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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV CONCEIÇÃO DO COITÉ JELTROM ANTONIO OLIVEIRA DE ARAUJO A FICÇÃO DENTRO DA FICÇÃO DE GEORGE ORWELL E SUAS NUANCES CONCEIÇÃO DO COITÉ 2012

A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

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Page 1: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO

CAMPUS XIV – CONCEIÇÃO DO COITÉ

JELTROM ANTONIO OLIVEIRA DE ARAUJO

A FICÇÃO DENTRO DA FICÇÃO DE GEORGE

ORWELL E SUAS NUANCES

CONCEIÇÃO DO COITÉ

2012

Page 2: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

1

JELTROM ANTONIO OLIVEIRA DE ARAUJO

A FICÇÃO DENTRO DA FICÇÃO DE GEORGE

ORWELL E SUAS NUANCES

Monografia apresentada à Universidade do Estado da

Bahia, Departamento de Educação, Campus XIV, como

requisito final à conclusão do Curso de Licenciatura em

Letras com Habilitação em Língua Inglesa.

Orientadora: Profª. Drª. Flávia Aninger de Barros Rocha.

CONCEIÇÃO DO COITÉ

2012

Page 3: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

2

JELTROM ANTONIO OLIVEIRA DE ARAUJO

A FICÇÃO DENTRO DA FICÇÃO DE GEORGE

ORWELL E SUAS NUANCES

Monografia apresentada à Universidade do Estado da Bahia,

Departamento de Educação, Campus XIV, como requisito final

à conclusão do Curso de Licenciatura em Letras com

Habilitação em Língua Inglesa.

Aprovada em: ___/___/___

Banca examinadora

_______________________________ Flávia Aninger de Barros Rocha – Orientadora

Universidade Estadual de Feira de Santana

_________________________________________

Neila Maria Oliveira Santana

Universidade do Estado da Bahia – Campus XIV

_________________________________________

Rita Sacramento

Universidade do Estado da Bahia – Campus XIV

CONCEIÇÃO DO COITÉ

2012

Page 4: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

3

Dedico este trabalho aos meus familiares,

colegas, e aos nossos professores pela

contribuição na construção do

conhecimento.

Page 5: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

4

AGRADECIMENTOS

Para nós, seres humanos, viver deve ser entendido como encarar a ditadura da vida com

anarquia. Isso significa que precisamos confrontar de todas as formas as adversidades

sobrevindas, realizando inúmeras ações para atender às nossas necessidades, aspirações e

conveniências. Por conseguinte, devemos exercer sempre a nossa pluralidade que não se

reduz à unidade de confusão, pois, como diria o pensador Blaise Pascal, unidade que não

depende de pluralidade é tirania. Portanto, como não vivemos sozinhos, a produção da

existência é feita por um conjunto de ações coletivas e interligadas.

Nesse ínterim, ao me dedicar neste trabalho científico, muitas pessoas contribuíram para

que se concretizasse esta monografia. Meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que, de

alguma forma e mesmo que involuntariamente, doaram um pouco de si para que a conclusão

deste trabalho se tornasse possível:

A minha orientadora professora doutora Flávia Aninger de Barros Rocha que me orientou,

desde o Anteprojeto até a Monografia auxiliando na produção do texto, na organização das

ideias, com a disponibilidade de tempo, materiais e referências que utilizei, com o apoio e

simpatia com que me tratava.

Aos meus pais, Antonio e Raimunda que me incentivaram sempre a estudar, a acreditar

em mim mesmo, a nunca desistir; Agradeço a eles que me ensinaram a ser o que sou hoje e

me educaram para tornar-me uma pessoa de bem e aguerrida, por todos os sentimentos bons e

incondicionais a mim dados.

A meu irmão mais velho Josué, que me deu grande input em todos os sentidos para

prosseguir nessa jornada e concluir, pois seria profícuo para o meu viver.

A meus amigos, que compreenderam a minha ausência nos últimos momentos da

produção da monografia, pela atenção e paciência. Agradeço também por eles existirem em

minha vida, por estarem presentes nos momentos bons, bem como nos momentos difíceis, por

eles me aceitarem como sou.

Aos colegas de Universidade, por eles, aos poucos, ocuparem um grande espaço em meu

existir, por conquistarem meu respeito, meu carinho e por representarem pessoas especiais e

indeléveis pra mim.

Page 6: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

5

CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que estereliza os abraços,

não cantaremos o ódio, porque este não existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das

igrejas,

cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.

Depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e

medrosas.

Carlos Drummond de Andrade

Page 7: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

6

RESUMO

O presente trabalho propôs-se a uma abordagem sociocrítica, em 1984, de George Orwell.

Narrativa de grande densidade, na qual o autor focaliza as questões humanas, que vem à tona

diante de um quadro de grande opressão política. Vemos que é possível encontrar as marcas e

os impactos produzidos pela experiência das Grandes Guerras Mundiais. Nessa investigação,

pode-se visualizar as tentativas de dominação estabelecidas pelos regimes totalitários desse

período, que despertou nos intelectuais o sentido de alerta com relação aos direitos individuais

civis. Essa abordagem sociocrítica serve-nos para estabelecer a compreensão tanto da obra

1984 em si, quanto do livro que se encontra inserido nessa narrativa. Para tanto, procurou-se

aqui mostrar como se configura esta ficção ou livro imaginário dentro da ficção, e o

desdobramento do híbrido entre História e Literatura dentro da obra de Orwell no que diz

respeito aos paralelos com os sistemas sociais implantados no século XX. Possibilita-nos

afirmar assim, que através dum entendimento sociocrítico é que a obra fala por si, enquanto

espelho social de uma época.

Palavras-Chave: Literatura. História. Sociocrítica. Política. Ficção. Memória.

Page 8: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

7

ABSTRACT

The present work, has proposed a sociocritic approach in 1984 by George Orwell. Narrative

of huge density, whose author focus on human questions that comes to the surface in front of

a picture with big politic oppression. We see that is possible to find so many wounds and the

impacts made by the experience of the Great World Wars. In these overlooking, we can see so

many attempts to dominate established by totalitarians regime in these period, which woke up

in the intellectuals the sense of alert in relation to the individual civil rights. This sociocritic

approach serves to establish the comprehension as 1984 itself, as the book inside this novel.

Hence, we search here show how to configure its fiction or imaginary book inside this fiction,

and the developments of the hybrid between History and Literature within Orwell‘s work, in

respect to the parallels with the social systems implanted in Twentieth century. Allow us to

state through these sociocritic understanding, the work tell by itself, while a social mirror of

an epoch.

Keywords: Literature. History. Sociocriticism. Politic. Fiction. Memory.

Page 9: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: MIL NOVECENTOS E OITENTA E QUATRO:

PALIMPSESTOS INACABADOS .......................................................................

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1

MIL NOVECENTOS E OITENTA E QUATRO: UMA LEITURA

SOCIOCRÍTICA ...................................................................................................

12

2

GOLDSTEIN, O PAROXISMO DA CONSCIÊNCIA........................................

17

2.1 A construção da sociedade através da luta de classes............................................... 19

2.2 Os mencheviques de Goldstein................................................................................. 22

2.3 O Terror da razão humana em 1984......................................................................... 24

3

O PODER VIRTUAL: A ANULAÇÃO DA MEMÓRIA...................................

29

3.1 Manutenção da situação por subtração..................................................................... 34

3.2

3.3

Winston e Júlia: a revolução traída...........................................................................

Panis et circenses, pois somente ―os proles e os animais são livres‖.....................

37

41

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 43

REFERÊNCIAS .....................................................................................................

45

Page 10: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

9

INTRODUÇÃO:

MIL NOVECENTOS E OITENTA E QUATRO: PALIMPSESTOS INACABADOS

Eric Arthur Blair (1903-1950), ou George Orwell, como é conhecido, é um dos

representantes mais marcantes da literatura distópica, ou seja, da escrita que descreve a

vivência de uma ―utopia negativa‖, marcada pelo total controle da sociedade através da

tecnologia. Podemos conceituar melhor o termo distopia, partindo da sua palavra radical

utopia, que é um conceito segundo o qual é possível idealizar de forma fantasiosa um lugar

que é um não-lugar, pois situa-se tão somente no imaginário e não chega a realizar-se. O

utopismo é um modo absurdamente otimista de ver as coisas do jeito que gostaríamos que

elas fossem e desse modo, pode-se dizer que o conceito derivado de distopia seria o inverso,

ou seja, a possibilidade de idealizar de forma negativa esse não-lugar.

Desse modo, a obra de Orwell, 1984, escrita em 1947, retrata uma sociedade

oligárquica e totalitária, que reprime qualquer um que se opuser a ela. As ideias que a regem

partem de um líder obscuro, ―O Grande Irmão‖ (The Big Brother), que, através de telões

instalados em vários lugares, inclusive nas casas, controla a privacidade de todos os cidadãos

do país. Através desse controle da informação, ele se mantém e se consolida cada vez mais,

pois, como se percebe na leitura do livro, o grupo dominante altera os fatos históricos para

situações mais convenientes. Associado a essa intervenção no passado, está o conceito

chamado de ―duplipensar‖, conceito segundo o qual é possível ao indivíduo conviver

simultaneamente com duas crenças diametralmente opostas e aceitar ambas, também criado

para consolidar a ditadura do Partido que determina tudo.

Desiludido com sua existência miserável, Winston Smith, protagonista da narrativa e

funcionário do governo totalitarista, começa a empreitada de se rebelar, juntamente com a

companheira Júlia, transgredindo a partir do momento em que vê nela também uma possível

dissidente e começam a se envolver amorosamente. Assim, no início, sem nem mesmo

conhecer quase nada sobre sedição, ainda que silenciosamente, Winston tenta restituir sua

esperança, acreditando que os proles, a camada mais baixa da população, considerada como

muito inferior, seriam os que restituiriam a ideia de liberdade na Oceania, esta, local da

figuração de Orwell, em constante guerra com mais duas potências rivais: a Eurásia e a

Lestásia.

Para os fins a que nos propomos, se avaliarmos historicamente, veremos semelhanças

gritantes com a época vivida pelo autor, pois o clima de guerra constante é possivelmente uma

Page 11: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

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caricatura dos pactos realizados entre os países envolvidos na Segunda Grande Guerra. Entre

eles, pode-se destacar o de maior proximidade com a figuração de Orwell, o Pacto Molotov-

Ribbentrop, que aliou a URSS com a Alemanha Nazista, e a ruptura inesperada com a

Operação Barba Vermelha, que culminou com o insucesso da Alemanha Nazista.

Dando prosseguimento à nossa análise, encontramos na outra face da moeda, em

contraste com o ―Grande Irmão‖, a sua polarização, o dissidente do Partido, Emmanuel

Goldstein, inimigo público número um da sociedade da Oceania. Emmanuel Goldstein era um

antigo membro do Partido que quebrara as regras vigentes ao supostamente conspirar contra o

Grande Irmão.

Desse modo, devido ao seu caráter subversivo, o personagem foi transformado em

alvo de ataques, servindo para alimentar a vitalidade do Partido nas manifestações mais

gritantes, como nos Dois Minutos de Ódio, momento diário em que as pessoas se reuniam em

frente a um telão enorme alocado em praça pública chamado de Teletela, diante do qual se

atiravam insultos a esse suposto dissidente. A condição de ―suposto inimigo‖ nesses dois

polos da narrativa, se deve ao fato de que, assim como o Grande Irmão, não se tinha a certeza

da real existência de Emmanuel Goldstein, e, ainda assim, essa sociedade era dominada pela

influência dessas duas entidades: A grande maioria, que não ousava pensar sem as ordens do

Big Brother e os mencheviques de Goldstein que conspiravam às escuras, nos quais se

incluíam Winston e Júlia.

Contido na ficção de Orwell, há um livro chamado Teoria e Prática do Coletivismo

Oligárquico, escrito pelo desertor Emmanuel Goldstein, o qual apresenta um pouco da gênese

e das consequências de todas as formas de totalitarismos. É um livro de natureza sediciosa

que, por haver poucos exemplares, vai sendo revezado entre os possíveis dissidentes, e que,

minuciosamente, mostra as nuances desse sistema utópico, servindo de espelho para uma

crítica às manifestações totalitárias do século XX.

Emmanuel Goldstein, então, pode ter sido um dos ―revolucionários‖ que ajudou a

construir o sistema social implantado naquela sociedade (IngSoc – sigla para Socialismo

Inglês). Este pregava a liberdade de pensamento, sendo o cérebro o único local em que o Big

Brother não conseguia vigiar, isto se o pensamento não fosse expresso na face e captado pela

teletela. Esta ideia se mostra contrária ao poder vigente, pois somente com o povo exprimindo

as suas opiniões, sem serem obrigados a duplipensar, é que a ordem poderia mudar. Porém,

por ter opiniões contrárias, Goldstein acabou sendo perseguido e banido da Oceania.

