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MARGEM, SÃO PAULO, N O 15, P. 57-86, JUN. 2002 A festa de Babette: uma alegoria da ressurreiçªo 1 MARISTELA GUIMARˆES ANDRÉ Resumo O artigo apresenta uma leitura do fil- me dirigido por Gabriel Axel com base na adaptaçªo do conto de Karen Blixen (pseu- dônimo da escritora dinamarquesa Isak Dinensen), sob a ótica da experiŒncia estØ- tica e do reconhecimento da narrativa do cinema como linguagem nesse filme, em especial, uma narrativa alegórica. Para tanto, pretende indicar que a pos- sibilidade de uma visªo crítica do especta- dor reside na sua capacidade de, apro- priando-se da linguagem do filme, recons- truí-lo como objeto, salvando-o da lineari- dade narracional, para, em cada frag- mento (cena, imagem, gesto, som), revelar um outro sentido. Palavras-chave: narrativa alegórica; imagem; memória; tradiçªo; reconstruçªo. Abstract The article presents a reading of the film directed by Gabriel Axel based on the adaptation of Karen Blixens tale (pseudonym of the Danish writer Isak Dinensen), under the optics of the esthetic experience and of the recognition of the narrative of the movies as language in this film, especially, an allegorical narrative. For so much, it intends to indicate the possibility of a critical vision living in the spectators capacity of, appropriating of the language of the film, to rebuild it as an object, saving it from the narrafine linearity, so that, in each fragment (scene, image, gesture, sound), another sense can be reveled. 1. Babettes Gaestebud, de Gabriel Axel, adaptaçªo do livro de K. Blixen.

A festa de Babette - uma alegoria da ressurreição

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    MARGEM, SO PAULO, NO 15, P. 57-86, JUN. 2002

    DOSSI: ENTRE NATUREZA E CULTURA A FESTA DE BABETTE

    A festa de Babette: umaalegoria da ressurreio1

    MARISTELA GUIMARES ANDR

    Resumo

    O artigo apresenta uma leitura do fil-me dirigido por Gabriel Axel com base naadaptao do conto de Karen Blixen (pseu-dnimo da escritora dinamarquesa IsakDinensen), sob a tica da experincia est-tica e do reconhecimento da narrativa docinema como linguagem nesse filme, emespecial, uma narrativa alegrica.

    Para tanto, pretende indicar que a pos-sibilidade de uma viso crtica do especta-dor reside na sua capacidade de, apro-priando-se da linguagem do filme, recons-tru-lo como objeto, salvando-o da lineari-dade narracional, para, em cada frag-mento (cena, imagem, gesto, som), revelarum outro sentido.

    Palavras-chave: narrativa alegrica;imagem; memria; tradio; reconstruo.

    Abstract

    The article presents a reading of thefilm directed by Gabriel Axel based on theadaptation of Karen Blixens tale(pseudonym of the Danish writer IsakDinensen), under the optics of the estheticexperience and of the recognition of thenarrative of the movies as language in thisfilm, especially, an allegorical narrative.

    For so much, it intends to indicate thepossibility of a critical vision living in thespectators capacity of, appropriating of thelanguage of the film, to rebuild it as anobject, saving it from the narrafinelinearity, so that, in each fragment (scene,image, gesture, sound), another sense canbe reveled.

    1. Babettes Gaestebud, de Gabriel Axel, adaptaodo livro de K. Blixen.

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    Key-words: allegorical narrative; image;memory; tradition; reconstruction.

    O filme no se contenta mais emconservar para ns o objeto lacrado no

    instante, como no mbar o corpo intacto dosinsetos de uma era extinta, ele livra a arte

    barroca de sua catalepsia convulsiva.Pela primeira vez, a imagem das coisas

    tambm a imagem da durao delas,como que uma mmia

    da mutao.

    Andr Bazin

    A linguagem flmica

    O sujeito espectador

    O reconhecimento do cinema comoarte fundamental para considerarmosa possibilidade de uma interpretaocriativa da realidade e compreender-mos, por intermdio das intricadas re-laes estabelecidas pelas imagens esons de um filme, o visvel no revela-do, porm possvel, de sua linguagem.

    Popularmente chamado de stimaarte, o cinema encontrou o seu esta-tuto artstico no curso de seu desen-volvimento e no quando da sua cria-o. Panofsky2 considera, inclusive, quea arte do filme a nica cujo desen-volvimento foi testemunhado desde ocomeo por homens ainda vivos e,como tal, foi

    um anseio artstico que propiciou adescoberta de uma nova tcnica; foiuma inveno tcnica que propiciou adescoberta e a perfeio gradual deuma nova arte.

    Gerard Betton inicia seu livro Intro-duo em esttica do cinema3 afirmando:O cinema , antes de mais nada, umaarte, um espetculo artstico.

    Walter Benjamin, em A obra de artena poca de suas tcnicas de reproduo,4

    confere ao cinema talvez sua primeiradimenso esttica, pois, buscando ana-lisar as transformaes operadas pelasnovas tcnicas de representao, nomais sob a gide das contradies so-ciais simplesmente, mas sim introdu-zindo o cinema naquilo que ele tem departicular e prprio, acaba por confe-rir ao cinema, comparado arte, a qua-lidade distintiva de uma incisiva5 lei-tura da realidade.

    A percepo e a interpretao darealidade a partir de novas tcnicasdecorrem, inegavelmente, de mudan-as ocorridas no processo de produ-o. O cinema no existiria se no ti-vesse havido um desenvolvimento da

    2. PANOFSKY, E. (1982), Estilo e meio no fil-me. In: ADORNO et al. Teoria da cultura de massa.Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 321.

    3. BETTON, G. (1987), Introduo em esttica docinema. So Paulo, Martins Fontes, p. 1 (Col. Opusn. 86).4. BENJAMIN, W. (1980), A obra de arte na poca desuas tcnicas de reproduo. So Paulo, Abril Cultu-ral (Col. Os pensadores).5. No texto, Walter Benjamin traa uma analogiaentre a pintura e o cinema, fazendo uma compa-rao, respectivamente, entre a ao do curandei-ro e o ato cirrgico. O primeiro, afirma ele, pin-tando, observa uma distncia natural entre a rea-lidade dada a ele prprio; o filmador penetra emprofundidade na prpria estrutura do dado.BENJAMIN, W. , op. cit., p. 20.

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    mecanizao. Essas mudanas, entre-tanto, surgem emaranhadas em proces-sos de alteraes profundas na estru-tura da vida urbana, na arquitetura, nasformas e meios de comunicao, etc.,modificando a prpria realidade e de-terminando um novo ritmo e uma novaessncia para o olhar. Nesse senti-do, no h como escapar velocidadedas mudanas imprimidas ao lugaronde se vive e leitura que se faz daexperincia ali vivida.

    O sujeito que vive e interpreta essaexperincia um indivduo perplexo eatordoado pelo fluxo contnuo de in-formaes reguladas por sistemas tec-nolgicos complexos e imensas buro-cracias. Disponvel para as alternativasigualmente complexas que se lhe apre-sentam, oscila entre a possibilidade (ouliberdade) de escolher uma e outra li-nha de ao e a possibilidade de esco-lher todas as coisas simultaneamente,permanecendo, na maioria das vezes,com a segunda opo.

    O desenvolvimento das condiesmateriais de vida, causa e princpiodessa ambigidade, ope contradito-riamente esse sujeito como vtima e al-goz. Aquele que se sente impotentediante de uma tecnologia crescente e,ao mesmo tempo, enxerga o vizinho(ou o governo) como uma ameaa asua sobrevivncia, quando, na verda-de, ele no passa de um estrangeiro(um espectador) assistindo narraode sua trajetria (histrica) como numfilme.

    O cinema o espelho dessa reali-dade e, pela obviedade da sua lingua-gem, narcisisticamente faz com que o

    indivduo, incorporando-a, venha aatualiz-la numa velocidade muitasvezes difcil de ser acompanhada, im-primindo nesse sentimento a chancelapara o desenvolvimento de novas for-mas de comunicao (implicitamente,novas possibilidades de linguagem),novos padres de comportamento e,por que no, novas alternncias para opensamento.

    No filme Asas do desejo (Der HimmelUber Berlin), de Wim Wenders, a ale-goria dos anjos que sobrevoam Berlime, invisveis para os mortais, descems ruas e aos apartamentos para ouvirsuas lamentaes e atenuar seus sofri-mentos nos mostra, por meio de umolhar preto-e-branco, que o mundocolorido da realidade, na verdade, no mais o mundo do eu vejo, mas, sim,do eu vo.

    Essa representao significativa,no sentido de no se poder desprezara viso que o cinema oferece fora dequalquer esquema meramente acad-mico e dentro das inmeras vari-veis do sentir e do compreender a vida e o processo histrico do indivduocomo algo que no mais vivido dedentro, mas sobrevoado como umespetculo.6

    A caracterizao dessa ambigida-de, reflexo de uma contradio subja-cente, aparece como senso comum, re-forado pelos meio de comunicao de

    6. Paul Virilio, arquiteto e urbanista, antigo dire-tor da cole Spciale dArchitecture, em Idias con-temporneas, entrevistas do Le Monde, So Paulo,`tica, 1989, enfatiza esse carter cinemtico danossa realidade, bem como o poder a contido.

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    massa e, como pensamento elabora-do, divulgado pela crtica dos espe-cialistas.

    O cinema, com sua linguagem aces-svel, constitui-se num meio eficaz (di-ferentemente da arte, da literatura edo teatro) de fazer chegar aos indiv-duos, de modo geral, em razo mes-mo dos elementos contraditrios quecontm, a tentativa de manter vivo oempreendimento artstico como res-posta esttica criativa.

    No cinema, sujeito e objeto se con-fundem, um e outro representam e sorepresentados, um e outro articulamimpresses e interpretaes como in-dcios da realidade vivida e da reali-dade pensada. Representado no filme,o objeto, ele prprio dependendo desuas caractersticas estticas, dispe decerta autonomia e, tornado pblico, nomomento de sua exibio, abre espaopara novos e outros intrpretes, inde-pendentemente daqueles que o criarame o projetaram.

    O sujeito-espectador, entretanto, um interlocutor passivo e ativo, sedu-zido pela armadilha de ser livre paraas diferentes emoes e, ao mesmo tem-po, condicionado a uma atitude de sub-misso perante a linguagem especficaque o cinema propaga.7

    O espectador, diante do filme, ex-perimenta um distanciamento que lhepermite distinguir a alteridade do ob-jeto primeiro como forma. O cinemaprescinde de uma restrio formaldiretamente relacionada com a tcnicae com a tecnologia. Por outro lado, essacondio se oferece ao espectador comouma pluralidade inesgotvel de ima-gens que torna possveis vrios e ines-gotveis contedos.8

    Portanto, mesmo tratando-se deuma experincia at certo ponto fa-bricada, nessa relao (filme e espec-tador) h um espao, uma zona geo-grfica ainda no plenamente do-minada, em que o espectador subme-tido sucesso de imagens pode esta-belecer as mais diferentes ligaes,descobrindo alguma emoo que lhepermita encontrar um significado ver-dadeiro.9

    O objeto res-pectivo

    A criao cinematogrfica, pressu-pondo o olhar do espectador, receptorfinal, impe a necessidade de se bus-car continuamente uma linguagem per-tinente ao objeto de criao. em de-corrncia dessa necessidade que a pre-ciso tcnica da linguagem flmica co-mea a ser estabelecida.10 Essa condi-

    7. Vrios so os crticos que se referem mgi-ca do cinema ritualizada no cotidiano moderno.Ou seja: a experincia esttica, em relao a umfilme, s pode ser vivida no cinema, na sala deprojeo, com todo o seu aparato, assim como omomento de suspenso, que provoca na rotinadiria algo que no pode ser repetido nem pro-porcionado pela televiso, esta sim um instru-mento tecnolgico do cotidiano.

