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A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM AÇÕES COLABORATIVAS,
INQUIETAÇÕES
Poéticas em Práticas Pedagógicas
Lucimar Bello P. Frange – UFU (aposentada)
Resumo
As poéticas em práticas pedagógicas são trabalhadas como experiências estéticas nas relações entre
teoria, obras colaborativas de artistas visuais contemporâneos, e ações em comunidades.
Abstract
Poetics in teaching practices are worked as aesthetic experiences in the relationship between theory, collaborative works of contemporary visual artists, and actions in communities.
Palavras Chave Poéticas pedagógicas, experiências estéticas, artistas e obras colaborativas, arte e comunidades.
Pensar é um ato, sentir é um fato.
Clarice Lispector
Esse texto permeado por dúvidas e incertezas aborda experiências estéticas, ações coletivas
e colaborativas no universe das artes visuais. São provocações e ampliações inquietas a
vivermos durante a realização do 23º CONFAEB/2013, Porto de Galinhas que nos levam à
derivas e devires em portos de criação em arte e seus ensinos. A criação em arte é fundante
na elaboração do Ser e dos Sentidos de Mundos – pensar é um ato; as imagens estão
prenhes de sentidos, sejam as da arte ou as que nos atacam nesse mundo de imagens em
movimentos velozes e vorazes. Precisamos pensar, indagar, propor, questionar, “imagizar”
(imagens com ação e imaginação), inventar as imagens do e no mundo, e as imagens em-
nós – sentir é um fato, criar na arte e na vida, uma necessidade pedindo passagem.
A experiência estética, embora pareça redundância, contem a ética e as estesias, as
sensações experimentadas e trans-formadas (formas visivas que escapam de “si mesmas”).
Se olharmos historicamente, podemos fazer caminhos que nos permitam entender “o aqui e
o agora”, o “já-ontem-agora-amanhã”, com suas complexidades e inconsistências. Se
olharmos culturalmente, teremos mais categorias e complexidades tecidas nessa trama
estética e estésica. Se olharmos os processos de criação dos artistas, dos professores, dos
alunos, mais e mais redes serão tecidas em nós-pessoas. As redes, no século XXI se
transformam e se desfazem a cada instante em redes outras, os pontos de encontros são
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mutantes, neles e entre eles vivemos e, em “nós-fazemos” uma vida-pulsante. O instante-já
de Clarice Lispector, já passou. Foi e é, fica-finca-fura a cada um/a aqui presente ou leitor
desse texto. O instante é ontem, é agora, é amanhã, é talvez. Picasso afirma: a arte é a
dúvida. Sempre há em cada instante, razão, irreflexão, paixão, calma, atenção, vigília,
sono, repouso, caminhada em todos os sentidos. Há a todo instante uma corporação, uma
corpo-em-ação a devir, a tomar forma, nos pedindo passagem. As relações entre arte e seus
ensinos é um fazer transversal, são passagens que deixam frestas para outras a vir.
Se olharmos para as aulas de artes visuais e imbricamentos com outras áreas do
conhecimento, essa trama poderá se tornar um tapete urdido como uma grama ecosófica.
Lembro os 3 registros da ecosofia de Felix Guattari: o do meio ambiente, o das relações
sociais (e hoje podemos acrescentar, das relações virtuais); o das subjetivações
colaborativas. Se olharmos para as subjetivações, imensos buracos, fósseis e entre-lugares,
surgirão nessa trama-tapete-grama. Nós FAEBianos, somos blocos inteiros de
subjetivações coletivas, pedindo passagens para a arte e seu ensino, interligando trabalhos
interculturais. Para Gilles Deleuze, futuro e passado não têm muito sentido; o que conta é
o devir-presente: a geografia e não a história, o meio e não o começo nem o fim, a grama
que está no meio e que brota pelo meio, e não as árvores que têm cume e raízes. Sempre a
grama entre as pedras do calçamento. Peço licença a Marilá Dardot para mostrar alguns
de seus trabalhos que dizem, mostram e dão a ver, a grama, o calçamento, a palavra, todos
tomados como texto coletivo em espaços colaborativos de criação. Na obra No silêncio
nunca há silêncio, a grama sofrendo a fotosíntese, atua fortemente, é cúmplice a criar cores
e novas relações. Para onde nos levam? Silêncios, nunca, gramas, fotosínteses? A
experiência e não a verdade, é o que dá sentido à escritura e aos textos visuais, verbais,
sincréticos. Educamos para transformar o que sabemos, não para transmitir o já sabido
(Jorge Larossa e Walter Koban). O que sabemos de silêncio(s), de grama(s), de nunca(s),
de fotosíntese(s)?
