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Trabalho no âmbito do Mestrado em Ciências da Documentação e Informação
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Miguel Saturnino Nº 20391 MCDI 2009/2010 1º Semestre Direito de Informação
1
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social:
Hetero-regulação (in)dependente?
Direito de Informação
Professor Doutor Eduardo Vera-Cruz
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO
Miguel Saturnino Nº 20391 MCDI 2009/2010 1º Semestre Direito de Informação
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Constituição da República Portuguesa (7º revisão)
Lei Constitucional n.º 1/2005 de 12 de Agosto
Artigo 37.º
(Liberdade de expressão e informação)
1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremen-
te o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por
qualquer outro meio, bem como o direito de informar,
de se informar e de ser informados, sem impedimentos
nem discriminações.
Coimbra, 10 de Outubro de 1974 - Situação dramática
a de certos plumitivos. Nem podem dizer a verdade,
nem mentir. O abrigo protector das alegorias - maneira
airosa, durante longos e longos anos, de iludir o poder
e também as próprias capacidades de criação e indig-
nação - desapareceu. Tinham-se especializado em levar
a água ao seu moinho através das malhas da censura.
E muitas vezes o conseguiram com mestria, honra lhes
seja. O pior é que, diga-se o que se disser, o hábito
acaba por fazer o monge. Uma vez caído o regime
inquisitorial - e anuladas as condições que isentavam a
coincidência do ser e do parecer - ficaram sem pretexto
para se furtar ao exercício da sinceridade.
TORGA, Miguel, Diário VII, Lisboa, Planeta de Agostini,
2000, pág. 159.
[…] está sempre em causa uma acção desenvolvida por
um decisor / agente, com o objectivo de condicionar a
capacidade racional de pensamento, de juízo, e de
acção ou reacção dos seus destinatários. O que se pre-
tende é a subversão dos mecanismos de formação de
uma vontade livre, através da insegurança, intimida-
ção, desestabilização, criando situações de pânico,
assédio, imobilismo, ansiedade, inacção, paralisia,
pânico, perversão, capitulação ou, no mínimo, confu-
são e perturbação, que inclusive pode levar à perda da
noção de identidade.
CARVALHO, Nandim de, Manipulação da opinião Públi-
ca, Lisboa, Hugin Editores, 1999, pág. 77.
Miguel Saturnino Nº 20391 MCDI 2009/2010 1º Semestre Direito de Informação
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ÍNDICE
Introdução 4
Contexto da Regulação em Portugal desde 1974 5
Tipos de Regulação 9
Ausência de Regulação 9
Auto-regulação 9
Co-regulação 10
Hetero-regulação 10
Hetero-regulação e a ERC 11
Criação da ERC 12
Liberdade de Expressão e Defesa dos Direitos dos Cidadãos 14
Independência da ERC 19
Conclusão 20
Bibliografia 21
Anexos 22
Quadro comparativo entre a Lei 53/2005 e a Lei 43/98
Deliberações da ERC
Notícias
Miguel Saturnino Nº 20391 MCDI 2009/2010 1º Semestre Direito de Informação
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INTRODUÇÃO
Foi proposta a elaboração de um trabalho no âmbito da cadeira Direito de Informação,
pertencente ao primeiro semestre do Mestrado em Ciências da Documentação e da
Informação.
O tema do referido trabalho seria escolhido por cada mestrando, sempre tendo por
base o programa da cadeira e abordando questões como o acesso à informação, o
direito a ser informado, entre outras.
O tema escolhido (A Entidade Reguladora para a Comunicação Social: Hetero-
regulação (in)dependente?) não sendo canónico para o Mestrado em causa, levanta
questões relevantes e pertinentes para a arquivística.
Na verdade, considerou-se que a questão da Comunicação Social pode assumir extre-
ma importância no delinear de opções estratégicas a nível nacional que poderão
influenciar, mais tarde, a arquivística.
Quer isto dizer que se entendeu que analisar o papel da Entidade Reguladora da
Comunicação Social (abreviadamente designada de ERC) poderá ser revelador das polí-
ticas estatais no campo da Informação, podendo essas políticas aplicar-se, de futuro, a
outras áreas.
Desse modo, é intenção do presente trabalho analisar o papel de uma regulação esta-
tal (materializada na ERC), legitimada constitucionalmente, em detrimento de outros
tipos de regulações e perceber as consequências dessa escolha no acesso à informação
e na qualidade da mesma.
Para concretizar esse intuito, comparar-se-á os estatutos da ERC com a regulamenta-
ção aplicada à sua antecessora, a Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS).
Serão ainda levados em conta diversas publicações académicas sobre o tema, notícias
variadas e ainda deliberações da ERC.
No final, espera-se ser possível caracterizar a regulação estatal no que concerne à sua
eficácia na defesa de uma comunicação livre e não ofensiva para as liberdades, direitos
e garantias dos cidadãos, bem como perceber se tal organismo oferece garantias de
independência face a diferentes poderes, com especial foco para o político.
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Contexto da Regulação em Portugal desde 1974
Após quarenta e oito anos de ditadura, expressões como “censura”, “lápis azul” e
“censores” (entre outras) faziam parte de qualquer abordagem ao tema da
comunicação social. Em termos culturais e artísticos, são inúmeras as manifestações
sobre o tópico da liberdade de expressão.