    8. BENJAMIN, W., op. cit., pp. 19 e 20.9. PANOFSKY, E., op. cit., p. 325.10. Etinne Souriau, no incio dos anos 50 do s-culo XX, e Christian Metz, alguns anos mais tar-de, produziram os primeiros estudos sobre asemiologia do cinema, portanto, antes mesmo domovimento semiolgico como tal.

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    o exige novos critrios de julgamen-to sobre o sentido esttico das diferen-tes formas de representao do ho-mem, uma vez que a linguagem cine-matogrfica, apoiada na produo ereproduo tcnicas que a caracterizam,redefine a leitura e a interpretao dofato humano nos seus vrios sentidos(poltico, histrico, social, etc.).

    Hoje, o contedo e a forma de umfilme devem estar perfeitamente ajus-tados ao imperativo da coerncia e daobjetividade para que ele possa sercompreendido.11 O hermetismo pro-posto nessa relao oferece possibili-dades restritas de interveno do pen-samento. Entretanto, a mesma eficin-cia observada na capacidade que o ci-nema tem de produzir uma certa homo-geneizao dos valores e padres cul-turais pode ser sentida na intensidadecom que agua, ou at amplia, as pos-sibilidades de percepo de um deter-minado objeto, fato ou fenmeno, mul-tiplicando o efeito de uma determina-da interpretao ou, mesmo, tornan-do o filme (no seu sentido e na sua for-ma) um agente passivo de mobili-zao da conscincia.

    A contradio contida nessa dupli-cidade de sentido se produz, num pri-meiro nvel, em relao aos diferen-tes elementos utilizados pelo diretor(considerado aqui como o autor) dofilme, ao criar, no espectador, as dife-

    rentes sensaes, impresses e opi-nies que ele experimenta e desen-volve.

    Num segundo nvel, a dinmicada conscincia depende do elo de sig-nificaes que frui entre o diretor (co-mo autor da obra), a obra em si e oespectador. O que, independentemen-te das condies em que essa relaose d, estabelece, para alm delas, umadimenso de temporalidade (da obra,por meio de sua narrativa) que desafiao pensamento a inserir-se na atualida-de. Em outras palavras, para alm datemporalidade do prprio filme e doprprio diretor, qualquer leitura quese faa, crtica ou no, ser sempre umaleitura atualizada e, nesse sentido,distanciada da atualidade histricaque a produziu.

    A possibilidade de uma leitura cr-tica residir na capacidade do especta-dor, ou do crtico, de, apropriando-seda linguagem do filme (ou seja, toman-do-a na sua propriedade lingstica),reconstruir o objeto (o filme), salvan-do-o da linearidade narracional ebuscando, a cada cena e a cada ima-gem, o fragmento que possa fazeremergir o sentido nico e original deum tecido maior.

    Dois aspectos so fundamentaisnesse processo: primeiramente a ex-perincia esttica, caracterizada pelocarter universal da linguagem cine-matogrfica, com toda pluralidade desensaes, impresses e opinies queela sugere (contraditoriamente a umaunidimensionalidade insistentementeimposta pela mdia e pelos meios deproduo), indicando o sentido aber-

    11. A propsito, METZ, C. (1980), O significanteimaginrio. Psicanlise e cinema. Lisboa, Livros Ho-rizonte, que nos oferece mais e melhores elemen-tos sobre a relao entre significante e significadona linguagem flmica.

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    to da obra;12 e, em segundo lugar,considerar a narrativa do cinema comolinguagem.13

    Em resumo, trs elementos se fun-dem nessa leitura: a atualidade hist-rica (da obra, do autor e do especta-dor), a experincia esttica e a apro-priao da narrativa flmica (da lin-guagem), apropriao entendida,aqui, como algo que se torna prprio,que adquire propriedade pela leitura epela interpretao do espectador.

    A narrativa alegrica

    Num meio saturado de imagens einformaes, em que nossas impressesda realidade no so frutos das obser-vaes, e sim, de complexos sistemas decomunicao, o cinema pode exibir, comalgum privilgio, filmes que traduzemnuma narrativa alegrica algo maisque um simples testemunho artstico.

    Adjetivar a narrativa em um filmea partir da idia de alegoria, impe cer-tamente alguns cuidados na anlise.Entretanto, sem negligenci-los e to-mando por referncia a idia de quea alusividade da alegoria pluralistae no monista: ela remete diversida-de, no a uma suposta unidade do di-verso e o fato de que o objeto aleg-rico representao de outro e at devrios outros, mas no do todo,14 tem-

    se como ponto de partida, aqui, a am-bivalncia com que a realidade podeser expressa e, em cada plano, cadapersonagem, cada objeto, intrincadosna seqncia de aes de um filme, abusca de um outro sentido, apesar dosentido imediato que transmitem. Sig-nifica identificar, na linguagem cinema-togrfica, o seu sentido ltimo, o re-ferente unitrio que engloba todas assignificaes parciais:15 o aniquilamen-to do sujeito histrico (o sujeito da prxise da transformao revolucionria).

    Em vrios filmes de reconhecidaqualidade cinematogrfica, nos maisvariados gneros, da escola ocidentalou da oriental, a identidade humana retratada numa perspectiva apoca-lptica, que congela o passado, tra-tando-o, por intermdio da narrativaadotada, de forma homognea e uni-forme. Dessa maneira, procura restau-rar o presente caracterizado no fil-me.16 Ao faz-lo, submete o indivduoa uma representao que, permitindo-lhe redimensionar o futuro imedia-to da narrativa, anuncia sua morte, in-dicando a impossibilidade de um fu-turo real.

    No filme Bagdad Caf (direo dePercy Adion), por exemplo, a persona-gem Jasmin (Marianne Sagebrecht) nos deixada pelo marido no meio deum deserto, com a bagagem trocada euma garrafa trmica, como, depois de

    12. ECO, H. (1971), Obra aberta. So Paulo, Pers-pectiva, pp. 39-40.13. DELEUZE, G. (1989), Imagem-tempo. So Pau-lo, Brasiliense, p. 311.14. MERQUIOR, J. Guilherme. (1969), Arte e so-ciedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Ja-neiro, Tempo Brasileiro, p. 106.

    15. BENJAMIN, W. (1984), Origem do drama bar-roco alemo. Apresentao e comentrios de SergioPaulo Rouanet. So Paulo, Brasiliense, p. 38.16. Para mencionar alguns exemplos, Paris, Texas,de Wim Wenders, e Fitzcarraldo, de Werner Herzog.

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    ter encontrado num bar-motel de bei-ra de estrada um sentido novo emsua vida, ao ser obrigada a voltar paraa Alemanha (estava vivendo e traba-lhando no bar-motel clandestinamen-te), ela quem abandona o passado naterra de origem para retornar e viversua nova vida, numa outra terra. Oque sugere, implicitamente, que h umpassado vazio ou desprovido de vida,que merece (justificativa) ser deixadopara trs em razo de uma possibilida-de nova, surgida ao acaso no meio dodeserto.

    Em outras palavras, o que algunsfilmes mostram que existe um passa-do (negado ou idealizado) que contmuma possibilidade de salvao: algoaconteceu (portanto, num tempo pas-sado) que explica a ao (no presente)daquela(s) personagem(s). A conscin-cia e a conquista dessa possibilidade,contedo da narrativa flmica, revelamo esfacelamento do sujeito histrico.Para salvar o homem da destruiode sua identidade histrica precisodestru-lo, restaurando-o por meiode uma representao redentora.

    Aquilo que o cinema denuncia comsuas idas e vindas no tempo e ao longodele o esforo residual da esperanahumana de buscar uma emancipao,ainda que todas as alternativas estejamesgotadas e toda a crtica compro-metida com uma racionalidade pessi-mista.

    A no-transparncia dos elemen-tos significativos indica a no-trans-parncia da crueldade do existir hu-mano. Isso, impresso num filme, re-vela o processo de dissoluo da iden-

    tidade e a reconstruo (impossvel)num outro tempo e lugar.

    No filme A festa de Babette, o senti-do alegrico com que a narrativa sedesenvolve espelha a gravidade dacontradio histrica vivida pelo serhumano. Sua vida, caminho inevitvelpara a morte, preenchida por momen-tos, sinais, gestos, imagens, palavras enfim, signos que, pretendendo serduradouros, estabelecem o limite desua permanncia: como desejos, eter-nos, breves e frugais como uma festa.

    As imagens (a alegoria) que o filmeprojeta transformam-se num universode significaes, porque trazem comofundamento a vida, no seu sentido maisamplo. A redeno ou ressurreio pos-sveis, como o ttulo pode sugerir, nose traduz meramente na metfora reli-giosa, mas encontra, no modo simplescomo essa dimenso se apresenta nodia-a-dia, um sentido que refaz o des-feito e desfaz o que est cristalizado,sedimentado, como, por exemplo, nosimples e rotineiro ato de cozinhar. Aperspectiva da perda e da ausncia,constante ameaa sobrevivncia, eque, em princpio, justificaria as aesreligiosas, transforma-se na realiza-o, que expresso da prpria vida ecuja essncia est contida num ato def, no seu duplo sentido de reter eenredar, fazer parte do enredo.

    A relao que se pretende, portan-to, parte da considerao de que

    no signo alegrico, a comunicao dosentido no mais o essencial. Se nosentido lingstico o lao significante-significado arbitrrio, sendo impor-

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    tante o sucesso da comunicao, as-sistimos no signo alegrico a uma es-pcie de absolutizao da relaosignificante-significado enquanto tals expensas destes ltimos. que umacomunicao unvoca consideradacomo ontologicamente impossvel nummundo em que nenhuma totalidadepode garantir a coerncia de um siste-ma de signos. Resta o saber da ambi-gidade. Enquanto imagem, a alego-ria pode, certamente, remeter a umasignificao entre outras, enquantosigno ela remete a todas as significa-es possveis. O conhecimento aleg-rico tomado de vertigem, no h maisponto fixo, nem no objeto nem no su-jeito da alegorese que garanta a verda-de do conhecimento.17

    O filme A festa de Babette(Babettes Caestebud)

    Sntese do argumento

    Esse filme uma adaptao para ocinema do conto de Karen Blixen(pseudnimo da autora dinamarquesaIsak Dinensen, 1885-1962). Produo di-namarquesa de 1988, recebeu o Oscarde melhor filme estrangeiro. Direo deGabriel Axel, com Stphane Audran(Babette), Brigitte Fredespiel, BodilKjer, Videke Hastrup e HanneStensgard no elenco. Durao: 111 mi-nutos.