no silêncio nunca há silêncio
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Para abordarmos a presença viva da arte em nós e a experiência estética partindo de
exercícios concretos, vamos considerar: o artista; a obra-trabalho; o fruidor-espectador; a
exposição; as relações com a arte (não somos virgens, temos ancestrais na vida e na arte).
Pensemos também os modos de agregação e de circulação, pois se tratam de obras e
trabalhos coletivos. Vamos enfocar artistas e práticas colaborativas em comunidades que
nos deslocam para des.a.locamentos outros. As escolhas se dão pelos atos de compartilha
nas obras desses artistas, Marilá Dardot, Sophie Calle, Jorge Macchi, Lucimar Bello.
Lembro Jacques Rancière, a arte do explicador é a arte da distância e me coloco numa
distância-proximidade, entendendo serem complementares.
Marilá Dardot – No silêncio nunca há silêncio, Suécia, 2013; A Educação pela
pedra – Para aprender da pedra, frequentá-la (João Cabral de Melo Neto), Museu
Lasar Segall, 2012; Longe daqui aqui mesmo, um dos terreiros, 29a. Bienal de São
Paulo, 2010. Oficina Palavrarias…
a educação pela pedra
Sophie Calle – Cuide de você, SESC Pompéia/SP, 2009. Participação de 107
mulheres, profissionais de áreas diferentes, incluindo um papagaio fêmea.
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Jorge Macchi – Música Incidental, 1997; Monobloco, 2003; The speakers corner,
2002; Folha morta, 2005; Outono em Lisboa, 2004; Uma poça de sangue, 2001;
Fim de Filme, 6a. Bienal do Mercosul, Porto Alegre, 2007.
uma poça de sangue
Lucimar Bello – Fábrica de Ações que Não Existem, oficinas realizadas em Belém
e Vitória, 2013.
Belém Belém
Vitória
Podemos abordar também o tema ou assunto; o percurso de criação do artista, do professor,
do estudante de arte; a fatura, as maneiras como aquele trabalho é feito e mostrado; as
contaminações com a história(s) da arte e campos de saber(es). Cada pesquisador ou
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historiador em arte escolhe e monta uma coleção para, a partir dela tecer suas
considerações e teorias. Por isso a história da arte no singular e no plural.
Teria o artista e, e/ou o professor uma matriz conceitual, uma indagação constante em sua
produção pessoal e coletiva? Seria ela provocativa para os alunos, sejam da escola formal
ou de instituições outras, e mesmo de ações rápidas: oficinas, intervenções em ruas e
cidades? De que maneiras agregamos os trabalhos de nossos alunos e os mostramos para
que as pessoas entendam os pensamentos, ações e proposições de todo ou parte do
percurso de criação desses alunos? Como nos fazemos sóbrios, desérticos e, ao mesmo
tempo, povoados?
Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio,
cada vez mais simples,
tornar-se cada vez mais deserto e,
assim, mais povoado.
Deleuze
Enquanto FAEBianos, nesse Congresso, pensemos as situações de sobriedade(s), as
desérticas, as povoadas, todas juntas. Quais as reverberações em nossas aulas?
Para exercitarmos as poéticas em práticas pedagógicas a partir de Deleuze, podemos
pensar a prática em arte que se constrói nas relações com o outro e outros de outros; aquele
que indaga, questiona, duvida tanto quanto “eu e o fora-de-dentro-de-mim”, o “meu
complementar” que, insistentemente cria e propõe criações colaborativas. A arte pensa e
nos faz pensar. Didi Huberman propõe o entrelaçamento de 3 paradigmas: o do sentido,
das estesias (os sentidos sentidos, além sentimentos e das percepções) e o pathos. Os
abismos do olhar e as experimentações se passam sempre ao corpo, cada vez mais
desértico e mais povoado, denso e fértil, intensivo e inventivo.