Não foi surpresa, por isso, que logo após o 25 de Abril de 1974 a Junta de Salvação
Nacional criasse uma comissão para controlo da Imprensa, Rádio, Teatro e Cinema
(Decreto-Lei n.º 281/74, de 26 de Junho). É o primeiro passo para aquilo que
chamamos hoje em dia de “regulação”. O que se destaca desde essa data é a vontade
(imutável até hoje) de ser o Estado a assumir o papel de zelar pela liberdade de
imprensa e pela sua compatibilização com os Direitos, Liberdades e Garantias dos
Cidadãos.
Com a Lei de Imprensa de 1975 (Decreto-Lei 85-C/75 de 26 de Fevereiro), é criado o
Conselho de Imprensa. Diferentemente dos órgãos que viriam posteriormente, este
em particular tem a missão de se pronunciar sobre a postura dos jornalistas face ao
seu código deontológico. Ao contrário do que seria normal (e como sucede na maior
parte dos países), é o Estado que assume o papel de validar a postura ética dos
profissionais de comunicação social. Ainda que hoje em dia seja o Sindicato dos
Jornalistas que assuma essa tarefa, este facto não deixa de ser sintomático das
estratégias face à comunicação social do Portugal pós-25 de Abril.
Se uma conjuntura pós-revolução poderia justificar a opção por uma regulação estatal,
numa altura de indefinições generalizadas e com questões prementes por resolver em
toda a linha, as dúvidas desfizeram-se completamente quando, um ano após a
aprovação da Constituição da República Portuguesa, criou-se o Conselho de
Informação (“Conselhos de Informação”, conforme consta na bibliografia consultada),
regulado pela Lei 78/77 de 25 de Outubro. Procurava-se garantir o pluralismo
ideológico, numa fase da vida política portuguesa em que a concordância dos espíritos
(unidos em torno de um inimigo comum agora vencido) poderia fazer perigar vozes
dissonantes mas enriquecedoras.
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Não podemos esquecer que estamos perante um cenário em que a posse dos órgãos e
comunicação social é quase exclusivamente do Estado (também devido às
nacionalizações entretanto levada a cabo), factor que condiciona, de certo modo, a
abertura da regulação a outras forças da sociedade, não por imperativo legal, mas por
opção estratégica. Veremos mais tarde, contudo, que a abertura à iniciativa privada
não viria alterar muito a política agora seguida.
Passado o período pós-revolução e consumando-se a entrada de Portugal para a então
CEE, o país vive uma situação de alguma estabilidade política, alicerçada em governos
maioritários. Não foi surpreendente, por isso, que no final da década de ’90 se
lançassem os alicerces para a abertura à iniciativa privada na área da comunicação
social. Iniciam-se os processos que viriam a culminar na abertura de centenas de rádios
locais e no licenciamento de dois canais generalistas de televisão de sinal aberto (SIC e
TVI).
Nesse prisma, a revisão constitucional de 1989 prevê a criação de uma nova comissão
para regulação da comunicação social: a Alta Autoridade para a Comunicação Social
(abreviadamente designada de AACS). Trata-se de um órgão (regulado pela Lei n.º
15/90 de 5 de Junho) dito independente, que contava com treze membros, sendo um
deles obrigatoriamente juiz (que presidia). Ainda que com poderes manifestamente
reduzidos, a AACS era composta por representantes da sociedade civil, da
comunicação social e do poder político. Tratava-se, assim, de uma co-regulação, na
medida em que os regulados participavam na regulação e o poder político não era o
único representado.
Anos mais tarde, em 1997, em mais uma revisão constitucional, prepara-se o que
seriam mais tarde, o reforço dos poderes da AACS, facto motivado por uma nova
realidade na comunicação de massas, agora fortemente marcada pelos privados e
exigindo novas regras de regulação. A Lei nº 43/98 regulamenta essas alterações,
continuando, no entanto, a tratar-se de um órgão a funcionar em regime de co-
regulação.
Já em pleno século XXI, na revisão constitucional de 2004, um acordo PS/PSD
considerou que se deveria plasmar na Lei Fundamental a existência de um órgão de
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regulação estatal. A AACS não garantia o pleno funcionamento do mercado
informativo e adoptou-se uma opção de hetero-regulação estatal, com reforço de
competências e com membros escolhidos apenas pelo poder político (neste caso, o
parlamento).
Para Manuela Espírito Santo (2007) as alterações nos tipos e formas de regulação são
compreensíveis, na medida em que as próprias mudanças na sociedade necessitam de
ser acompanhadas:
“A concentração dos media, as preocupações em estabelecer regras deontológicas para a Comunicação Social e a salvaguarda dos direitos e garantias exigem organismos reguladores fortes e autónomos em relação aos diversos poderes. Nesta ordem de ideias, a mudança das entidades reguladoras aparece-nos como um processo natural, tendo em conta que em sociedade nada é imutável e todas as organizações estão sujeitas ao desgaste normal da usura do poder, a forças destabilizadoras e a pressões internas e externas.”