    A identidade historicamente cons-tituda faz-se das perdas historicamen-te acumuladas. Experincias preenchi-

    das de significados vazios e esvazia-das de significados verdadeiros assis-tem ao desenrolar da histria real comoum espetculo de variedades, assimcomo se processa a preparao e a or-ganizao de um banquete.

    Babette a empregada de origemfrancesa de duas irms de meia-idade,Felippa e Martine, nomes dados em ho-menagem a Felipe Melanchton e Mar-tinho Lutero. As trs vivem numa pe-quena aldeia de pescadores ao norteda Dinamarca, numa regio chamadaJutlndia.

    As irms gastam todos os seus pro-ventos num trabalho beneficente, as-sistindo os idosos que no podemmais se sustentar. Babette faz os servi-os da casa e tambm cozinha.

    O pai de Felippa e Martine foi pas-tor, profeta, fundador de uma seitarespeitada e tambm um pouco temi-da. Quando Babette veio trabalhar nacasa das irms, o pastor j era falecidoe os poucos fiis que ainda restavamcontinuavam, ano aps ano, encontran-do-se na casa das irms para interpre-tar a palavra de Deus e honrar o esp-rito do mestre, ainda presente.

    Na juventude, Martine e Felippaeram como fruteiras floridas e os ra-pazes iam aos cultos dominicais na igre-ja (do pastor) s para v-las, uma vezque no freqentavam bailes ou festas.

    Aqueles que se atreviam a solicitarpermisso para cortej-las recebiamcomo resposta (do pastor) que suasduas filhas eram para o seu sacerd-cio, sua mo direita e esquerda e aque-le que delas se aproximava por inte-resses frvolos (como o casamento ou

    17. GAGNEBIN, J. M. (s.d.), Alegorias: que outrodizer?. So Paulo, mimeo., pp. 18 e 19.

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    o amor terreno) estava, na verdade,tirando-as dele. Com isso, afastava to-dos os possveis pretendentes.

    Houve, porm, um momento navida das irms em que dois homens,vindos do grande mundo l fora,deixaram seus coraes abalados, demaneira e modos diferentes, a pontode interferir no destino.

    Lorenz Lowenhelm, um jovem ofi-cial que vivia desregradamente foi en-viado pelo pai para a fazenda de umavelha tia, prxima aldeia das irms.Ali, ele teria tempo de refletir sobresua vida e mud-la. Num passeio acavalo, conheceu Felippa e nesse ins-tante revelou-se para ele uma forte vi-so de uma vida mais pura e superior.Consegue, ento, por intermdio desua tia, uma devota senhora, ser acei-to na casa do pastor para as reuniesde orao e meditao.

    Achilles Papin, um cantor lrico demuito sucesso, cansado de viajar pelomundo em fatigantes turns, aceita asugesto de uma amiga e procura a cos-ta da Jutlndia em busca de paz e tran-qilidade. Num passeio a p pelo lu-gar, atrado pela msica que vem daigreja e fica fascinado pela voz deMartine. Procura o pastor em sua casa,pedindo-lhe permisso para dar aulasde canto a Martine e, dessa forma, po-der glorificar a Deus.

    Essas personagens desaparecem davida das duas jovens com uma despe-dida cheia de profunda melancolia.

    Anos mais tarde, com uma carta deAchilles Papin, as duas irms recebemBabette, uma fugitiva da Guerra Civilda Frana de 1871. Ela perdera o mari-

    do e o filho e no tinha para aonde ir,ou onde se esconder.

    Sendo aceita na casa das irms, suanica ligao com a Frana um bilhe-te de loteria que uma amiga fiel todoano se encarrega de renovar.

    Por ocasio da festa do centsimoaniversrio do pastor, o bilhete deBabette premiado. Como as irmspretendiam homenagear o falecido paicom um jantar, Babette pede-lhes quelhe concedam a honra de preparar eoferecer, com o dinheiro ganho, umbanquete, um verdadeiro jantarfrancs.

    Distncia e simulacro da narrativa

    A cmera e uma voz (feminina) emoff acompanham o movimento de duassenhoras de meia-idade, braos dados,andar compassado. Saem de uma casa,levando cestas nos braos, tm os tra-os suaves e a expresso serena dequem parece saber ser aquele o lugar ea hora de ali estar. um pequeno aglo-merado de casas simples (uma aldeia).Com essa imagem, somos introduzidos histria de Babette.

    Como algum a distncia, no tem-po e no espao, a voz em off nos colocadiante de uma perspectiva temporal deprimeira ordem, ou seja, promove aaproximao do nosso tempo com otempo perdido (esquecido) no espa-o do filme. essa voz em off que apro-xima nossos sentidos das imagens quese desenvolvem na tela. A voz em offpermite a atualizao do tempo.

    A narrao personificada nessa vozconfere o tom e o ritmo da cmera.

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    algum que nos conta uma histriade um outro tempo e um outro lugar,portanto, distante em vrios sentidosdo tempo presente, porm presenti-ficado pela leitura do espectador.

    A voz em off faz com que o temponarrado passe a existir a partir da di-menso de quem o assiste. A voz emoff l para o espectador a histria queele v. O uso desse recurso, aliado aoflash-back, reservam algumas arma-dilhas.

    Essa primeira identificao abreespao na direo da cumplicidade ne-cessria para despertar curiosidadesobre aquilo que o olhar revelador dacmera ir propiciar. Ao mesmo tem-po, o flash-back e a voz em off, colocan-do o passado na perspectiva do nar-rador, criam a iluso de que h, na ori-gem e na identidade das coisas e daspessoas, algo de real (o que, na ver-dade, no existe nesse mundo simula-do). Usando do artifcio objetivo dacmera, fala-se do passado para es-cond-lo; entretanto, ele surge inespe-radamente e com toda fora nas cenasque preparam o banquete. Essa a pri-meira armadilha.

    O mesmo ritmo na fala e na seqn-cia das imagens unem os diferentesmomentos, como se o tempo da narra-tiva correspondesse de fato ao compas-so da vida daquelas pessoas (persona-gens) e daquele lugar. O antes e o de-pois que se mesclam de modo sucessi-vo em flash-back sugerem um futuroimerso na seqncia natural do filme,sutilmente sugerido em cenas que,curiosamente (e propositalmente) seassemelham, do ponto de vista da ima-

    gem, a outras j vistas no incio,18 o quenos indica que a cena final (portanto,quando o tempo narrativo se encerra)pode estar contida ou anunciada numtrecho anterior ao prprio comeo. Ouseja: quando o filme comea, a cena ini-cial pode referir-se a qualquer momen-to da narrativa implcita, antes ou de-pois daquilo que se assiste no final dofilme. Essa a segunda armadilha.

    No pequeno vilarejo, no h sinaisde movimento. Olhares curiosos es-preitam por detrs das janelas, gestossem pressa comandam os afazeres do-msticos, dilogos sussurrados garan-tem a preservao do silncio que cir-cunda as pessoas. Tudo sendo mostra-do em cenas curtas, paradoxalmenterpidas. A impresso que se tem queelas no foram feitas para ficar, noentanto, sua imagem quase fotogrfi-ca, imprimida de modo rpido nanossa retina, guarda o segredo da tem-poralidade dessa narrativa.

    Cada imagem, por sua vez, faz-seacompanhar do som que lhe caracte-rstico, acentuando as imagens que bei-ram o natural realismo que essas foto-grafias evocam. Por exemplo, o galopee o tilintar dos guizos dos cavalos dacarruagem, o barulho da gua caindona tigela ou das frituras na panela, o

    18. Logo no incio, a mesma cena das irms levan-do a refeio, a palavra e a assistncia aos fiisde sua igreja, aparece repetida no meio do filme,no interior de um processo de recordao (flash-back). Ainda no incio, Babette aparece por detrsde uma porta com uma bandeja nas mos, aguar-dando o momento apropriado para entrar na sala,onde os fiis cantam e rezam. Essa cena tambm repetida no meio do filme.

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    canto na igreja, o som das ondas, dovento, da chuva, etc.

    Esses elementos sugerem um sub-texto construdo pelos espaos silen-ciosos, entre os olhares, os gestos, aspalavras, os sons e as imagens. Entre-linhas que constroem um determina-do ritmo entre uma cena e outra. Hum vazio cheio da histria que sedesenrola, impregnando o fluxo cont-nuo das horas com outros significados,o que, por sua vez, revela-nos a possi-bilidade de uma narrativa subjacente.

    Destacadas de um tempo linear econtnuo, memria e lembrana aliam-se no vaivm das imagens que o flash-back cria. Essas imagens, ao constitu-rem-se parte da narrativa linear, ge-ram a impresso constante da ausnciade uma pea, de um fragmento, esti-mulando a imaginao e convidando oespectador a decifrar essa narrativasubjacente preenchendo os espaossilenciosos com sua leitura. A ordemde cortes e seqncias que nos permitea composio linear permite, tambm,a invaso desses espaos silenciosos procura de um outro enredo, umaoutra histria.

    O motor desses significados acionado em flash-back e os fatos dahistria passada tornam-se fatos sem-pre presentes, adquirindo, diante denossos olhos, os contornos de sua rea-lidade precria. Em outras palavras,os fatos que compem a narrativa es-to ligados por pequenos detalhes de-senvolvidos de modo significativonum jogo de imagens estruturalmen-te semelhante: uma primeira tomadamais ampla, introdutria, seguida

    de uma segunda, em close, apresen-tao da cena, passando para umaterceira tomada de desenvolvimen-to da situao com o enquadramentode mais pessoas ou de um lugar, para,em seguida, fechar e cortar parauma outra cena. A repetio dessa es-trutura, imperceptvel e sutilmente tra-balhada na narrativa do filme, indicaou sugere a fragilidade do que seria aao no presente, no sentido de queuma determinada cena s se sustentaconectada s imagens anteriores.

    Apesar do discurso direto e de cer-ta forma descritivo, propiciado pelavoz em off, a estrutura repetitiva dascenas sugere, com sua fragmentao, apossibilidade de um presente perdi-do (ou esquecido) na ao passada,como se, no emaranhado da recorda-o, algo tivesse escapado percep-o, cujo sentido, de posse da pessoaque assim se lembrava dos aconteci-mentos e agora os narrava, pudesse serreconstitudo de vrias maneiras.

    As imagens traduzidas na narrati-va linear apenas insinuam uma idia,uma relao, uma possibilidade de in-terpretao, como se o autor tivessedeixado de nos contar algo, preferin-do mostrar e, ao faz-lo, iniciasse umjogo de adivinhao ou de esconde-esconde, cuja senha, desde o primeiromomento em que a histria comeou aser revelada, no estivesse mais em seupoder, mas merc do espectador, in-trprete privilegiado.