É possível afirmarmos que, ao analisarmos as obras da Literatura européia pós 2ª

Guerra Mundial, encontraremos as marcas e os impactos produzidos pela experiência da

Page 12: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

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Guerra. A tentativa de dominação pelos regimes totalitários de Hitler e Mussolini despertou

nos intelectuais ingleses e europeus de um modo geral, o sentido de alerta com relação aos

direitos individuais civis.

Com sua obra, George Orwell se posiciona a favor de uma reflexão que vai além de

um exame sobre o Stalinismo, como anteriormente propuseram vários estudiosos deste livro.

Além deste propósito, o autor focaliza as questões humanas que vem à tona diante de um

quadro de opressão política.

O livro que se encontra dentro do livro, de autoria do personagem dissidente

Emmanuel Goldstein, representa um importante elemento do qual os personagens são

privados todo o tempo: a liberdade de pensamento ou a liberdade de experimentar um

caminho e ter o direito de também negá-lo, buscando um equilíbrio.

A relação entre o contexto social e a produção literária pode ser vista conforme

explica Antônio Cândido em ensaio fundamental para os Estudos Literários: ―a função social

comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relações sociais, na

satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma certa

ordem na sociedade‖ (CÂNDIDO, 2000, p. 53).

Deste modo, acreditamos que Orwell aponta, com a presença do livro de Goldstein no

enredo, para a Palavra que permanece, para o registro escrito da História, mostrando que o

livro se revela passível de inúmeras abordagens, e que, quanto mais nos dispusermos a fazer

nossas análises sociocríticas, iremos ver que 1984 é um terreno muito fértil para as análises

sociológicas e que, com essa visão, será possível perceber os recursos narrativos usados por

Orwell para tratar dessa reflexão através da Literatura, bem como pelo estudo sistemático da

conexão entre a literatura e a sociedade.

Assim, o recurso narrativo do ―livro dentro do livro‖ reforça a questão das formações

discursivas como portadoras de ideologias, trazendo uma chave de compreensão para o

enredo da obra, demonstrando como aquela sociedade se tornou opressora e fechada e, deste

modo, convocando o leitor à reflexão fundamental de que um regime político que não se

avalia tende a se tornar ditatorial, remetendo-nos a alguns regimes implantados num dos

séculos mais conturbados por guerras como o século XX.

A pesquisa se desenvolveu através de revisão bibliográfica, visando encontrar

fundamentação teórica na leitura de material já publicado sobre o tema/problema de pesquisa,

em que fossem discutidos os aspectos da tirania, os mecanismos de coerção, a constituição

das classes sociais, pela ótica do livro contido na ficção de George Orwell: ―Teoria e Prática

do Coletivismo Oligárquico‖ do personagem Emanuel Goldstein, bem como a partir de

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autores que, a exemplo de Cândido e Baccega, aqui citados, tratam do imbricamento entre o

tecido social e histórico e a Literatura.

Encontramos, desse modo, um terreno bem fértil nessa literatura pós-guerra, a qual

dá uma visão em detalhes desse período de grande importância histórica. Muito pelo fato de

que, fornece-nos não somente uma visão unidimensional da história, mas descreve com

precisão de quem vivenciou esse período que deixou indeléveis marcas na nossa sociedade.

No sentido de manter-nos atualizados sobre como se dá o funcionamento das

engrenagens sociais, fizemos algumas análises também por vieses outros, como o

psicanalítico, o qual nos oferece pontos veementes para estabelecermos o entendimento do

que essa leitura pode mostrar.

Dos procedimentos instrumentais utilizados temos a seleção de textos teóricos que,

desta forma, também entraram nessa seara sociológica e encontram seu norte do ponto de

vista da literatura. Assim, o trabalho se articulou através de pesquisas bibliográficas, na

internet e discussões na órbita do tema, os quais culminaram com o know-how necessário às

incursões discursivas realizadas aqui.

1. MIL NOVECENTOS E OITENTA E QUATRO: UMA LEITURA

SOCIOCRÍTICA

Um entendimento sociocrítico designará a leitura do histórico em que está inserida

determinada literatura. Assim, para Madame de Stäel apud Barbéris (1997, p. 153), a

literatura muda com as sociedades e com os progressos da ―liberdade.‖ Ela se amolda à

evolução da ciência, do pensamento, das forças sociais. A literatura é sempre crítica e ao

mesmo tempo convite a alguma coisa. É preciso investigar a fundo as matrizes discursivas

para definirmos as relações entre história e literatura presentes na obra. Sobre esse aspecto,

Vargas Llosa (2007, p. 23) afirma que ―a diferença entre a verdade histórica e a verdade

literária desaparece e se funde num híbrido que banha a história de realidade e esvazia a

história de mistério, de iniciativa e de inconformidade diante do estabelecido‖.

Logo, como afirma Baccega (1995, p. 89), ―a leitura nada mais é que o discurso da

existência humana, das suas várias possibilidades. E a história é o desdobramento no tempo

dessas várias possibilidades‖. Faz-se preciso, portanto, que saibamos como situar essa

Page 14: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

13

literatura, no que diz respeito a estruturar um paralelo entre a utopia e a construção da

sociedade através da luta de classes.

Há ocasiões em que o texto pode ser uma excepcional síntese de tensões e vibrações, inquietações e perspectivas, aflições e horizontes de indivíduos e coletividades, em

dada situação, conjuntura ou emergência. Nesse sentido é que algumas obras de

literatura, assim como de sociologia, podem ser e têm sido tomadas como sínteses

de visões do mundo prevalecentes na época. (SEGATTO; BALDAN, 1999, p. 41)

Segundo Cândido, deve-se analisar o vínculo entre a obra e o ambiente, sempre

observando a estética da literatura. O que interessa é uma abordagem que exponha a obra

literária como uma união de fatores sociais que exerçam influência na composição da mesma,

que consiste no escopo da nossa busca. A literatura deve ser vista como um todo

indissociável, formado por características sociais diferentes que se completam. Cândido

afirma que:

a arte é social ‗quando‘ depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na

obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito

prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o

sentimento dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte.

(CÂNDIDO, 2000, p. 29)

Ainda segundo este autor, tratando dos fatores socioculturais, podemos afirmar que os

mais importantes estão ligados à estrutura social, no que diz respeito à posição social do

artista, os valores e ideologias que se manifestam no conteúdo e na obra e as técnicas de

comunicação que podem ser observadas na transmissão da obra. Sociologicamente, a obra só

finaliza quando repercute e atua, pois ela é um sistema de comunicação inter-humana, se

recorrermos à época de lançamento de 1984, iremos nos certificar desse momento de

repercussão e atuação e que refrata por todos esses anos e reverbera na contemporaneidade.

Analisando ―1984‖ por esse critério da indissociabilidade da literatura e da história

veremos que estas:

Além dos seus enigmas filosóficos, religiosos, políticos ou outros, elas contribuem decisivamente para a revelação do desenho da prisão de ferro, literal ou

metaforicamente. São um mergulho audacioso, surpreendente, aflitivo e fascinante

no sistema labiríntico produzido pela racionalização das organizações, instituições,

atividades e mentalidades. (SEGATTO; BALDAN, 1999, p. 24-25)

Tais características estão presentes em alguns sistemas políticos do período em que

1984 está mergulhado. Podemos considerar que, ―a literatura não é mais Apolo inspirando o

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Poeta, mas um aspecto da história social‖, como expressa Barbéris (1997, p. 160). Para

entendermos a natureza da ficção, Vargas Llosa (2007, p. 12) diz que ―no embrião de todo

romance ferve um inconformismo, pulsa um desejo insatisfeito‖, ou seja, pode-se dizer que

Orwell transmitia suas ideias inconformistas através da sua pintura literária.

Na esteira desse pensamento, Eric Arthur Blair, ou George Orwell, dedicou parte de

sua vida ao combate de ideologias totalitárias, sobretudo as de cunho nazifascistas.

Primeiramente, lutando na Guerra Civil Espanhola em 1936 contra a ditadura de Francisco

Franco e depois, quando desiludido com o sistema socialista, passa a voltar sua obra literária

para a crítica a este tipo de modelo.

Assim, no discurso literário, podemos encontrar inúmeras marcas de relações

socioeconômicas, políticas e culturais, como quando percebemos na leitura, o momento que

Winston resolve ler o livro proibido escrito por Goldstein. Os conceitos apresentados no livro

ficcional de Emmanuel Goldstein sobre como se dá a construção da história através da luta de

classes apresenta claramente a defesa dos pontos de vistas de Orwell, identificadas no trecho

abaixo e que, ao final, mostram a estruturação daquela sociedade distópica:

O objetivo da Alta é ficar onde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E o

objetivo da Baixa, quando tem objetivo – pois é característica constante da Baixa

viver tão esmagada pela monotonia do trabalho cotidiano que só intermitentemente

tem consciência de que existe fora de sua vida – é abolir todas as distinções e criar

uma sociedade em que todos sejam iguais. Assim, por toda a história, trava-se

repetidamente uma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos a

Alta parece firme no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em si própria ou a capacidade de governar com eficiência, ou

ambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu lado fingindo lutar

pela liberdade e a justiça. (ORWELL, 1986, p. 147).

Essa crítica parece representar um pouco da desilusão de Orwell com relação ao

comunismo, sistema que, por sua vez, primava pela pureza de sua sociedade, também

defendida pelo nazismo, e que praticava o mesmo cerceamento das liberdades individuais, por

trás da falsa ideia de ―reorganização social‖.

Desse modo, 1984 remete-nos também às frustrações particulares do autor. Para

Timothy Garton Ash (2001), professor de Estudos Europeus na Universidade de Oxford, nos

Estados Unidos, três fatores pessoais levaram Orwell a descrever o sistema totalitário de

maneira tão realista, embora todo o seu conhecimento sobre o sistema comunista russo

provenha de suas leituras. O primeiro deles foi o processo de formação de Orwell como

policial imperial britânico na Birmânia, onde ele foi funcionário de um regime opressor por

cinco anos. Ao criar ódio pelo imperialismo e fortalecer sua relutância a este sistema, o

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15

escritor também desenvolve uma forte percepção do perfil psicológico de um opressor,

figurado no Grande Irmão. O segundo proviria da vivência do escritor com os pobres da

Inglaterra e da França com os quais conheceu a humilhante falta de liberdade que a pobreza

proporciona.

Por último, viria sua vivência direta no conflito ocorrido na Espanha, onde foi ferido

por um tiro na garganta. Porém, o que mais o impressionou e revoltou foi a difamação e a

perseguição sofridas pelo Partido Operário de Unificação Marxista (POUM) por parte de

comunistas, que deveriam ser aliados no combate à ditadura franquista. O agente russo na

Espanha acusava os membros do POUM de traidores trotskistas franquistas. Este fato levou

George Orwell a compreender que a manutenção da supremacia pessoal pode se sobrepor a

ideologias e vidas.

De fato, o que é mais emblemático ao mergulharmos na narrativa de 1984, mais

precisamente, na narrativa da suposta existência de Emmanuel Goldstein e na estruturação de

―Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico‖, é vermos que este assemelha-se muito ao que

foi vivenciado por Leon Trotski, líder comunista que teve papel decisivo na Revolução

Bolchevique. Bem como, se nos referimos ao contexto do livro, veremos que a guerra para a

manutenção da paz foi recurso muito utilizado na Europa da época, principalmente na Rússia,

Alemanha, entre outros.

Também, como no comportamento do Big Brother, podemos comprovar com as

palavras dos biógrafos de Stálin, Dorothy e Thomas Hoobler, que este gostava de estimular

rivalidades entre os que compunham o seu círculo mais íntimo de relações, de modo a manter

todos sob eterna tensão. ―Havia o temor generalizado de que, de repente, o líder decidisse que

alguém já não merecia sua integral confiança‖ (HOOBLER, 1987, p. 95). Tal afirmação é

suscetível de incontáveis reflexões e desse modo, podemos nos questionar: se num círculo de

amizades há esse temor, o que se poderia dizer do cenário político como um todo?

Podemos perceber que 1984 nos dá todo o panorama histórico do período da Segunda

Grande Guerra, tanto o nazismo de Hitler quanto o Franquismo na Espanha, o Stalinismo

russo, entre outros. Além de outras similaridades menos relevantes, sabemos que ―Trotski era

constantemente acusado pelo regime stalinista de liderar uma conspiração antissoviética. Na

verdade, seu nome serviu de pretexto para a violência e o terror implantados por Stálin‖

(HOOBLER, 1987, p. 63).