A AACS estava, portanto, desadequada para o desempenho das suas funções. Manuela
Espírito Santo, citando Luís Marques Guedes (PSD) e Alberto Martins (PS), num debate
na Assembleia da República sobre esse tema, escreve o seguinte:
Também neste debate se verifica uma unanimidade no diagnóstico das causas que justificam a extinção da AACS. Luís Marques Guedes, deputado do PSD, diz, a esse propósito: “a desadequação da estrutura da Alta Autoridade, a falta de recursos, a rigidez da composição do esta-tuto e o seu ténue quadro de competências conduziram de forma pública e notória para a desregulação do sector, verificando-se, lamentavelmente, um incumprimento sistemático das regras em vigor e permi-tindo a violação descarada dos mais elementares direitos e garantias dos cidadãos em geral”. Convergindo nessa opinião, o deputado do PS Alberto Martins, na mesma sessão, elenca as dificuldades sentidas pela AACS: “Creio que estamos em situação de virar a página relativamente à experiência da Alta Autoridade para a Comunicação Social. Todos temos consciência de que é um modelo esgotado, que não foi dotado, nem se dotou, de meios técnicos, de capacidade financeira, nem de capacidade logística, para cumprir as fun-ções essenciais de salvaguarda do direito à informação, independência perante o poder político e o poder económico, pluralismo de opiniões e respeito pelos direitos, liberdades e garantias.
Também os sucessivos escândalos que se faziam sentir na informação motivaram uma
forte reacção do poder político, materializada na criação dessa nova comissão de
hetero-regulação – a ERC. Falamos de casos como os de alegadas tentativas de
controlo da imprensa e televisão por altos dirigentes partidários (a tão falada tentativa
de impedir o espaço de comentário de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI, por exemplo).
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O clima era, pois, de suspeição e de descrédito face à comunicação social, na opinião
de Francisco Cádima (2009), citando José Pacheco Pereira e António Barreto:
Reafirmando a “cultura da irrelevância”, como lhe chamou José Pacheco Pereira: “A cultura da irrelevância está impante como nunca, espectáculo e pathos brilham no sítio que ante-riormente ainda era frequentado, de vez em quando, pela razão, pelo bom senso, pela virtude. Esta é, obviamente, a melhor comunicação social, a melhor televisão para os governos, e o actual cuida bem que não lhe falte dinheiro para as suas quinhentas horas de futebol. Compreende-se: a bola não pensa, é para ser chutada.” Por seu lado, o sociólogo António Barreto, na mesma linha, escrevia: “Os serviços de notícias dos três canais ditos ‘generalistas’, sem excepção, são cada vez mais divertimen-to e espectáculo e cada vez menos informação. Desapareceram os comentários inteligentes e informa-dos. Foram-se os especialistas que podem ajudar a compreender. Acabou o recurso a documentação e arquivo que permita colocar os factos em contexto e percebê-los melhor. A explicação serena e funda-mentada foi abolida. As notícias internacionais, quando há, foram resumidas a rumores e resumos incompreensíveis, a não ser que se trate de terrorismo, pedofilia ou grande desastre. As notícias deixa-ram de ter o tempo necessário de reflexão. Os jornalistas fazem cada vez menos a ‘edição’ das ‘peças’, das imagens e das reportagens dos ‘enviados’ e ‘metem os brutos’, isto é, põem no ar as sequências em bruto, tal como chegaram dos ‘enviados’ ou das agências.”
Desse modo, é criada a ERC, regulada pela Lei 53/2005 e que marca o assumir de uma
posição constitucional de regular a imprensa e televisão através de um órgão
reforçado de poderes e apenas com participação de membros escolhidos pelo
Parlamento.
Augusto Santos Silva (2007) justifica a opção tomada com três argumentos:
Considerando os artigos 37.º a 39.º da Constituição, cujos termos presentes foram fixados na revisão de 2004, creio poder dizer-se que é tripla a justificação da regulação: porque existe liberdade de expressão e informação, a qual não pode ser condicionada por qualquer tipo ou forma de censura; porque a liber-dade de expressão e informação tem de se articular com os restantes direitos, liberdades e garantias pessoais; e porque a forma específica de realização da liberdade de expressão e informação que é a liberdade de imprensa tem de ser garantida e promovida.
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Tipos de Regulação
São diversos os modelos de regulação dos Media aplicados por todo o mundo. Desde a
ausência de regulação em órgão próprio, passando pela auto-regulação, co-regulação
até à hetero-regulação.
Ausência de regulação
Por ausência de regulação em órgão próprio podemos entender uma sociedade que
confia a liberdade de expressão e a defesa dos direitos dos cidadãos às leis e aos
tribunais, sem criar um mecanismo próprio que garanta essas premissas. Podendo ser
encarada como uma forma liberal de encarar a temática dos Media, por não envolver
directamente o poder político, esta opção nunca foi adoptada em Portugal, não
obstante a vontade expressa de Pacheco Pereira, no debate da Assembleia da
República que antecedeu a criação da AACS, em 1990:
“A existência de uma Alta Autoridade para a Comunicação Social não se deve originariamente ao PSD, mas sim, resulta de uma proposta do Partido Socialista que teve o acolhimento no acordo de revisão constitucional e, posteriormente, na versão revista da Constituição. Se apenas dependesse do PSD, não haveria Alta Autoridade para a Comunicação Social nem qualquer outra instituição desse tipo. As rela-ções entre o poder e a Comunicação Social e a sociedade seriam meramente reguladas por uma lei geral da Comunicação Social que definisse os poderes e os direitos, os crimes e defesa face a esses crimes, as regras e as violações das regras. A razão por que o PSD não desejava a existência de uma Alta Autorida-de para a Comunicação Social deriva do nosso entendimento das relações entre o Estado, a sociedade e a Comunicação Social. Do nosso ponto de vista a Comunicação Social, nos seus órgãos, nos seus agentes, no espaço intercomunicativo que gera, é essencialmente e pela sua própria natureza um produto da sociedade. Dela emana e dela não deve sair.”
