecer as linhas gerais de vrias das importantes questes filosficas envolvidas. No tenta competir com vrios dos excelentes textos que tratam de questes mais amplas da filosofia da cincia social. Minha preocupao principal foi discutir problemas filosficos que brotam da prpria pesquisa da cincia social. Espero, pelo menos, ter mostrado como e por que o estudo filosfico da pesquisa um dos importantes aspectos da cincia social, embora seja freqentemente negligenciado. Por este motivo, dei nfase especial a problemas descritivos na cincia social e sua relao com descries leigas de fenmenos sociais. Como socilogo, utilizei-me de ilustraes e exemplos na maior parte das vezes retirados desta disciplina e espero que outros cientistas sociais encontrem aqui algo que lhes interesse e os estimule. Os filsofos, sem dvida, sentir-se-o descontentes; posso apenas prestar-lhes a homenagem de tentar, modestamente, caminhar em seu territrio. Gostaria de aproveitar a oportunidade para agradecer a muitas pessoas que em diversas ocasies contriburam com idias de algum modo incorporadas a este livro. Dois dos meus ex-alunos de ps-graduao, o Dr. Paul Drew, da Universidade de York, e o Dr. Ray Pawson, da Universidade de Leeds, influenciaram sensivelmente o meu pensamento sobre a metodologia. Eles forneceram respostas diferentes crtica j bem conhecida ao positivismo e recomendo as suas teses a quem deseje ir mais adiante no estudo da metodologia. Tambm Jeff Coulter e Doug Benson tiverain significativa participao no meu trabalho, quer atravs de discusses, quer atravs de sua obra publicada. John Urry no me influenciou mas, como sempre, suas idias constituram um desafio em razo de seu rigor e profundidade. A defesa s vezes apaixonada empreendida por Steve Ackroyd em relao cincia social "tradicional" foi, diversas vezes, um padro eficaz com o qual pude avaliar idias mais radicais. Finalmente, agradeo a minha esposa, Jacky, e a Brenda pelo cuidado com que se dedicaram datilografia de um manuscrito que s vezes lembrava um lbum de recortes merc da ventania.J O H N A. HUGHES

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1 A F I L O S O F I A DA P E S Q U I S A S O C I A L

INTRODUO

A relao entre filosofia e aquilo que atualmente chamamos de cincias sociais tem uma histria, de certa forma, semelhante parbola do filho prdigo. Assim como os adolescentes arrogantes, as cincias sociais, nascidas e criadas no mbito familiar da filosofia, rejeitam seus pais e dissipam sua herana, s retornando casa paterna quando o mundo exterior se mostra hostil e inspito. Desde que se desenvolveram como disciplinas autnomas, as cincias sociais s tm procurado reexaminar seus fundamentos filosficos em perodos de crise: perodos em que os mtodos conhecidos e dignos de confiana no mais parecem justificar a f que neles se depositava, em que os pesquisadores perdem a confiana em seus achados e em que princpios bvios e "garantidos" no mais parecem to indiscutveis. em tais perodos que surgem advertncias sobre a "crise iminente", ou apelos em prol de um "reexame" da teoria social. Tais perodos (e, para muitos, as cincias sociais do a impresso de ser constitudas quase que inteiramente dessas lacunas) foram os estudiosos a se voltarem mais uma vez para seus princpios bsicos, reavaliando os fundamentos filosficos de suas prticas. Embora as questes filosficas talvez se tornem mais evidentes em perodos de crise intelectual, isso no significa que s ento sejam relevantes. Em se tratando da sociologia, a trindade fundadora de Marx, Weber e Durkheim significou considervel esforo e os resultados da advindos ainda afetam maciamente os estilos do pensamento sociolgico, no estabelecimento e aprimoramento das bases filosficas de suas indagaes mais cruciais. Para eles, as questes filosficas tinham que ser resolvidas a fim de tornar viveis as prprias indagaes empricas e isso ainda mais tpico da tradio europia da cincia social do que no tocante tradio britnica ou norte-americana. Qual , ento, a relao entre filosofia e cincias sociais? Por que os filhos prdigos voltam quando os tempos so maus? Que oferece a filosofia, que as cincias sociais no podem fornecer? claro que tais perguntas, embora formuladas, exigem mais do que simples respostas. Entretanto,

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necessrio que esbocemos as relaes em pauta antes de discutirmos algumas de suas facetas com maiores detalhes. A relao entre filosofia e cincias sociais tem aspectos histricos, lgicos e conceituais. Na verdade, do ponto de vista histrico, s recentemente essa relao tem sido examinada em profundidade. O assunto pressupe um longo perodo de desenvolvimento intelectual, e apenas ao final deste a prpria idia de uma cincia social tornou-se articulvel. Tal no tem sido sempre o caso ou, pelo menos, nem sempre se deu da forma como talvez entendamos hoje em dia. Plato, por exemplo, falou sobre a sociedade, sobre a relao entre a sociedade e seus membros, mas tinha objetivos diferentes e falava com subsdios diferentes dos de Marx, Weber e outros tericos sociais mais recentes. Entre Plato e a poca atual, as conquistas das cincias naturais influenciaram as formas atravs das quais concebemos e estudamos a sociedade: no mais podemos estudar a vida social como se as cincias naturais no existissem. Isto vale no apenas para a sociologia mas para todas as cincias sociais: economia, cincia poltica, antropologia, psicologia e mesmo a histria. Tal fato no significa que essas disciplinas tenham subservientemente adotado os mtodos das cincias naturais, mas assinala apenas que estas ltimas constituem um aspecto inevitvel de seu embasamento intelectual. O que tem isto a ver com a filosofia? Em poucas palavras, a noo de que o estudo da vida social poderia ser tratado como o estudo da natureza inanimada foi o desfecho de um longo debate filosfico; um debate cuja importncia permanece presente. E mais: sugere que existe algo na natureza da filosofia que lhe d um lugar nico no campo dos esforos intelectuais humanos.

A NATUREZA DA FILOSOFIA

Existem muitas definies de filosofia, e h tantos estilos diferentes como as prprias definies. O que agrava o problema, conforme observou Hospers, o fato de que h dificuldades especiais quanto a uma definio de filosofia que possa ser entendida antes de examinarmos os problemas filosficos relativos definio em geral.1 Isto assinala uma das caractersticas mais importantes das questes filosficas, isto , sua qualidade interminvel e aparentemente circular, o modo como dependem da significao de tantas outras coisas antes mesmo de podermos comear a responder quilo que aparentava ser uma pergunta direta e inofensiva. "O

J. Hospers, An Jntroduction to Philosophical Analysis, Englewood Cliffs, PrenticeHall, 1967, p. 1.

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que a realidade?" pergunta que, se formulada filosoficamente, dificilmente teria uma resposta do tipo "a realidade isto e aquilo". 0 mais provvel seria o conseqente surgimento de outras indagaes, tais como "o que voc quer dizer com...?", "como proceder para determinar o 'real'?", "em que consistiria o 'no-real'?" e assim por diante. Este tipo de reao , sem dvida e em grande parte, responsvel pela sensao de assombro que freqentemente sentimos ao abordar questes filosficas e pela sensao de que so indagaes sobre as questes mais fundamentais e mais gerais: a realidade, a natureza do conhecimento, a mente, a matria, a verdade e assim por diante. A filosofia se indaga sobre tudo isso, mas de um modo especial. Se a filosofia tratasse simplesmente de fenmenos materiais, por exemplo, seria reduzvel fsica; se visasse apenas mente ou verdade, seria reduzvel psicologia ou lgica, respectivamente. Mas no o assunto por si s que define a filosofia e suas ramificaes, e sim a sua forma especfica de questionamento e o modo quase infantil e inocente com que gera confuso nas idias estabelecidas a respeito do mundo. Nada existe de claro e especfico para determinar o que faz com que uma questo seja filosfica. No se trata tanto de sua forma enquanto pergunta; nem todas as perguntas so filosficas, afinal de contas. Trata-se antes da incerteza sobre se, ao se fazer uma pergunta, esta pode constituir uma questo filosfica. Com a maior parte das perguntas, tais como "o que uma caixa de cmbio?", geralmente sabemos que forma a resposta pode ter mesmo que no possamos, pessoalmente, responder de modo satisfatrio. Por outro lado, com as perguntas filosficas, no temos certeza quanto ao tipo de resposta que satisfaa questo, o que, por sua vez, nos traz dvidas com relao ao carter da prpria pergunta. Os outros pontos que mencionei, como a sensao de assombro, o sentimento de que as questes filosficas tratam dos assuntos mais gerais, mais fundamentais, parecem-me proceder desta caracterstica. Tentarei ilustrar esses aspectos com um exemplo bastante corriqueiro. H algum tempo, eu dirigia meu automvel tendo frente um caminho no qual se lia a palavra "Leite". Naturalmente cheguei concluso de que o caminho tinha por objetivo transportar leite. Mas qual era a base de tal suposio? O fato de que "Leite" aparecesse no caminho? bem provvel, porm eu ento teria que continuar presumindo que "Leite", quaisquer que fossem suas outras funes, correspondesse quilo que o caminho carregava. E, entretanto, muitas vezes os caminhes portam outros nomes ou palavras que no tm qualquer relao com aquilo que geralmente transportam. Que se poderia pensar dessa ocorrncia corriqueira? Para quem tenha preocupaes filosficas, uma pergunta que poderia surgir diz respeito aos fundamentos sobre os quais certos tipos de observaes so feitas. Voltando ao caminho de leite: como sei, neste caso, que "Leite" refere-se ao que o caminho normalmente carrega? Afinal de contas, "Leite"