Ademais, a título de informação, Trotski se tornou crítico ferrenho depois que a

cortina de ferro se abriu pra ele. Como intelectual e tendo participado ativamente na

Revolução, produziu incontáveis escritos em que condenava os mandos e desmandos das

Page 17: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

16

políticas totalitaristas, principalmente de Stálin. Entre esses escritos, o mais veemente foi The

Revolution Betrayed. E é com este sentido que muitos correlacionam a obra de Trotski (The

Revolution Betrayed) com ―Teoria e prática do Coletivismo Oligárquico‖ de Goldstein,

contido em 1984. Este estrutura de forma detalhada o conhecimento sobre a constituição das

sociedades desde a sua gênese.

Assim, à luz das reflexões sobre história e literatura, Bacegga (1995, p. 54) afirma

que: ―a palavra é a arena privilegiada onde se desenvolve a luta de classes‖. Portanto, o

quadro evidenciado na obra de Orwell demonstra as condições sociais que ainda

incomodavam e que de certa forma ainda atemorizavam as pessoas nos primeiros anos após a

Guerra. Em sua obra O mal-estar da pós-modernidade (1998) o sociólogo Zygmunt Bauman

faz um resgate das agressões e da negação da vida pessoal do indivíduo e, para estabelecer

esta conexão, se utiliza de George Orwell e de 1984:

O mais opressivo dos pesadelos que assombraram o nosso século, notório por seus

horrores e terrores, por seus feitos sangrentos e tristes premonições, foi bem captado

na memorável imagem de George Orwell da bota de cano alto pisando uma face

humana. Nenhuma face estava segura – como cada uma estava sujeita a ser culpada

do crime de violar ou transgredir. E uma vez que a humanidade tolera mal todo

tempo de reclusão, os seres humanos que transgridem os limites se convertem em

estranhos – cada um teve motivos para temer a bota de cano alto feita para pisar no

pó a face do estranho, para espremer o estranho do humano e manter aqueles ainda não pisados, mas prestes a vir a sê-lo, longe do dano ilegal de cruzar as fronteiras.

(BAUMAN, 1998, p. 27-28).

Para concluir, vemos que, neste momento da História, cada autor recomporá este

social de uma forma particular. Como já afirmamos, sabemos que Orwell estava a representar

algo através de sua escrita, trazendo sua análise para os leitores e que consegue transmitir-nos

todo o terror que esse período do século XX promoveu para a humanidade. Assim, mais do

que uma profecia, George Orwell com sua magnus opus faz um alerta lúcido e generoso,

sobre o que sucederia se os totalitarismos conseguissem seu real anseio, a negação do privado,

do particular.

Ao nos transpormos para a realidade do livro, veremos que essa desvalorização

insidiosa do passado e do privado promoveu as condições para que todos vivessem

alienadamente. Se nos voltarmos para nossa realidade concreta, identificamos que este é um

mundo onde o silêncio é condição sine qua non para que o indivíduo não se veja a si mesmo,

bem como não entenda o mistério que constitui a vida (Jahanbegloo, 2000, p. 28). Logo, essa

literatura desempenha papel preponderante, pois:

Page 18: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

17

Esses refúgios privados, as verdades subjetivas da literatura, conferem à verdade

histórica, que é seu complemento, uma existência possível e uma função própria:

resgatar uma parte importante – porém somente uma parte – da nossa memória:

aquelas grandezas e misérias que compartilhamos com os demais, em nossa

condição de entes gregários. Essa verdade histórica é indispensável e insubstituível

para saber o que fomos e, talvez o que seremos como coletividade humana. O que

somos como indivíduos e o que quisemos ser e não pudemos sê-lo de verdade, e

devemos sê-lo, portanto, fantasiando e inventando – nossa história secreta -, somente

a literatura sabe contá-lo. (VARGAS LLOSA, 2007, p. 26)

Concomitantemente, nesse terrível universo a que George Orwell dá corpo através de

sua distopia, Orwell foi verdadeiro, oferecendo ao mundo uma narrativa mais abrangente e

profunda, mais humana do que qualquer esquema ideológico – de sinal positivo ou negativo –

possa conceber. Essa obra representa a comprovação do quanto a literatura e a história se

desdobram juntas e de como esse quadro histórico foi visto pelos artistas do período, posto

que, sabemos que a arte é o espelho social de uma época e que somente ela consegue mostrar

a representação de períodos que muitas vezes nem chegamos a presenciar. Melhor dizendo,

dentro dessas verdades subjetivas como as que encontramos em 1984, estão incrustadas as

verdades históricas necessárias às nossas reflexões.

Por conseguinte, um dos primeiros tópicos que iremos abordar será com relação à

tirania desempenhada pela razão a serviço do Partido, que é mostrada em 1984. Essa mesma

razão impõe o terror e todo o medo dentro dessa sociedade, fazendo com que as pessoas sejam

meros joguetes a serviço do Partido, e estes, imersos na ideologia imposta através dessa

mesma razão, não conseguem tirar a venda dos olhos, condição que os cega.

2. GOLDSTEIN, O PAROXISMO DA CONSCIÊNCIA

A pior coisa que nós podemos dizer sobre uma obra de arte é sua insinceridade...A

literatura moderna...é senão a verdadeira expressão do que o homem pensa e sente,

ou não é nada. (ORWELL, 1970, apud BOUNDS, 2009, p. 87) 1 [tradução nossa].

Ao escolher a citação acima como epígrafe desse capítulo, desejamos enfatizar e

sustentar as inúmeras incursões discursivas que são utilizadas na literatura Orwelliana de um

modo geral e na obra 1984, em específico. Ao estabelecer essas inúmeras reflexões através

das alegorias ora utilizadas no livro, Orwell retrata aquele período de grande importância

1 The worst thing we can say about a work of art is that it is insincere…Modern literature…is either the truthful

expression of what one man thinks and feels, or it is nothing.

Page 19: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

18

histórica pelas inúmeras mazelas sociais que ainda perduram, as quais, resultantes da guerra,

deixaram marcas indeléveis.

Por conseguinte, mesmo se estabelecermos uma visão de forma menos detalhada do

livro, se pode perceber essa sinceridade requerida e defendida na citação acima, como amostra

dos sentimentos verdadeiros com relação àquelas sociedades caricaturadas.

Desse modo, destacamos aqui esse ponto, de grande importância que pode ser

observado também dentro de uma personagem fundamental para a compreensão dessa obra.

Goldstein, em seu guia teórico sobre como foram os processos que levaram aquela sociedade

até o ponto em que estava, fornece muitas explicações às incontáveis conjeturas feitas por

Winston. Esses dados, por assim dizer, alimentam a sede de transformação desejada pelo

personagem. É a partir das ideias de Goldstein, associado àquele desejo inconsciente de

Winston de saber como se configurava a sociedade no passado, que a revolução (no campo

das ideias) contra o Grande Irmão começa a tomar forma.

Logo, pode-se dizer que a figura messiânica de Goldstein se apresenta através dos

pontos ideológicos que são defendidos na obra. O personagem aponta para o zênite da

narrativa, onde mais uma vez ficção e realidade se abraçam e mostra o que os bolcheviques do

Grande Irmão fizeram para que a revolução deles nunca fosse traída, e se consolidasse cada

vez mais.

Muito embora Winston saiba que a revolução não tem condições de se concretizar

pelo fato de que a lavagem cerebral realizada se deu de forma muito intensa e profunda, pode-

se perceber que Goldstein, existindo ou não, representa os ideais que são defendidos na obra.

O livro proibido havia sido engendrado pelas mãos dos que sabiam realmente como fora o

processo de construção daquele sistema e dos processos históricos que o levaram até aquele

ponto. Podemos até ir mais além e afirmar que, em caso de Goldstein ser somente uma

invencionice de afirmação da doutrina do Grande Irmão, possivelmente este ou quem o

inventou, teria realmente feito parte daqueles que determinavam a estrutura ideológica do

Partido.

Assim, podemos, a grosso modo, caracterizar as imagens dos dois pólos da obra, nas

figuras de Goldstein e do Big Brother, aproximando-as do conceito convencional e

maniqueísta de bem e mal existente nas nossas sociedades. Esses são construídos com essa

imagem polarizada, a negação de um é a negação dos dois, a afirmação de um é afirmar o

outro. Logo, podemos concluir que, muito mais onipotente que o Grande Irmão, o Partido

desempenha o maior papel, ao determinar a construção de dois pólos nos quais sem a

existência de um, o outro não se afirma, podendo causar a ruína do sistema.

Page 20: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

19

A consciência coletiva e alienada nunca buscaria uma resposta efetiva para o

entendimento da ideia de coletividade oligárquica. Portanto, Emmanuel Goldstein é

fundamental para que o Partido continue sempre em voga, mesmo sabendo que é um grande

risco deixar seu livro, suas ideias subversivas, fluírem de certo modo, mesmo que às escuras.

2.1 A construção da sociedade através da luta de classes

Ao nos debruçarmos sobre o livro de Goldstein, ―Teoria e Prática do Coletivismo

Oligárquico”, podemos ver que este faz uma análise minuciosa dos processos que levaram o

sistema político até chegar ao estado de controle tirano. Essa obra se revela como um

verdadeiro tratado de ciência política, no qual se estabelecem detalhes minuciosos de como

desde os idos do final do período Neolítico, as três classes: a baixa, e principalmente a média

e a alta digladiaram-se pela ascensão ao topo da pirâmide. Em detalhes sucintos, porém não

menos incisivos, mostra-se o que fora preciso observar para que se encontrasse a forma ideal

de eterna dominação de um determinado grupo, sem que de forma alguma, nada viesse a

comprometer a ideologia vigente, congelando a história em um determinado período.

Tem havido três classes no mundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relação quantitativa,

assim como sua atitude em relação às outras, variaram segundo as épocas; mas nunca

se alterou a estrutura essencial da sociedade. Mesmo depois de enormes comoções e

transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo diagrama sempre se

restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio em movimento sempre volta ao

equilíbrio, por mais que seja empurrado desse ou daquele lado.

Os objetivos desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis... (ORWELL, 1986,

p. 133,134)

Goldstein em sua teoria dá-nos a metáfora ideal de como as posições das castas sociais

sempre volta para as mesmas posições. É justamente a diferença que discrimina uma classe da

outra e que é o combustível para que troquem continuamente suas posições.

Essa mesma atmosfera é criada também em meio as potências mundiais dessa

narrativa. Mantêm-se a atmosfera de constante ebulição entre uma e outra, como se estivesse

sempre por um triz, de se digladiarem. No entanto é essa linha tênue que dá o equilíbrio exato

às potências. A ideia de guerra constante é que estabelece o equilíbrio na cabeça das pessoas.

Conforme vemos nas palavras do teórico subversivo Goldstein:

A guerra, contudo, não é mais a luta desesperada e aniquiladora que costumava ser

nas primeiras décadas do século vinte. É uma luta de objetivos limitados entre

combatentes incapazes de destruir um ao outro, sem causa material para guerrear e

sem mesmo qualquer genuína divergência ideológica. Isto não significa que as

Page 21: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

20

operações de guerra, ou a atitude em relação a ela se tenham tornado mais

cavalheiriscas ou menos sanguinárias. Ao contrário, a histeria guerreira é contínua e

universal em todos os países, e atos tais como estupros, pilhagens, matança de

crianças, e escravização de povoações inteiras, e represálias contra prisioneiros que

chega a incluir a morte pela água fervente e o enterramento de seres vivos, são

considerados normais e até meritórios, quando são cometidos pelos amigos, e não

pelos inimigos. (ORWELL, 1986, p. 134,135)

É esse clima belicoso que, releva os atos cometidos por este sistema. Constrói-se esse

enredo de constante guerra, para que as mentes das pessoas estejam povoadas de fantasias

nacionalistas e assim, até os atos internos não terão resposta de indignação da sociedade.

Tudo se justifica em prol da estabilidade do sistema como um todo.

Por conseguinte, podemos estabelecer inúmeros paralelos pelo viés sociológico.

Sabemos que, mesmo que aquele regime fosse intitulado de socialismo, tinha somente a

roupagem de tal, pois no socialismo há a luta de classes e percebemos tão somente, duas

classes na Oceania: os bolcheviques do Grande Irmão e os proles, aqueles que, como iremos

ver na nossa caracterização sobre os mesmos, não eram submetidos às armas utilizadas pelo

partido para coação completa, pois não era necessário.

Podemos assim concluir que os proles, a esfera social que compunha a base, em

nenhum momento tenta coibir ou sobrepujar a outra e vice e versa, como normalmente

acontece na existência de duas ou mais classes, ou que pelo menos isso não se dava de forma

ostensiva e voluntária.