Auto-regulação
A auto-regulação seria a capacidade das empresas e profissionais de comunicação
social de adoptarem uma postura de rigor e de isenção que lhes permitisse garantir a
qualidade das informações prestadas. O Código deontológico dos Jornalistas e os
Conselhos de Redacção constituem exemplos da materialização deste tipo de
regulação.
Alfredo Maia (2007) manifesta dúvidas face a este modelo, por considerar que não
garante um controlo efectivo da liberdade de expressão:
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Apesar de os jornalistas portugueses, tal como os jornalistas de todo o mundo, se sentirem muito orgu-lhosos por assumir a sua auto-regulação voluntária como essencial para a responsabilidade social da sua profissão, esta auto-regulação é muito escassa e, em alguns casos, totalmente irrelevante.
Também Augusto Santos Silva coloca algumas reservas a este modelo:
Uma variante não muito longínqua entoa hossanas à regulação, desde que seja iniciativa e responsabili-dade dos meios – dos órgãos de comunicação e/ou dos profissionais – e assuma natureza “moral”, ética e deontológica (Aznar, 2005: 2-14). Auto--regulação, pois, construída pela adesão voluntária dos actores e baseada numa autoridade moral e profissional. A defesa deste modelo sustenta os perigos de dirigis-mo, intervencionismo e controlo político inerentes, a seu ver, à hetero-regulação estatal – quer dizer, pressupõe nesta um eventual cerceamento da liberdade de imprensa; e identifica na auto-regulação as virtudes do escrutínio entre pares e da sua índole persuasiva e formativa. Vê também vantagens práti-cas: jornalistas, editores e proprietários aceitariam melhor a auto-regulação do que uma hetero-regulação, que tenderia a ofender tanto o libertarismo ideológico e o orgulho profissional dos primeiros quanto o liberalismo económico dos últimos.
Co-regulação
Por outro lado, a co-regulação aproxima-se bastante da extinta AACS, marcada pela
exiguidade de poderes e pela participação da sociedade civil e dos regulados, para
além do poder político. Augusto Santos Silva, sobre esse modelo, afirma:
Comungando da generalidade deste argumento, há quem conceda, mesmo assim, a necessidade da regulação pública. Mas então que seja apenas “supletiva”, isto é, de atribuições e poderes reduzidos e intervindo somente em segunda instância, esgotado o registo próprio da auto-regulação; e/ou que inci-da exclusivamente nos problemas “materiais” dos mercados, ou a regulação tecnológica no âmbito audiovisual ou a regulação económica zeladora da concorrência; e/ou ainda que existindo órgão regula-dor dos media, como instituição do Estado, ele resulte, ao menos, da convergência entre os interesses e a representação das empresas, os interesses e a representação dos jornalistas, a representação dos órgãos do poder político (Parlamento ou Governo, designadamente) e a representação da sociedade civil, em regra assegurada por intelectuais, sindicalistas, defensores dos consumidores e aparentados, de modo a que vigore de facto uma espécie de co-regulação.
Hetero-regulação
Por fim, a hetero-regulação, que consiste numa regulação exclusivamente pública,
política, mas não necessariamente governamental (ou absolutamente não
governamental), marcada por poderes efectivos e vastos, com capacidade de
intervenção real na regulação do mercado e na defesa da liberdade de imprensa e dos
direitos dos cidadãos.
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Hetero-regulação e a ERC
É neste modelo (na hetero-regulação) que assenta a ERC. Dito deste modo e tendo em
conta as “vantagens” anteriormente referidas, poder-se-ia pensar que estariam criadas
as bases para um tipo de regulação consensual e eficaz. Não é isso que sucede,
proliferando vozes contra a adopção do referido modelo.
Em primeiro lugar, questiona-se a existência de um órgão dependente do poder
político, em detrimento de um modelo anterior que garantia a participação da
sociedade e dos profissionais e empresas dos Media.
O reforço de competências também mereceu fortes reparos, por incluir a capacidade
quase policial dos funcionários da ERC de entrarem nos órgãos de comunicação social
para efectuar buscas e inspecções.
Também o financiamento não acolheu grande adesão, uma vez que prevê que as
empresas de comunicação social paguem taxas à ERC no auxílio das dotações
financeiras do órgão.
Os apoiantes deste modelo de regulação afirmam, por seu lado, que a aprovação dos
nomes para a composição da ERC necessita de uma maioria de dois terços na
Assembleia da República, o que seria suficiente para garantir que os mesmos não
representariam apenas uma facção. Garantir-se-ia a pluralidade de opiniões na ERC
por ter sido necessário chegar a consenso para a eleição dos nomes, portanto. Também
a legitimidade democrática da Assembleia da República serviria como legitimação das opções
tomadas.