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poderia ser o nome do dono do caminho, ou mesmo sua marca de fabricao. Que razes posso apresentar para afirmar que este caminho transportava leite? Existem, claro, muitos argumentos a apresentar: tratava-se de um caminho-tanque; "Leite" no um sobrenome to comum; que eu saiba, nenhuma marca de caminho tem esse nome; tampouco sei de motoristas que batizem de "Leite" seus caminhes; e assim por diante. Um acmulo dessas razes provoca uma "soma" reforando a convico de que tal caminho normalmente transporta leite. Mas por qu? As razes que apresentei incluem referncias minha experincia pessoal, a hbitos de fabricantes de veculos, a costumes de caminhoneiros, e assim por diante. O que mais precisaria enumerar at que a ligao entre o signo "Leite" e a funo do caminho estivesse estabelecida? Poder-se-ia argumentar que, ao invs de fazer todas essas perguntas, bastaria simplesmente olhar o interior do caminho desde que, claro, se apresentasse uma oportunidade para isso e o motorista fosse tolerante o suficiente para colaborar com o meu capricho filosfico! Mas o que torna olhar mais seguro ou corroborativo do que as razes j apresentadas? Eu ainda poderia me enganar. A que concluses chegaria se o caminho estivesse cheio de usque e no de leite? Deveria acusar o motorista de contrabando? Concluir que durante todo o tempo eu havia entendido mal o letreiro e que a palavra "Leite" no se refere a um lquido branco produzido pela vaca mas sim a um lquido claro e amarelado que vem da Esccia? Quaisquer que fossem as minhas concluses, a verdade que eu me envolveria em questes tais como a natureza do dado, ou como distinguir entre coisas falsas e verdadeiras, ou que inferncias podem legitimamente ser feitas a partir de vrios tipos de dados e assim por diante. Assim procedendo, comeamos a perder algo do nosso senso de direo; as experincias conhecidas tornam-se confusas e mesmo os aspectos mais evidentes, certos e ordinariamente verdadeiros do nosso mundo passam a adquirir um carter problemtico. Observe-se que essas questes surgiram de um exemplo corriqueiro. No necessrio qualquer conhecimento esotrico para fazer o tipo de conexes que fiz de incio entre o letreiro no caminho e a sua funo de transportar leite: a conexo entre letreiro e funo um assunto de rotina diria. A capacidade de ler sinais de trfego, rtulos em pacotes ou garrafas, cabealhos ou nomes de ruas parte da competncia de cada dia; por que ento levantar questes filosficas sobre isso? Naturalmente, num certo nvel, no h motivo algum para se duvidar dessa capacidade. Trata-se simplesmente de algo que os seres humanos fazem e pouco provvel que discusses filosficas tenham qualquer relao com isto e com a forma como isto afete nossas vidas. Entretanto, num outro nvel, as questes filosficas so importantes e, para demonstrar de que modo o so, passarei a discutir a noo de autoridade intelectual trazendo, portanto, a discusso para mais perto da cincia social e da pesquisa social.

A Filosofia da Pesquisa SocialONTOLOGIA, EPISTEMOLOCIA E AUTORIDADE INTELECTUAL

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Muitas pessoas pretendem estudar aspectos da vida social: romancistas, socilogos, psiquiatras e psiclogos, homens de negcios e economistas, poetas e camponeses, garons e bilogos e assim por diante. Logo de pronto pergunta-se: o que distingue entre si todos estes e outros exemplos? Quais os critrios relevantes para tal distino? Como sempre, existem muitas respostas. Um possvel critrio diz respeito forma e ao status de conhecimento envolvidos em cada caso. Pode-se alegar que as atividades das pessoas mencionadas tratam de aspectos diversos do mundo: os psiquiatras e psiclogos, por exemplo, lidam com a "vida interior" dos seres humanos; os socilogos, com os aspectos coletivos; romancistas e poetas, com a expresso; garons e camponeses, com o lado cotidiano prtico, menos abstrato e terico da vida. claro que tais distines no so assim to simples e imediatas, constituindo, em todo caso, apenas um comeo. Para propsitos imediatos, entretanto, as distines assinalam objetos que podem ser discutidos e estudados, tais como emoes, fatos psquicos, coletividades etc. Pode haver todo tipo de conexes entre essas e outras "coisas", e tais conexes podem apresentar argumentos adicionais quanto sua natureza. Basta dizer, neste ponto, que as distines feitas estabelecem afirmaes ontolgicas, ou seja, afirmaes a respeito daquilo que existe. Um outro conjunto de afirmaes que poderamos fazer quanto s distines mencionadas refere-se menos quilo que elas "representam", e mais s formas pelas quais tais aspectos do mundo podem ser conhecidos. Assim, seria possvel afirmar que algumas dessas atividades envolvem procedimentos que tratam com uma "ordem mais elevada" de conhecimento, de ndole mais positiva, mais digna de confiana, menos exposta a caprichos, interesses e emoes pessoais. Fazer uma afirmao como essa e no preciso que seja esta afirmao especificamente significa preocupar-se com as formas e os meios de entender os objetos e acontecimentos do mundo. Preocupar-se, em suma, com a epistemologia; afirmaes ou teorias filosficas que podem ser expressas a respeito de como o mundo vem a ser conhecido. Tais questes no visam a tcnicas ou tpicos factuais do tipo "como se mede o QI?" ou "qual foi o ndice de suicdio na GrBretanha em 1973?"; tais questes tcnicas e factuais s se postulam dentro de posies epistemolgicas filosoficamente justificadas. Em suma, as questes epistemolgicas so questes a respeito do que devemos considerar como fatos. Os problemas ontolgicos e epistemolgicos, evidentemente, no so isolados entre si. Afirmaes a respeito do que existe no mundo quase sempre levam questes relativas possibilidade mesma de se conhecer o que

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existe. Se eu pretender afirmar em 1978 que fadas ou duendes existem, provavelmente serei chamado a dizer como sei de sua existncia, especialmente porque poucas outras pessoas tero feito afirmaes semelhantes. Na ausncia de evidncias corroborativas, eu teria que explicar a natureza de tais criaturas e os procedimentos atravs dos quais sua existncia pde ser estabelecida. Neste caso especfico, provvel que meu xito fosse bastante pequeno, mas o exemplo ilustra claramente o importante elo existente entre ontologia e epistemologia. Afirmaes sobre a natureza dos fenmenos tm implicaes sobre o modo pelo qual os fenmenos podem ser conhecidos. As afirmaes dos fsicos quanto existncia de certas partculas subatmicas, para usar um exemplo mais atualizado, esto carregadas de teorias a respeito de como tais partculas podem ser detectadas. 2 Da mesma forma, a crena na existncia de Deus sempre acompanhada de afirmaes sobre como demonstr-la, afirmaes que podem no satisfazer aos procedimentos rigorosos das cincias naturais mas que estabelecem um mtodo de conhecimento do mundo espiritual, diferente daquele que pretende conhecer o material. importante enfatizar que as questes ontolgicas e epistemolgicas no devem ser respondidas atravs da investigao emprica, uma vez que se preocupam, entre outras coisas, com a natureza e a significncia mesmas da investigao emprica. So questes que requerem discusso e debates filosficos nos quais se focalizam, como questo geral, as prprias pressuposies de conhecimento. Segue-se que, ao se fazer uma afirmao de conhecimento, qualquer que seja ela, tambm se indica a disposio de justific-la atravs da especificao dos meios de conhecimento. Tais meios podem incluir referncias a mtodos experimentais, procedimentos corretos de anlise, fontes autorizadas, inspirao espiritual, idade, experincia e assim por diante: ou seja, referncias queles processos coletivamente acreditados como constituindo, em geral, boas razes para que se saiba algo. dessa licena pblica coletiva que deriva a autoridade intelectual do nosso conhecimento. 32 No h qualquer afirmao aqui quanto natureza existencial de tais partculas; se elas existem em algum sentido tangvel ou se constituem construtos hipotticos cuja funo principal no fazer afirmaes existenciais como tal mas sim operar dentro de uma teoria visando a explicar certos aspectos do mundo, do ponto de vista econmico. 3 S. Toulmin, Human Understanding, Vol. 1, Oxford University Press, 1972, p. 10. Receber tal permisso nem sempre , naturalmente, uma garantia suficiente, ao que se saiba. O que est sendo enfatizado, aqui, a natureza racional de nossas afirmaes e o modo pelo qual as razes especficas possuem uma categoria de autoridade. Porm, como todas as razes, elas so revogveis. Ou, em outras palavras, pode haver, no caso de uma reivindicao especfica de conhecimento, razes especficas pelas quais, de uma maneira geral, "as boas razes" no so aceitveis. Ter "boas razes" no uma garantia " prova de tolos" de que se sabe de fato.

A Filosofia da Pesquisa Social 17 Nesse ponto, desejo fazer uma ou duas advertncias a respeito do que j tratamos. Primeiramente, no pretendi at agora discutir os mritos relativos de diferentes formas de conhecimento. Um dos temas principais de todo o livro um exame das razes pelas quais algumas formas da compreenso humana das cincias sociais vm a ser investidas de qualidades superiores. Em segundo lugar, gostaria de acentuar a ambigidade existente na prpria noo de conhecimento. Como ser assinalado mais tarde, outros termos, tais como "compreenso", tm sido usados para caracterizar o objetivo das cincias sociais em oposio a outras formas do saber. Esta distino especfica relevante quando se debate se as cincias sociais possuem um parentesco com as cincias naturais ou se, como cincias humanas, tm uma natureza inevitavelmente diferente. Mencionei anteriormente a idia de uma autoridade intelectual sobre a qual, podemos dizer, repousam as afirmaes relativas ao conhecimento. Esta formulao pretende assinalar numerosas qualidades de afirmaes de conhecimento e a relacionar a anlise filosfica de conceitos s concepes histrica e socialmente fundamentadas que os seres humanos mantm sobre o mundo e sobre suas vidas dentro dele. Em linguagem clara: uma afirmao de conhecimento tem dimenses sociais. Nossas afirmaes e justificaes funcionam, se o fazem, em virtude de concepes coletivamente mantidas acerca do mundo e sobre o modo como a ele nos relacionamos. At a, tudo bem. Entretanto, nem todas as concepes do mundo possuem o mesmo peso ou so sequer sustentadas por uma maioria. Alguns corpos de saber so to esotricos que apenas uns poucos os entendem embora muitos creiam neles. Alm disso, as coisas se complicam pelo fato de que algumas concepes do mundo, tal como a fsica nuclear, so tidas em elevada conta at mesmo por aqueles que as desconhecem, ao passo que outras so escarnecidas como sendo produtos insensatos de uma ala luntica e postas de lado por causa daqueles que as sustentam. Essas observaes levantam mais uma vez a questo formulada anteriormente: existe alguma forma objetiva, sistemtica e justificvel de se discriminar o conhecimento verdadeiro daquelas afirmaes que apenas aparentam ser conhecimento? Na verdade, uma das principais atividades das teorias filosficas do conhecimento foi e ainda fornecer aquilo que Quinton chama de "uma avaliao crtica da ordem lgica das justificaes". 4 Isto tem freqentemente tomado a forma de uma busca dos fundamentos irrefutveis do conhecimento humano: embora possamos dizer que algumas crenas baseiam-se em outras, existem conjuntos de crenas cujas relaes com outros conjuntos so assimtricas e no obtm apoio das crenas que