    Cada um dos recursos utilizados nofilme faz parte do jogo: A voz em off e o flash-back mantm

    vivas na memria do espectador as

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    imagens preenchidas pelo conte-do do passado. Ao narr-lo, per-mite a compreenso de fatos trans-corridos num outro tempo que, emprincpio, explicam as imagens dopresente. Entretanto, o uso dessesrecursos e s por causa deles faz surgir um imenso vazio cheiode significados.

    A voz em off e o flash-back apresen-tam cada uma das personagens queconstroem o enredo como histri-as particulares, que se entrecruzamquase que por acaso, e muito dahistria de cada um tem tudo a vercom a histria do outro. A histriade Babette contada, pois, pormeio da histria de Felippa eMartine, a partir das lembranas deL. Lowehelm e A. Papin. Em ou-tras palavras, lembranas (caracte-rizadas pela voz em off e pelo flash-back) se explicam em funo das lem-branas de dois cavalheiros sobreduas jovens e elas mesmas se expli-cam nas lembranas de Babette,presentes no banquete (este aspec-to ser melhor desenvolvido adian-te, ao tratarmos especificamente dafigura de Babette.)

    A linguagem utilizada no filme, comcenas e enquadramentos que se re-petem e o mesmo ritmo da cmeracaracterizando situaes em queno h confronto, em que cada umdos conflitos encontra sua soluoem comportamentos refletidos,ponderados pela razo (portanto,em princpio, no conduzidos pelapaixo), mesmo indicando intenessubjetivas (traduzidas pelo olhar,

    pelo gesto, pelo modo de caminhar,sentar, comer ou, simplesmente, re-zar, sugerindo, dessa forma, emo-es controladas ou reprimidas),transforma-se no mapa imprescin-dvel para qualquer espectador mi-nimamente curioso ler os sinais alirepresentados. E, como qualqueroutro mapa, uma leitura inadequa-da pode significar um desvio srioe o vazio cheio de significadospermanecer restrito linguagemhermtica da narrativa, linear.

    Os signos desse mapa tornam-semais visveis proporo que o tempoda narrao (o tempo de durao dofilme) se desenrola e que, hipnotica-mente, se conduzido ao banquete deBabette. O jogo das lembranas apre-senta-se, ento, numa ltima alegoria,revelando o enunciado original a par-tir do qual a histria vivida segundo osmistrios do corao nada mais se-no obra do prazer, fruto do desejo,objeto da imaginao. Ao mesmo tem-po, descobre-se que a possibilidade deexistir um futuro est na possibilidadede se reconstruir o passado, de tal for-ma que o presente venha a ser uma me-diao dinmica (seno transformado-ra) dessas possibilidades.19

    19. Em outras palavras, o verdadeiro jantar fran-cs de Babette reconstri seu prprio passado,assim como das demais personagens, e, no inte-rior dessa reconstruo, o futuro se define nosgestos, nas palavras, nos movimentos duplamentepresentes no olhar do espectador e nas imagensprojetadas na tela. Desenvolveremos melhor esseaspecto mais adiante, ao tratarmos da questoda alegoria como ressurreio.

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    A estrutura repetitiva das cenas sedesenvolvendo, assim como as tare-fas cotidianas, reproduzem o eternofazer e desfazer para fazer de novo,relacionando o tempo cronolgico (otempo do calendrio), o tempo hist-rico (o tempo dos eventos) e o tempoda narrativa. Dessa forma, o ritmocclico da vida, marcado no tempo eno espao pelas atividades rotineiras,desenvolve-se sem que nos demosconta at de que a angstia, a ansie-dade e o temor provocados pela vio-lncia simblica de um banquete pro-vocasse uma ruptura no cotidiano or-denado da aldeia, ou seja, at que algica do dia-a-dia fosse quebrada apartir de uma interferncia no dese-jada sob vrios aspectos e que neces-sita, por isso, ser tambm violenta-mente negada e esquecida.

    A sutil ambigidade dessa violn-cia esconde e ao mesmo tempo revelaelementos contraditrios, que vo des-de o fato de estarem os convidadosobrigados a participar de algo que te-mem, at a constatao de que h umasubmisso prazerosa aos efeitos de todesconhecidas sensaes. Por outro la-do, o banquete representando umasuspenso do cotidiano, de tal formaque a festa, objeto da vontade, do de-sejo e da imaginao, tivesse lugar,cria a condio para a experincia dese sentir vivo numa outra situao queno aquela vivida de ordinrio. qua-se um outro modo de existir. Nessesentido, o banquete realiza a mediaoentre vrias dimenses do fazer(trabalho) humano, no sentido comopropriamente o designou Hannah

    Arendt, ao cham-lo de processo devida ativa.20

    De fato, Babette opera uma trans-formao em todos os sentidos. Aque-le lugarejo nunca tinha visto, sentido,provado, enfim, experimentado, o pra-zer de um jantar como aquele. A vidase renova na textura dos gostos, dospaladares independentemente da cons-cincia (e da razo); a vida se transfor-ma pelo trabalho produtivo de geraralgo novo a partir do existente; a vidase torna subversiva pela ao poticaque transforma em arte o dia-a-dia.Cada uma dessas dimenses, Babetterealiza com a sua festa.

    No , portanto, somente uma al-terao de rotina que Babette produzcom sua presena e seu jantar. No fil-me, essa unidade entre a narrativa, oenredo e as imagens, caracterizando anatureza cclica da vida, como marca-do no tempo e no espao pelos dife-rentes fazeres humanos, torna o inal-tervel cotidiano da aldeia um aliadodo passado inalterado da histria.

    20. Com a expresso vida ativa, Arendt preten-dia designar trs atividades humanas fundamen-tais: labor, trabalho e ao. Cada uma delascorresponde a uma das condies bsicas funda-mentais pelas quais a vida humana torna-se pos-svel na Terra. O labor a atividade quecorresponde ao processo biolgico do corpo hu-mano; o trabalho a atividade correspondenteao artificialismo da existncia humana; a ao,nica atividade que se exerce diretamente entre oshomens, sem a mediao das coisas ou da mat-ria, corresponde condio humana da plurali-dade, ao fato de que os homens, e no o Homem,vivem na Terra e habitam o mundo. ARENDT,H. (1983), A condio humana. Rio de Janeiro, Fo-rente-Universitria, p. 15.

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    isto, justamente, que precisa ser que-brado, ser rompido. Esse o feitioque Babette, qual bruxa da Idade M-dia, tem que quebrar. S assim lhe res-tar algum futuro, s assim os especta-dores podero encontrar alguma pos-sibilidade de esperana.

    Quebra do feitioe reconstruo da histria

    A repetio produz uma histriavazia de significados. O trabalho deBabette, reproduzindo-se diante dosolhos do espectador como algo fora dotempo e fora de lugar, adquire um sen-tido quase mtico, tornando-se porta-dor de outros significados.

    A senha para se poder decifrar taissignificados est no tempo. O tempo parte fundamental do trabalho de co-zinhar. A seqncia dos pratos, dos sa-bores, a gradao do cozimento, dafervura, do aroma, tudo, enfim, ali-nhavado pelo tempo. O tempo parteda combinao dos temperos e da fra-grncia que induz o paladar. Da mes-ma forma, o tempo tempera o conheci-mento que, por intermdio dos senti-dos, conduz o esprito.

    No tempo, a brevidade da vida seimpe como um determinante da mor-te e o homem sobrevivente constrimediaes que, de alguma forma, pos-sam eternizar o presente, fundindo asexperincias passadas como lembran-as transparentes, semelhana de umfilme. No banquete de Babette, a ex-perincia do tempo confunde-se coma experincia de cozinhar e, aparen-temente, apesar de constituir-se numa

    possibilidade de trazer de volta, poralguns breves e efmeros momentos,o passado, , na verdade, a chance dereconstruo da identidade dilaceradae agora ameaada pelo esquecimento.

    Antes de mais nada, Babette umasobrevivente e, como tal, traz consigoduas marcas desintegradoras da suaidentidade: na primeira reside todo otrauma provocado pela violncia a quesua vida foi submetida com a revolu-o na Frana, que destruiu por com-pleto sua existncia social, privando-ano s da vida do filho e do marido,como tambm de todos os sistemas deapoios e referncias anteriores, tal co-mo a famlia, os amigos, a posio so-cial, etc.; na segunda residem os efei-tos posteriores, at certo ponto mut-veis, de tal trauma e que exigem algu-ma forma de domnio ou de controle,sob pena de sucumbir sua fora.

    Em outras palavras, Babette umasobrevivente que tem como difcil ta-refa viver com uma condio existen-cial que no permite qualquer soluo.Ou seja: quando Babette chega aldeianuma noite chuvosa e bate porta deMartine e Felippa, a carta de MonsieurPapin, que ela traz consigo, descreve-ana condio de uma refugiada:

    O portador infeliz desta carta, MadameBabette Hersant, teve que fugir de Pa-ris, como o fez minha bela imperatriz.A guerra civil tem tocado fogo em nos-sas ruas. O marido e o filho de Mme.Hersant foram mortos a tiro. Por umtriz, ela escapou das mos sangren-tas do General Galliffet. Perdeu tudoo que tinha e no se arrisca a ficar naFrana.

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    Em seguida, a afirmao das irms deque no possuem uma renda que lhespermita ter ao seu servio uma pessoadotada de experincia leva Babette acair em profundo desespero e dizer:Se no me quiserem como emprega-da, s me resta morrer.

    A sorte (ou azar) de ter sobrevivi-do coloca para Babette uma condioprecria de vida, sob dois aspectos: deum lado, manter a integrao da iden-tidade ante as conseqncias da desin-tegrao passada; de outro, ter que so-breviver com a conscincia de ter esca-pado da morte por obra do acaso e, aomesmo tempo, viver durante anos soba ameaa inconsciente da morte, pelosimples fato de ser francesa, tendo achance de sobreviver enquanto outros,iguais a ela, morreram. Esse duplo as-pecto da sobrevivncia impe paraBabette a necessidade, talvez incons-ciente, de buscar as razes que justifi-cassem o fato de ter sobrevivido. Obilhete de loteria renovado anualmentena Frana por uma amiga atenderia,num primeiro momento, a essa neces-sidade.

    Aps uma experincia traumtica,o que se constata que a integraoque se conseguiu atingir at aquelemomento no ofereceu a proteo ade-quada e que a sobrevivncia exige umaluta perptua para se manter conscien-te e, at certo ponto, com lucidez paratentar enfrentar as diferentes dimen-ses da existncia humana, entre elas,sem dvida, a prpria morte.

    Cada dia da vida de Babette na al-deia um lento e rotineiro esforo parase tornar e se manter consciente de si

    mesma e dessa forma que o bilhetede loteria, uma vez premiado (maisuma vez a sorte), torna-se o bilhete dasalvao. Quando Babette recebe a in-formao de que ganhou o prmio daloteria, v ali uma possibilidade deredimir-se reconstruindo aquilo que foidesintegrado. Cada uma das cenas, apartir da, um espelho da reconstru-o que ope o passado vazio de signi-ficado a um passado reconstrudo nasua significao. O ritmo da cmera sealtera ligeiramente e o feitio come-a a ser quebrado.