Dando continuidade, ao pensarmos essa sociedade da Oceania, podemos tomar o

conceito de superestrutura e seu antagônico infraestrutura, e veremos essa sociedade bem

próxima daquela a qual Althusser (2003, apud MUSSALIM, 2006, p. 123), contemporâneo de

Orwell, mostra numa de suas obras, ao referir-se aos mecanismos de controle angariados pela

superestrutura, que a ideologia se perpetua, produzindo condições materiais, ideológicas e

políticas de exploração e dentre esses mecanismos estão os de suma importância, que são os

aparelhos ideológicos do Estado usados para controlar a infraestrutura, base da pirâmide,

portanto, maior parte da população.

Podemos ver nas palavras de Bounds, um dos estudiosos da obra Orwelliana, que

desde que os valores da sociedade são invariavelmente baseados nos valores do sistema

econômico dominante, segue-se que a característica da vida cotidiana (...) será uma supressão

brutal das emoções. (BOUNDS, 2009, p. 87) 2 [tradução nossa].

2 since a society‘s values are invariably based on those of the dominant economic system, it follows that the

main characteristic of everyday life… will be a brutal suppression of emotion

Page 22: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

21

Ou seja, a supressão dessas emoções exercida pela tirania era vista constantemente na

classe que domina toda a Oceania em nossa narrativa. Logo, se pode afirmar que o Partido

seria a superestrutura, quem determinaria como as coisas funcionariam, e a infraestrutura

seria composta por aqueles que ficavam aquém da sociedade dominante, à margem, os proles.

Para os fins de nossas análises, não incluímos aqui os desertores, aqueles que, assim

como Winston, pretendiam uma grande subversão, exclusivamente pelo fato de que esses

mesmos pertenciam à superestrutura do Partido, àqueles que compunham a parte que

determinava a ideologia, nos quais se enquadram: Winston, Jones, Aaronson, Rutherford,

Goldstein, entre outros.

Goldstein afirmava em sua narrativa teórica que ―a desigualdade é o preço da

civilização‖. Mas constatamos que, se nessa sociedade não havia a luta de classes, as coisas

estavam em equilíbrio para os mesmos. Logo, supomos que algo de muito importante teria

que ser extinto. E que nesse caso fora escolhido a consciência das pessoas. O mecanismo que

consegue olhar para as coisas de forma crítica, capaz de reconhecer como invasivas as

selvagerias, as incivilidades do sistema.

Pode-se dizer assim, que não há a existência de classes propriamente ditas dentro

dessa distopia, pelo fato de o Partido trabalhar de forma tão sistematizada associada aos

mecanismos de coação, que as pessoas não sentiam o peso da hierarquia, presente em

qualquer agrupamento humano. Não havia a questão de o status ser determinado pela sua

função, logo, os mesmos não se viam diferentes, impossibilitando assim qualquer possível

subversão.

Pode-se dizer, que mesmo tendo a fachada de socialismo, ao analisarmos de modo

mais teórico vemos que a luta de classes, que é divisor de águas no entendimento da noção do

que vem a ser o socialismo, é praticamente inexistente.

Sobre esse aspecto, encontramos nas palavras de teóricos do assunto, pontos de vista

científicos muito veementes sobre a temática. No Manifesto do Partido Comunista Marx e

Engels (1848, apud ARON, 2005, p. 50) têm a visão essencial para o entendimento do que

estamos aqui tratando:

A história de todas as sociedades, até hoje, tem sido a história da luta de classes.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro especializado das

corporações e aprendiz, em suma: opressores e oprimidos estiveram em permanente

oposição; travaram uma luta sem trégua, ora disfarçada, ora aberta, que terminou

sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio

conjunto das classes em conflito. (MARX, ENGELS, 1848, apud ARON, 2005, p.

50)

Page 23: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

22

Temos aí de forma sucinta o resumo de um dos principais pensamentos marxistas

sobre a história humana, a sempre existente polarização em dois grupos. Winston, através de

suas tentativas trôpegas tenta não permitir o declínio por completo da maior parte da

população, a parte coadjuvante e subjugada, os proles.

Muito pelo contrário, ele tenta acordá-los para que enxerguem que a ideologia não era

inexpugnável, e que era necessário perceber essa oposição entre opressores e oprimidos,

necessária à transformação revolucionária ou ao declínio das partes envolvidas.

Ora, através do pensamento marxista pode-se compreender os processos que levaram

até chegar a esse lugar irreal negativo, o qual nos possibilita refletir sobre o que acontece

quando esse conflito inexiste e uma classe é submetida perenemente à outra. As dissidências

se dão sempre entre dois grupos, como no pensamento de Heráclito de Éfeso (535 a.C. - 475

a.C.), o qual dizia que é da guerra que nasce a paz, como síntese dos contrários.

Daremos pertinência maior a esse assunto a posteriori, porém, de forma superficial, se

vê que o aforismo acima citado nos faz entender o porquê de eles incutirem na cabeça

daquelas pessoas a ideia da constante guerra. Só com essa atmosfera de guerra com outras

potências o equilíbrio seria onipresente, e assim subversões internas seriam quase

impossíveis.

2.2 Os mencheviques de Goldstein

Em uma das faces antagônicas do sistema, encontra-se o personagem que serve de

combustível para os momentos de exaltação das paixões populares: Emmanuel Goldstein,

aquele que é tido como o inimigo número um do partido e que, assim como o Grande Irmão,

não se sabe ao exato se realmente trata-se de uma pessoa física. No entanto, na alegoria que é

retratada em nossa narrativa, podemos ver o quão real para os circunstantes da distopia a

figura de Goldstein se apresentava.

Por conseguinte, ao intitularmos esse tópico como ―os mencheviques de Goldstein‖,

aludimos diretamente ao grupo de menor número que ajudou na construção da Revolução de

Outubro de 1917, àqueles que compunham a camada mais baixa da população. Dentro da

nossa figuração, os proles, o cerne da transformação social almejada por Winston Smith.

Enquadramos o próprio nesse grupo, bem como a Irmandade, que seria a suposta conspiração

existente e encabeçada por Goldstein e mais alguns antigos membros do Partido.

Foi através dessa mesma Irmandade que o nosso protagonista teve acesso às ideias do

maior teórico contra o partido, através do livro ―Teoria e prática do coletivismo Oligárquico‖.

Page 24: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

23

Da mesma forma, foi através das idéias dos mencheviques que se chegou à grande parte das

ramificações partidárias que surgiu desde esse período até então.

Sabemos que na Revolução Russa de 1917, os mencheviques eram tidos como

reacionários à maioria bolchevique e dominante, e ao sistema social implantado pelos

mesmos. Consequentemente, isso culminava nas inúmeras perseguições de todos os tipos aos

primeiros e, mesmo sabendo que esses dissidentes estavam em minoria, o Partido

Bolchevique tinha bastante medo de seu poder de coação e de uma possível deserção em

massa dos ideais bolcheviques.

Ainda assim, vemos que, com relação ao equilíbrio desses dois sistemas, tanto do

fictício quanto da realidade russa, há um contra-senso que é determinante no controle dos

cidadãos pois, como já dissemos, o partido dominante deixava que o grupo dissidente

existisse para que houvesse o álibi para as torturas, o álibi para as perseguições, em outras

palavras, o medo era a fonte do equilíbrio daquela pseudo-felicidade.

Vemos também na nossa distopia as inúmeras incursões da Polícia do Pensamento,

que era o aparelho repressivo criado pela superestrutura daquele sistema e como, por algum

tempo, o Partido precisava, mesmo não existindo, de alguém para ser o leitmotiv das

perseguições, por ele engendradas.

Assim, inventava-se a culpabilidade, logo após, o encalço, e por fim, através do poder

de coação, dava-se a aceitação do grande Irmão, como se pode ver claramente na nossa

narrativa, com o que sucede com Winston, ao entrar no quarto de tortura, em um dos

ministérios responsáveis pelas funções do Partido, o tão temido Quarto 101. Para este local

eram levados cativos todos aqueles que desacatavam o poderio de punho cerrado do Grande

Irmão, e lá era realizada a lavagem cerebral através dos medos das pessoas.

Mais uma vez partindo do viés histórico em que a obra está mergulhada, corroborando

o que já afirmamos sobre as políticas do Grande Irmão, dentre estas o forjar, a alteração dos

fatos acontecidos, recorremos às palavras do próprio Trotski, líder menchevique

extremamente perseguido durante os anos em que, em nome da Revolução se instaurou um

regime de terror e de mentira sem igual, numa de suas obras mais contundentes:

Estes mitos e mentiras fazem parte integrante de um fenômeno – o stalinismo – que

recebe o nome do homem que foi protagonista da viragem que se produziu no seio

da Revolução Russa depois de 1923. Foi também Stálin quem fez dar – e por várias

vezes – uma nova redação à história da Revolução, do Partido bolchevique e da

Internacional Comunista. (TROTSKI, 1977, p. 9)

Page 25: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

24

Deste modo, é possível perceber a grande semelhança do que Trotski afirma sobre a

Revolução de Outubro, com o que é visto em nossa narrativa no ofício do próprio

protagonista, Winston, o qual trabalha alterando o que fora a história, para dar

sustentabilidade ao que é pregado pelo Partido.

Vemos assim que a história é o registro da condição humana nas suas várias

possibilidades e que, sua alteração é um recurso fundamental para que se consolide o sistema

social vigente. Podemos supor que um dos primeiros insights de consciência do nosso

revolucionário possa ter se dado no momento em que ele vê a si mesmo imerso nesse

processo fraudulento, alterando esses fatos históricos para situações cômodas ao partido.

2.3 O Terror da razão humana em 1984

O pensador francês Michael Foucault, em obras como Vigiar e Punir e Microfísica do

Poder, faz observações veementes sobre o controle do indivíduo através da tirania do poder.

Assim, é possível enquadrar o contexto da obra em estudo nessa abordagem.

Podemos ver ao longo da narrativa que há inúmeras técnicas de sujeição utilizadas por

esse sistema. São elas que fazem com que se restrinja a liberdade individual humana e depois

conforme todos num padrão estético de comportamento fazendo com que conforme as

individualidades numa enorme eugenia. Sobre essa sujeição que os governos impõem ao ser

humano através da tirania, Foucault afirma que:

um novo objeto vai-se compondo e lentamente substituindo o corpo mecânico - o

corpo composto de sólidos e comandado por movimentos, cuja imagem tanto

povoara os sonhos dos que buscavam a perfeição disciplinar. Esse novo objeto e o

corpo natural, portador de forcas e sede de algo durável; e o corpo suscetível de

operações especificadas, que tem sua ordem, seu tempo, suas condições internas,

seus elementos constituintes. O corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos do

poder, oferece-se a novas formas de saber. Corpo do exercício mais que da física

especulativa; corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pelos espíritos

animais; corpo do treinamento útil e não da mecânica racional, mas no qual por essa

mesma razão se anunciara um certo número de exigências de natureza e de

limitações funcionais (FOUCAULT, 1999, p. 131)

Os mecanismos de poder utilizados para essa moldagem são incontáveis e todos

incidem primariamente na mente humana. E vê-se ao longo da análise que a aceitação da

ideologia do controle por parte desse povo da Oceania, é uma coisa tão presente e tão normal

que eles confundem com um posicionamento racional. Desse modo, enquadra-se o indivíduo,

nega-se a multiplicidade. Aceita-se o Grande Irmão.

Page 26: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

25

Assim, é possível perceber o quanto essa atmosfera de medo foi onipresente, tanto na

narrativa quanto no período em que ela está inserida e ainda, observar em nossos dias ecos

desse terror imposto pela razão humana, o poder pelo poder, o veto da liberdade.

Conforme se vê na nossa estória, há organismos específicos, feitos para desenvolver

esses mecanismos de controle, para que mesmo sem perceber o medo de sofrer as represálias

dos Ministérios, faça com que você lembre que todas as paredes têm olhos e ouvidos, e que o

seu comportamento seja policiado por si próprio.

Vemos nas palavras de Foucault ao falar sobre as instituições engendradas pelo todo

da pirâmide social, a ratificação do que afirmamos:

As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou

como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas

realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro

e de treinamento. Nessas maquinas de observar, como subdividir os olhares, como estabelecer entre eles escalas, comunicações? Como fazer para que, de sua

multiplicidade calculada, resulte um poder homogêneo e contínuo? O aparelho

disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente. Um ponto

central seria ao mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas, e lugar de

convergência para tudo o que deve ser sabido: olho perfeito a que nada escapa e

centro em direção ao qual todos os olhares convergem. (FOUCAULT, 1999, p. 145)

Isso faz com que mais uma vez pensemos como grande parte das instituições sociais se

perpetuaram durante séculos através da política do medo. Lotando as cabeças incipientes com

o que poderia sobrevir se algum indivíduo se arriscasse a pisar fora da linha tênue que

demarca até onde vai o comportamento adequado.