4. A. Quinton, The Nature of Things, Routledge & Kegan Paul, 1973, p. 115.

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justificam. Se tais crenas pudessem ser formuladas, ento todas as crenas poderiam ser dispostas numa seqncia ou ordem em cujo incio estariam aquelas que, conquanto justificando outras, no requerem seu apoio. Estas, as possuidoras da prioridade epistemolgica absoluta, seriam os fundamentos do conhecimento humano. Infelizmente, conforme veremos, os conhecimentos candidatos a crenas dotadas de prioridade epistemolgica no tm aceitao universal e a busca, ao menos em certos setores, permanece. E mais ainda, as concepes do mundo tm mudado historicamente. Qualquer pessoa com conhecimento mesmo limitado de histria e antropologia rapidamente percebe que, em muitos aspectos, nossos antepassados possuam a respeito do mundo idias muito diferentes das que temos, embora provavelmente se sentissem to seguros da correo de suas opinies quanto nos sentimos hoje das nossas. Por tudo isso, necessrio prestar ateno advertncia de Toulmin e no tratar a epistemologja como se fosse uma disciplina isolada, sem razes no pensamento de um perodo ou sem relaes com os procedimentos e com os problemas prticos de disciplinas concebidas historicamente. 5 Por exemplo, os debates metodolgicos dentro das cincias sociais no podem ser entendidos independentemente do cenrio cultural mais amplo nem tampouco das descobertas das pesquisas anteriores, baseadas, embora, em suposies epistemolgicas diferentes. Nenhuma epistemologia filosfica, como espero demonstrar, pode ser composta de verdades autoevidentes, inabalveis em todas as pocas. Na verdade, conforme veremos, e teremos motivos para criticar com mais detalhes, posteriormente, as atuais concepes baseadas no "bom senso" a respeito da natureza do mundo e dos modos atravs dos quais possvel conhec-lo derivam, elas prprias, de debates do sculo XVII. Descartes e Locke, duas figuras filosficas de primeira ordem, apesar de sua genialidade, eram homens de sua poca e discutiam os princpios do conhecimento humano luz das idias vigentes acerca da ordem da natureza e do lugar do homem dentro desta. Segundo Toulmin, eles aceitavam sem contestao trs "lugares comuns": que a natureza era fixa e estvel, podendo ser conhecida por princpios de entendimento igualmente fixos, estveis e universais; que havia um dualismo entre esprito e matria, sendo a segunda inerte, enquanto que o esprito era a fonte da razo, motivao e outras funes mentais; e, finalmente, que o critrio de conhecimento, de certeza inabalvel, era fornecido pela geometria, ante a qual deveriam ser julgadas todas as outras afirmaes de conhecimento. 6

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Toulmin, op. cit., p. 11. Ibid., pp. 13-19.

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Podemos ver como tal concepo, alm de fornecer uma descrio ontolgica bsica do mundo, continha tambm prescries epistemolgicas quanto forma pela qual o mundo poderia ser investigado. Orientava as preocupaes de cientistas e filsofos e, atravs dos tempos, estabeleceuse como verso autorizada do mundo, exatamente como um conjunto de instrues indicando de que modo o mundo deveria ser armado. Esta fase posterior teve lugar porque se tratava de uma viso amplamente aceita por cientistas e filsofos. O trabalho terico mais detalhado dentro das vrias disciplinas obtinha validade intelectual na medida em que era visto como condizente com esta concepo original ao mesmo tempo que, de modo reflexo, legitimava a validade desta concepo. Houve diversas escolas tericas, mesmo dentro de uma nica disciplina racionalistas, empiristas, corpuscularistas, vorticistas consideradas coerentes com os princpios ontolgicos e epistemolgicos previamente firmados. No entanto, tais princpios estabeleciam o contexto de debates no qual as diversas escolas discutiam suas divergncias e suas verses particulares do mundo. Em suma, eram esses princpios que possuam autoridade intelectual. A conscincia dos contextos social e histrico das afirmaes de conhecimento gera um problema (a ser visto com mais detalhes posteriormente, neste livro) ligado relatividade do conhecimento que surge, poderamos dizer, de sua determinao social. Embora os "lugares comuns" da viso seiscentista do mundo (viso, alis, especfica de certos grupos eruditos na Europa) mantivessem uma forte influncia ao longo dos dois sculos seguintes, nenhum deles conserva a mesma significao atualmente, nem mais defendido com igual convico. As idias de evoluo e de um Universo em mutao no mais admitem a concepo de um Universo fixo e inaltervel. Da mesma forma, a distino entre esprito e matria, to verdadeira segundo o "bom senso", perdeu a fora e a nitidez de outrora. A inveno de novas geometrias no-euclidianas, a par disso, acarretou o questionamento em profundidade do ideal geomtrico como modelo do Universo, concedendo a esta disciplina mais espao enquanto criao humana; sempre til e potente para propsitos especficos, mas de modo algum a fonte de certeza enquanto parmetro universal de conhecimento. Porm, se tais princpios "evidentemente verdadeiros" de nossa cultura vierem a ser questionados, o que vir a substitu-los? E mais ainda: esta mudana representar um progresso, uma evoluo do nosso conhecimento na direo de formas mais elevadas, ou os sistemas de conhecimento podem apenas ser julgados em seus prprios termos enquanto produtos de sistemas sociais e histricos especficos? Como encarar formas de conhecimento diferentes das nossas, tais como crenas em bruxaria, por exemplo, ou em medicamentos baseados em concepes muito diversas de doena e que, ao menos nas culturas em que atuam, mostram-se extremamente eficazes?

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Esses exemplos, e h muitos outros mais at mesmo de carter menos extico, colocam agudamente o problema da relatividade dos critrios de conhecimento ou, em outras palavras, das fontes de nossa autoridade intelectual. Como julgar entre diferentes sistemas de conhecimento? Existem critrios claros e no-ambguos (conforme Plato e seus seguidores acreditavam ser aqueles representados pela geometria), atravs dos quais possamos determinar se o que sabemos verdadeiro ou no? Existe, em resumo, alguma fonte universal de autoridade intelectual? Questes como essas sero discutidas posteriormente e, embora possam parecer bastante abstratas, so de extrema importncia, pois nos ajudam a compreender o que estamos fazendo quando, por exemplo, nos engajamos na pesquisa social. Isto nos remete a outra caracterstica da filosofia. A filosofia surge naquela rea do pensamento humano onde nossas idias e conceitos so levados a seus limites. Referi-me anteriormente s cincias sociais como filho prdigo voltando filosofia quando surge uma profunda incerteza a respeito de suas finalidades, quando a imaginao humana parece extraviada, quando indagaes de difcil ordenao parecem minar nossas concepes mais caras e consolidadas. em tempos como esses que os cientistas sociais, ou ao menos alguns deles, comeam a falar em "rupturas epistemolgicas" e "mudanas de paradigma" ou, de forma mais prosaica, em desenvolvimentos no pensamento humano.

A FILOSOFIA E O PROCESSO DE PESQUISA

Finalizando este captulo introdutrio, tentarei relacionar a$ observaes gerais sobre a natureza da filosofia ao processo de pesquisa social. Em termos amplos, a pesquisa empreendida a fim de descobrir algo sobre o mundo, um mundo concebido, embora de maneira vaga e tentativa, em termos dos conceitos bsicos que caracterizam uma disciplina, qualquer que seja esta. A imagem popular do pesquisador enfatiza o que poderamos chamar de aspectos manipulativos da funo o tangvel, o "remexer" nas coisas, sejam elas compostos qumicos, tubos de ensaio, microscpios e dispositivos, aceleradores de partcula, fios e transistores, e assim por diante. Este panorama decorre do realce das cincias naturais em nossa cultura e se "remexer" resumisse todo o necessrio para a pesquisa, pouco interesse teria esta para ns. Embora muitas das descobertas primordiais de nossa poca e de outras tenham sido imprevistas, at mesmo acidentais, foram estabelecidas e aceitas como descobertas conseguidas atravs da aplicao de um mtodo, um corpo de procedimentos investidos do poder de produzir conhecimento que chamaramos de "cientfico". Como observa Wallace, os mtodos cientficos pro-

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curam deliberadamente anular a perspectiva individual do cientista e so propostos como preceitos, de onde decorrer a possibilidade de concordncia a respeito de verses especficas do mundo: procura-se, em suma, uma distino entre o produtor de uma afirmao e o procedimento ento empregado.7 Teria sido irrelevante que Galileu simplesmente afirmasse que os planetas percorrem suas rbitas em torno do Sol sem que acrescentasse afirmaes e argumentos sobre como chegou a esta concluso, sem especificar que procedimentos seguiu, que provas apoiavam sua teoria e como tais provas foram obtidas. Tendo levantado a questo epistemolgica, torna-se menos fcil dizer exatamente em que constituem os procedimentos. Poderamos simplesmente citar experimentos, testes de hipteses, verificao pblica do mtodo, enquanto componentes de pelo menos alguns dos meios importantes na produo do conhecimento cientfico. Entretanto, ante qualquer conjunto de procedimentos que pudessem ser apresentados como os procedimentos para a produo de conhecimento cientificamente vlido, cabe a ns perguntar: por que justamente esses procedimentos e no outros? Que tipo de garantias se que existem fornecem tais mtodos que outros no podem fornecer? Para colocar essas questes no contexto das cincias sociais, preciso perguntar que elemento existe nos procedimentos e mtodos utilizados por pesquisadores sociolgicos, ou economistas, psiclogos, historiadores etc., que os torna superiores, que lhes d maior autoridade intelectual frente queles usados, digamos, pelo homem ou pela mulher comuns, pelo jornalista, pelo fantico racial, pelo poltico, revolucionrio, ou habitante das Ilhas Trobriand. Ou, colocando-se a questo em termos ainda mais fundamentais, em que bases pode ser feita a afirmao de autoridade intelectual? No ser surpresa descobrir que as respostas a essas perguntas no so simples. As dificuldades aumentam se contemplarmos, mesmo superficialmente, o que os pesquisadores sociais fazem quando dizem estar engajados em pesquisa. Seu treinamento normalmente consistir no domnio de tcnicas de questionrio, de princpios de projetos de surveys e suas anlises, das complexidades dos testes estatsticos, regresso e correlao, path analysis, anlise fatorial, talvez mesmo programao para computadores, modelos de computao e assim por diante. claro que a nfase dada a diferentes tcnicas dependeria da disciplina envolvida; o pesquisador sociolgico tambm teria que conhecer os mtodos de observao participante, assim como as tcnicas para a coleta de dados mais agregados, o economista deveria conhecer um instrumental matemtico e estatstico