Coloca-se, além disso, a questão do enquadramento legal, uma vez que é inequívoco
que a ERC tem respaldo constitucional, particularmente após a revisão de 2004. Basta
analisarmos o artigo 39º da CRP:
Artigo 39.o (Regulação da comunicação social) 1. Cabe a uma entidade administrativa independente assegurar nos meios de comunicação social: a) O direito à informação e a liberdade de imprensa; b) A não concentração da titularidade dos meios de comunicação social; c) A independência perante o poder político e o poder económico; d) O respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais; e) O respeito pelas normas reguladoras das actividades de comunicação social;
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f) A possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião; g) O exercício dos direitos de antena, de resposta e de réplica política. 2. A lei define a composição, as competências, a organização e o funcionamento da entidade referida no número anterior, bem como o estatuto dos respectivos membros, designados pela Assembleia da Repú-blica e por cooptação destes.
Augusto Santos Silva pronuncia-se sobre esta questão do seguinte modo:
“Trata-se de uma regulação pública, legitimada politicamente e enquadrada no Estado, mas indepen-dente do Governo. Daí a sua colocação junto do Parlamento. É este que define a sua estrutura e funcio-namento, é este que determina a sua composição, é neste que encontra acolhimento institucional. E todos esses elementos implicam acordo político e interpartidário. Eis o sentido da obrigação da consti-tuição de maiorias parlamentares de dois terços: que não fique ao livre-arbítrio da maioria política cir-cunstancial o poder decisório fundador. Depois, no seu mandato próprio, a entidade administrativa não está sujeita a nenhuma espécie de orientação ou tutela.”
Para o mesmo autor, a hetero-regulação teria diversas vantagens:
“O corolário desta tripla ancoragem é que a perspectiva que deve dominar a actividade da regulação dos media é a perspectiva geral dos cidadãos – do interesse geral e dos direitos de todos – e não a perspecti-va por assim dizer interna dos meios de comunicação social. Eis o mais forte fundamento para que a regulação dos media seja também – e, do ponto de vista do Estado democrático, principalmente – uma hetero-regulação.”
Criação da ERC
Alguns traços marcam, por isso, a ERC face à sua antecessora AACS. Já foram referidos
alguns, como a composição meramente política do órgão, o aumento das suas
competências, o modelo misto de financiamento e a capacidade “policial” dos seus
funcionários.
Outras características acrescem ainda às alterações introduzidas. Em primeiro lugar, a
ERC procura garantir a desgovernamentalização dos Media do Estado. Nesse sentido,
faz parte das suas competências pronunciar-se de forma vinculativa no que concerne à
nomeação e destituição dos directores desses órgãos. Estaria assim garantida a
independência, por exemplo, da RTP face ao governo. O que não se explica é de que
modo essa independência se garante, uma vez que os membros da ERC são escolhidos
pelos dois principais partidos do parlamento, estando normalmente (em termos
empíricos, entenda-se) três membros afectos ao partido do poder e dois afectos ao
principal partido da oposição.
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Outra característica que diferencia a ERC face à AACS é a estrutura funcional da
primeira, bastante mais complexa e funcional do que a da segunda, para fazer face ao
aumento exponencial de competências que se deu.
Todas estas alterações, que se podem considerar de profundas, foram feitas, segundo
Alfredo Maia, sem o necessário debate na sociedade portuguesa:
“A lei que criou a ERC não foi tão debatida como seria necessário, tal como sugerido pelo Sindicato de Jornalistas. Assim sendo, esta lei excluiu os profissionais regulados e a sociedade civil, criando, ao mesmo tempo, uma atmosfera de cepticismo e suspeição à volta dos membros da ERC.”
Afigura-se, nesse plano, como paradigmático do nosso país levar a cabo dois tipos de
debates: ou se discute até à exaustão, impossibilitando qualquer tomada de decisão
em tempo útil, com sucessivas reviravoltas na opinião dominante e com os
protagonistas a fazerem constantemente tábua rasa do esforço dos antecessores, ou
então congemina-se um plano oculto, apenas decidido por um pequeno grupo, que
depois é imposto à maioria sem que esta tenha possibilidade de se pronunciar.
Trata-se daquilo que os especialistas e estudiosos classificam de “oito ou oitenta” da
alma nacional. Sem capacidade para adoptar um meio-termo, Portugal balança entre
discussões eternas e incapacitantes e decisões impostas à revelia dos interessados.
Como consequência desta última opção podemos ter a criação da ERC. A falta de
debate fomentou um clima de suspeição castrador da eficácia do órgão, ao mesmo
tempo que indispôs as empresas e profissionais da comunicação contra o mesmo,
impedindo colaborações a todo o nível.
O quadro de criação da ERC não é, por isso, consensual, estando a sua missão
dificultada de modo acrescido. Veremos posteriormente se o seu funcionamento se
pode considerar satisfatório ou, pelo menos, diferenciado do da AACS.
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Liberdade de Expressão e Defesa dos Direitos dos Cidadãos
A principal missão da ERC é a de garantir a liberdade de expressão da informação em
Portugal, sem colocar em causa as liberdades, direitos e garantias dos cidadãos. Nesta
perspectiva, teremos uma acção bipartida, em que a capacidade de zelar por uma
comunicação social isenta e livre se articula com a necessidade de promover o respeito
pelas pessoas.
A acção da ERC seria condição sine qua non para que tais desígnios se cumprissem. No
campo da liberdade de expressão, as ferramentas da ERC seriam a capacidade de
fiscalização in loco, o levantamento de processos / apreciação de queixas e a directiva
de evitar a concentração dos órgãos de comunicação social.