Sophie Calle (França, 1953), é escritora, fotógrafa, professora de cinema e video, atua nos
campos da arte conceitual e instalações; trabalha com a vulnerabilidade humana, a
intimidade, identidades e alteridades. Vamos ver: Take care yourself, mostrado na 52a.
Bienal de Veneza, 2007. No Brasil, recebeu o nome de Cuide de você, no SESC/Pompéia,
em São Paulo, 2009. Escreve Sophie: Recebi uma carta de rompimento. E não soube
respondê-la. Era como se não fosse destinada. Terminava com as palavras: ‘cuide de
você’. Levei a recomendação ao pé da letra. Convidei 107 mulheres, de profissões
diferentes para interpretar a carta. Analisá-la, comentá-la, dançá-la, cantá-la. Esgotá-la.
Entendê-la em meu lugar. Responder por mim. Era uma maneira de ganhar tempo antes
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de romper. Uma maneira de cuidar de mim. Esse trabalho só acontece com a participação
do ex-namorado, o escritor Grégoire Bouillier ao escrever o e.mail em 2004; a reação e as
proposições de Sophie; as 107 mulheres, cada uma a partir de sua profissão, vivendo o
e.mail; a fatura de Sophie após receber as respostas; os modos de agregação e de circulação
dessa longa e vasta prática coletiva, em exposições, incluindo a gravação dos vídeos, dos
emolduramentos, da colocação nos espaços de cada fragmento em determinado lugar; da
ambiência necessária para que o trabalho pudesse mostrar de onde vem e como se conecta
com as pessoas, tanto em Take care yourself (Bienal de Veneza), quanto em Cuide de você
(São Paulo). Sophie extrai do rompimento uma potência nômade e fugidia. A autoria
escapa; o trabalho é de muitos; questiona os relaciomentos de amor, um script dos fins de
romance onde ainda existe bem querer; desmonta o ídolo e a imagem que pesa sobre o
pensamento; não apenas reage, mas age de modo criador. Diz Sophie, para mim, amor não
morre, no máximo se transmuta, transcende. Dentre as 107 intérpretes estão a atriz Jeanne
Moreau, a cantora Peaches e a compositora Laurie Anderson e anônimas como uma
vidente, uma física, uma mágica, uma professora de Ikebana e até um papagaio fêmea. A
artista diz que é um desafio expor as situações extraordinárias que todo ser humano vive. E
que a transformação dessas realidades em arte é uma maneira de ter controle sob a vida e
não ficar na posição de vítima dos sentimentos. Ver as ações educativas em
http://www.videobrasil.org.br/sophiecalle. Na Exposição no SESC/Pompéia, destaco
algumas ações da Curadoria Educativa: a Oficina “Sophie Calle, tensões entre as imagens
domésticas e as de vigilância”; a Aula Aberta: “E se Sophie Calle tivesse recebido um
SMS ao invés de um e.mail” explorando microcontos e microtextos de Ernest Hemingway,
Franz Kafka, Machado de Assis, Dalton Trevisan; “O tempo do amor hoje. Uma
cartografia em pedaços”, a partir dos filmes: “Antes do amanhecer” e “Antes do por do
sol”, fazendo pensar no amor romântico e o amor atual nos discursos contemporâneos.
Calle trabalha com a presentidade, além da figuratividade – o que vemos, o que nos olha –,
formando um caleidoscópio epistemológico, estético e estésico. A história da arte poderia
ser trabalhada como uma filosofia das imagens? Podemos nos aventurar por esses
caminhos?
Jorge Macchi (Argentina, 1963), diz que as obras partem das imagens, delas tomam
forma. E mais: Caminho por uma casa, olhando o chão. Trabalha com o cotidiano, a
cidade, a violência, o destino, mapas de cidades, linhas de metrô, periódicos, jornais,
fazendo meditações sutis sobre as possibilidades poéticas da vida cotidiana. Morou nos
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Estados Unidos, Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Equador. São instalações,
vídeos, pinturas, fotografias, interligando música, poesia, artes visuais. O curador da 6a.
Bienal do Mercosul, Gabriel Pérez-Barreiro, denomina o trabalho de Macchi como A
anatomia da melancolia.