7 W. Wallace, The Logic of Science in Sociology, Chicago, Aldine Atherton, 1971, p. 11.

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ainda mais sofisticado, enquanto o historiador provavelmente se preocuparia mais com o desenvolvimento de habilidades para a interpretao de vrios tipos de dados documentais. A questo que tais aptides podem ser adquiridas e utilizadas como se fossem as aptides de um ofcio. Um problema de pesquisa levanta a questo da escolha da aptido adequada execuo da tarefa indicada dentro dos limites estabelecidos. Trata-se de julgar acuradamente a adequao de um determinado instrumento de pesquisa ao fornecimento dos dados necessrios. Em suma, isto significa tratar os mtodos de pesquisa como uma tecnologia. E, sem dvida, sem tal postura a "cincia normal", para usara expresso de Kuhn, no seria possvel.8 A importncia das questes filosficas discutidas surge do fato de que todo instrumento ou procedimento de pesquisa encontra-se inextricavelmente permeado de compromissos para com verses particulares do mundo e modos de conhecimento do mundo adotados pelo pesquisador que os utiliza. Utilizar um questionrio, uma escala de atitudes, assumir o papel de observador participante, selecionar uma amostragem aleatria, medir ndices de crescimento populacional, e assim por diante, tudo isso significa estar envolvido em concepes do mundo que autorizam a utilizao desses instrumentos em relao aos fins concebidos. Nenhuma tcnica ou mtodo de investigao (e isto verdadeiro tanto para as cincias naturais quanto para as sociais) confere autenticidade a si prprio: sua eficcia, sua prpria categoria enquanto instrumento de pesquisa capaz de investigar o mundo depende, em ltima anlise, de justificao filosfica. Quer sejam tratados dessa forma ou no, os mtodos de pesquisa no podem ser divorciados da teoria; como instrumentos de pesquisa, eles operam apenas dentro de um determinado conjunto de suposies sobre a natureza da sociedade, a natureza do homem, a relao entre os dois e como ambos podem ser conhecidos. nesse nvel que comeamos a encontrar os pro1 blemas e questes filosficas mencionados anteriormente. A relao da filosofia com as cincias sociais apresentada aqui no pertence quer concepo da filosofia como subserviente, quer concepo do "cientista mestre". Na primeira, exposta por Locke entre outros, a filosofia simplesmente visa a afastar obstculos existentes no caminho do conhecimento, tais como a expresso vaga, os termos obscuros, as noes imprecisas e outros. Na segunda concepo, encontrada nos escritos dos grandes construtores de sistemas metafsicos como Descartes, Leibnitz e Hegel, a filosofia busca organizar a totalidade do conhecimento humano em sistemas logicamente articulados. A perspectiva adotada neste livro v a filosofia diferentemente: mais do que uma serva e menos do que

8. T. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 2 ed. ampliada, University ofChicago Press, 1970.

uma senhora, e no h razo para que exista apenas uma concepo vlida a respeito. 9 Na minha opinio, as questes filosficas podem surgir do interior de qualquer atividade, embora nem sempre com o mesmo vigor atravs dos tempos. Os filsofos profissionais no so os nicos capazes de levantar questes filosficas, embora possam faz-lo melhor do que outros no versados em aptides filosficas. Como j sugeri, as questes filosficas podem surgir de dentro de qualquer disciplina, e ao invs de serem desvinculadas de sua prtica diria ou consistirem em especulaes distantes de um pequeno crculo de eruditos, suas solues so cruciais para a forma e a ndole futura dessa disciplina em particular. Nossa preocupao aqui gira em torno das questes filosficas originrias da pesquisa social. Inevitavelmente, muitas das questes a serem discutidas ultrapassaro as simples tcnicas de pesquisa social. Dessa forma, muito da discusso consistir em determinar quais podem ser os fundamentos conhecidos da filosofia da cincia social. No h como evitar isto, mas tentarei assinalar mais diretamente questes relativas natureza da pesquisa social. Trata-se de mais do que mero interesse tcnico, como poderia ser numa concepo subserviente da filosofia. Para demonstr-lo, basta lembrar a falta de consenso no seio das cincias sociais, atingindo propores crnicas em algumas delas, quanto a serem cincias, pseudocincias, cincias imaturas, cincias pluriparadigmticas, cincias morais, e assim por diante. Desde a sua apario na cena intelectual, elas vm sendo acompanhadas por um contnuo sentimento de fracasso em razo de sua incapacidade para produzir anlises da vida social to convincentes quanto aquelas produzidas pelas cincias naturais do mundo material. Apesar da economia, ns ainda temos crises econmicas, acusao algumas vezes lanada aos polticos por no escutarem, ou por no terem a coragem de implementar as descobertas da cincia econmica. Por sua vez, os polticos acusam os cientistas sociais de no tratarem dos "problemas da nossa poca", e assim prosseguem as disputas. O status das cincias sociais no se encontra estabelecido, como j afirmei, nem mesmo dentro de disciplinas individuais. No mbito da sociologia, por exemplo, tm surgido contnuos debates sobre se a sociologia pode ser cientfica maneira das cincias naturais e isso gerou um exame do que seja a cincia natural como forma de conhecimento. As respostas a tais questes so importantes para a justificao intelectual de mtodos de pesquisa e para o status de autoridade das concluses obtidas atravs da sua utilizao.

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Kegan Paul, 1977, cap. 1. Benton tambm discute detalhadamente a relao entre a filosofia e a cincia social.

T. Benton, Philosophical Foundations of the Three Sociologies, Routledge &

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A Filosofia da Pesquisa Social

Poder-se-ia dizer que minha preocupao gira em torno da metodologia das cincias sociais, ou seja, um exame dos meios de obteno de conhecimento do mundo social. No mbito dos mtodos de pesquisa, tentarei abord-los atravs das afirmaes que podem ser feitas sobre o conhecimento que produzem. Para isto, preciso examinar as teorias do conhecimento nas quais se baseiam e chegar a algumas concluses a respeito de sua plausibilidade. Comearei, nos dois captulos seguintes, por discutir o que chamo de "ortodoxia positivista" uma vez que, enquanto teoria do conhecimento, esta tem sido a principal influncia nas cincias sociais. Examinarei em seguida uma perspectiva alternativa que sugere concluses bastante diferentes sobre a natureza das cincias sociais e as formas de conhecimento s quais estas podem, ou devem, aspirar. Uma palavra final. Minha formao a de socilogo. Assim, segundo o princpio de que um autor deve escrever de acordo com suas foras, tais como so, a maior parte dos exemplos e idias aqui presentes originam-se da sociologia. No entanto, no se deve pensar que outras cincias sociais esto excludas das questes que sero discutidas; muito pelo contrrio. Atravs de todo o livro, a no ser quando claramente especificado em outro sentido, usei o termo "cincias sociais" por convenincia e advirto o leitor de que o status cientfico dessas disciplinas uma das preocupaes bsicas na discusso que se segue.

A ORTODOXIA POSITIVISTA

Uma advertncia a respeito do ttulo deste captulo. Os crticos da cincia social positivista, entre os quais considero-me includo, como todos os crticos, tm a tendncia de atacar a oposio como se esta fosse de carter monoltico, alm de totalmente estpida. Embora seja necessrio dar uma viso sumria da variedade de positivismos, deve-se lembrar ao leitor que existe muito mais a dizer sobre o assunto do que possvel mencionar no pequeno espao deste volume. Alm disso, bom esclarecer que aquilo que chamo de positivismo tem freqentemente outros rtulos: "naturalismo", "empirismo", "behaviorismo" e at mesmo "cincia" so alguns dos prediletos. Para confundir ainda mais as coisas, alguns destes so usados em determinadas ocasies para indicar pontos de vista antipositivistas. Positivismo tambm um termo associado a diversas outras escolas filosficas bastante diferentes. No entanto, tendo em mente o temerrio princpio da rosa, de que esta seria a mesma com qualquer outro nome, continuarei a usar o rtulo que escolhi uma vez que o mais comum, chamando a ateno para as diferentes abordagens intelectuais, na medida do necessrio. Falo em "ortodoxia" porque, ao menos em algumas de suas verses, o positivismo constitui a epistemologia filosfica que atualmente mantm o domnio intelectual no seio das cincias sociais. No que este domnio seja igualmente seguro em todas estas: na sociologia, por exemplo, sua autoridade menos do que absoluta ao passo que na economia, segundo suponho, no seriamente contestada. Na cincia poltica, o chamado "movimento comportamental" visa a dar a esta disciplina um estatuto "cientfico" bem, mais recente, em relao ao de muitas outras cincias sociais. Desde o advento da psicologia experimental, o positivismo nunca foi seriamente contestado na psicologia, j que a psicanlise foi posta de lado. A histria, tambm, est comeando a entrar em cena em resposta ao sucesso putativo das cincias sociais. Entretanto, a autoridade intelectual do positivismo no surgiu da noite para o dia, apesar da impresso algumas vezes dada pela histria das idias pelo uso de termos como "uma revoluo no pensamento". Essa autoridade foi decorrente de um debate intelectual travado ao longo de muitos anos. 25

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A Filosofia da Pesquisa SocialO BACKGROUND INTELECTUAL

Assim como se pode dizer que todos os seres humanos atualmente vivos devem a Ado sua primeira origem, pode-se tambm dizer que o progenitor intelectual da epistemologia positivista contempornea provavelmente encontraria algum antigo filsofo grego no incio de sua tabela genealgica. As origens histricas mais prximas datam do florescer do pensamento europeu que teve lugar nos sculos XVI e XVII. Muito embora a perspectiva da Renascena e do Iluminismo relativa s trevas intelectuais da Idade Mdia tenha sido exagerada e mesmo caricaturada, certo que os sculos seguintes presenciaram tremendas mudanas no pensamento cientfico e social. Em suma, o pensamento europeu libertou-se gradualmente da priso teolgica erigida pela aliana entre o absolutismo e a Igreja Catlica Romana. Filsofos naturalistas como Newton viram seus achados, primordialmente, mais como religiosos do que como cientficos, como um meio de melhor compreender a mente de Deus e sua criao. Porm a viso alegrica do mundo dos tempos medievais foi substituda por um ceticismo quanto possibilidade da Natureza ser, de modo to simples, explicada pela referncia Bblia ou ao dogma religioso. Embora os elementos religiosos ainda mantivessem sua fora, o terreno estava sendo preparado para uma reviso secular radical das tradicionais imagens teolgicas do mundo natural e social. 1 Duas figuras projetam-se de maneira marcante, Bacon (1561-1626) e Descartes (1596-1650). O primeiro representa o legado aristotlico do empirismo como fonte do conhecimento humano, enquanto que o segundo reviveu e revigorou a tradio racionalista platnica. Ambos buscavam um mtodo intelectual que pudesse superar o ceticismo e proporcionar uma nova certeza para as idias a respeito da Natureza. Bacon defendeu o valor da experincia, dos experimentos, da induo e da observao exaustiva como formas de proporcionar uma base confivel para as idias cientficas, em lugar do mtodo a priori da escolstica medieval. Descartes, por outro lado, depositava sua f nas certezas da matemtica como o instrumento fundamental do conhecimento cientfico. Para ele, os princpios matemticos eram intemporais e imutveis e, portanto, consistiam a linguagem mais adequada para a expresso das leis da Natureza. Embora as doutrinas que ambos esposassem fossem extremamente diferentes em muitos aspectos, possuam algo em comum: a busca

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C.L. Becker, The Heavenly City of the Eighteenth Century Philosophers, Yale

University Press, 1932, ainda constitui um dos melhores estudos sobre as conseqncias intelectuais dessas mudanas na sociedade europia; R. Nisbet, The Social Philosophers, Heinemann, 1974, tambm uma boa fonte.