A primeira “arma” em prol da liberdade de expressão não é consensual. De facto, custa
bastante a acreditar que é mediante rusgas e inspecções a órgãos de comunicação
social que se garante tal desígnio. Os apoiantes da hetero-regulação afirmam, não
obstante isso, que desse modo é possível identificar e corrigir práticas obstrutivas à
efectiva expressão livre das ideias e dos conteúdos. Veja-se o nº 1 do artigo 53º dos
estatutos da ERC:
Artigo 53.º Exercício da supervisão
1—A ERC pode proceder a averiguações e exames em qualquer entidade ou local, no quadro da prosse-cução das atribuições que lhe estão cometidas, cabendo aos operadores de comunicação social alvo de supervisão facultar o acesso a todos os meios necessários para o efeito.
Fica por responder de que modo o policiamento dos media é mais útil à liberdade do
que à censura, pois não foi possível encontrar argumentos na bibliografia consultada
que sustentem tal afirmação.
Poder-se-ia mesmo dizer que o referido policiamento tem a nefasta consequência de
criar um clima de hostilidade face à ERC, dificultando e coarctando a sua missão e a
sua acção.
A segunda “arma” seria o levantamento de processos perante casos em que existisse a
suspeita de incumprimentos ou a tentativa de coagir ou influenciar a liberdade de
expressão. Aparentemente, poderia estar nesta prerrogativa a solução para regular de
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modo eficaz a informação. Os resultados práticos destas situações são, porém, meras
recomendações não vinculativas (as acções com penas efectivas estão relacionadas
com o direito de resposta, tal como já acontecia com a AACS), o que faz com que as
deliberações da ERC sobre estas matérias corporizem apenas um “conselho” ou uma
“orientação”, sem outras consequências.
Nesse âmbito, afigura-se como paradigmática a deliberação 13/OUT-TV/2010 tomada
pela ERC sobre o final do Jornal Nacional de sexta-feira, na TVI:
O Conselho Regulador delibera, ao abrigo das suas atribuições e competências previstas no artigo 39º, n.º 1, al. c), da Constituição da República Portuguesa, e nos artigos 8º, alíneas a) e c), e 24º, n.º 3, alínea q), dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, o seguinte:
1. Reiterar o conteúdo da Deliberação 6/OUT-TV/2009, que considerou ilegal a decisão da Admi-nistração da TVI de, à revelia do Director de Informação, suspender o Jornal Nacional de Sexta;
Ficámos a saber, portanto, que a extinção do Jornal Nacional de sexta-feira foi, na opi-
nião da ARC, ilegal. Apesar desta conclusão, não houve consequências práticas da refe-
rida deliberação: na verdade, a leitura da parte restante da deliberação mostra, fun-
damentalmente, uma tentativa de ilibar o governo da suposta tentativa de “calar” o
Jornal Nacional e Manuela Moura Guedes.
Não é possível afirmar que a ERC não tem razão nesse intuito. Mas já é possível dizer
que a proximidade política do órgão descredibiliza as suas deliberações e recomenda-
ções, independentemente da razão que possam ou não ter. As vozes dissonantes que
se levantaram na altura da criação da ERC tinham, nesse prisma, razão de ser. Fica visí-
vel, por isso, que um dos principais motivos para a criação da ERC (a garantia da liber-
dade de expressão) não encontra nesse órgão eficácia comprovada.
Podem também os cidadãos apresentar queixas ou reclamações à ERC caso
considerem ter sido lesados nos seus direitos por órgãos de comunicação social. Foi o
caso de José Manuel Marques, aquando do caso Freeport, que denunciou a TVI por ter
recolhido imagens suas sem consentimento e o ter perseguido e proferido afirmações
erradas. Pedia o queixoso que a TVI fosse forçada a retratar-se. A deliberação 3/CONT-
TV/2010 da ERC sobre esse assunto diz:
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O Conselho Regulador, no exercício das atribuições e competências de regulação constantes, respecti-vamente, na alínea f) do artigo 7.º, na alínea d) do artigo 8.° e na alínea a) do n.º 3 do artigo 24.º dos EstERC, delibera: 1. Considerar procedente a queixa apresentada, por comprovada violação do direito à imagem e por desrespeito do dever do jornalista de relatar os factos com rigor e exactidão; 2. Considerar reprovável tal actuação por parte da TVI e instar ao rigoroso cumprimento futuro das nor-mas relativas aos direitos de personalidade, valores que entre nós beneficiam de tutela constitucional, criminal e civilística, e do dever de rigor jornalístico.
Tendo ficado provada a acção lesiva da TVI face aos direitos do reclamante, poder-se-
ia esperar, pelo menos, que a intenção do reclamante (que a TVI se retratasse, de
modo a limpar o seu bom nome) fosse atendida. Efectivamente, isso não sucedeu,
como também não teve lugar qualquer outra consequência para a estação que não ler
a recomendação da ERC. Se a forma que o organismo regulador tem para fazer valer os
direitos dos cidadãos se restringe a uma acção tão frugal, é legítimo pensar por que
motivo se dotou o órgão de uma tão pesada (e cara) estrutura. A extinta AACS, apesar
de igualmente ineficaz, tinha a virtude de não ser muito dispendiosa para os cofres do
Estado.