Música Incidental – 3 folhas grandes de papel, colagem da seleção de histórias de
acidentes e atos de violência da imprensa popular (tablóides ingleses). As histórias em
linhas retas formam uma partitura musical, onde uma história termina, começa a outra com
pequeno intervalo. Os espaços entre as histórias são a base para uma composição musical
para piano, tocada em fones de ouvido presos ao teto. Os sons lembram as trilhas sonoras
de filmes de suspense. Beleza formal convive com a natureza sangrenta das histórias. A
música é um trivial cultural, um imã para estereótipos e prerrogativas pessoais e coletivas.
Monobloco – obituários em periódicos são recortados, sobrando apenas os sinais católicos,
e muçulmanos. Parecem convenções urbanas.
The speakers corner – os jornais são recortados sobrando apenas as aspas. Esse trabalho
remete a Esquina do Falante, no Central Parque em Nova York. Só que, nessa esquina de
Macchi, não há fala nem falante. Apenas resíduos de falantes. Usamos as aspas para dizer
que a voz é de um outro e, esse outro está velado, existe somente pelos sinais intervalares.
Folha morta – jornais são recortados e não sobra sequer um vestígio de texto ou de
imagens. Sobram apenas os espaços brancos entre todas as notícias que ali estiveram.
Jornais de vazios porque foram fartamente habitados. A fragilidade se dá pela retirada do
possível a ler ou do lido, da notícia esvaziada, da des-função do próprio jornal.
Outono em Lisboa – sobram somente os cemitérios da cidade de Lisboa, todo o
constituinte da cidade é esvaziado de um mapa que a contém, e a mostra. Macchi despossui
os mapas, os des.funcionaliza, os des.materializa criando mapas inexistentes, agora mapas-
falante de vozes mudas, no entanto, noticiadas, distribuídas, lidas, descartadas...
Uma poça de sangue – várias histórias recortadas de jornais sensacionalistas convergem
para o cliché “uma poça de sangue”. Os recortes são linhas vermelhas agrupadas no centro
e expandindo para as laterais; de longe, um desenho de linhas que se agrupam e escapam.
Ao ler de perto, as linhas em espanhol são recortes, todos centrados em “charco de sangre”.
Fim de Filme – vídeo de 5 minutos, créditos desfocados de um filme não identificado. A
música é composta pela Osquestra Sinfônica de Porto Alegre, uma versão da chamada
Canção do final, de 2001. Trata-se de uma zona marginal, o que não está posto – um filme
que não se sabe qual, mas são créditos de um filme. Vemos o final, sem começo, sem
meio, sem história, sem enredo. Como se dariam os fins de nossas aulas? Onde estariam as
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marginalidades para além das normas e das convenções? O que escapa do que sabemos
coletivamente? Para onde estão indo as nossas fabricações? As mediações colaborativas? E
cada um de nós que aqui está? Ou que lê esse trabalho? Deixo reticências para que o
leitor… pense no assunto ou tema que o sustenta e desafia… e a fatura, os modos como
vem abordando essas inquietações… as ligações entre a arte e seu ensino… as trajetórias
de alunos, de professores, de comunidades, de lugares e suas especificidades, de espaços
ocupados e intervalares, de tempos existenciais, físicos, imaginários, escorregadios…
Nas poéticas dos artistas aqui trabalhados, temos imagem e palavra, palavra e imagem,
entendidos como um texto-único. Temos os sons, os rastros, as impressões, as conexões
ético, estético, politico, culturais. Todas essas camadas constituem o texto… de que modos
as abordamos? Um exemplo: 20 impressões de uma gravura são uma constelação de uma
matriz. Quais tem sido as matrizes pelas quais caminhamos? E as constelações que
formamos, migram, escapam, fazendo outras conexões? O que vemos só vale, só vive em
nossos olhos pelo que nos olha (Didi Huberman). Vemos as aulas de arte e as aulas nos
vêem? E no mundo que nos olha, fabricamos olhares para ele?
As experimentações formam uma constelação, segundo Eugen Gomringer, fluem, crescem,
mostram, sopram se espalha pelo tempo e pelo espaço. Nós-CONFAEBianos formamos
constelações e aceitamos as fraturas nelas existentes? As experimentamos em salas de
aula? Ou oficinas pelos Brasis afora?