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pelos fundamentos do conhecimento humano. Descartes e outros filsofos racionalistas como Spinoza e Leibnitz, apesar de no negarem o valor da experincia sensorial, acentuavam a funo da deduo lgica a partir de premissas auto-evidentes, ao passo que Bacon, Locke, Hume e outros filsofos empiristas davam prioridade experincia sensorial. Embora a observao precisa e a teoria logicamente sistemtica fossem essenciais para o desenvolvimento da cincia durante e aps esse perodo, o positivismo enquanto interpretao especfica ou explicao filosfica do conhecimento cientfico colocava muito mais nfase no papel da experincia sensorial como o fundamento seguro do conhecimento humano. Nas cincias sociais, a primeira voz resoluta a proclamar o mtodo positivista seria ouvida atravs dos estudos de Auguste Comte no incio do sculo XIX. Foi ele quem cunhou os termos "filosofia positivista" e, incidentalmente, "fsica social" ou "sociologia". A obra de Comte foi influenciada pelos srios ataques filosficos contra a metafsica empreendidos por Hume e outros ainda no sculo XVIII, assim como pelas novas idias de progresso e de ordem que antecederam a Revoluo Francesa. Para Comte, a filosofia tinha por funo expressar a sntese do conhecimento cientfico; sua prpria postura filosfica determinava a necessidade de se dar uma ateno cuidadosa realidade emprica, com um mtodo preciso e certo, baseando-se as leis naturais na observao emprica segura. Para ele, as cincias sociais e as naturais eram aparentadas, compartilhando da mesma forma epistemolgica e livres da impureza especulativa da metafsica. A partir do sculo XIX, a obra de Comte tem sido amplamente considerada como de mero interesse histrico, mas seu esprito foi preservado atravs das obras de John Stuart Mil!, Herbert Spencer, Emile Durkheim e muitos outros; est representada de forma difusa no estilo e comportamento das cincias sociais de hoje. Talvez a afirmao mais importante de Comte seja a de que a sociedade pode ser estudada utilizando-se a mesma lgica de investigao usada pelas cincias naturais. A aceitao explcita de Comte de uma unidade de mtodos entre o natural e o social foi to oportuna quanto funesta. E isto porque esta postura deu considervel mpeto e fora concepo de que a explicao dos fenmenos sociais no era, em princpio, diferente da explicao dos acontecimentos naturais. Os fenmenos estavam sujeitos a leis invariveis, tanto no mundo humano quanto no natural. As diferenas entre estes decorriam de seus respectivos objetos de estudo e consistiam pouco mais do que obstculos a serem ultrapassados atravs do desenvolvimento de mtodos de pesquisa apropriados. O prprio Comte acentuou a importncia da experimentao indireta e do mtodo comparativo. Mais profundamente do que isto, a idia estimulava uma concepo determinista do homem e da sociedade, jogando efetiva e sutilmente com fatores considerados especificamente humanos: livre-arbtrio, acaso, escolha, moralidade, emoes e similares. A vida social humana

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era simplesmente o resultado de uma coalescncia de foras interagindo de forma a produzir uma seqncia especifica de comportamento. Tambm a histria era o resultado de foras semelhantes, um tema com variaes em que fatores humanos e outros fatores combinavam-se paralela e sucessivamente para se expressarem atravs da sociedade. 2 Em todo o sculo X I X esta concepo foi obtendo autoridade crescente, sempre reforada pelo aparentemente admirvel progresso das cincias naturais e suas aplicaes. Os marcos desta progresso vm a ser bem conhecidos. O mais importante deles foi a publicao, em 1'859, de A Origem das Espcies, de Darwin, que deu ao mundo uma exposio sistemtica da idia de que a humanidade era, irremediavelmente, parte da Natureza, sendo sujeita s mesmas leis de processo, desenvolvimento e seleo. Pouco tempo depois as cincias sociais comearam a usar tais percepes para desenvolver teorias da sociedade humana. Herbert Spencer, por exemplo, utilizou-se explicitamente da obra de Darwin para justificar seus prprios mtodos e teorias. 3 Ao final do sculo, a concepo cientfico-determinista do positivismo estava firmemente impregnada nas cincias sociais. Trata-se agora de perguntar: quais foram os envolvimentos que esta concepo da cincia e seu conhecimento trouxeram para as cincias sociais? Que procedimentos e modelos de investigao tal postura sugeria e justificava? Que tipo de conhecimento, portanto, seria o objetivo especfico de uma cincia social?

OS ELEMENTOS DO POSITIVISMO

Segundo Giddens, a "filosofia positivista" em seu sentido mais amplo cobre aquelas perspectivas que constituem algumas ou todas as seguintes afirmaes: 4 Em primeiro lugar, a tese assegura que a realidade consiste essencialmente naquilo que os sentidos podem perceber. Em segundo, a filosofia enquanto disciplina separada parasitria em relao s descobertas da cincia. Juntamente a isso, verifica-se uma averso metafsica, questionando-se seu lugar de direito na investigao filosfica propriamente dita. Como uma filosofia, portanto, o positivismo preocupa-se fundamentalmente em estabelecer os limites do conhecimento, assim como o carter deste.

2 Ver, a este respeito, S. Toulmin e J. Goodfield, The Discovery of Time, Hutchinson, 1965, especialmente o Cap. 5. 3 Algo do impacto da obra de Darwin sobre o pensamento social na segunda metade do sculo XLX est indicado pelo desejo de Marx de lhe dedicar O Capital 4 A. Giddens, "Positivism and its Critics", em seu Studies in Social and Political Theory, Hutchinson, 1977, PP- 28-9. Trata-se de excelente discusso sobre muitos dos principais temas metodolgicos em vigor no decorrer dos ltimos 150 anos, nas cincias sociais.

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A petulante investida de Hume contra a metafsica bem revela este ponto e o esprito mais geral do positivismo:Examinemos um volume qualquer; de teologia ou metafsica escolstica, por exemplo; perguntemos: este contm algum raciocnio abstrato relativo a quantidade ou nmero? No. Contm algum raciocnio experimental relativo a questes de fato e existncia? No. Atiremo-lo ento s chamas: pois nada pode conter alm de sofismas e iluses.5

Em terceiro lugar, as cincias naturais e sociais compartilham de um mesmo fundamento lgico e metodolgico. Isto no significa que compartilhem dos mesmos procedimentos, uma vez que seus respectivos objetos de estudo requerem, pragmaticamente, mtodos de investigao bastante diversos. Em quarto, h uma distino fundamental entre fato e valor. A cincia trata do primeiro, enquanto que o segundo representa uma ordem de fenmenos bem diferentes, alm do mbito da cincia. Conforme veremos posteriormente como sendo um dos temas recorrentes na filosofia da cincia social, isto no implica necessariamente o dualismo de esprito e matria. 0 positivismo, em outras palavras, rejeita a noo de que todas as qualidades humanas transcendem o alcance da compreenso cientfica. Embora o conhecimento cientfico tenha seus limites, estes no excluem o conhecimento da suposta vida "interior" ou "espiritual" da humanidade. Como veremos, Durkheim, por exemplo, tentou forjar uma sntese entre idealismo e materialismo. Mas isso ser comentado posteriormente. Esta exposio dos principais elementos do pensamento positivista naquilo que concerne especificamente s cincias sociais no pode, obviamente, fazer plena justia s vrias e importantes nuanas representadas por suas diversas escolas. Segundo a nossa perspectiva de pesquisa social, as questes importantes giram em torno do que o positivismo implica em relao aos mtodos de se estudar a sociedade, de qual seja, segundo ele, o conhecimento adequado a ser obtido deste estudo e, igualmente importante, dos critrios apresentados para avaliar tal conhecimento. Esses aspectos so muito amplos e h muitos estilos diferentes de pesquisa social consistentes com as hipteses do vasto domnio do positivismo. Entretanto, examinemos um pouco mais as imagens inerentes ao positivismo, enquanto sistema de pensamento com pretenses a autorizar verses especficas do mundo, tanto natural quanto social. A reao contra o pensar metafsico vinculou-se a um forte preconceito em favor do conhecimento que tratasse de fatos sistematicamente descobertos, vigorosamente analisados e teoricamente significativos. A fim

5 D. Hume, Enquiry Concerning Human Understanding, Longmans, 1 8 7 5 , Sec. XII, Parte III, org. T.H. Green e T.H. Grose.

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de estabelecer e de manter a distino entre conhecimento empiricamente fundamentado e mera especulao, eram necessrios critrios de demarcao. O positivismo reconhecia apenas dois tipos de conhecimento que pudessem pretender a uma autoridade legtima, o emprico e o lgico: o primeiro representado pelas cincias naturais, o segundo pela lgica e pela matemtica. O privilgio pleno era dado ao emprico. Para tanto, o positivismo inspirava-se naquela tradio filosfica que afirmava virem todas as nossas idias, de um modo ou de outro, da experincia: qualquer idia que no fosse declaradamente derivada da experincia no seria uma idia genuna. Esta noo depende fortemente de uma interpretao sensorial da experincia, isto , uma interpretao que postula a existncia independente de um mundo exterior que nos conhecido atravs de suas aes em nossos sentidos. O conhecedor contribui muito pouco para a organizao de tal experincia e para o conhecimento que esta fornece do mundo exterior. Esta concepo constituiu o alicerce sobre o qual a cincia construiu seu edifcio e foi acolhida por Comte e seus seguidores como o fundamento para uma cincia social. As crenas sobre o mundo exterior s seriam, segundo estes, dignas de serem descritas como "conhecimento" se pudessem ser testadas atravs da experincia. No havia conhecimento a priori da experincia o qual, ao mesmo tempo, fosse informativo a respeito do mundo. Embora essa viso da fonte do conhecimento tivesse alguma plausibilidade no sentido de corroborar o conhecimento das cincias naturais, suas fraquezas se evidenciavam no que se referisse vida social humana. A noo de fato especialmente quando colocada em oposio ao tipo de entidades invocadas pelos metafsicos, possua fortes conotaes do mundo material, o mundo da matria permanente, fixa, tangvel. Neste sentido, o positivismo precisou superar uma distino expressa de diversas maneiras entre "coisas humanas" e "coisas materiais". A distino esboada aqui de modo to simples teve uma importncia marcante na histria do pensamento por conter, como certamente o fazia, implicaes legais, religiosas, ticas e polticas. Segundo essa distino, o humano, o espiritual, o mental constituam uma ordem de fenmenos diversa da ordem material, no sendo possvel aplicar as mesmas formas de entendimento para ambas. Esta, claro, era precisamente a posio que os positivistas tinham que invalidar, embora tal no fosse uma tarefa fcil. Alguns viriam a negar totalmente a distino, reduzindo o tipicamente humano a manifestaes de natureza material. Num nico golpe, a vida humana era reduzida a uma ramificao da qumica, da biologia, ou de alguma psicologia especificamente comportamental. Outros contentavam-se em elaborar grandiosos sistemas compreendendo a biologia, a psicologia, a climatologia, a geografia e a sociologia na suposio de que sendo estas, e outras, partes da vida humana, todas eram importantes para compreender tal vida em sua totalidade. Muitos,