    A primeira reao das irms, quan-do Babette lhes fala do bilhete sortea-do, achar que Babette ir embora(Deus d e Deus tira), ou seja, j noexistem mais motivos para que ela fi-que naquela aldeia. Entretanto, surpre-endidas pelo pedido de Babette parafazer o banquete em homenagem aocentenrio do nascimento do pastor,so obrigadas a aceitar, sem perder oreceio de que Babette venha a deix-las (Ela deve nos deixar logo, o seucorao est na Frana). Para as irms,aquilo que separava Babette de sua ter-ra natal era apenas a sua condio dedependncia material: um lugar paramorar, comer, enfim, viver o que lheresta ainda para ser vivido. A partirdo instante em que Babette pode tor-nar-se independente, a necessidade serompe e nada mais prende Babette aldeia e s irms.

    Entretanto, diante da possibilidadede retomar os vnculos passados com opas de origem, Babette responde coma possibilidade de, utilizando-se da ex-perincia passada, trazer o inusitado.

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    Atendido o pedido de Babette, de-sencadeiam-se outras reaes das irmse do grupo de fiis seguidores do pas-tor. O inusitado assusta, ameaa, ame-dronta. Para esses sentimentos, no hpalavras (Ficaremos o tempo todo ca-lados, quanto comida e bebida.Por amor s nossas irmzinhas, pro-metemos, seja l como for, no dizerpalavra alguma sobre a comida ou so-bre a bebida. Nenhuma palavra es-capar de nossas bocas.), assim comopara a tarefa de reconstruo do pas-sado no cabe o exerccio do logos, masa identificao da experincia funda-mental do tempo vivido.

    Nesse sentido, a preparao e arealizao do banquete adquirem oscontornos de um rito, pelo qual as aespassam a ter um significado mais vas-to do que aquele ordinariamente pra-ticado, ampliando o contedo da re-presentao do acontecimento. Assim,os atos cotidianos de cozinhar e comerso outros e so os mesmos, a data co-memorada a mesma e outra, no con-texto do banquete. O que transformacada um desses elementos o sentidohistrico da reconstruo empreendi-da por Babette.

    A preparao do banquete, ao rom-per com a lgica do cotidiano, presen-te imutvel, oscila entre dois univer-sos antagnicos de ao, corresponden-tes a duas concepes histricas abso-lutamente diferentes e opostas, repre-sentadas na relao com o passado.

    De um lado, o universo das forasde estagnao, de cristalizao dotempo histrico e que contabiliza osacontecimentos num processo

    cumulativo esvaziado de qualquer sen-tido de transformao. A esse uni-verso corresponde, com configuraesdiferenciadas, o mundo da corte ouda sociedade, em que viviam o Gene-ral e o cantor lrico, e a pequena al-deia de pescadores, com as duas ir-ms e seu grupo de fiis. quele mun-do subjaz um continuum de aes cujamarca a catstrofe, a desintegrao,uma vez que a memria, a lembranae a recordao constituem-se em apo-logia de um determinado momentodo passado. Nesse sentido, significa amorte e a destruio do indito conti-do nesse passado, que poderia, de al-guma forma, redimir e reconstruir ahistria, salvando-a da continuidaderepetitiva. dessa forma e com essesentido que o relato dos feitos e daspalavras do pastor aparecem no con-texto do banquete. A elegia em queele se transforma traduz o significadoapologtico de toda aquela celebra-o para as irms, os fiis, o General esua tia.

    Duas senhoras abriram mo desuas necessidades e desejos pessoaispara abraar uma causa (de cunho so-cial) que era de seu pai, um pastor,algum que assumiu para si a tarefade conduzir um rebanho. (Naquelaparquia, considerava-se casamento eamor terreno como sendo coisas semmaior importncia, apenas iluses va-zias). Nesse sentido, o pastor e as ir-ms, de modos diferentes, despos-sudos de sua individualidade natu-ral, parecem ser portadores de umahistria-destino, que os simples mor-tais desconhecem. Seus bens mais

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    preciosos so suas virtudes e, em nomedelas, a vida se justifica.

    Entretanto, todo esse despojamen-to imagem de uma alienao latente.Ao contrrio do que pode parecer, aopo de vida dedicada s pessoas, aoinvs de produzir um aprendizado ver-dadeiro e significativo, produz um des-vio sem retorno, pois, a cada passo, acada ao, o contedo histrico do pro-cesso de aprendizagem vivido fic-cionalmente. A aldeia, o pastor, as ir-ms, o grupo de fiis representam omundo fora do seu natural. Nesse sen-tido, o passado e o presente unem-secomo nostalgia ou como vaga lembran-a destituda do seu significado ex-periencial.

    A obra de atender e servir os en-fermos e carentes incua e vazia, por-que ela no torna o sujeito senhor desuas necessidades, vontades e desejos.No permite que ele possa se apropriardo processo e do fruto do seu traba-lho: ao contrrio, retira dele todas aschances de uma energia criativa as-sim a velhice, assim a morte. A uti-lidade transcendente do sentido es-piritual presente na ao, em vez detraduzir-se em elemento ativo do exis-tir histrico, fonte inesgotvel de umdevir alienante. como se houvesse,na histria, um determinismo absolu-tamente extemporneo aceito comonatural, isto , parte de uma fatalida-de e de um destino que comandariamas aes sobre as quais no se tem con-trole algum em outras palavras, ajustificativa para os desmandos das v-rias formas de autoritarismo e a acei-tao da impossibilidade de mudana.

    Do outro lado, est Babette, uni-verso das foras de transgresso, deruptura no interior do tempo histri-co, que produz o salto como umaforma de redeno do passado, no sen-tido de que o choque provocado pelarealizao do banquete no era resul-tado do movimento natural dos dias edas horas, e, sim, da obra da pessoahumana.

    O jogo das lembranas revivificadasno banquete aprofunda e radicaliza osentido da experincia vazia vivida ataquele momento, porm constitui-seem sacramento do renascimento deBabette.

    O processo de redeno de Babetteenvolve vrias etapas. A primeira de-las registra o movimento de retornoa partir do qual inicia-se a libertaodo passado.

    Para que Babette possa realizar umverdadeiro jantar francs, ela neces-sita no s do dinheiro da loteria fran-cesa, como tambm de ingredientesque no so disponveis na aldeia. Almdisso, ela precisa realizar as encomendaspessoalmente. preciso, portanto, resga-tar de alguma forma o estranhamentoque, no primeiro momento, tornou-asem ptria, sem amigos, sem cultura,enfim, sem identidade. Como sobrevi-vente, perante a desintegrao sofri-da, precisa reconstituir o contexto co-nhecido, a partir do qual os objetos, nasua familiaridade, adquiriam um sen-tido mais real e verdadeiro. SomenteBabette pode realizar esse trajeto, pois um caminho que rene, em suas v-rias encruzilhadas, provaes e reve-laes que marcaram no s o destino,

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    como tambm toda a transferncia daconscincia.

    A segunda etapa e talvez a maisimportante a retomada do passa-do. A preparao do jantar, como ri-tual de reminiscncias, cujo cerne areconstruo da identidade de Babette,tanto no plano individual como coleti-vo (o que significa tanto no plano mu-lher como no plano povo), celebra a ex-perincia como objeto da memria re-dentora. Visto de outra forma: erlebnis,experincia do tempo vivencial, subsu-me a erfarhrung, experincia do temponarrado, isto , o contexto da pr-pria vida, o contexto das experinciasvividas num encadeamento de aes, alegoricamente captado (aprisionado)no banquete. Babette narra sua hist-ria preparando o jantar e, jantando, oscomensais constroem a narrativa a par-tir da qual suas histrias se fizeram.

    Por detrs dessas cenas, mais doque o encanto produzido pelos pratossaboreados pelos convivas e o doceprazer da conversa que entretm emtorno da mesa, o objeto histrico queali se esconde o sentido do trabalhoe, imbricado nele, o tempo, compreen-dido como o conjunto de aes e pro-cessos que desencadeiam as mudanase as transformaes. Parece claro quetodas as personagens apresentam, nasua humanidade, no s o sentido dotrgico, mas principalmente a tensodicotomizante entre as experincias quede alguma forma se constituram comonegativas e a possibilidade de uma re-tratao que as torne ntegras perantea histria, entendida aqui como aquiloque permanecer na memria das pes-

    soas. essa culpa pequena e bur-guesa que a personagem Babette de-nuncia.

    A redeno de Babette retoma aexperincia como memria criativa,transformando o sentido do trabalhosob vrios aspectos e redimensionandoa relao com o tempo. As cenas finaisprojetam imagens que colocam emsuspenso a idia de temporalidade an-teriormente relacionada imagem dastarefas cotidianas. Os velhinhos emcrculo, olhando para a noite e para alua, enquanto o General ia embora damesma forma como havia chegado,parece insinuar que a manh seguinteser diferente dos outros dias e dasoutras noites. quase como se o tem-po adquirisse outra intensidade.

    Os trs nveis mencionados ex-perincia, trabalho e redeno , quese articulam na trama do filme, permi-tindo a transcendncia dos significadose sentidos das diferentes imagens,apontam para a dupla dimenso da re-construo empreendida por Babettecomo mulher e como povo. A mulher-trabalhadora (artes e artista) porta-dora do conhecimento que ir redimir,no s a individualidade, a identidade,como tambm a histria que construda com sua morte. Cada gestoempreendido por Babette no seu tra-balho contm, como resduo, o gestoda mulher e o sinal do passado, do qualse viu expropriada. Cada imagem, cadacena em que o banquete preparado emostrado indica que aquilo que se apre-sentava como acidental incompreen-svel (como os segredos do coraoou as armadilhas do destino), inclusi-

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    ve o ameaador espectro da morte,possui um sentido superior.

    Para descrever esse processo de re-deno, dois planos de narrao se in-terpenetram e se justapem nas ima-gens. Babette deixou uma posiode chef de cuisine na Frana para, emtroca de casa e comida, tornar-se umaempregada domstica. Ao mesmo tem-po que sua identidade de mulher e depessoa reconstruda na pequena co-zinha, o General, enquanto saboreiacada um dos pratos e se delicia comcada uma das bebidas, descreve paraos sentidos ingnuos daqueles fiis aidentidade de uma outra Babettemorta pelo tempo.

    O jantar, que outrora organizava epreparava por obrigao de ofcio paraseduzir e submeter os nobres freqen-tadores do Caf Anglais, ela faziaagora pela alegria e pelo prazer deoferec-lo a pessoas simples, que nadaou pouco sabiam do mundo l de fo-ra. O trabalho, fruto do tempo e daenergia comprada e vendida, foi trans-formado em trabalho, fruto do tempoe da energia criativa do artista. Capaci-dade que Achilles Papin esteve a pon-to de entender e apreciar, que o Gene-ral nunca chegou a compreender e queas irms e os fiis puderam pressentir.