Para Michael Warner, um público é feitura poética de mundo, é estar em fluxos através de
constantes intercâmbios em espaços e encontros. A constelação como campo de “fôrças” e
sensações a dar “fórma” às coisas do mundo e numa poética maleável e sem script
(Augusto Boal, Teatro do Oprimido). As transformações são trocas incessantes, inventivas
e criatíveis. Pensemos o CONFAEB como praça e nós, a habitando em estados de
pracialidades, tranformando os constructos encontrados em poiésis, na arte e na vida,
estados de deslocamento para des.a.locamentos, “imagizar” para ativar colaborAções.
Na leitura da obra podemos considerar ainda: a exibição, o registro, a mediação cultural
que, segundo Fuganti, é um acontecimento com múltiplos sentidos. Podemos pensar as
afetações, afetos e efetuações. Como me efetuo como professor de arte e de que modos nos
efetuamos alunos-professores-alunos-comunidades? A linguagem, se é investigativa, pode
ser um meio ou sem meio, sem fim, sem comêço? Pensemos então, a mediação cultural
uma produção coletiva e uma linguagens inquiridoras. A arte se faz para modificar a si e
aos outros de cada pessoa. A unidade é a produção de processos de singularidade, o modo
“daquilo” se fazer acontecer. As ações culturais podem gerar subjetivações; condições de
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encontro do imediato em nós, mas pensemos em encontros coletivos e colaborativos. A
obra de arte é uma criação que atravessa, dilacera, violenta se houver porosidade. O que eu
faço com isso que me acontece, e nos acontece? Como se dá a fruição do
objeto/instalação/vídeo arte? O criador não julga, confia na vida e nós-professores? O ato
de aprender pode ter algumas combinatórias: o mestre emancipador, o mestre
embrutecedor, o mestre sábio, o mestre ignorante. Somos um pouco de cada um desses
mestres. O desafio é transformar as impotências em potências colaborativas
compartilhadas; transformar as tautologias em potências efetuadas.
Nathalie Montoya trás de Bruno Péquinot, a meidação cultural como uma sociologia da
profissão, prática profissional multiplicada e pensada no teatro, na dança, circo, ópera,
museus de arte, cinema, festivais multiculturais, associações. E nós-FAEBianos, assim
somos? As práticas mediáveis são criatíveis? Abordamos o cotidiano, as ações mediadoras,
as políticas públicas em dispositivos complexos e situações, atos e acontecimentos entre
mediadores e mediantes? A visita poderia ser pensada uma experimentação como obra de
arte? A presença do mediador, uma intervenção?
Em Sophie Calle, o trabalho se constrói na negociação com o outro – em Cuide de você, as
107 mulheres a partir do e.mail. Compartilha, doação, aceitação, agregação e circulação
compoem as ações colaborativas. Isso é o trabalho da arte, do artista, de pessoas fazendo e
se debruçando sobre pessoas outras, um trabalho de co-labor-ações.
Em Jorge Macchi, a imprensa, o turismo, as notícias, as marcas culturais sustentam
apagamentos para mostrar frestas, entre-linhas, não-sabidos, vazios porque haviam
conteúdos anteriores. O não-ser tornando-se formas indagadoras e criatíveis (criação a
devir, sempre sempre; assim que uma é feita, outra já está se enunciando). O trabalho com
reticências contém o lugar do outro. O vazio a devir é um vazio prenhe de devires. Ensinar
o que se ignora é questionar sobre tudo que se sabe e ignora, é acionar os estados
impotentes que, em nós habitam, e aos que a vida-em processo nos clama, os quatro
mestres de Rancière.
Lucimar Bello (Brasil, 1945), artista visual, professora e pesquisadora em artes visuais
com percursos em desenho experimental, vídeos, instalações, assemblages e trabalhos em
comunidades específicas. Venho tentando abordar os processos de criação em arte e seu
ensino. As Fábricas de Ações que Não Existem, tanto em Belém no Pará, quanto em
Vitória no Espírito Santo, foram oficinas trabalhadas com alunos de 4º. ano de uma Escola
de Ensino Fundamental (Belém), e com pessoas que se inscreveram.