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entretanto, no seguiam qualquer dessas vias; ao invs disso, alegavam que os fenmenos humanos e sociais eram de fato to reais quanto os fenmenos materiais e, assim, passveis de serem conhecidos com o uso do mtodo cientfico, da mesma maneira como o mundo material era conhecido. As dificuldades para provar tal concepo eram muitas: os fenmenos do mundo material, segundo o prprio bom senso, pareciam ser de natureza e carter independentes do observador, ao passo que muitos dos fenmenos humanos pareciam ser devidos ao capricho, fantasia ou imaginao. Seria possvel substanciar a crena em deuses, sistemas de magia, emoo, fs religiosas, cdigos de leis, lendas, opinio pblica, poesia e assim por diante, da mesma forma que se fazia em relao Lua, estrelas, esqueletos, gases, elementos qumicos etc.? Possuem eles os mesmos atributos de permanncia, durabilidade, independncia de volio e percepo humanas apresentados pelos fenmenos do mundo exterior? Estas eram as perguntas que precisavam ser respondidas antes que o positivismo pudesse, de forma satisfatria, postular que o mundo social, como o fsico, operava de acordo com leis precisas e fixas. Uma vez aplicada ao mbito dos assuntos humanos, esta viso mostrar-se-ia alarmante e, nas mos de muitos de seus fornecedores, revolucionria. A questo era: o que, no mundo social, correspondia aos "duros fatos" da Natureza? E, mais ainda, que procedimentos seriam apropriados para descobrir e estudar tais fatos? E, finalmente, seguindo-se a essas questes, quais as leis que poderiam ser descobertas e que corresponderiam s leis da Natureza descobertas pelos cientistas naturais? No incio do sculo X I X havia alguns indcios favorveis no ar. Alguns estudiosos comeavam a levar a srio a observao (agora bastante evidente) de que a ao humana no acidental mas que se conforma a certos padres previsveis. Um dos grandes achados, no final do sculo XVIII, foi a formulao de Adam Smith de que os indivduos, no exerccio de suas prprias preferncias particulares, poderiam produzir regularidades sociais em larga escala, como que controlados por uma "invisvel mo". 6 A prpria noo de sociedade, segundo se percebeu, supe marcantemente um conjunto de fenmenos os quais, embora envolvendo indivduos com todas as suas particularidades, caprichos e fantasias, no deixa de exibir regularidades em larga escala to reais e previsveis, de alguma forma, como os indivduos so nicos e diferentes. Em suma, surgiram idias em torno das quais tornou-se plausvel conceber a sociedade como um nvel de realidade sui generis. O problema era explicar como. Havia, e ainda h, muitos enigmas nesse sentido e cabe, neste ponto, examinar mais detalhadamente uma das respostas propostas a tais questes e a outras correlatas. A inteno ilustrar

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A. Smith, The Wealth of Nations, org. A. Skinner, Penguin Books, 1970.

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algumas das questes fundamentais enfrentadas por uma cincia social positivista atravs da obra de algum que foi profundamente influente na colocao dos termos de tal abordagem, Emile Durkheim. No se trata de supor que a obra de Durkheim fornea as respostas para todos os problemas. Isto seria absurdo. Mas ele sem dvida fez muito, pelo menos, no sentido de identificar os problemas. Como talvez inevitvel, o corpo da obra de Durkheim exibe muitas contradies, inconsistncias, raciocnios duvidosos e outras dificuldades, mas ele de fato exemplifica a cincia social positivista em seu melhor esprito. 7

O POSITIVISMO DE DURKHEIM

Durkheim foi o primeiro socilogo a partir de Comte - com quem ele teve uma considervel dvida intelectual - a justificar fervorosamente a sociologia como uma disciplina autnoma caracterizada por rigor, preciso e mtodo cientfico. Durkheim foi um grande construtor de sistema no molde clssico, abarcando discusses filosficas sobre a natureza da sociologia, assim como investigaes mais substanciais a respeito da diviso do trabalho, suicdio, religio e educao. Sua obra representa uma ponte entre os sculos X I X e X X . Muitas das idias de Durkheim, inclusive a centralidade da diviso do trabalho, o reconhecimento de que a sociedade representava um nvel especfico de realidade, de que a sociedade consistia fundamentalmente numa ordem moral, tiveram suas razes em Comte e seus contemporneos. Outros estudiosos, como J.S. Mill, Spencer e Tnnies, tambm influenciaram as idias de Durkheim. Entretanto, embora Durkheim fosse realmente um filho do pensamento social do sculo X I X , ele viria a modificar essa tradio de um modo importante e essencial. Durkheim insistia com todo o vigor possvel que a sociedade era um fenmeno moral na medida em que modos coletivos de pensar, perceber, sentir e de agir incluam elementos de coao e obrigao constituindo, assim, uma conscincia moral coletiva. Isto, afirmava ele, expressava-se atravs da religio, da lei, da diviso do trabalho e da prpria institucionalizao. No entanto, como um verdadeiro filho do positivismo, ele desejava comprovar como os mtodos da cincia eram provavelmente superiores a outros mtodos de investigao e filosofia especulativa no estudo da asso-

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ca interessante embora difcil P.Q. Hirst, Durkheim, Bernard and Epistemology, Routledge & Kegan Paul, 1975, esp. Parte 2; tambm a excelente biografia da autoria

Fletcher, The Making of Sociology, Vol. II, Developments, Nelson, 1973, Parte 2; R. Aron, Main Currents of Sociological Thought, II, Penguin Books, 1970. Uma crti-

Alm dos prprios escritos de Durkheim, encontram-se outros estudos teis in R.

de S. Lukes, Emile Durkheim, His Life and Work, Allen Lane, 1973.

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ciao moral que constitua a sociedade. Durkheim estava, assim, tentando forjar uma nova unidade entre o idealismo e o materialismo. O primeiro grupo de filosofias defendia uma dualidade rigorosa entre a Natureza e o homem rejeitando, em outras palavras, a idia positivista de uma unidade de mtodo entre as cincias naturais e as humanas. Durkheim, por sua vez, desejava reter a concepo espiritual e moral do homem porm usar os mtodos das cincias naturais no estudo deste sem as implicaes materialistas dessas cincias, levando a uma reduo do material daquilo que distintamente humano. Nisto reside a importncia de seus esforos para estabelecer a sociologia como uma disciplina autnoma definida por seu objeto de estudo, evitando a tendncia existente em grande parte do pensamento do sculo X I X de reduzir o moral e o espiritual a epifenmenos de foras materiais. Os fenmenos morais tais como a lei, a religio, a moralidade, poderiam ser o objeto de uma cincia natural do homem se fossem examinados de modo correto. "O objetivo trazer o ideal, de vrias formas, para a esfera da Natureza, com seus atributos distintivos intactos." 8 Essas aspiraes trouxeram a Durkheim dois problemas correlatos, ambos dentro da estrutura do positivismo: estabelecer a realidade do social e descobrir modos atravs dos quais esta realidade possa ser conhecida. A cincia, para Durkheim, era o estudo das "coisas" e preocupava-se, em primeira instncia, em descrev-las e classific-las com preciso e, posteriormente, em explicar os modos pelos quais estas eram relacionadas. Aqui Durkheim instaura o contraste entre "coisas" e idias:As coisas incluem todos os objetos de conhecimento que no podem ser concebidos pela atividade puramente mental, aqueles que requerem para a sua concepo dados exteriores mente, provenientes de observaes e experimentos, aqueles que so elaborados desde as caractersticas mais externas e imediatamente acessveis at as menos visveis e mais profundas. 9

Uma caracterstica extremamente importante das "coisas" na realidade exterior que estas no so sujeitas nossa vontade, resistem a nossas tentativas subjetivas de mud-las, provando, segundo Durkheim, que sua existncia independe de nossas idias sobre elas. As cincias, assim, lidam com "coisas" e a sociologia e as cincias sociais no devem constituir exceo a isto. Portanto, deixando de lado as propriedades das "coisas" em geral, examinemos agora o modo pelo qual Durkheim estabelece a concretitude do social. "Os fatos sociais" assumem

8 E. Durkheim, Sociology and Philosophy, trad. D.F. Pocock, Cohen & West, 1953, p. 96. 9 E. Durkheim, The Rules of Sociological Method, org. G.E.C. Catlin, Nova York, The Free Press, 1966, p. xliii.