    Promessa de vida: ressurreio

    O filme A festa de Babbete trata dasobrevivncia e, portanto, da morte; daopresso e, portanto, da liberdade; dadesiluso e, portanto, da esperana; domedo e, portanto, da vida. Cada umdesses elementos parte do significa-

    do da ressurreio, pois cada um de-les, na sua essncia, traduz a tensoexistencial a partir da qual o indivduo(Babette), superando os efeitos nega-tivos (destrutivos) de sua conscincia,torna-se capaz de viver a realidade nasua totalidade, compreendendo-se co-mo parte de um contexto superior, emque no h morte, destino ou acaso.

    Como foi dito antes, na jornada em-preendida por Babette desde sua terrade origem at os dias de hoje (lem-brem-se de que o filme se inicia com afigura de Babette preparando biscoitose servindo o ch para o grupo de fiisque se rene na sala), tempo e espaovo, aos poucos, definindo o caminhoda redeno a partir do qual a recons-truo histrica se faz.

    Num primeiro momento, o filmesugere que a converso fruto dossermes do pastor, das oraes ou,mesmo, da bondade, candura e tole-rncia caridosa e amorosa das duasirms. Entretanto, o jantar preparadoe oferecido por Babette mostra que aconverso resultado de um proces-so mais profundo, em que as tensesque caracterizam o existir humano eque opem constantemente a subjeti-vidade do eu s realidades circun-dantes do mundo so superadas21 porum fazer intencional e, nesse sentido,consciente.

    Esse ato concreto, simbolicamenterepresentado pelo banquete, resgata a

    21. (...) toda conscincia se v, constantemente,confrontada por objetos, por um mundo, ao qualreage, com o qual se relaciona emotivamente eque procura conhecer. Isto significa, em outras

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    experincia de esvaziamento e des-truio do ser (simbolizado na figurade Babette), para integr-lo numa ou-tra dimenso, em que as fronteiras en-tre o indivduo e o mundo se confun-dem, em que o tempo, passado-presen-te-e-futuro, percebido no seu aspec-to unitrio. Comeo e fim se igualam,se unem, indicando que a histria ter-mina onde comeou e que o seu come-o o princpio do fim essa a pers-pectiva da ressurreio. Primeiramen-te, porque aquilo que parecia represen-tar o processo de busca do indivduo(quando o jovem tenente Lowehelm enviado por seu pai para a regio prxi-ma da aldeia, para ali refletir sobre suavida e seu destino, e quando AchillesPapin, em busca de paz e tranqilidade,pensa ter encontrado ali sua razo deviver) significa um desvio, um cami-nho sem volta. Em outras palavras: oprocesso a partir do qual todos os con-dicionamentos hereditrios, psicol-gicos, familiares, educacionais, aliadoss frustraes, ignorncias, sentimen-

    tos de rejeio e de impotncia diantedas vrias situaes da vida, que resul-tariam numa estrutura de conscinciapropiciando ao indivduo, em princ-pio, um domnio de suas possibilida-des e limitaes, permitindo-lhe sertotalmente ele mesmo diante da reali-dade e tornando-o, assim, capaz deuma deciso profunda e radical paraas vrias situaes de conflito e tensoa que se v submetido de fato, acabampor conduzi-lo a um caminho cuja mar-ca a irreversibilidade da perdio22.

    O que era possibilidade de vida etransformao torna-se processo de de-pendncia e alienao. Os fiis e as ir-ms so to dependentes dos sermese oraes do pastor quanto o Generale Achilles Papin so dependentes domundo em que escolheram viver. (Amesma dependncia universal que de-creta cotidianamente a morte dosindivduos reunindo a todos numa so-ciedade chamada de consumo. Esse um dos aspectos que a alegoria deA festa de Babette denuncia.)23

    palavras, que em toda experincia humana umeu se depara com seu mundo. Com cada atoconsciente renova-se a ciso: aqui conscincia sub-jetiva, ali um mundo objetivo. Invariavelmente, oeu se v cercado de coisas estranhas e alheias ssuas preocupaes existenciais, insensveis aosseus anseios. O distanciamento entre autocons-cincia e as condies em que esta se v lanadaresulta num isolamento existencial do eu comexperincias opressivas: o medo da vida e umpavor ainda maior da morte; preocupao cons-tante com a autopreservao; terror de um desti-no indevassvel que a todo momento ameaa des-truir os nossos projetos, seno a nossa prpriaexistncia. REHFELD, W. I. (1988), Tempo e reli-gio. So Paulo, Perspectiva/Edusp, p. 26.

    22. A palavra perdio um termo tradicionale familiar a quase todas as religies e correspondeao estado da conscincia ou do esprito incapazde transcender a realidade material objetiva naqual vive. Diz-se das pessoas (das almas) queesto em pecado, que esto no caminho da per-dio. Na linguagem popular, trata-se de al-mas perdidas.23. Sob o jugo de um todo repressivo, a liberda-de pode ser transformada em poderoso instru-mento de dominao. O alcance da escolha abertaao indivduo no fator decisivo para a determi-nao do grau de liberdade humana, mas o quepode ser escolhido e o que escolhido pelo indiv-duo. O critrio para a livre escolha jamais podeser absoluto, mas tampouco inteiramente relati-

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    O trajeto de Babette, como foi ditoantes, ope-se ao trajeto de todas asdemais personagens. Sua sobrevivn-cia registra, sob vrios aspectos, a ten-so fundamental entre a vida-e-a-mor-te. A morte citada, mencionada e tidacomo referncia em vrios dilogos dasdiversas personagens, porm somenteBabette defrontou-se de fato com ela.Mais uma vez, registra-se a oposioentre o logos ou o princpio racional daexperincia vivida e a experincia pro-priamente dita, como fonte inesgot-vel de uma memria que toma o pas-sado morto como uma relembran-a que reinventa a vida.

    no banquete que, simbolicamen-te, a morte, como momento universalde absoluta e total solido do homemconsigo mesmo, torna-se para Babetteuma situao privilegiada da vida, deinteira maturao espiritual, em que ainteligncia, a vontade, a sensibilida-de e a liberdade podem, pela primeiravez ser exercidas em sua plena espon-taneidade, sem os condicionamentosexteriores e as limitaes inerentes nossa situao-no-mundo.24

    Na realizao do banquete, Babettevive e expressa em toda profundidadea converso de sua conscincia,25 emque a ambigidade da condio huma-na, com suas paixes contraditrias, superada pela ao consciente, fruto quevai ao encontro de um passado. Encer-rado o banquete, enquanto os convi-dados, na sala, cantam um hino reli-gioso acompanhado pelo caf e pelo li-cor, Babette descansa na cozinha,olhando para o vazio e tomando um(ltimo) copo de vinho. Embora haja asatisfao da tarefa cumprida, fica aimpresso de um olhar perdido, quepergunta sobre o amanh j sabendoda resposta. Babette sabe que seu fu-turo depende do xito do banquete:celebrar (por intermdio da memria

    vo. A eleio livre dos senhores no abole os se-nhores ou os escravos. A livre escolha entre amplavariedade de mercadorias e servios no significaliberdade se esses servios e mercadorias sustmos controles sociais sobre uma vida de labuta etemor, isto , sustm alienao. E a reproduoespontnea, pelo indivduo, de necessidadessuperimpostas no estabelece autonomia; ape-nas testemunha a eficcia dos controles.MARCUSE, H. (1969) A ideologia da sociedade in-dustrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, p. 28.24. BOFF, L. (1986), Vida para alm da morte.Petrpolis , Vozes, p. 46.

    25. Apesar de a experincia da converso ser im-possvel do ponto de vista exclusivo da subjetivi-dade, em razo principalmente dos condiciona-mentos exteriores e das determinaes outras aque todo indivduo est submetido, ela se traduz,na maioria das vezes, como um dado da vivnciainterior, como uma transcendncia de carterontolgico experimentada como ato consciente doeu. Rubem Alves, em O enigma da religio, refe-rindo-se experincia da converso, fala da for-ma total e irrestrita em que a subjetividade seencontra envolvida. Para ele, poderamos de-nominar a converso metamorfose da subjetivi-dade. Estruturas inteiras caem por terra. Centrosemocionais se deslocam. As zonas quentes dapersonalidade e suas matrizes emocionais dei-xam de s-lo. E ao mesmo tempo novas emoespassam a se constituir no objeto da paixo infini-ta do homem, enquanto um novo mundo cons-trudo pela subjetividade. Ser convertido morrerpara nascer de novo. Metania: experimentar adissoluo das estruturas normativas da razo,organizada segundo categorias radicalmente di-ferentes. ALVES, R. (1979), O enigma da religio.Petrpolis, Vozes, p. 56.

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    contida em seu trabalho), com todosos requintes, o centenrio de nascimen-to do pastor j falecido e que a expe-rincia do sabor (sensao de sabe-doria) conduziria as pessoas a se sen-tirem felizes e em paz; ao mesmo tem-po, festejar, com as lembranas irrom-pidas num outro tempo e lugar, o nas-cimento da mulher que durante tantotempo esteve morta e no sabia.

    O que define a converso em Ba-bette a profunda crise de sua identi-dade, pela perda de todas as refern-cias, e a construo de uma nova pes-soa, que moldou um outro tipo de vida:o da interioridade consciente. Crise dogrego Krisis, que tambm significa de-ciso, ruptura, juzo diante de um mo-mento que se apresenta como terminale que pode constituir-se como passa-gem, iniciao (renascimento) parauma vida posterior (pstuma).26

    Simultaneamente, no mesmo even-to do banquete est presente o simbo-lismo de um velrio e de um batismo.Em sua essncia, a representao maisprxima da ressurreio. A morte e avida, eterna dialtica de unio e sepa-rao do homem em relao nature-za e da natureza em relao ao homem,podem ser identificadas em A festa deBabette como a promessa de vida quese anuncia no movimento entre a ma-gia e a tcnica: magia produzida pelaarte presente em todo o banquete,transformando a realidade em algo ex-traordinrio (fora do comum, do ordi-nrio); tcnica, enraizamento nessarealidade, dos atos inaugurais (hist-ricos) que apropriaro a natureza deuma humanidade. Afinal, disso quetrata a natureza do ato de cozinhar:preparar e submeter os alimentos, comconhecimento, ao do fogo, ou seja,conferir propriedades humanas aalgo inumano.