Ainda podemos fazer um gancho com um trecho da obra, onde mostra que Syme um

dos funcionários mais dedicados do Partido Interno, órgão de grande veemência dentro desse

sistema, fora apagado até das baixas dadas mensalmente, por passar dos limites com seu

fanatismo ideológico. Preso na falsa ideia de que tinha liberdade e que poderia sim, cada vez

mais, dar demonstrações ostentosas de que estava fazendo sua parte ante o Grande Irmão, se

tornara uma impessoa. Pode-se ver que um fanático era um possível desertor. A sociedade

tinha que ser expurgada também nesses casos. Tinha que ter um tipo de controle latente entre

essas pessoas.

Num de seus ensaios, o escritor brasileiro, Guido Guerra (2003, p. 215), ao explanar

sobre como viria a ser o estado autoritário ao desestabilizar-se, faz grandes observações sobre

as condições essenciais para exercer as humanidades sem o veto da idéia de tempo, e nos

mostra que: ―A restauração da idéia do ir e vir reserva ao ser social a possibilidade de trocar o

Page 27: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

26

pão racionado pelas incertezas do dia seguinte, com o desespero de quem junta a fome à

vontade de comer‖.

Isso ratifica o que o pensamento foucaultiano, em suas teorias a respeito da pós-

modernidade, nos mostra. Vemos que o pleno poder só pode ser exercido através das

concessões, da falsa liberdade, claramente visto na nossa distopia, pois, liberdade é

escravidão, lema que é salmodiado a todo o momento em nossa figuração. Esse controle pode

ser feito de terríveis formas, através da banalização da violência, banalização da morte, entre

outras maneiras.

Pode-se ter uma noção dessa banalização da morte, que é a culminância da tirania, nos

diálogos tecidos entre os personagens sobre o que vem a ser o conceito de ser uma impessoa e

que, por mais paradoxal que o termo ―ser uma impessoa‖ possa parecer, o conceito era

assimilado por aquelas pessoas de forma natural.

Analisando o conceito de cultura como recurso para entendermos a distopia

orwelliana, vemos que esta é criada a partir do exercício da repetição de algo e que, é esse

exercício que faz com que as pessoas vejam algo repetitivo como algo normal.

Dentro da nossa narrativa, vemos inúmeros exercícios de repetição sendo usados. A

morte, por exemplo, de tão presente na vida daqueles, chega a um nível banal.

Ou seja, o medo é concebido de maneira extremamente natural por eles. Assim, as

pessoas ficam enclausuradas no medo, pela estética que padroniza o "normal"; e por várias

outras formas e teias que se articulam para aprisionar o homem dentro de sua própria

existência. Na esteira desse pensamento, Foucault (1977, p. 321) afirma que: "Fabricam-se

indivíduos submissos, e se constitui sobre eles um sabor em que se pode confiar". Em

palavras sucintas, através desse exercício da repetição esses indivíduos são submetidos cada

vez mais ao jugo do Partido.

Aliás, vê-se que ao longo da história essa tirania desempenhada pelo medo é um

recurso que foi de muita valia tanto em sistemas sociais quanto religiosos. O medo é porta

para que haja a aceitação e quem sabe, a posteriori, a assimilação do pretendido, em outras

palavras, sem esse recurso crucial a consolidação de qualquer sistema se daria de forma mais

dificultosa, ou então nem se realizaria.

A socióloga Hannah Arendt detalha cronologicamente os tantos aparatos de controle

de que se valem os totalitarismos, dentre eles, nos mostra como é trabalhado o terror como

meio de coerção, e como estes agem dentro de uma sociedade vassala de um sistema

totalitário:

Page 28: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

27

Somente a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo; as massas

têm de ser conquistadas por meio da propaganda. Sob um governo constitucional e

havendo liberdade de opinião, os movimentos totalitários que lutam pelo poder

podem usar o terror somente até certo ponto e, como qualquer outro partido,

necessitam granjear aderentes e parecer plausíveis aos olhos de um público que

ainda não está rigorosamente isolado de todas as outras fontes de informação.

Nos países totalitários, a propaganda e o terror parecem ser duas faces da mesma

moeda. Isso, porém, só é verdadeiro em parte. Quando o totalitarismo detém o

controle absoluto, substitui a propaganda pela doutrinação e emprega a violência não

mais para assustar o povo (o que só é feito nos estágios iniciais, quando ainda existe

a oposição política), mas para dar realidade às suas doutrinas ideológicas e às suas mentiras utilitárias. (ARENDT, 1979, p. 390)

Também é possível partir de um ponto de vista psicanalítico ao analisar 1984. Sobre a

convenção social de civilização, que se adapta às realidades individuais de cada sociedade,

Freud (1996, p. 127) ratifica o acima citado e coloca que, a civilização, portanto, consegue

dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e

estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade

conquistada.

Por conseguinte, vemos que a consolidação desse Socialismo Inglês por meio desses

organismos de coerção, se dava de forma tão forte, que acabava resultando num processo

mecânico e arriscaria a afirmar que, quase consciente.

Isso ratifica o que já fora supracitado, de que toda civilização tem um preço. O preço

do equilíbrio é sempre desempenhado por um mecanismo de controle. O preço que se paga

para sair da barbárie e entrar na civilidade exige que você se enquadre e de forma consciente

ou inconsciente, aceite os dogmas éticos e morais, determinados por uma ideologia qualquer.

Dando continuidade, engendradas ferramentas para mostrar que estava sendo

observado em qualquer lugar, o cidadão se autopoliciava, censurando seu próprio

comportamento. Por fim, a idéia do exercício da repetição, para se perpetuar dogmas é bem

sustentada por Althusser (1970, apud MUSSALIM, 2006, p. 110) que diz:

A ideologia é bem um sistema de representações: mas estas representações não têm, na maior parte do tempo, nada a ver com a ―consciência‖: elas são na maior parte

das vezes imagens, às vezes conceitos, mas é antes de tudo como estruturas que elas

se impõem à maioria dos homens, sem passar por suas consciências.

Assim, o clímax da cegueira mental por parte das pessoas da Oceania, se dava em duas

cerimônias: os Dois Minutos de Ódio, e mais ainda na Semana de Ódio, em que a imagem

polarizada de Emmanuel Goldstein com sua voz balida era atacada com insultos e palavrões.

No que diz respeito às políticas de controle desenvolvidas e desempenhadas por esse

sistema, podemos ver uma descrição quase ideal de como eram conduzidas tais cerimônias, e

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28

de como, uma vez que já se encontravam com o poder estabelecido, o que era preciso fazer

para permanecerem. À medida que a sociedade se encontra socialmente sonhada, o sonho se

torna necessário. O espetáculo é o sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só

expressa afinal o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guarda desse sono. (DEBORD, 1997,

p. 19).

O trecho serve-nos para comprovar de forma sistematizada o que se travava nesses

espetáculos promovidos concomitantemente, uma vez que serviam tão somente para ajudar

todos os lá inseridos a acreditar piamente no Grande Irmão e sua ideologia. Também nos

remete à segunda parte do pão e circo romano. Desse modo, podemos visualizar o transe em

que essas pessoas mergulhavam, mostrando a eficácia desses utensílios, trabalhando em

conjunto com o propósito da razão do Partido. A razão exerce tirania, subtraindo as

possibilidades de dissidência.

Cruzando mais uma vez a relação da ficção com a realidade, haja vista que a obra

aqui dissecada promove por hora esses entrelaçamentos dentro da narrativa, podemos situar

outro ponto em nossa análise que é a semelhança dessa situação na distopia de Orwell, com a

Alemanha nazista de Hitler. Este também se utilizava, além de artifícios retóricos, da

exaltação das paixões populares, pela via de um lema que, assim como em nossa narrativa, era

salmodiado a todo o momento. Tratava-se do: “Deutschland Über Alles”, que era a primeira

linha da primeira estrofe da canção alemã Das Lied der Deutschen, que fora utilizada como

hino de exortação à unidade alemã.

Dessa maneira, esse trecho constituía o slogan da verdadeira propaganda nazista de

exaltação à supremacia da raça ariana sobre o mundo, pregada por Hitler em seu regime.

Destaca-se também a respeito das incursões retóricas de Hitler, que este entrava em um

suposto estágio de transe em que os ouvintes também mergulhavam, como se houvesse ainda

por trás dele um ente superior, regente de todo aquele cerimonial.

O ponto chave da nossa comparação aqui são os aparatos de coerção e

principalmente a propaganda desempenhada por estes regimes totalitários. Tanto o sistema em

questão dentro de nossa narrativa como o regime de Hitler, se utilizavam praticamente dos

mesmos recursos repressivos para perpetuar sua ideologia e cercear as liberdades, primeiro no

plano individual, que era o medo sendo trabalhado na cabeça de cada uma daquelas pessoas e

depois esse trabalho refletia num público maior, que seria o coletivo, através principalmente

da propaganda ovacionista. Uma mentira que era dita inúmeras vezes se tornava verdade e a

assimilação do medo como uma coisa típica de um governo era grandemente tragável por

parte dos governados.

Page 30: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

29

3. O PODER VIRTUAL: A ANULAÇÃO DA MEMÓRIA

Conforme nossos estudos, foi possível notarmos que, entre as manifestações

totalitárias, a pluralidade de pensamento é um misto de passado e presente, tradição e

modernidade e esta pluralidade é vetada, dando lugar ao pensamento individual composto

somente de tempo presente, indispensável na consolidação destes sistemas. Logo, podemos

dizer que o passado é a matéria viva do presente e que, para entendermos esse poder virtual

como anulação da memória devemos sempre considerar o fator tempo.

Thomas Mann, (2006, p, 67-68) romancista contundente que também abordou sobre os

anos que se sucederam após uma grande guerra, a de 1914, pra ser exato, coloca que, quando

um dia é como todos, todos são como um só; passada numa uniformidade perfeita, a mais

longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos. O hábito

representa a modorra, ou ao menos o enfraquecimento, do senso de tempo.

O que se vê em nossa narrativa que tem uma ligação grande com o que elucidamos

acima, é que se procurava matar esse tempo através do exercício da repetição. Transformava-

se toda atividade em coisas habituais, que até mesmo a mente fazia suas abstrações de forma

maquinal. Como não se tinha consciência da passagem desse elemento tempo de grande

importância para possíveis mudanças no futuro, todo cidadão nada mais era que uma organela

entrelaçada a outras, compondo o todo indivisível.

Nessa temporalidade se remonta à memória de um povo como em camadas. Uma

sociedade sem história torna-se trôpega. As possíveis tentativas de recuperação de sua estima,

para uma possível revolta, se dá principalmente através do conhecimento das suas memórias

guerreiras, que conseqüentemente servirão de paradigmas a serem seguidos.

Acerca da tradição e temporalidade, T. S. Elliot (1975, p. 37) lido e apreciado por

Orwell, afirma que a sua compreensão ―envolve um senso histórico, e o senso histórico

envolve uma percepção, não somente da passagem do passado, mas sua presença3‖ [tradução

nossa]. Presença essa que, no texto, o Partido procura o tempo todo apagar por completo.

Assim, sabemos que, na memória, faculdade de reter impressões e conhecimentos

adquiridos, e de recuperá-los pela ação da vontade, está contida a existência humana em todas

as suas várias possibilidades e que, devido a ela, nós seres humanos nos tornamos mesmo sem

sermos eternos, seres indeléveis, melhor dizendo, é na memória que se inscreve nossa história,

é nela que nossas ações humanas inscrevem-se na atemporalidade.

3 It involves (…) the historical sense (…) and the historical sense involves a perception, not only of the pastness

of the past, but of its presence.

Page 31: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

30

Na narrativa, podemos compreender melhor essa informação quando o protagonista

decide escrever um diário para o futuro. Daí, do ato de registrar seu presente para que alguém

possa entender o que se passa em seu tempo, parte seu propósito de se rebelar contra esse

regime. Nesse ínterim, enquanto escreve seu diário, uma das importantes chaves de

compreensão dessa narrativa são as armas utilizadas como tentativa de supressão da memória.