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as propriedades das "coisas" em geral: eles so exteriores a ns, so resistentes nossa vontade e nos restringem. Para ilustrar, Durkheim cita a lngua francesa, regras morais, organizaes econmicas, leis, costumes: todos esses fenmenos sociais que independem dos indivduos e os restringem.Aqui, ento, est uma categoria de fatos com caractersticas bastante distintivas: trata-se de modos de agir, pensar e sentir exteriores ao indivduo, e dotados de um poder de coero, em razo do que estes o controlam... o termo "social" refere-se a eles exclusivamente, pois tem uma significao distinta apenas se designa exclusivamente os fenmenos no includos em qualquer das categorias de fatos j estabelecidas e classificadas. Esses modos de pensar e agir, portanto, constituem o domnio adequado da sociologia. 10

Tais fatos no so reduzveis a fatos biolgicos ou psicolgicos, pois no compartilham de suas caractersticas. "Os fatos sociais", entretanto, so "coisas", uma vez que possuem exterioridade, coero, difuso e generalidade. A concepo de Durkheim a respeito da sociedade realista, baseando-se na suposio de que existe, no mbito da Natureza, uma entidade definida em termos de um sistema de relaes responsvel por gerar normas e crenas coletivamente mantidas. 11 A sociedade, assim, uma realidade "em si" e os "fatos sociais" existem "de forma autnoma", parte das manifestaes pessoais dos indivduos. A interao e a associao de indivduos do lugar a fenmenos emergentes anlogos ao modo como os elementos qumicos se combinam para produzir uma nova sntese. Isto acarreta a conseqncia de restringir a explicao de "fatos sociais" a outros fatores sociais no mesmo nvel de complexidade.A sociedade no uma mera soma de indivduos ... o sistema formado pela associao destes representa uma realidade especfica que tem suas prprias caractersticas. ... , portanto, na natureza desta individualidade coletiva ... que se deve buscar as causas imediatas e determinantes dos fatos que ali aparecem. 12

A tarefa do cientista social, como entendida por Durkheim, descrever as caractersticas essenciais dos fatos sociais e demonstrar como eles vm a existir, relacionam-se entre si, atuam reciprocamente e funcionam em conjunto para formar todos sociais coordenados. Deste modo, Durkheim procurou rejeitar o dualismo entre idias e matria, mas de forma a preservar as qualidades das idias, sem reduzi-las a produes meramente materiais. As relaes sociais e os fenmenos engen-

Ver, a respeito do "realismo relacionai ou associativo" de Durkheim, H. Alpert, Emile Durkheim and his Sociology, Columbia University Press, 1939, pp. 151-7. 12 Durkheim, Rules, pp. 103-4.11

10 Ibid., pp. 3-4.

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drados por estas so fatos, possuem uma realidade, mas no uma realidade material. No existem parte dos indivduos ou em um nico indivduo, mas nos indivduos associados. Ao agirem juntos, os indivduos produzem smbolos lingsticos, crenas religiosas, cdigos morais, leis, compartilhados pela maior parte dos membros de uma determinada sociedade ou grupo. Assim, quando os indivduos pensam e agem sobre essas idias ou "representaes" coletivas, eles o fazem no como indivduos isolados mas como membros de um todo cultural mais amplo. Alm disso, assim fazendo, produzem uma estrutura ou modelo que fornece ao grupo ou sociedade sua morfologia caracterstica. A vida social consiste de "representaes" que so estados da "conscincia coletiva", distinta da conscincia individual de seus membros, e regida por diferentes leis. Tendo estabelecido a realidade do social, a tarefa seguinte de Durkheim foi mostrar como esta realidade pode ser conhecida como uma cincia social. Com este fim, um de seus mais famosos estudos foi devotado elucidao dos procedimentos para o estudo e a explicao definitivos dos "fatos sociais". Algumas noes amplas j estavam implcitas na concepo de "fatos sociais" como "coisas", mas havia detalhes essenciais de mtodo e metodologia surgindo em virtude da natureza especfica do social. Sua concepo de "fatos sociais" como exteriores ao indivduo o levou a rejeitar a opinio de que uma explicao satisfatria de um fato social deveria descrever seu uso atual na sociedade e, como corolrio, explic-lo dizendo que este fato surgira deliberadamente a fim de realizar tais usos. Em suma, ele rejeita qualquer forma de explicao teleolgica; os "fatos sociais" requerem explicao por causas que so deterministas e no intencionais. J observamos anteriormente que Durkheim, em seus esforos por estabelecer uma garantia intelectual para as cincias sociais, teve que superar a concepo dualista que distinguia nitidamente "idias" e "matria". Este passo foi necessrio a fim de colocar o mbito das "idias" sob o olho inquiridor da cincia. A cincia, para Durkheim, lidava com aquilo que "sujeito observao".13 Cada cincia preocupa-se com uma espcie distinta da realidade que constitui seu domnio exclusivo. Entretanto, a observao cientfica no era um assunto simples. As "coisas", ou neste caso especfico os "fatos sociais", no apenas aparecem ante nossos sentidos. Ao contrrio disto, o que aparece diretamente ante nossos sentidos freqentemente enganoso, mesmo ilusrio. Os membros da sociedade, embora sujeitos aos "fatos sociais", tenderiam muito provavelmente a substituir as "representaes" dos "fatos sociais" pela coisa real. Essas "notiones vulgares" ou "idola" so iluses que adulteram os processos sociais reais e so

13 Ibid., p. 27.

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essencialmente produtos da mente "como um vu suspenso entre a coisa e ns prprios". 14 Para construir fundamentos slidos, a cincia deve afastar-se de tais iluses mentais e revelar o real. O cientista, assim, precisa estar preparado para abordar o mundo social como se o estivesse vendo pela primeira vez; "deve sentir-se na presena de fatos cujas leis so to ignoradas como eram as leis da vida, antes da era da biologia; deve estar preparado para descobertas que o surpreendero e perturbaro". 15 Assim, Durkheim traa um ntido contraste entre o que poderamos chamar de "categorias do senso comum", aqueles conceitos usados pelos membros da sociedade para descrever e explicar o mundo social como este se lhes apresenta, e "conceitos cientficos". Com esta distino Durkheim insiste que, no sentido cientfico, os membros da sociedade no sabem o que os fenmenos sociais realmente so: eles no sabem o que so Estado, soberania, liberdade, democracia, socialismo, religio. Isto no significa que no tenham idias formadas sobre isso tudo, mas sim que as idias so vagas e confusas quanto real natureza das coisas. Especialmente esclarecedoras, a esse respeito, so suas observaes ao definir o "suicdio" cientificamente:Devemos indagar se, dentre as diferentes variedades de morte, algumas possuem qualidades comuns, bastante objetivas para serem reconhecveis por todos os observadores honestos, bastante especficas para no serem encontradas em outros lugares e tambm suficientemente semelhantes quelas oridinariamente denominadas suicdios para que retenhamos o mesmo termo sem nos afastarmos do uso comum. 16

Em outras palavras, o uso comum uma fonte de conceitos sociais e cientficos mas vago, freqentemente obscuro, ambguo, grosseiro e, conseqentemente, necessita de clarificao. A fim de desvendar esta natureza real, o cientista social deve tratar desses fenmenos como "coisas" e livrarse de preconceitos e de outras concepes prvias que obstruam o conhecimento cientfico. Os fatos sociais devem ser observados "de fora", descobertos objetivamente como os fatos fsicos so descobertos. 17 Durkheim realmente quer dizer que a cincia existe simplesmente porque os cientistas adotam uma especfica atitude perante o mundo, como sua mxima "os fatos sociais devem ser considerados como coisas" pa-

14 15

16 E. Durkheim, Suicide, trad. J.A. Spaulding e G. Simpson, Routledge & Kegan Paul, 1952, p. 42. [Ed. brasileira: O Suicdio. Rio, Zahar, 1982.) 17 Aron, op. cit., pp. 70-1.

Ibid.,p. 15. Ibid., p. xiv.

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rece indicar. Ele quer dizer que, desta forma, a natureza real do mundo torna-se conhecida. Isto lhe traz o problema de como devemos reconhecer os "fatos sociais" usando os mtodos que ele advoga. J existem algumas indicaes fornecidas em sua noo de "coisa" e sua incorporao ao conceito de "fato social": este geral, exterior, coletivo e coercivo. Infelizmente, o cientista tem que comear apenas com as aparncias, as "iluses", no com a apreenso direta do fato social; assim, a primeira tarefa do cientista, como j foi mencionado, livrar-se de concepes prvias. A segunda procurar os fenmenos que apresentam as caractersticas de "coisas" e a terceira defini-los. A definio essencial para a epistemologia de Durkheim, pois significa "estabelecer contato com as coisas". 18 At este ponto, o investigador est lidando apenas com as caractersticas exteriores dadas percepo, pois elas so o nico indcio acessvel para a realidade. Entretanto, uma definio cientfica de um fenmeno construda pelo agrupamento de caractersticas comuns exteriores e "objetivas" e, uma vez formulada uma definio, preciso incluir na investigao todos aqueles fenmenos adequados a ela. Para definir crime, por exemplo, observa-se de incio que o crime pode ser reconhecido por sinais exteriores especficos. O que distingue o crime de outros fenmenos sociais que este provoca uma reao social, a punio. 19 A punio no um ato individual, embora os indivduos sejam os agentes operativos. Trata-se de uma questo social corporificada em cdigos legais e morais e, como tal, um sinal de que a "conscincia coletiva" est envolvida de algum modo. De forma semelhante, o "suicdio" definido como "todos os casos de morte resultantes direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo da prpria vtima, ato este cujas conseqncias a serem produzidas ela conhece". 2 0 Esta definio, segundo Durkheim, assinala um grupo homogneo, distinguvel de outros e delimita um campo para a investigao. Durkheim invoca um axioma essencial sua epistemologia, o princpio da causalidade, para passar da exterioridade aos fenmenos reais. Ele havia se interessado intensamente pelos trabalhos metodolgicos de J.S. Mill, concordando com este quanto s dificuldades enfrentadas pelas cincias sociais ao planejar experimentos adequados para testar suas teorias. Alm disso, o prprio conceito de Durkheim de "fatos sociais" como "coisas" dava margem a que essas parecessem estar alm da possibilidade de manipulao deliberada sob condies controladas. Ele insistia, no entanto, no seguinte: j que a marca distintiva da cincia que esta lidava com causas, tal devia ser tambm o procedimento normal da sociologia. A expli-

1819

Durkheim, Rules, p. 42. Durkheim, Suicide, p. 44.Aron, op. cit., p. 74.

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cao dos fatos sociais deveria ser testada na suposio de que um dado efeito sempre procede de uma nica causa apesar de que, na realidade, estes fatos freqentemente se confundiam de modos complexos. Assim, uma vez definida uma categoria de fatos sociais da forma recomendada, ser ento possvel encontrar uma nica explicao para esta. , portanto, possvel identificar subespcies ou tipos de suicdio em termos de suas diferentes subespcies de causas. No sendo possvel, nas cincias sociais, o experimento direto para estabelecer causas, necessrio fazer uso do mtodo comparativo. Para Durkheim isto significava, efetivamente, a "variao concomitante" ou correlao, ou seja, o movimento paralelo de uma srie de valores apresentados por dois fenmenos; apenas isto constitui prova de que existe uma relao causai, desde que a relao tenha se revelado em suficiente nmero e variedade de casos. A concomitncia constante de dois fatores suficiente para estabelecer uma lei. 21 Por si s, tal no bastava para uma compreenso profunda da conexo, indicando apenas que uma conexo de algum tipo causai existia. Um terceiro fator poderia ser responsvel pela correlao entre os fatos originais, e a investigao subseqente teria que examinar esta possibilidade. Deste modo, atravs de refinamentos sucessivos, uma aproximao cada vez mais prxima seria feita revelando a realidade verdadeira atrs dos fenmenos sociais. Um ponto que precisa ser acentuado a insistncia de Durkheim em que as causas dos "fatos sociais" devem ser buscadas entre os outros "fatos sociais" no ambiente social. Esta uma das condies essenciais da prpria existncia da sociologia. Cada cincia trata de seu prprio domnio e no pode exceder a si mesma na busca de causas explanatrias. Felizmente Durkheim no se contentava com programticas. Ele tambm se interessava profundamente em aplicar suas "regras" metodolgicas a programas concretos de teoria e sociedade. Neste ltimo aspecto, continuava a tradio moralista de Comte e de outros positivistas com seu interesse permanente na interveno racional na sociedade. O conhecimento fornecido pelas cincias sociais era um preldio essencial compreenso das origens das vrias patologias herdadas pela sociedade, assim como sua possvel preveno. Num sentido mais prximo, as idias de Durkheim ofereciam um conjunto de justificaes imensamente interessante para usar vrias formas de dados a fim de testar certas teorias sociolgicas. Suas "regras do mtodo sociolgico" tinham por objetivo ir alm do uso meramente ilustrativo de materiais histricos e sociais com os quais, dizia ele, Comte, Spencer e outros haviam se contentado. Em lugar disso,

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Durkheim, Rules, pp. 130-1.