    Mais uma vez, o universo alegri-co da personagem Babette transcendeseu aspecto particular para indicar adimenso social e coletiva presente emseu simbolismo. As demais persona-gens so prisioneiras da objetividade,que as mantm no domnio da perdi-o, do desvio, sem possibilidade deretorno porque se tornaram incapazes

    26. Esses dois aspectos: a crise provocada pe-las situaes-limite a que o ser humano cotidia-namente submetido e a passagem ou inicia-o para uma outra forma de vida, do ponto devista antropolgico, podem ser relacionados a in-meras possibilidades de representao da mortepresente em diferentes culturas. Entretanto, doponto de vista teolgico, esses dois aspectos sofundamentais para a compreenso da transcen-dncia que a deciso acima referida impe ao ho-mem como condio para imerso numa outrarealidade, que tem como contraponto a eternida-de. Nessa perspectiva, a morte a situao-limitepor excelncia. Na morte, o homem entra na crisemais decisiva de toda sua vida. Tem que decidir-se. At aqui, ele podia protelar, manter-se no cla-ro-escuro das meias medidas. Agora, chegou otermo do processo biolgico. O homem exteriordesmorona para deixar emergir cristalina ounegramente o homem interior que foi nascendo. Ecolocado na situao privilegiada de quem acaba

    de nascer e nascividade o vigor matinal de todasas potncias. Num momento, v-se a si mesmo, oque foi e o que no foi. E vendo-se o homem seautojulga e assume a situao que lhe correspon-de. Cada fibra de sua vida transluz; as dobras desua histria pessoal se tornam transparentes. Elese tem nas mos como jamais antes. BOFF, L.,op. cit., pp. 48 e 49.

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    de ver, de sentir e de agir. Essa objeti-vidade corresponde ao mundo da tc-nica, como expresso da pura raciona-lidade progressiva da humanidade,capaz de dissolver qualquer mito so-bre a imortalidade, sob a iluso de queeterniza o tempo produzindo artifciosque dominam a morte.

    O culto e a mistificao das pala-vras e da figura do pastor indicam opadro de conformidade que a so-ciedade (tecnolgica), interessadanuma vida futura melhor, prope comopossibilidade de salvao para o ser hu-mano. Na verdade, qualquer chance delibertao torna-se razo para uma ou-tra nova forma de escravido ou de-pendncia. No filme, exceo de Ba-bette, no h mudanas ou alteraesjustificadas e a crise ou o conflito vivi-dos por qualquer uma dessas persona-gens no resulta em elementos que lhespermitam transcender a razo, de mo-do a traduzir-se numa deciso radical.Ao contrrio, a razo cumpre o papelfuncional de confirmao de uma de-terminada viso de mundo. No toa que o General, durante o jantar,afirma que os sermes do pastor so aleitura de cabeceira preferida da Im-peratriz. Ou, ento, as menes ao pas-tor, que voltam seguidamente, no fil-me, com as mesmas palavras, as mes-mas entonaes, as mesmas circunstn-cias, indicando que sua presena(ideologia) paira como absoluta nocu daqueles indivduos.

    O mesmo, presente na narrativaflmica, revela-se, ento, no contedohistrico que deserda os indivduosde toda a sua potencialidade criadora

    e transformadora, mas que, ao mes-mo tempo, o solo a partir do quala experincia humana se altera radi-calmente.

    Em outras palavras, na contradi-o inelutvel humana em que o pro-cesso de crescimento ou, em ter-mos junguianos, de individuao um caminhar e um educar-se para amorte: o homem definha em sua na-tureza biolgica e, em ordem inversa,deve objetivar o desenvolvimento, cue inferno oscilam no purgatrio daalienao, fazendo com que toda a ten-tativa de construo de uma razosignificativa como integrao do indi-vduo histria, sua histria, sejaum esforo inacabado, produzindocomo resultado mais runas do quemonumentos.

    Portanto, o olhar que imprime aofilme A festa de Babette a viso de umaoutra realidade encontra a velha (amesma), porm, vista e narrada sob atica de um novo olhar. O espiritualhumano do banquetear-se, que subs-titui o natural desejo de alimentar-se,no consegue abolir a monotonia docotidiano e a terrvel repetio da his-tria, mas faz prevalecer, na atmosfe-ra em que todas as coisas se reconci-liam, a vida (e no a morte) em todasua precariedade.

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    Aproximaes benjaminianas

    Imagem, memria, tradio

    Massimo Canevacci,27 analisando ouniverso da cultura visual num seg-mento muito especfico, que ele chamade comunicao visual reprodutvele que est presente na expanso deuma modernidade sempre mais univer-salizante, ambivalente e paradoxal,aponta para uma antropologia da dis-soluo, cujo exemplo mais significa-tivo derivado

    daquela tcnica da comunicao visual prpria do cinema de massa atra-vs da qual se passa, se transita, tur-vando os dois extremos: de um lado, aparte final de um conjunto de seqn-cias que conclui uma histria parciale, de outro, o incio de um grupo deimagens que abre caminho a uma novahistria de que nada sabemos.

    A imagem, tal qual est dada na lin-guagem cinematogrfica, contm o re-sduo dialtico a partir do qual a des-construo se faz, tornando possveluma reconstruo. O reconhecimentodo cinema como fetiche e reprodutorda alienao no basta para a decodi-ficao de sua linguagem, preciso re-construir, no universo prprio em quefoi e produzido, o sentido originalda obra.

    Em razo disso, no s o reconhe-cimento da propriedade da linguagemcinematogrfica se faz necessria, como

    tambm o prprio conceito de imagemadquire relevncia na compreensodessas significaes. Essa necessidade apontada por Canevacci ao retomaras imagens dialticas de Walter Ben-jamin. Nessa aproximao, Canevaccirene duas idias fundamentais na ca-racterizao de um real sempre con-temporneo, de que o cinema o exem-plo mais apropriado. A anlise de Ben-jamin dos produtos da cultura inte-lectual, como, por exemplo, a foto-grafia, a pintura, a arquitetura deHaussmann, a literatura de Proust, apoesia de Baudelaire articulados aosestudos de

    constelaes microlgicas sobre os cos-tumes, o modo de viver e de agir, taiscomo o colecionador, as multides, oflaneur, a rua, a moda, as nouveauts, ascaricaturas, os panoramas, as passa-gens,28

    permite delinear o conceito das ima-gens dialticas por intermdio dasquais a histria pode ser lida.

    Essa articulao, apropriada pela lin-guagem do cinema ao estabelecer cor-respondncias das mais diferentes or-dens (no tempo e no espao), a partirdas mais diversificadas perspectivas (li-terrias, artsticas, teatrais, documen-tais, jornalsticas, etc.), cristaliza-asem imagens que se revelam simultane-amente como mercadoria e fetiche.29

    27. CANEVACCI, Massimo. (1990), Antropologiada comunicao visual. So Paulo, Brasiliense.

    28. O tema da modernidade, apesar de ser parteda discusso, exige um trabalho parte.29. Massimo Canevacci, em Antropologia da comu-nicao visual. Op.cit. Se Walter Benjamin tivessesobrevivido ao desenvolvimento do cinema, teria

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    O processo de produo da ima-gem, que faz a sobrevivncia do cine-ma (mesmo sem restringir-se a isso e,ao contrrio, procurando transcenderesses limites ou, como diz Deleuze,cercando a imagem com o mundo),guarda no mais antigo sentido etimo-lgico do termo uma relao comimitari (imitao).

    Tal relao, possvel em razo daprpria idia de cpia, que o cinemapreserva como representao anal-gica,30 traz consigo, na construo dasdiferentes imagens, a necessidade decircuitos cada vez maiores que unis-sem uma imagem atual a imagens-lembrana, imagens-sonho, imagens-mundo.31 Inversamente, na direodessa necessidade, a procura por umcircuito menor,

    que funciona como limite interior detodos os outros, e que cola a imagematual a um tipo de duplo imediato,simtrico, consecutivo ou at mesmosimultneo,32

    definir o flash-back como uma das pos-sibilidades da correspondncia entreduas ou mais imagens. Ainda segundoDeleuze, essa tendncia, levada s l-timas conseqncias, permitir que sediga que a imagem atual corresponde imagem virtual, como um duplo oureflexo.33

    A imagem tratada dessa forma car-regar consigo no s o sentido lgicodo fio condutor descritivo (ou narrati-va) de um enredo (com uma determi-nada histria), como tambm ser oreflexo de uma realidade lingsticamais ampla, cuja interpretao permi-tir resgatar algo que a princpio pare-ce irreconcilivel.34

    Tal o sentido possvel de ser cap-tado na voz em off e no flash-back dofilme A festa de Babette, uma vez que elese torna atual na leitura do especta-dor, ao mesmo tempo que, na atuali-dade da sua narrativa, o sempre pre-sente traz implcito o passado aoqual o presente referido. Por sua vez,o filme se passa num outro tempo elugar, logo, o presente muda oupassa rapidamente e, assim, torna-sepassado quando ainda no o .

    A imagem atual, imagem do eter-no presente, cristalizada na sua pr-pria imagem virtual como um peque-no circuito interior que vai construin-

    33. Ibid.34. Deleuze, mencionando Bergson a partir deMemoire et matire, fala de uma coalescncia entreo objeto real refletindo numa imagem especular eo objeto virtual que, por sua vez e ao mesmotempo, envolve ou reflete o real. Nesse sentido,h formao de uma imagem bifacial, atual evirtual, p. 88.

    se tornado um excelente crtico ou um perspicazcineasta, uma vez que sua concepo das ima-gens dialticas, assimilada por M. Canevacci,ajusta-se perfeitamente a qualquer anlise que sefaa sobre cinema. Na anlise de M. Canevacci, oconceito eurstico de imagem dialtica usadocomo: uma constelao objetiva, em que a situa-o social representa a si mesma; um modo depercepo de fetiches, fantasmagorias e ilusesna conscincia individual e coletiva; um modelode reproduo no interior de uma antropologiada cultura visual em que passado e presente secruzam. Op. cit., p. 152.30. BARTHES, R. (1991), O bvio e o obtuso. Rio deJaneiro, Nova Fronteira, p. 27.31. DELEUZE, G., op. cit., p. 87.32. Ibid.

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    do a unidade narrativa do filme e, aomesmo tempo, estabelecendo o con-junto com seu respectivo limite inter-no, torna-se descrio cristalina deduas faces que no se confundem.35

    Essa ressonncia, que no se fixameramente na aparncia, um resduodas cristalizaes objetivas a que sereferia W. Benjamin, e, como tal, cons-titui-se no espectro dialtico que cap-tura e aprisiona a ambigidade do real.Imobilizada na imagem que contmno s a multiplicidade da forma comotambm a gerao do movimento, arealidade humana, lida na sucesso dascenas de uma maneira linear, volatiliza-se na direo de um olhar passivo eativo: olhar-espectador e, ao mesmotempo, olhar-testemunha.

    emergncia de uma tempora-lidade captada pela imagem corres-ponde uma realidade sindromtica,isto , um mundo cuja capitalizao dotempo (time is money) cria os mecanis-mos e os instrumentos de administra-o da eficincia, da qualidade e, atcerto ponto, da inventividade de umaidia (de um filme, de um livro, deuma pea teatral, de um quadro, etc.),gerando nos indivduos as mais dife-

    rentes sndromes, o que, por suavez, inviabiliza a ao, abrindo espa-o para reaes (confundidas, namaioria das vezes, com manifestaesrevolucionrias).36

    Essa a realidade que a alegoriade A festa de Babette denuncia. NelsonBrissac Peixoto, no artigo O olhar es-trangeiro,37 ao apontar a transforma-o sofrida pela imagem como repre-sentao de algo que lhe era exterior,fala da dificuldade de se distinguir oque e o que no real, caindo, ento,na era da produo real. Para ele,no h mais distino entre realidadee artifcio, entre experincia e fico,entre histria e histrias (ficcionais).38

    Tudo se transforma num mundo depersonagens e cenrios, em que as his-trias j foram vividas e os lugares vi-sitados. Somente o olhar estrangeiro capaz de compreender o universo darepetio em que se transformou a cul-tura contempornea.