Ao nos defrontarmos inicialmente com a obra 1984, a primeira coisa que nos salta

aos olhos é a temporalidade, não só pelo título datado, 1984, mas pelo fato de encontrarmos

alguém que busca vestígios de sua memória coletiva. Sabemos que esse poder, figurado no

Grande Irmão, busca incontestavelmente a anulação da memória de um tempo em que havia

liberdade, âncora da consciência de Winston Smith. Conforme Borges (2007, p. 55-56),

vemos que:

A memória, por sua vez, está ligada ao afeto. Talvez possamos dizer que

memorizamos apenas o que nos afeta, em maior ou menor grau. Talvez possamos ir

mais longe e afirmar que memorizamos mais nitidamente quanto mais intenso for o

afeto. Se isto for correto, para que as pessoas percam a faculdade de produzir uma

memória e assim fiquem mais facilmente à mercê dos mecanismos de submissão,

torna-se necessário impedir que elas se toquem ou pelo menos que não se afaguem,

mesmo que este afago seja um aperto de mão... Em outras palavras: é preciso formar

soldados e não cidadãos, pois a função do soldado é negar o outro, eliminá-lo;

―matar ou morrer‖. Ou então que uma intensidade limite produza a necessidade de

esquecer. Ser forçado a agir contra a sua própria natureza. É preciso que a tortura, a dor e a humilhação venham junto a palavras de ordem. (BORGES, p. 55-56)

Assim, a raiz etimológica da palavra latina memória significa ―preservação de

experiência passada‖, um processo consciente que, de forma deliberada, convoca os fatos a

serem registrados. Em outras palavras, processo consciente que remete à liberdade. Essa

mesma liberdade, de forma intensa, o Partido tentava subverter através de mais algumas

outras armas que, somadas, dão grande parte do aparato desse sistema opressor.

Analisando o conceito de memória, por esse viés etimológico, o qual, por sua vez,

está presente em vários campos do saber e ações do homem, percebemos que esta seria a

capacidade de o ser humano retomar o passado através de divagações sobre impressões e

vivências passadas. Também confirma esse pensamento Le Goff (2003, apud OLIVEIRA,

2008, p. 10): ―A memória é um comportamento narrativo que tem em seu cerne a função

social de comunicar a outras pessoas informações e impressões ocorridas no passado as quais

não estão no presente na sua forma original.‖

Logo, percebemos quando exploramos com mais afinco os recursos utilizados pelo

partido para anulação dessa memória, que provavelmente havia uma consciência por parte dos

líderes de que ―os fenômenos da memória nos seus aspectos biológicos como nos

Page 32: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

31

psicológicos, mais não são que os resultados de sistemas dinâmicos de organização e apenas

existem na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui‖. (LE GOFF, 2003,

apud OLIVEIRA, 2008, p. 10).

Desse modo, podemos afirmar que é nesse ponto que atacam as tiranias: se essa

organização que constitui a memória for ameaçada, a memória ancestral, as camadas que

compõe o tecido histórico, nunca poderá ser reconstituída. Winston busca sua memória

quando, por exemplo, vaga pelos subúrbios, onde existem as vivendas dos proles, faz compras

de resquícios do passado no antiquário, ou em sua quase certeza de que as coisas um dia não

tinham sido daquela forma, certeza essa que latente, o deixava absorto em seus pensamentos.

Assim, se conjecturarmos que Winston chegasse a ter comprovação dessa realidade

passada que o visitava de quando em vez, seria o input perfeito para que ele realizasse a

revolução no campo das ideias pretendidas, pois sua memória não conseguia sistematizar de

forma organizada essas divagações, que seriam a pedra fundamental da preservação da

memória, e que, como sabemos, é justamente nela que o Partido incidia com o intuito de

subvertê-las quando levava seus cativos revoltosos para o quarto 101.

Essa supressão era requerida pelo fato de que de alguma forma essa lembranças que

por ora Winston buscava, ainda que vagas, como imagens da mãe e da irmã, as canções

infantis, souvenires comprados no antiquário, entre outras coisas, podiam levar ao processo de

recuperação dessa consciência do que fora o passado buscado pelo protagonista. Esse

processo era visto por Winston de forma intensa na figura dos proles, os mesmos que eram

alimentados de panis et circenses, com músicas vazias de sentido, loterias de prêmios

utópicos, pornografia barata, entre outras coisas.

E ainda que Winston visse as colunas dessa revolução nas figuras dos proles, isso

passava despercebido por eles próprios. Os futuros protagonistas da pretendida revolução, em

nenhum momento sentiam a necessidade de alteração da situação, eles possuíam pouca

instrução, e sabemos que quanto menor a informação, menor o questionamento. Estratégia

essa que sabemos ser muito utilizada pelos mantenedores do poder da atualidade. Instruindo

as camadas da base da pirâmide social estariam fornecendo um paiol de armamentos contra

aqueles, colocando em risco a situação do poderio. Isso faz-nos perceber que a ficção não fica

aquém da nossa realidade, que está bem mais próxima do que possamos pensar, ou seja,

ficção e realidade são um híbrido essencial para o entendimento da nossa condição humana.

Com o fio na mesma meada, podemos nos questionar também do porquê de os proles

não oferecerem risco de revelia quase alguma ao Partido. Winston deixa bem claro em suas

buscas, em visitas frequentes ao local onde os proles residiam, entender o porquê de eles não

Page 33: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

32

possuírem reminiscência alguma do passado. O escopo da busca de Winston, como aponta

nossa leitura, mostrava que, se alguma esperança havia, tinha que residir nos proles, pois só

deles, desse imenso e desprezado formigueiro, 85% da população de Oceania, podia alguma

vez brotar a força para destruir o Partido (ORWELL, 1986, p. 161).

Desse modo, a manutenção da situação era instaurada pela subtração daquilo que

Winston começou a buscar nesses desprezados pardieiros, mesmo sabendo que, no fundo, a

revolução que ele poderia instigar a acontecer seria tão somente no campo das ideias, e que

teria que trabalhar a consciência da população quase que por inteiro. Ora, essa seria uma

tarefa quase que impossível. Mesmo o Partido, com todas as suas estratagemas bem

elaborados para controlar a população, não conseguiria esse feito com cem por cento de êxito.

Dando prosseguimento, podemos mais uma vez fazer analogia ao período ditatorial

em que essa narrativa está inserida, mesclando realidade e ficção. Pois, à medida que nos

aprofundamos na literatura, enxergamos cada vez mais que todo escritor de ficção é um

memoralista. Às vezes, memória e ficção se entrelaçam fazendo com que se dificulte saber

definir o que é ficção do que é memória. Em incursões discursivas ficcionais sempre ficam

resquícios de algum fato vivenciado pelo autor da obra, haja vista que a literatura dá liberdade

de construir essas costuras, de forma consciente ou inconsciente.

Ainda, identificamos que realidade e ficção são siamesas na eterna busca de

descortinar a vida, ambas são um amálgama inegável na construção da memória da

humanidade.

No que diz respeito à manutenção do poder através da tirania da razão sobre a mente

humana, invólucro dessa memória, podemos ponderar que:

a coisa que mais claramente distinguiu a Rússia de Stalin ou a Alemanha de Hitler

de regimes autoritários anteriores foi a habilidade deles de invadir a vida interior das pessoas que eles governavam. Ao invés de compelir obediência através do uso da

força (embora isto fora obviamente importante) eles exerceram um tipo de controle

mental que fez isso quase literalmente impossível para qualquer pessoa questionar a

ideologia oficial. (BOUNDS, 2009, p. 35). 4 [tradução nossa]

Hannah Arendt, ao analisar os totalitarismos e seus estratagemas de controle, faz

observações contundentes, os quais nortearão nosso rumo de investigação, estabelecendo

assim, paralelos entre o período em que 1984 está imersa e a obra propriamente dita. Dentre

4 The thing which most obviously distinguished Stalin‘s Russia or Hitler‘s Germany from earlier authoritarian

regimes was their ability to invade the inner lives of the people they governed. Instead of compelling obedience

through the threat of force (though this was obviously important) they exercised the sort of mind control which

made it almost literally impossible for anyone to question the official ideology.

Page 34: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

33

eles um dos que são usados deliberadamente em nossa distopia, ao qual ela dá a nomenclatura

de ―culpa por associação‖, é conceituado da seguinte forma:

A "culpa por associação" é uma invenção engenhosa e simples; Jogo que um homem

é acusado e os seus antigos amigos se transformam nos mais amargos inimigos: para

salvar a própria pele, prestam informações e acorrem com denúncias que

"corroboram" provas inexistentes, a única maneira que encontram de demonstrarem

a sua própria fidelidade. Em seguida, tentam provar que a sua amizade com o

acusado nada mais era que um meio de espioná-lo e delatá-lo como sabotador,

trotskista, espião estrangeiro ou "fascista‖. Uma vez que o mérito é "julgado pelo número de denúncias apresentadas contra os camaradas", é óbvio que a mais

elementar cautela exige que se evitem, se possível, todos os contatos íntimos — não

para evitar que outros descubram os pensamentos secretos, mas para eliminar, em

caso quase certo de problemas futuros, a presença daqueles que sejam obrigados,

pelo perigo da própria vida, à necessidade de arruinar a de outrem. Em última

análise, foi através do desenvolvimento desse artifício, até os seus máximos e mais

fantásticos extremos, que os governantes bolchevistas conseguiram criar uma

sociedade atomizada e individualizada como nunca se viu antes, e a qual nenhum

evento ou catástrofe poderiam por si só ter suscitado. (ARENDT, 1979, p. 356).

Essa culpa por associação é identificada por ora na nossa distopia, como por exemplo,

as crianças que delatam os pais ao Partido. Os quais, mesmo sujeitos à represália pela delação,

se orgulham das crianças estarem desempenhando seu papel para com o Partido. Colocando

mais uma vez o Partido acima de qualquer forma de relação humana.

Outro exemplo é o da companheira de Winston. A impressão que se tem é que Julia

fora criada para delatar Winston. Pode-se perceber que essa culpa por associação fora

engendrada justamente para apagar a humanidade daqueles cidadãos da Oceania, para

desfazer os laços tanto familiares quanto de amizade existentes, haja vista que não seria

possível um delatar o outro, caso existissem quaisquer vínculos.

Assim, podemos ver que, vetando toda e qualquer atividade autônoma, o totalitarismo,

toma corpo cada vez mais. Essa culpa por associação culmina com a coisificação das pessoas,

o que Arendt chama de atomização, ação que, além de ser percebida em nossa narrativa de

forma contundente, se deu em um grau muito acentuado também na Rússia de Stálin, entre

outros sistemas totalitários. Essa atomização seria, a grosso modo, como se cada indivíduo

dependesse do outro para existir, como se eles não passassem de células ou átomos isolados à

mercê de outras células. Sua funcionalidade só existiria enquanto existisse o coletivo, o todo,

do contrário, seria inconcebível outro comportamento dentro desses sistemas.

Page 35: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

34

3.1 Manutenção da situação por subtração

Ao passo que nos aprofundamos na narrativa de George Orwell, podemos afirmar que

a revolução realizada pelo partido, até se instaurar o poder do Grande Irmão, se deu de forma

sistemática, ou melhor, a razão desempenhou um papel tirânico na consolidação do poder. A

história parou, nada existe, exceto um presente sem-fim no qual o Partido tem sempre razão

(ORWELL, 1986, p. 113). Vê-se assim que o propósito principal desse sistema é colocar na

mente humana a concepção das coisas sem a ideia de início, meio e fim, o que, diga-se de

passagem, fora conseguido. A idéia do durante, do enquanto, do agora, é a que prevalece

sobre todas as coisas. Acrescenta-se a isso o duplipensar, a que Orwell dá a seguinte

definição:

Duplipensar significa a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas

crenças contraditórias, e aceitá-las ambas(…) O processo tem de ser consciente, ou

não seria realizado com a precisão suficiente, mas também deve ser inconsciente, ou provocaria uma sensação de falsidade e, portanto, de culpa. (ORWELL, 1986, p.

157)

À medida que o entendimento nos chega de forma sutil na leitura de 1984,

identificamos que a narrativa extrapola a realidade por ser pejada de duplipensares. Como por

exemplo, o próprio entendimento do duplipensar que também é uma forma de conviver com

crenças diametralmente opostas, que, trocando em miúdos, é um duplipensar, e ele continua:

O duplipensar é a pedra basilar do Ingsoc, já que a ação do Partido é usar a fraude

consciente ao mesmo tempo em que conserva a firmeza do propósito que

acompanha a honestidade completa. Dizer mentiras deliberadas e nelas acreditar piamente, esquecer qualquer fato que se haja tornado inconveniente, e depois,

quando de novo se tornar preciso, arrancá-lo do olvido o tempo suficiente à sua

utilidade, negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo perceber a

realidade que se nega – tudo isso é indispensável. (...) Pois o segredo do mando

consiste em combinar a crença na nossa própria infalibilidade com a capacidade de

aprender com os erros anteriores. (ORWELL, 1986, p. 157-158).