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pretendia fundamentar tais materiais sistematicamente dentro de uma cincia social racionalmente concebida. O estudo de Durkheim sobre o suicdio de especial interesse. Aqui ele apresenta de modo marcante a relao entre suas idias filosficas sobre a natureza da sociologia e a aplicao destas na investigao de fenmenos concretos. A deciso de estudar o suicdio foi especialmente corajosa, dadas as afirmaes de Durkheim sobre a natureza dos fatos sociais. De todos os atos humanos, o suicdio parece to pessoal, o produto de uma vontade individual - ponto de vista que ele reconhece plenamente em sua definio de suicdio como um ato cometido deliberada e conscientemente. Apesar disso, ele sustentaria que a explicao em termos de psicologia individual era insuficiente. Seu mtodo de variao concomitante especialmente eficaz, quando ele mostra que no h correlao entre ndices de suicdio em populaes diferentes e a incidncia de certos estados psicopatolgicos. Por exemplo, a proporo de neurticos e de pessoas insanas entre os judeus relativamente alta, mas a freqncia de suicdios no mesmo grupo religioso baixa. De um modo semelhante ele fornece explicaes em termos de hereditariedade e imitao. Eliminando as explicaes alternativas e pela coleta positiva de outras evidncias, pretende demonstrar a natureza social do suicdio. Observa que os ndices de suicdio permaneciam constantes em vrias sociedades durante um perodo significativo porm diferiam entre as sociedades, e demonstra como os ndices variavam de maneira constante com certas condies sociais. Portanto, embora o indivduo sem dvida alguma tivesse experincias particulares ligadas ao suicdio, os ndices deviam-se s condies de associao prevalecentes nos grupos aos quais o indivduo pertencesse. Variaes nessas condies gerais davam lugar a diferentes tipos de suicdio, o altrustico, o egostico e o anmico. Deste modo, Durkheim podia chegar a uma relao de concomitncia constante entre uma nica causa (o grau de integrao social de grupos sociais), e um nico efeito, o suicdio; o segundo variando no sentido inverso em relao primeira. O uso de estatsticas feito por Durkheim neste estudo especialmente interessante, uma vez que oferecia cincia social meios possveis de utilizar materiais que fossem alm de mera contagem. ndices de suicdio, cifras de populao e outros dados semelhantes eram, para Durkheim, os sedimentos observveis do estado moral da sociedade, "a vida social consolidada", tornando possvel estudar a realidade social atravs dessas manifestaes objetivas. Ele via os ndices de suicdio, por exemplo, como o produto da "corrente suicidognica", ou aqueles "fatos sociais" que estabelecem que haver, num determinado grupo, um certo nmero de mortes voluntrias de diferentes tipos. Atravs da utilizao de tais "manifestaes objetivas", segundo o princpio de correlao para estabelecer ligaes cau-

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sais, o cientista social estaria apto a penetrar alm das aparncias, atingindo os fatores reais subjacentes vida social.

AS LIES DE DURKHEIM

impossvel apresentar no momento uma apreciao plena das muitas sutilezas do pensamento de Durkheim. Ele est sendo discutido aqui porque enfrentou muitas das questes que a cincia social positivista teve que enfrentar e resolver na tentativa de se firmar como a verso ortodoxa da cincia social. desnecessrio dizer que Durkheim no a nica figura de importncia a esse respeito. Ele deveu muito a outros, especialmente a Comte e J.S. Mill. Sua influncia nos anos subseqentes tampouco permaneceu isenta de modificaes e desvirtuamentos, pois os estudiosos liam aquilo que desejavam ler em sua obra a fim de justificarem as prprias idias e teorias. Os iniciadores sempre correm o risco de serem mal-entendidos, j que seus nomes e reputaes do crdito a produes menos marcantes. O que, portanto, Durkheim representa para a cincia social positivista em geral e para a sociologia em particular? Talvez o primeiro elemento a reiterar seja sua preocupao em estabelecer o social como uma realidade especfica. Ele no apenas afirmou isto, mas procurou mostrar como esses "fatos" eram partes da Natureza exatamente como os fatos biolgicos, qumicos e outros fatos fsicos. Este "realismo social relacionai" era um belo argumento: capacitava-o a afirmar que o social poderia ser estudado atravs dos mesmos mtodos cientficos usados nas cincias naturais sem a obrigao de reduzir os fenmenos sociais a "coisas" materiais. Assim, ontologicamente falando, a natureza e as realidades sociais eram da mesma ordem da ordem das coisas (thinglike) e, dessa forma, poderiam ser estudados pelos mesmos princpios epistemolgicos. Uma vez estabelecida a realidade independente do social e a unidade de mtodo, ele tinha condies de argumentar que a vida social podia ser estudada objetivamente atravs do mtodo cientfico. Um segundo aspecto lhe trouxe dificuldades bem maiores, embora sua soluo seja engenhosa e significativa. A cincia lidava com objetos de sensao; era isso que, efetivamente, a separava da metafsica e a estabelecia como uma forma vlida de conhecimento. Durkheim aceitava esta noo, como outros positivistas, e afirmava que os "fatos sociais" eram "coisas", embora no fossem coisas materiais como tecidos, clulas ou rochas e, de forma anloga, assumiam as caractersticas de um "mundo exterior" material alm das idias. O mundo social, entretanto, conforme experimentado por aqueles que nele viviam, no parecia pertencer ordem das coisas. Ao contrrio, estava sujeito vontade e escolha humanas. Conseqentemente, Durkheim precisou abalar a noo "interna" da sociedade baseada

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no senso comum enquanto ilusria, embora retendo a concepo de que a cincia trata de "objetos de sensao". Com este fim, teve que desenvolver uma teoria e um mtodo para relacionar o modo como a sociedade aparecia diante de seus membros e a real natureza desta. Isto ele tentou realizar de diversas formas, nem sempre totalmente claras. Insistia na adoo de uma atitude especfica, por parte do cientista social, para com os fenmenos: uma atitude de objetividade, distanciamento, surpresa, e assim por diante. Alm disso, tomando os atributos da ordem das coisas (thingness) da cincia natural e aplicando-os ao social, afirmava que os processos reais na sociedade poderiam ser identificados. Eles viriam a ser identificados atravs de suas manifestaes individuais, dos sedimentos e outros traos deixados atrs de si, com a ajuda do princpio da correlao. Desta forma, revelavam-se as leis da sociedade. Ele mantinha, portanto, a idia de que a cincia lida com materiais observveis mas apenas como ndices de causas mais subterrneas. Essas causas mais profundas no eram acessveis aos membros comuns da sociedade, cegos por suas concepes prvias e preconceitos, mas requeriam um mtodo cientfico que as revelasse. Assim, o conhecimento fornecido pela cincia social o conhecimento especial produzido por observadores apropriadamente preparados; em suma, profissionais. E mais ainda, o estudo da cincia social era visto como uma atividade independente do mundo social investigado. Esta independncia era na verdade um ingrediente essencial para o estatuto cientfico, em primeiro lugar. Durkheim destaca-se na histria das cincias sociais porque ele procurou legitimar uma concepo de cincia social consistente com a imagem dominante de cincia natural. Esta.imagem era profundamente enganosa em diversos aspectos, conforme veremos, mas a insistncia de Durkheim em leis e em explicao causai, objetividade e mtodo rigoroso importante e deu autoridade a suas prprias investigaes empricas. Seus esforos para demonstrar que a sociedade era uma realidade sui generis como parte integrante de seu compromisso mais amplo de demonstrar a cientificidade da sociologia no deixaram de atrair crticas. Numerosos crticos afirmaram que ele era culpado de "coisificar" a sociedade, atribuindo-lhe propriedades que esta simplesmente no podia ter. Certamente, muito do que Durkheim tinha a dizej dava a forte impresso de que ele pensava em termos de mentalidades de grupos, ou da sociedade como um organismo no sentido literal, mais do que no figurativo. No entanto, apesar dessas e de outras crticas, ele representa o ncleo da interpretao positivista de cincia social. Dever tornar-se evidente, nos captulos seguintes, que suas concepes no deixavam de apresentar dificuldades.

3O POSITIVISMO E A LINGUAGEM DA PESQUISA SOCIAL

A primeira metade deste sculo viu o florescimento da filosofia positivista como a ortodoxia da cincia social. No quero dizer com isto que seus preceitos tenham sido aceitos por unanimidade, mas simplesmente que o positivismo serviu para estabelecer o contexto do debate, at onde este se deu, sobre a natureza das cincias sociais. O positivismo tornou-se a justificao metodolgica dominante para aquilo que Kuhn chamou de "cincia normal": uma cincia praticada sem constantes referncias s premissas filosficas fundamentais, 1 uma cincia caracterizada pela pesquisa emprica de "resolver enigmas", em lugar de constituir uma grandiosa especulao filosfica sobre as teorias ou abordagens fundamentais. A maior parte dos cientistas sociais concordava que as cincias sociais deveriam modelar-se de acordo com as cincias naturais, especialmente a fsica, uma vez que aquelas disciplinas representavam o pice da realizao no conhecimento humano. Isto era aceito em geral, porm havia muito menos concordncia quanto natureza precisa no s das cincias sociais mas tambm das prprias cincias fsicas. importante lembrar que, embora a maioria das cincias sociais tomasse as cincias naturais como parmetro, assim o faziam a respeito de interpretaes especficas das cincias naturais das quais o positivismo era a principal. No seio das cincias sociais de inspirao positivista surgiram debates, por exemplo, sobre se as explicaes funcionais seriam consistentes, ou logicamente equivalentes, a explicaes causais convencionais; se teorias de cincia social poderiam atingir