    Segundo Nelson B. Peixoto,

    o estrangeiro toma tudo como mitolo-gia, como emblema. Reintroduz ima-ginao e linguagem no que era vazioe mutismo. Para ele, personagens e his-trias ainda so capazes de mobilizar.Ele o nico que consegue ver atravsdessa imagerie.39

    35. Com efeito, no virtual que no se torneatual em relao ao atual, com este se tornandovirtual sob esta mesma relao: so um avesso eum direito perfeitamente reversveis. So ima-gens mtuas, como diz Bachelard, nas quais seefetua uma troca. A indiscernibilidade do real edo imaginrio, ou do presente e do passado, doatual e do virtual, no se produz portanto, demodo algum, na cabea ou no esprito mas ocarter objetivo de certas imagens existentes,duplas por natureza. Ibid., p. 89.

    36. No cinema, o dinheiro tempo. Nesse sentido,a mercadoria que ele e que representa deve sercapaz de financiar o tempo (da produo, porexemplo) e de garantir o espao da exibio du-rante algum tempo...37. NOVAES, A. et al. (1988), O olhar. So Paulo,Companhia das Letras, pp. 361-365.38. Ibid., p. 362.39. Ibid., p. 363.

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    Essa a viso anunciada por Babettecom cada gesto, que preenche de sig-nificados o sentido das imagens e queremete identidade e ao lugar, numesforo de pertena e integrao capa-zes de romper o ciclo repetitivo dashoras.

    A unidade de um filme advm dajustaposio de peas e fragmentosnuma seqncia criadora,40 da mesmaforma que a memria, segundo a con-cepo de Bergson,41 corresponderia aum armazenamento cumulativo, queconteria a totalidade da experinciaadquirida. A memria possibilita e con-duz uma narrativa at certo ponto dahistria. Nesse sentido, conserva o pas-sado e atua no presente, oscilando en-tre os hbitos assimilados, incorpora-dos, apreendidos pela repetio, e aslembranas, resultado de experinciassingulares, impossveis de serem repe-tidas, porm extremamente evocativasem funo do carter nico e irrepetvelque conservam e que vem tona nomomento de sua atualizao.

    Essas duas memrias (mem-rias-hbito e imagens-lembranas) sesobrepem no filme A festa de Babette.A homogeneidade dos hbitos das ir-ms e dos velhos fiis, partes do pro-cesso de adestramento mecnico sprticas de sobrevivncia na pequenaaldeia, em oposio imagem-lem-brana configurada na presena de

    Babette e no modo como essa convi-vncia interferiu e modificou suas vi-das, simbolicamente representada naceia que celebra uma data, ao mesmotempo que inaugura um novo tem-po na vida de todos eles.42

    No filme, o condutor da narrati-va o flash-back, aliado voz em off,portanto, o passado tornado presen-te que contm e explica o futuro atuali-zado pelo olhar do espectador. Comodiz Deleuze,

    em vez de uma memria constituda,como funo do passado que relatauma narrativa, assistimos ao nasci-mento da memria, como funo dofuturo que retm o que se passa paradele fazer o objeto por vir da outra me-mria. (...) A memria nunca poderiaevocar e contar o passado, se no ti-vesse se constitudo por vir. E por issomesmo que ela conduta: no presen-te que se faz uma memria, para elaservir no futuro, quando o presente forpassado.43

    A imagem e a memria so, no fil-me, o fundamento da experincia his-trica de Babette, isto , os dois ele-mentos interagem como substrato datemporalidade que torna possvel a lei-tura e a interpretao do presente, de

    40. A esse propsito, vide MARTIN, M. (1990),A linguagem cinematogrfica. So Paulo, Bra-siliense.41. Henri Bergson, em Matire et memoire, citadopor DELEUZE, G., op. cit., cap. 1 a 6.

    42. BOSI, Eclea. (1979), Lembranas de velhos. SoPaulo, T. A. Queiroz. Ao mencionar essas duasmemrias, referindo-se ao esquema bergsoniano,a autora relaciona-as, por um lado, ao comporta-mento cotidiano (memrias-hbito) e, por ou-tro, ao sonho e devaneio, em que as lembranassingulares fluem, constituindo-se autnticas res-surreies do passado (p. 11).43. DELEUZE, G., op. cit., p. 68.

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    tal forma que a simbologia, em certosentido universal, do banquete (ou daceia), ao ser reconstruda pelo conhe-cimento anterior de Babette, torna opassado algo vivo. Aqui, possvelmais uma aproximao com o pensa-mento de W. Benjamin.

    Jeanne-Marie Gagnebin, ao comen-tar o mtodo do historiador materia-lista segundo W. Benjamin e sua rela-o com a esttica proustiana, afirma:

    A mesma preocupao de salvar o pas-sado no presente graas percepode uma semelhana que os transformaos dois: transforma o passado porqueeste assume uma forma nova que po-deria ter desaparecido no esquecimen-to; transforma o presente porque estese revela como sendo a realizao pos-svel dessa promessa anterior, que po-deria ter-se perdido para sempre, queainda pode se perder se no a desco-brirmos, inscritas na linha do atual.44

    A festa de Babette revela, num duplo sen-tido, esse aspecto. Em primeiro lugar,como objeto a servio de uma estticavisual e sonora, que tem na sua lingua-gem um fluxo contnuo entre o passa-do e o futuro; e, em segundo lugar, pelaforma e disposio de um contedoem que a personagem central (Babette)luta pela sobrevivncia procurando sal-var sua identidade do esquecimento,inscrevendo-se, assim, no presente (damesma forma que um filme).

    W. Benjamin faz uma distino en-tre o tempo controlado pelo relgio(tempo homogneo e vazio) e o tem-po do calendrio. O tempo do relgiocorresponde ao processo de acumula-o dos acontecimentos como algo quevai se acomodando dentro de um reci-piente.45

    O tempo do calendrio, ao contrrio,no se desenrola mecanicamente, pon-tua a existncia com dias de recorda-o, momentos que capturam o tempoem pontos de concentrao. Nestesdias as coisas relembradas subitamen-te se tornam atuais, retornam exis-tncia nos momentos de recordao.Este o carter diferencial do tempohistrico; no a badalada regular dorelgio que nivela todas as ocorrnciasem um contnuo indiferente, mas a s-bita pausa do colecionador; no o frioavano do processo infinito, mas suatransgresso.46

    Babette, ao resgatar do tempo opassado significativo perdido nas lem-branas (a figura do General, sua rela-o com as irms e o pastor, o jantarem sua homenagem no Caf Anglais;por sua vez, a prpria lembrana deAchilles Papin e sua amizade comBabette numa poca em que ela era unechef de cuisine), representa o prpriocolecionador, que, interferindo nocontinuum dos dias, das horas, do co-tidiano homogneo e sempre igual daaldeia, produz, por meio do banquete,um momento de interrupo.

    44. GAGNEBIN, J. -M., (1987), Introduo aWalter Benjamin Obras escolhidas, magia e tcni-ca, arte e poltica. 3a. ed., So Paulo, Brasiliense,p. 16.

    45. MATOS, O. C. F. (1989), Os arcanos do inteira-mente outro, So Paulo, Brasiliense.46. Ibid., p. 31.

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    DOSSI: ENTRE NATUREZA E CULTURA A FESTA DE BABETTE

    Esse momento de pausa, Benjamin ocaracteriza como Jetztzeit, elementoprimordial de uma nova interpretaodo passado, da tradio, como cons-truo.47

    E aqui o sentido da tradio se re-vitaliza, deixa de representar algoesttico e cristalizado (desprovido e es-vaziado de qualquer sentido histrico)presente nas prticas rotineiras, sim-bolizado nas oraes, rezas e cultos ce-lebrados pelas irms e os fiis, univer-so de uma elite dominante ao qualBabette vem se agregar, para se trans-formar em atitude revolucionria pelochoque que o banquete provoca. Tra-dio que se celebra com o simples jan-tar que as trs irms imaginavam, seriamera repetio, mas que, idealizada porBabette, construo histrica.

    Nesse sentido, o banquete de Ba-bette redime no s seu prprio desti-no, como os de todos os demais. E, se-gundo Benjamin, se a histria reden-o do destino, porque a histriaconstitui-se de memria, isto , de ex-perincia.48 A figura de Babette seidentifica com a figura do historia-dor, que repete o passado em sua sin-gularidade, recolhendo o excedentede significao de que portador, me-lhor dizendo, o nico e irrepetvel49.

    Toda a preparao e execuo dobanquete um ritual de rememorao,pelo qual

    a memria, a lembrana acalentam ador, o sofrimento e a morte no sentidode sua redeno. No se age de formaa recalcar o passado, a fim de arquiv-lo e produzir a apologia acrtica doPresente.

    A histria que se resgata no a deglrias (do pastor) e conquistas (doGeneral), mas a

    crnica da destruio e das coisas cor-rodas pelo tempo. A histria mas-sacre, a memria sua redeno, lutacontra a morte, como relembrana etranscendncia.50

    O que Babette experimenta a mes-ma sensao de quem vive na grandemetrpole, o sentimento de estranhe-za de quem luta pela sobrevivncianum mundo que se assemelha preca-riedade e ao desamparo. Tal como avida do proletariado na grande cida-de. E tal como o proletariado, Babettetambm est margem do mundo,como mulher e como indivduo.

    Nesse universo, a atuao heri-ca de Babette implica a ausncia dossentidos das demais pessoas, petrifi-cadas que esto na rigidez do velho,imagem mimtica da morte. O aban-dono racional das sensaes que per-mitiria aos velhos fiis apreciar o ban-quete corresponderia perda da di-menso do olhar,51 o que significa aprpria dissoluo do sujeito.

    47. Ibid., p. 32.48. Ibid., p. 47.49. Ibid.

    50. Ibid., pp. 57 e 58.51. Ibid., p. 73.

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    A crtica benjaminiana se faz em nomeda individualidade que agoniza antesda realizao de seus valores. O esque-cimento do indivduo, sua integraona vida da grande metrpole e amn-sia social: o passado arquivado nosentido da perda simultaneamente damemria e do pensamento crtico.52

    A linguagem cinematogrfica, car-regando consigo, sob vrios aspectos,a impresso desse olhar, aponta parauma dissoluo em que o tempo ple-no das imagens exclui o tempo doolhar, pretendendo, quem sabe, comos vrios recursos disponveis e aindapor vir, provocar uma interrupo nocontinuum do tempo e viajar no senti-do contrrio ao da morte.

    Recebido em 26/4/2002Aprovado em 30/6/2002

    Maristela Guimares Andr, filsofa e profes-sora do Departamento de Teologia da PUC-SP.E-mail: [email protected]

    52. Ibid., p. 74.