A terceira “arma” tem base constitucional e assenta na promoção do pluralismo e no
zelo pela não concentração dos grupos de comunicação social. Para garantir a
liberdade de imprensa a ERC procura garantir que os diversos media não falam a uma
só voz e que não se unem em excesso, coordenando esse esforço com a Autoridade
para a Concorrência.
No primeiro caso, recorda-se o papel da ERC na recomendação que fez à RTP para
introduzir comentadores de vários âmbitos ideológicos. Mais uma vez, Marcelo Rebelo
de Sousa foi o centro da questão.
A solução encontrada pela RTP (que acatou a recomendação da ERC) foi a criação de
um espaço onde António Vitorino tinha o papel principal.
Estaria assim garantida a pluralidade, no entender da ERC. A entidade já não foi do
mesmo entendimento quando foi confrontada com a seguinte evidência: ouvir
apoiantes dos dois principais partidos portugueses não garante a pluralidade. Para tal,
seria necessário ouvir todos os partidos.
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Considera-se redutor, por outro lado, que a pluralidade se limite ao campo político.
Uma perspectiva mais abrangente de “pluralidade” traria a necessidade de abrir os
espaços de comentário a outras áreas da sociedade que não apenas a política.
Para Francisco Cádima, o problema reside no facto de não se ter especificado o
significado exacto de “pluralidade”, permitindo-se desta forma o enveredar por
conjecturas pouco claras:
Na verdade, se este último ponto [curta descrição de “pluralidade”] elucida um pouco mais sobre o que é matéria específica do âmbito do pluralismo, o facto é que não dilucida o que pretende dizer com expres-sões essenciais para o esclarecimento do problema, e que a serem escrutinadas a partir de um modelo analítico redutor, menorizando a amplitude do seu significado no âmbito da experiência da cidadania, acabam por não ter o efeito que aparentemente o legislador pretende, mantendo assim zonas relativa-mente cinzentas em matéria conceptual, as quais, naturalmente, em vez de serem efectivamente um modelo de regulação serão fundamentalmente um obstáculo à própria liberdade editorial e de expres-são.
O mesmo autor, citando Pedro Magalhães, diz ainda o seguinte:
Uma das observações mais pertinentes então surgidas, aquando da deliberação da ERC, foi a do politó-logo Pedro Magalhães, no Público17, que foi claro: “(…) se o que está em causa é a ‘expressão e o con-fronto das diversas correntes de opinião', por que não dar peso igual a cada partido? E porquê pensar apenas nos partidos, e não em associações, grupos de interesse, minorias étnicas e religiosas, orienta-ções sexuais, géneros, idade ou outra coisa qualquer susceptível de estar relacionada com diferentes preferências e opiniões? Espero que se perceba que estas perguntas são retóricas e que não defendo qualquer um dos métodos anteriores. Elas têm como mero objectivo demonstrar como o exercício é puramente arbitrário e como é simplista a interpretação adoptada pela ERC do conceito de ‘pluralismo político’.”
Alfredo Maia, por seu turno, põe o dedo na ferida ao afirmar que um órgão que não
consegue garantir a pluralidade no parlamento não pode arrogar-se a garanti-la na
sociedade:
“[A] composição/escolha dos membros da ERC dependente de confiança político-partidária da maioria parlamentar, circunscrita aos dois terços necessários à aprovação de uma lei para-constitucional, sem reflectir sequer a diversidade do Parlamento, quanto mais a diversidade da sociedade”
Não surge como provado, por isso, que a ERC consiga promover o pluralismo, apesar
de essa ser uma condição para garantir a liberdade de expressão.
A não concentração dos órgãos de comunicação social faz também parte das
competências da ERC, promovendo o pluralismo e garantindo a livre publicação e
expressão. Fica por provar, por exemplo, se existe relação causa-efeito entre a não
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concentração e o pluralismo. Para alguns autores, há mesmo indícios que um único
grupo pode ter diversos órgãos de comunicação social, todos diversos, especializados
ou generalistas.
Para Elsa Costa e Silva, a concentração dos media pode mesmo ter efeitos positivos no
mercado, tornando-o menos vulnerável a “investidas” estrangeiras:
Por exemplo, um dos benefícios correntemente apontados da existência de grupos de comunicação social
diz respeito à consolidação de posições no mercado que evitem os eventuais perigos que podem constituir
para a cultura nacional a presença de media estrangeiros.
Diz ainda a mesma autora que a tradição nacional nesse campo aponta para a
concentração, além de que a mesma é uma evidência. A acção da ERC estaria assim
comprometida por não poder ter poder retroactivo:
Portanto, no momento em que assume funções, a ERC tem como dado adquirido a concentração. Como velar pela não-concentração, se não tem, obviamente, poder de actuação retroactiva? Até porque, como já foi referido, a história e tradição em Portugal tem apontado para a permissão da concentração – nenhum negócio foi, até ao momento, travado. E, se existe memória para o “quadro regulador” de determinado ambiente em Portugal, essa é a de jurisprudência favorável à concentração.