Devemos também observar o fato de que, além de toda essa nostalgia que Winston

nem tem comprovação ser onipresente, associa-se o fato de ele trabalhar nesse próprio

processo fraudulento. Desse modo, podemos dizer que, o duplipensar é a subtração do

conceito convencional das palavras possuírem um só sentido ou quando não, possuindo mais

de um, tocarem-se sem divergirem. Em outras palavras, seria aceitar dois sentidos numa

mesma palavra, mesmo sendo sentidos antagônicos, e acreditar em ambos de forma

consciente.

Page 36: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

35

A outra arma que desempenha um papel importante nessa consolidação do poder é a

novilíngua, que podemos entender nas palavras claras de Syme, um dos vassalos do Partido:

- Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama de pensamento? No

fim, tornaremos a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras

para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por

uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário

eliminado, esquecido. (ORWELL, 1986, p. 38)

Agindo assim, todos os conceitos suscetíveis a questionamentos são vetados pelo

partido e a Novilíngua se revela como mais uma das incontáveis armas de limitação das

possibilidades da condição humana.

Identificamos, então, que o processo de subtração toma corpo mais uma vez, a partir

do momento em que são vetadas inúmeras palavras, ou seja, se não há definição para

determinada coisa, não há nela sentido, bem como a construção duma imagem negativa de

Emmanuel Goldstein, que, assim, acaba por ser esfacelada, fazendo desaparecer a

possibilidade de uma imagem positiva.

Trazendo a ação de vetar palavras da língua como realizado pelo Partido na Oceania,

Orwell em Política e a Língua Inglesa traz-nos algo interessante:

O grande inimigo da linguagem é a insinceridade. Quando há um hiato entre os

nossos verdadeiros objetivos e os objetivos declarados, voltamo-nos como que

instintivamente para as palavras longas e para as expressões gastas, como um choco

a largar tinta. (...)

Se simplificarmos a língua, libertamo-nos das piores tolices da ortodoxia. Não

seremos capazes de falar dialetos necessários, e quando fizermos um comentário estúpido a sua estupidez será óbvia, até para nós próprios. A linguagem política – e

com algumas variações isto aplica-se a todos os partidos políticos, dos

conservadores aos anarquistas – foi concebida para fazer as mentiras parecer

verdades e o assassino respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao puro

vento. (ORWELL, 2009, p. 1).

Desta maneira, em mais uma das razões fundamentais para manutenção da situação

que era a Novilíngua, vemos o quanto a palavra representa o direito de ter um caminho e

também negá-lo, o que nos diz como o IngSoc agiu nos pontos fundamentais para realização

desse controle.

Podemos afirmar também que o paroxismo da negação do indivíduo se dá a partir do

momento que o ser humano, na condição de oprimido, não tem como se afirmar, contra essa

ideologia em evidência. Sobre o conceito de ideologia e linguagem podemos ver pelo viés da

análise do discurso, que ―a linguagem se apresenta como o lugar privilegiado em que a

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36

ideologia se materializa. A linguagem se coloca para Althusser como uma via por meio da

qual se pode depreender o funcionamento da ideologia.‖ (MUSSALIM, 2006, p. 104)

Portanto, a afirmação do eu é um processo que se realiza através da enunciação, da

linguagem. Desse modo, o processo de abstração para a compreensão do funcionamento da

ideologia ficava enormemente impossibilitado pela limitação da língua, manipulada pelo

poder político vigente.

Assim, podemos ver que em toda essa atmosfera de subtração reside nesse

mecanismo de controle do Partido. Ao estabelecermos um paralelo com algo mais próximo da

nossa realidade, observamos:

É óbvio que isso nos remete ao caráter revolucionário do patoá, da gíria, dos

dialetos, que exprimem as condições materiais reais dos grupos nos quais são

produzidos, mesmo sob condições de repressão, expondo os problemas, os

movimentos e as práticas, pela incessante renovação dos termos, respondendo diretamente ao devir criativo das ações concretas que se efetuam no grupo.

Além do mais, o caráter codificado da linguagem mantém o sigilo, o ocultamento

necessário a qualquer forma de resistência, restringindo a eficácia da mensagem

àqueles que detêm o sentido das palavras. Isto mantém o opressor sempre um passo

atrás, vendo-se obrigado a forjar meios que levem à descoberta dos segredos daquele

linguajar (problema da manutenção do segredo e da necessidade de renovação

constante dos termos e do seu sentido e cuidado com o risco da traição ou da

infiltração do inimigo, para a minoria em posição de resistência). (BORGES, 2007,

p. 55)

Por fim, não existindo essas reduções na Novilíngua, seria quase impossível que,

aqueles que estavam imersos nessa situação por tanto tempo, cometessem algum tipo de

subversão contra o partido. Então, o partido, ao invés de forjar meios para descobrir o que se

passava na cabeça das massas, possuía pessoas específicas para destruírem algumas palavras

que, no ponto de vista de um dos teóricos mais importantes do partido, Syme, eram tidas

como desnecessárias.

Podemos depreender da nossa parábola, que exercer a linguagem seja em qualquer

sentido e de qualquer forma, é uma atividade subversiva, por ser uma atividade baseada na

autonomia do indivíduo. A eficácia da mensagem se restringe a pouca variedade de palavras

para expressar alguma coisa. Na Oceania, com frequência aconteciam às reformas

ortográficas e cada vez mais, a dificuldade de definição das palavras se tornava maior, em

outras palavras, dificultando-se a definição, os sentidos, dificultava-se o pensamento.

Logo, o risco de traição era praticamente nulo, pelo fato de essa tática ser usada com

mais outras de mesmo tipo, como o duplipensar, o trabalho do medo na consciência das

pessoas entre outras coisas. Os quais mostram a mão de ferro a que eram submetidos os

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37

habitantes da Oceania, bem como a pressão de dez atmosferas que essas estratégias de

repressão exerciam.

3.2 Winston e Júlia: a revolução traída

Podemos também fazer um gancho num ponto crucial no entendimento dos

propósitos de Winston. Vemos que, uma vez que ninguém podia de forma alguma, manifestar

quaisquer demonstrações de afeto um para com o outro, Winston acaba encontrando uma

grande companheira de deserção, pelo menos a nível aparente.

Winston começa a desejá-la quando a vê numa das cerimônias de exaltação das

paixões populares, onde haviam apupos altissonantes contra o suposto traidor, Emannuel

Goldstein. E percebe a aparente personalidade destemida e independente. E fora instigado à

transgressão a partir daquele momento. Só que depois por um descontrole dos seus desígnios

acaba por amá-la de verdade.

Depois de uma troca instantânea de um bilhete com indicação do que ela sentia,

passam a se encontrar às escondidas. Mais tarde Winston também revela o sentimento que

também se manifestava dentro de si.

Eventualmente sua intenção era somente possuí-la, no entanto, mesmo sem ter

consciência disso a transgressão fora bem maior uma vez que nessa sociedade o amor não era

algo permitido. Era mais um das inúmeras repressões da autonomia do indivíduo. Tanto que

vale salientar que existia um dos órgãos dos que compunham a parte principal do Partido que

era responsável pela castração desses sentimentos, tidos como sentimentos desnecessários ao

sistema. O Ministério do Amor era encarregado de delatar e julgar aqueles que desse mal

subversivo sofria. O único sentimento de afeição que poderia desenvolver era exclusivamente

direcionado ao Grande Irmão.

No entanto, percebemos que, somente depois de algum tempo, é que Winston

começa a demonstrar seus resquícios de humanidade, pois quando ele conhece Julia, ele tem

por ela sentimentos dos mais hostis, por causa da maneira com a qual ela seguia piamente o

Grande Irmão.

Um retrato consistente disso se dá quando ele confessa para Julia os sentimentos

sádicos que tinha com relação a ela. O fluxo da consciência de Winston ao vê-la em um dos

cerimoniais do Partido, é o seguinte:

Page 39: A ficção dentro da ficção de george orwell e suas nuances

38

Belas e vívidas alucinações lhe atravessaram o cérebro. Haveria de matá-la a golpes

de um cajado de borracha. Amarrá-la-ia nua a um poste e a crivaria de flechas como

São Sebastião. Possuí-la-ia e a degolaria no momento do gozo. Além disso,

percebeu mais claro que antes porque a odiava. Odiava-a porque era jovem, bonita e

assexuada, porque desejava ir para a cama com ela, e porque nunca o faria, porque

na cinturinha fina e convidativa, que parecia pedir que a segurassem com o braço, só

havia a odiosa faixa escarlate, o agressivo símbolo de castidade. (ORWELL, 1986,

p.11-12)

Segundo Winston, aquela mulher abrigava em seu modo de ser tudo que ele queria

destruir, ou seja, o comportamento exigido pelo partido. Logo após, como ele próprio

confessa, começa a amá-la e assim a desaprender algumas coisas em que acreditava.

E assim, fora dos olhos das teletelas passam a constantemente se verem. Chegam até

a alugar um sobrado antigo nos subúrbios dos proles, em cima da loja de um antiquário. Nesse

lugar, ainda havia uma atmosfera que cada vez mais intensificava a desconfiança de Winston

de que as coisas tinham sido de outra maneira em outros tempos.

Lá havia até alguns objetos que estabeleciam esse vínculo com o passado. Entre eles,

um peso de papel pelo qual Winston manifestava um grande apreço e contemplava absorto em

pensamentos. Ainda havia os produtos que conseguiam às escondidas, para consumirem

dentro do quarto que sempre se encontravam. Como em um ritual de transgressão, os dois

consumiam se deleitando do real sabor do café, do chocolate, do vinho, entre outras coisas.

De modo sorrateiro desenvolveram esse romance, até chegar o dia em que na loja do

antiquário, que até então se mostrara condescendente com suas idéias, ele descobre que lá

reside seu algoz. E assim, numa emboscada é pego dentro desse quarto que se encontravam.

Por fim, no decorrer de nossa distopia, vemos que o nosso protagonista acaba tendo

uma decepção ainda maior, pelo fato de que esse amor que ele sustentara tinha sido cassado, e

também ao saber por intermédio de O‘Brien, que tinha sido bem fácil Júlia retroceder de suas

intenções sentimentais para com ele. Winston então, de forma bem dolorosa, se vê

impossibilitado ainda mais de exercer a sua capacidade de ser mediante aquele sistema

opressivo. Pois, amar era se desvincular das amarras desse sistema.

Ao traçarmos um perfil para entender com maior profundidade a suposta

companheira de revolução de Winston Smith, Júlia, veremos que, com ela, se revelará o plano

perfeito da Polícia do Pensamento, pelo fato de Winston acreditar piamente que ela seria sua

companheira de transgressão. Por romper barreiras impostas pelo Partido, passa despercebido

a Winston que ela era um dos grandes estratagemas do Partido para cooptá-lo.

Então, fica-nos o grande questionamento. Não teria ela sido treinada para ajudar a

capturar Winston? Podemos supor tal fato, uma vez que, até conhecê-la, ele só se questionava

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39

sobre algumas coisas. Sua transgressão era tão somente mental. E a partir do momento em que

Júlia entra em sua vida, sua revolta toma corpo e ele resolve colocar suas ideias realmente em

prática.

Os ares de combativa e aguerrida que ela permitia que Winston percebesse, em

contraponto com sua rendição, dá-nos a sustentação exata do que elucidamos no título desta

seção, como veremos a seguir.

Perpassando por esse ponto, vemos que o que sustentamos nesse subtópico aqui tem

uma ligação com o que fora descrito por aquelas pessoas que compuseram o socialismo russo,

e viram que, no entanto, quando a revolução veio a acontecer alguns fugiram do ideal central

que era estabelecer uma sociedade onde o bem fosse comum a todos. O que fez com que

alguns teóricos que também foram desertados por esse sistema, delatassem o que realmente

tinha acontecido, pelo fato de compor o esqueleto daquele sistema.

Voltando para nossa narrativa, vemos que Júlia sabe bastante para uma pessoa que não

se importava com o que estava sendo passado no livro dissidente. Numa pessoa que se

importava tão somente com atividades físicas, que estimulassem o enrijecimento corpóreo.

Ela não possuía interesse algum no entendimento teórico daquelas engrenagens sociais.

Ainda, apesar de mais jovem, sabia muito mais sobre o funcionamento interno do que

o próprio Winston, que trabalhava no processo de alteração da história transformando o

passado em estórias. Ela lidava no seu dia-a-dia com uma parte menos importante em

comparação com a do nosso protagonista. Atividades relacionadas à exaltação das paixões

populares.

Vendo Júlia, nos faz conjecturar que tudo gira em torno da atmosfera dessa suposta

camarada de deserção de Winston, a qual no final da narrativa se mostra como a

representação física da própria revolução traída. Ela fora a metáfora ideal do que aconteceu

com os idealismos de alguns governos impositivos do pós guerra.