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Em Belém, na Casa das Onze Janelas, realizava a Exposição Individual: se as coisas de pé
fossem, com trabalhos compostos por agrupamentos: Não fui fabricado de pé (80 peças de
porcelanato impresso, cenas de um edifício em construção, e o vídeo: cadadia+); As coisas
que não existem são mais bonitas (quase-aquarelas, 13 papéis-toalha de limpeza de
cozinha e impressões com óleo de linhaça misturado a pó de aroeira); Se brancos
vermelhos fossem e Geografia da Dor (139 papéis de 10x15 cm com desenhos de linhas de
costura, vermelhas – sem frente, sem verso). E um mapa da África apenas perfurado com
alfinetes que, dentro de uma caixa de luz, são conversas com as milhões de mulheres
africanas costuradas; Morada das delicadezas (mandala com 20 papéis de 10x15 cm que
receberam o desenho de uma espiral com lápis aquarelado e, a cada emoção de alegria
durante um determinado tempo, enxugava as lágrimas com um desses papéis, ver o site:
lucimarbello.com.br). A Oficina dos adultos foi chamada de Fabric.Ações que não
existem; a das crianças, coisas de pé.
Na Oficina Fabric.Ações que não existem, vimos a Exposição e começamos a Oficina
comendo sequilhos de maisena, sentindo um mínimo de sabor, degustando com a saliva, o
palato, os dentes carregados da mistura, o olhar a boca do outro e de cada um ativando
lembranças de comidas e gostos. Ativamos sensações pessoais, começando pelo sabor e
pensando em sensações que surgissem durante a Oficina. A partir delas, teriam que
encontrar em casa, pequenos objetos ou coisas mínimas que pudessem dar forma a esses
acontecimentos. Surgiram assemblages, desenhos, fotografias, costuras, enrolados e
embaraçados, colados, poemas, vídeos, um pequeno filme e muitas, muitas dúvidas.
Conversamos sobre as criações pessoais e os desafios de trabalhos coletivos, colaborativos
e as mediações entre nós e entre “públicos” diferentes.
Na Oficina coisas de pé, na Escola, as crianças viram fotos da Casa das Onze Janelas e dos
trabalhos montados na Sala Tertuliano Ribas (a chuva nos impediu de ir à Exposição). A
sala as esperava após o recreio com sucos em copos transparentes. Foram convidadas a
tomar cores e adivinhar os sabores de açai, guaraná, groselha. Depois foram para a mesa
coberta com papéis coloridas, barbantes, borrachas, tesouras e pedaços de antigos
mostruários de EVA (com desenhos delicados, nem fabricam mais, foram comprados na
papelaria ao lado da Escola e da Casa das Onze Janelas). As crianças foram desafiadas a
colocar em pé os EVA(s), exercitaram várias engenhocas para que essas coisas moles e os
materiais também molengos, pudessem se sustentar em pé. Inúmeras tentativas e alegrias
com sabor de frutas e memórias sustentaram os trabalhos levados para casa – em pé. As
mãos delicadas seguravam “quase preciosidades criatíveis”.
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Em Vitória participaram adultos, professores universitários e estudantes de arte. Ativamos
sabores e lembramos de fluxos de infâncias, de cidades, de famílias, vizinhos, lugares
morados. Histórias foram construídas, palavras escritas. Desenhos, conceitos, filmes,
fragmentos literários, conversas de comer, conversas de boca, paisagens gustativas.
Fabricamos encontros e acontecimentos entre o salivar, o degustar, o des.memorizar,
compar-trilhando encontros in loco, em blocos de infâncias e adultidades com
sobreposições de lugares vividos e a viver.
Nas Fábricas, em Belém e em Vitória, tento questionar um regime de representação que
desfaça a correlação entre tema e representação. São solicitadas e evocadas as pre-
existências partindo de existências concretas, o biscoito de polvilho, a paçoca, as balas, a
água, os EVAs descartados, os sucos, os mínimos a nos trans-formar em ações
colaborativas que sustentem e nos a.tentem às experimentações na arte. Essas, calcadas em
coisas ditas “pequenas”, acionam instantes e histórias de cada um e do grupo. Sorrisos,
conversas, trocas, desafios, prazeres de encontros, atos, acontecimentos. Ao ler esse texto,
quantas ações podemos pensar e propor tendo como mínimos, o comer biscoito com mais
pessoas; guloseimas a comer; o tomar água juntos, em mini copos; o fazer ficar em pé os
EVAs molengos; as camadas e camadas que nos constituem? Como ativá-las e dar-lhes
formas, excessão como arte e não, normas culturais? Ou de que maneiras vamos dar
formas às imagens que nos pedem passagens? É preciso um olhar arguto, astuto, arguidor.