[…]
Ou seja, não reflectem a realidade de um sector que está integrado em termos de propriedade e onde não há distinção subsectorial. Em Portugal, existem actualmente quatro grupos privados com presença significativa em diversos meios do sector da comunicação social: Impresa (SIC, canal generalista e negó-cio cabo, Expresso, Visão e segmento de revistas especializadas), Lusomundo/Controlinveste (DN, JN, 24 Horas, TSF, O Jogo e Sport TV), Media Capital (TVI, Rádio Clube Português, Rádio Comercial, Rádio Cida-de e portal Iol) e Cofina (Correio da Manhã, Record e Jornal de Negócios). Fora deste núcleo mais significativo, temos a Sonaecom (com negócio de Internet e comunicações móveis e o jornal Público) e os espanhóis da Retos/Recoletos (com o Diário Económico e o Semanário Económico). Além disso, existe ainda o grupo ligado à Igreja Católica, o Intervoz (com os canais de rádio e uma propriedade mais difusa a nível da imprensa regional). O Estado é outro actor importante, com a televisão (generalista e cabo, mais a difusão nas ilhas), rádio (grupo RDP) e agência noticiosa (Lusa).
Julga-se necessário referir ainda que a União Europeia não definiu ainda uma política
efectiva no que concerne à pluralidade e à não concentração de empresas de
comunicação social, o que configura esta acção da ERC, segundo alguns autores, como
extemporânea.
Francisco Cádima, por seu turno, considera que a independência dos órgãos de
comunicação social estaria mais dependente de uma posição forte e independente dos
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jornalistas enquanto classe, blindando-os contra influências de vária ordem e
possibilitando a adopção de uma postura mais consentânea com o seu código
deontológico. Não nos foi possível, contudo, encontrar qualquer referência a esse
assunto nos estatutos da ERC ou nos autores apoiantes do modelo de hetero-
regulação.
Independência da ERC
A eficácia ou ineficácia da ERC face às suas prerrogativas foi anteriormente analisada
por uma perspectiva funcional. Diferente é a questão da independência do órgão, que,
a não estar garantida, pode fazer perigar essas prerrogativas, independentemente da
adequação das suas acções.
Já foi referido anteriormente que o facto de se tratar de um órgão “eleito” pela
Assembleia da República causa sérias dúvidas quanto à imparcialidade ou
independência política dos seus membros. Sobre isso, Manuela Espírito Santo afirma:
Porém, a Alta Autoridade, apesar do diálogo interpartidário e dos acordos estabelecidos para a sua aprovação, esteve desde o seu nascimento “ferida de morte”. Com efeito, apesar de se tratar de um órgão constitucionalizado e com poderes alargados no domínio da regulação dos media, desde a sua criação que a AACS levantou as mais sérias dúvidas quanto à sua independência face ao poder político. E essas dúvidas fundavam-se, em grande parte, na composição e nomeação dos seus membros. Aliás, a nomeação dos seus membros constitui o motivo mais violento de crítica fora e dentro da Assembleia da República.
A corroborar essas suspeitas está a possibilidade do Parlamento dissolver o órgão,
ainda que por situações extraordinárias. Não sendo o critério de “extraordinário”
universal, dá-se mais um golpe no já frágil estatuto de “independência” da ERC.
Por outro lado, a exclusão dos regulados (empresas e profissionais) e da sociedade civil
na composição da ERC causa a desresponsabilização dos mesmos no seu papel auto-
regulativo e co-regulativo, respectivamente, com uma evidente diminuição da eficácia
das acções da regulação estatal.
Está assim criado um clima de suspeição, motivado pelo não reconhecimento da
independência do órgão, com consequências restritivas ao cumprimentos das suas
competências e colocando em causa, em última instância, a sua criação.
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CONCLUSÃO
Partindo do inicialmente proposto, considera-se que a criação da ERC é justificada pela
Constituição da República Portuguesa, em primeiro lugar, e pelo poder representativo
da Assembleia da República, em segundo lugar. Assim, a opção por um modelo de
hetero-regulação é legítima em termos abstractos, por estar de acordo com o
estipulado pelo Direito e pela Democracia Representativa.
É possível, deste modo, compreender a extinção da AACS e a criação da ERC, dotada
esta última de poderes reforçados face à primeira no sentido da garantir a liberdade
de expressão, sempre tendo em conta a defesa das liberdades, direitos e garantias dos
cidadãos.
No que concerne à eficácia do órgão, colocam-se sérias reservas à sua capacidade para
levar a bom porto os seus desígnios. O trabalho procurou demonstrar que a acção da
ERC, apesar de reforçada face à sua antecessora, não impede, de facto, os abusos ou
tentativas de condicionamento na informação.
Pior do que isso: o não reconhecimento da independência do órgão (e a falta de um
debate alargado para a criação do mesmo) criou um clima de suspeição e de
predisposição para colocar em causa a credibilidade e justeza das suas acções.
Podendo as peças jornalísticas serem consideradas documentos de arquivo (e
recordando a intenção inicial de estabelecer uma relação entre as estratégias políticas
face aos media e o acesso à informação na arquivística), julga-se estarmos perante um
cenário em que o acesso à informação arquivística seguirá uma tendência em que se
notará um peso forte (possivelmente excessivo) do Estado em detrimento de uma
regulação da sociedade civil e dos regulados.
Sugere-se, nessa perspectiva, a promoção de um debate generalizado, acção que pode
(e deve) ser promovida pelos profissionais de arquivo, não só individualmente, como
mediante as instituições que os representam.
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ANEXOS