O sistema criara um pseudo-amor para fazer Winston acreditar que estava realmente

sendo correspondido, que realmente tinha alguém para juntos fazerem o exercício da

autonomia, quebrar o veto da expressão do ser.

O quadro que nos mostra o real interesse de Júlia pela revolução se dá nas vezes em

que Winston começava a ler a Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico de Goldstein.

Júlia sempre dormia, não demonstrando interesse em como se dava a luta de classes através

da história:

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Ela fica aborrecida, confusa, e dizia não ter jamais prestado atenção a essas coisas.

Sabia que era tudo lixo, portanto para que se preocupar com ele? Sabia quando

aplaudir e quando vaiar e era toda a ciência de que precisava. Quando ele persistia

em falar de tais assuntos, Júlia tinha o hábito desconcertante de adormecer. Era uma

daquelas pessoas que podem adormecer a qualquer momento, em qualquer posição.

Ponto que, pelo viés da nossa análise, é condição indispensável para se estabelecer a

revolta pretendida por Winston e os outros poucos dissidentes. Isso sem contar que ler era

uma atividade extremamente subversiva, principalmente em se tratando da ―Bíblia‖

menchevique da distopia.

Seria salutar para a concretização dos anseios de ambos terem domínio dessa teoria

rebelde e passar isso para aqueles que ainda possuíam o mínimo de humanidade, os proles.

Ainda se mesclarmos um pouco da realidade com a fantasia, vemos que esse

entendimento sociocrítico das organizações sociais humanas é a base para o entendimento do

sistema totalitário da obra 1984, bem como do contexto histórico em que ela se inscreve. Isso

é pouco visto nas ações e nos poucos pensamentos de Júlia, sem contar que ela aceitou o

Grande Irmão com maior facilidade que Winston, como podemos visualizar nas palavras de

O‘Brien, uma das grandes mentes do Partido Interno, ao torturá-lo e responder sobre o que

fora feito de Júlia:

- Ela te traiu, Winston. Imediatamente... sem reservas. Raramente tenho visto uma

pessoa vir a nós tão depressa. Mal a reconhecerias, se a visses. Toda sua rebeldia,

seu fingimento, sua loucura, sua sujeira mental - tudo foi queimado.

Foi uma conversão perfeita, um caso de cartilha.

-Tu a torturaste. O'Brien não respondeu. Outra - pergunta. (ORWELL, 1986, p. 189)

O que nos faz questionar o porquê dessa aceitação tão rápida, sendo que durante a

convivência com Winston ela estava se saindo uma aguerrida combatente, até ludíbrios de

como passar por um cidadão exemplar mediante o Partido, ela ensinara a Winston.

A partir do que vemos nas palavras de O‘Brien, podemos pensar que a revolução fora

certamente traída, ou talvez, tivesse sido somente um dos inúmeros ardis do Grande Irmão

para pegá-lo, dissidente que se tornara.

E assim, depois de ser pego e torturado por vezes no quarto da tortura pelos seus

piores pesadelos, acaba por impossibilitado por completo de exercer sua autonomia e, de

cérebro lavado se encerra aceitando o Grande Irmão.

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3.3 Panis et circenses, pois somente “os proles e os animais são livres”

Os proles figuravam na cabeça de Winston como o exército perfeito para a subversão

em que ele tanto depositava confiança. A figura dos proles, no ponto de vista do nosso

protagonista, pelo fato de eles serem escravos da liberdade e, o Partido quase que não usava

as armas de coação e de controle.

Conforme Freud, em ―O Futuro de uma Ilusão, o Mal estar na Civilização‖ vemos

que:

Se nos voltarmos para as restrições que só aplicam a certas classes sociais da sociedade, encontramos um estado de coisas que é flagrante e que sempre foi

reconhecido. É de esperar que essas classes subprivilegiadas invejem os privilégios

das favorecidas e façam tudo o que podem para se liberarem de seu próprio excesso

de privação. Onde isso não for possível, uma permanente parcela de

descontentamento persistirá dentro da cultura interessada, o que pode conduzir a

perigosas revoltas. Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a

satisfação de uma parte e de seus participantes depende da opressão da outra parte,

parte esta talvez maior – e este é o caso em todas a culturas atuais -, é compreensível

que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para com a

cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza

não possuem mais do que uma quota mínima. Em tais condições, não é de esperar

uma internalização das proibições culturais entre as pessoas oprimidas... Não é preciso dizer que uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de

seus participantes e os impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva de

uma existência duradoura. (FREUD, 1996, p. 21-22)

Desse modo, Freud nos mostra como um povo desprovido de alienação agiria em

caso de inconformidade diante do poder vigente. Como podemos ver, Freud mostra de forma

clara que a revolta nasce do descontentamento. Através do que vimos então, podemos dizer

que o Socialismo Inglês da Oceania só prevalece e se perpetua, porque não há focos de

descontentamento dentro dos proles. Em caso contrário, estouraria grandes revoltas. No

entanto, vemos que a estratégia primária do partido que tem consciência desse grande número

de gente que compõe a base da população, é não usar suas estratégias de coerção.

Os proles, em momento algum da narrativa, procuram de alguma forma pesar os

valores da classe dominante em comparação com os seus, com os que lhe são impostos. O

nosso protagonista, Winston, pretende despertar ou colocar essa verve de inconformismo

dentro desses que compõem a maior parte da população.

Desse modo, esses proles representam um dos elementos que compõem o cerne da

nossa análise, são a força motriz no entendimento dessa utopia negativa. Portanto, sendo

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público alvo das pretensões de Winston no que diz respeito à revolução no campo das ideias,

vemos nas enunciações de Orwell dentro da narrativa que:

Não era difícil controlá-los. (...) E mesmo quando se mostravam descontentes, como

sucedia por vezes, o descontentamento não levava a coisa nenhuma, pois,

desprovidos de ideias gerais, só conseguiam canalizá-lo para reivindicações limitadas e mesquinhas. (…) Lá dizia o lema do Partido: ‗ Os proles e os animais

são livres‘. (ORWELL, 1986, p. 53)

Vemos que neste trecho reside uma melhor ideia de como os proles eram vistos.

Ainda dá-nos uma ideia de como eles eram domados. Ao denominá-los domados, faz-se uma

alusão a animais e esse é o cerne de onde partirão nossas primeiras analogias sobre o porquê

de eles serem tão conformados e sobre Winston insistir tão fortemente no fato de eles serem a

única esperança de se livrar dos tentáculos daquele regime. Eles possuíam o cerne da

subversão, conforme podemos ver:

Os males maiores geralmente lhes fugiam à observação. A grande maioria dos

proles nem tinha teletelas em casa. Até a polícia civil interferia pouquíssimo com

eles. Havia enorme criminalidade em Londres! Todo um mundo subterrâneo de

ladrões, bandidos, prostitutas, vendedores de narcóticos e contraventores de todo o

tipo; mas como tudo se passava entre os próprios proles, não tinha importância. Em

todas as questões morais permitia-se-lhes obedecerem ao código ancestral. O puritanismo sexual do Partido não lhes era imposto. A promiscuidade não era

punida, e o divórcio era permitido. Nesse particular, até a adoração religiosa teria

sido permitida se os proles demonstrassem algum sintoma de desejá-la ou dela

carecerem. (ORWELL, 1986, p. 53)

A verve da revolução que com certeza não seria televisionada por teletelas, está em

mesmo sem eles terem consciência, comungarem com o passado. O passado permanece na

forma como são ainda tratados por aqueles da superestrutura social. Sabemos que é

justamente nesse passado que está o espelho para reflexão daqueles poucos que ali se

encontravam, inconformados com aquela situação, ou os possíveis futuros subversores do

sistema, que Winston via na figura dos proles.

Essa ligação com o passado é clara quando Orwell dá descrições das vivendas dos

proles, dos artigos de víveres consumidos por eles, entre outras coisas, percebemos que o

protagonista da narrativa, vai buscar o entendimento do quebra cabeça de suas lembranças

merencórias, justamente no imenso e desprezado formigueiro onde residia esses oitenta e

cinco por cento da população.

Desse modo, ele sabia que somente a preservação da memória poria em risco esse

sistema tirânico. Anulando-se a temporalidade, os pilares dessa torre nunca estariam em

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xeque. Ao citar ―1984: History as Nightmare‖ de Irving Howe, o autor Krishan Kumar

(KUMAR, 1987, p. 335) comenta sobre esse pesadelo e dá-nos uma fotografia do quanto os

membros do partido tinham descaso pelos proles, isso até em termos de segurança, quesito no

qual não deve haver falha alguma, já que desejavam a imortalidade do sistema:

O estado totalitário não pode suportar luxúria, permitir nenhuma exceção; não pode

tolerar a existência de qualquer grupo para além do perímetro do seu controle; não se pode tornar tão seguro até ao ponto de cair na indiferença. Procurar, em cada

canto da sociedade, por rebeldes que sabe que não existem, o estado totalitário não

pode descansar por prolongados períodos de tempo. Fazê-lo seria arriscar a

desintegração. Tem-se sempre que submeter, velando para uma condição de auto

agitação, abanando e voltando a abanar os seus membros, testando e voltando a

testá-los de modo a assegurar o seu poder. E assim... os proles permanecem umas

das poucas fontes possíveis de revolta. Não parece plausível que Oceania permita-

lhes sequer essa liberdade relativa que Orwell descreve. (KUMAR, 1987, p. 335)

Daí a razão de Winston ter precisado de uma lavagem cerebral profunda, por

acreditar que esses ―relativamente‖ libertos iriam algum dia, de alguma forma, ter um insight

de consciência e, resgatando essa memória ainda viva em suas mentes, destruiriam o IngSoc.

Relativizamos aqui, pelo fato de que percebemos ao longo da narrativa que somente algumas

personagens possuíam uma imagem vaga do que fora o passado, os ainda não cooptados

totalmente pelo sistema, aqueles que, mesmo sabendo que as coisas tiveram outra história que

não aquela pregada pelo Partido, procuravam não perturbar-se com quaisquer

questionamentos. Seriam os conformados com a normalidade anômala que tinha sido imposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, estabelecendo o último paralelo entre ficção e realidade concreta, percebe-se

que a memória, desde os primórdios, sempre conservou a verve da condição humana, sempre

foi o arquivo ideal para que houvesse a renovação de tempos em tempos, sendo ela escrita ou

oral. Pois somente tendo um paradigma de como fora em outros tempos, a humanidade pode

tecer reflexões sobre como se pode traçar outro rumo e bifurcar o caminho.

Concluindo por ora nossos questionamentos sobre esses pontos aqui tocados, nesse

livro de grande densidade, que exige análises de maior calibre, vemos que nosso protagonista

descobre a falha maior do partido, que é o resgate da memória que, anulada, dá a

corporificação do Partido, posto que, através dela, o tempo é morto.

Trazendo um alerta exato de como esse mecanismo de registro da humanidade tem

papel sobremaneira tanto no esquecimento quanto para conservar, para fins de transformação

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para melhor, podemos até, com definições sucintas, afirmar que, sem memória, não há

processo de renovação na humanidade.

Assim sendo, essa mesma memória, diga-se de passagem, alberga toda a atmosfera

que compõe a compreensão da obra. Contudo, vemos na narrativa que os proles eram tão

alienados que as técnicas de dominação do Partido que listamos acima eram pouco utilizadas

com eles, era desnecessário recorrer a essas ferramentas, eram quase alimárias, dotados de

perspectiva quase nenhuma.

Como já expresso, faziam jus ao lema já citado do ―panis et circenses‖ utilizado na

política dos antigos romanos, pois como era entoado por vezes na nossa distopia, só os proles

e os animais eram livres. Ou seja, aqueles que poderiam fazer a revolução, seriam sempre

condicionados a um tipo de liberdade escrava de uma situação inferior e inconsciente. Muito

pelo fato de que a revolução pretendida por Winston teria seu cerne no campo das ideias de

modo inicial, para culminar com a prática em si, ou melhor, para resultar na liberdade em que

ele encalçou o tempo todo.

Novela passível de inúmeras análises científicas que, além de nos pintar esse quadro

de medo, nos desperta uma grande ânsia latente de alvíssaras sobre o futuro, é capaz de trazer

fotografias exatas das tentativas mal-sucedidas dos governos pós-guerra. Orwell configura-se,

com essa parábola, como um oráculo, alardeando para a humanidade os pontos centrais

usados pelos regimes totalitaristas para controlar e prender nessa redoma de medo constante.

1984 retrata a possibilidade uma vez existente de como governos vindouros poderiam ser, se

partissem desse falso viés ideológico de equilíbrio.

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