Repito João Cabral de Melo Neto: Para aprender da pedra, é preciso frequentá-la. E sobre
pedras e frequentações? E necessidades e apreendizagens? Para viver arte e ensinar arte, é
preciso frequentá-las. Para aprender da arte e seus ensinos, frequentá-los.
Didi Huberman sugere que fechemos os olhos para ver quando o ato de ver nos remete,
nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido nos constitui… fazer
da experiência do ver, um exercício da tautologia: uma verdade rasa lançada como
anteparo a uma verdade mais subterrânea e bem mais temível… buscar justamente por
baixo, escondido, presente, jacente… Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em
seu sujeito. Ver é uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Podemos ver agora,
fragmentos possantes de nossas experimentações FAEBianas?
Concordo com Jean-Luc Godart, a cultura é a norma, a arte é a excessão. O que eu quero
acima de tudo é destruir a ideia de cultura. Cultura é um álibi do imperialismo. Há
Ministério da Guerra. Há Ministério da Cultura. Logo, cultura é guerra. No Brasil, temos
um Ministério da Educação, um Ministério da Cultura, são muitos ministérios sustentando
“empregos e mistérios”. De que modos abordamos e trabalhamos em aulas e oficinas, os
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programas e as leis? As culturas e as interculturalidades? Estamos a serviço dos sistemas
educacionais, culturais, da arte, concomitantes às análises do fora do fora? Do fora-de-
dentro-de-mim? Criação e invenção tem sido campos de inter-subjetivações? A questão e
desafio é a criação como artista e como professor, como diz Murilo Mendes, é ser e não
ser ao mesmo tempo – o cadáver está na mão que o segura. Temos, ao mesmo tempo, que
afirmar e duvidar; propor, sustentar e desafiar; agregar e desconfiar; gerar confiança e
instabilidade para criações outras, mais e mais. Arte é a dúvida, afirma Picasso. Temos que
questionar a cultura, as normas e os valores culturais, as nossas professoralidades
(dialogando com Marcos Villela). Como temos escapado do dito, do afirmado, do
consagrado em tempos de celebridades e convocatórias de sistemas consumistas, fugazes,
perversos? Não é e nem seria o caso de combater, mas de com-viver essas instâncias,
questioná-las, e das angústias surgidas, dar forma e dar a ver ações criatíveis?
Bibliografia
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro, ed 34, 1992.
DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, ed. 34, 1998.
GUATTARI, Felix. As três ecologias. Campinas, Papirus, 1990.
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro, Rocco,
1998.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte, 2005.
_________________. A partilha do sensível, estética e politica. São Paulo, EXO
Experimental org. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2005.
VIRTANEN, Akseli e PELBART, Peter Pál. In: GUATTARI, Felix. Máquina Kafka. São
Paulo, ed. N1, edição bi-lingue, 2012.
Catálogos e sites
6a. Bienal do Mercosul. Jorge Macchi, 2007.
Take care yourself. Sophie Calle. Veneza, 52a. Bienal de Veneza, 2007
www.videobrasil.org.br/sophiecalle
www.mariladardot.com
www.jorgemacchi.com
www.lucimarbello.com.br
www.youtube.com/lucimarbello
www.vimeo.com/lucimarbello
facebook lucimarbellofrange
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Lucimar Bello, vive e trabalha em São Paulo. Artista e pesquisadora em artes visuais. Exposições:
Brasil, Argentina, Chile, México, Cuba, Espanha, Portugal, Japão, China. Graduação em Artes pela
UFMG/BH. Mestrado e Doutorado em Artes pela USP/SP. Pós-Doutora em Comunicação e
Semiótica, PUC/SP. Pós-Doutora no Núcleo de Estudos da Subjetividade, PUC/SP. Atualmente é
Pesquisadora Voluntária no Núcleo de Estudos da Subjetividade, PUC/SP. Pesquisas em processos
de criação na arte contemporânea, artes visuais e seu ensino, artes visuais e comunidades. Pertence
a FAEB – Federação de Arte Educadores do Brasil e a ANPAP – Associação Nacional de
Pesquisadores em Artes Plásticas.