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01-08-2018 PEDRO PASCOINHO . Contra ption (2018) . Na Galeria Acervo, Lisboa, até 14 de Setembro Economia Entre o modelo europeu e o latino-americano A economia solidária em Portugal: algumas questões e desafios Em Portugal, por falta de enquadramento na Lei de Bases da Economia Social, a economia social e solidária tende a ser invisibilizada e excluída das ajudas públicas. O que caracteriza esta economia, o que a distingue da economia social, e como se relaciona com o mercado? Que papel pode ter no aprofundamento da democracia? PEDRO HESPANHA * E conomia solidária é hoje a designa- ção genérica utilizada em muitos países para cobrir um vasto con- junto de práticas económicas que não po- dem ser entendidas nem a partir do indi- vidualismo possessivo da empresa que es- tabelece o primado da valorização do ca- pital sobre a valorização das pessoas, nem da preocupação reformista da economia social que, tendo obtido reconhecimento pelo seu papel complementar do Estado Social, se foi mostrando cada vez mais dis- ponível para conviver e se adaptar ao sis- tema económico e social capitalista. Numa definição muito ampla, a econo- mia solidária engloba as práticas econó- micas baseadas no trabalho associado, na gestão democrática e na solidariedade en- tre iguais. Essas práticas radicam tanto nas formas persistentes de economia popular ou de cooperação operária que resistiram à mercadorização do trabalho, quanto nas formas mais recentes de busca de alter- nativas ao desmantelamento dos direitos sociais e dos serviços sociais públicos de- sencadeado pelo rumo que as políticas e o mercado têm tomado. Num caso e nou- tro, como refere Jean-Louis Laville num livro recentemente publicado em portu- guês, o que marca a diferença é o propó- sito de pessoas e grupos resolverem jun- tos problemas da existência que cada qual isoladamente não consegue e a vontade de contribuírem para «uma outra econo- mia preocupada com o bem comum e com a defesa dos modos de vida ameaçados»E l l. Importa reconhecer que nem sempre os sujeitos que desenvolvem tais práticas se identificam com a designação de econo- mia solidária. São várias as razões desta dissonância entre «o nome» e «a coisa»: desde logo, devido à relativa ambiguidade do conceito de solidariedade, fortemente apropriado pelas instituições de cariz fi- lantrópico ou religioso; depois, devido ao aparecimento recente de novas terminolo- gias cujas diferenças dificilmente se apre- endem (economia cívica, economia cola- borativa, economia de partilha, economia circular, etc.)[21. A diversidade e atipicidade de formas como se apresenta a economia solidária é um traço específico a sublinhar que con- trasta, por exemplo, com o carácter limi- tado e taxativo das modalidades da econo- mia social. Muitas dessas formas têm raí- zes fortes no passado, como é o caso, en- tre outros, do trabalho comunitário ou da entreajuda camponesa, das iniciativas de solidariedade popular, do mutualismo ru- ral ou operário, das cooperativas nas suas diferentes formas ou da produção autoge- rida. Outras são mais recentes e surgem, mais ou menos espontaneamente, de si- tuações críticas vivenciadas pelas cama- das mais vulneráveis da população, em que estas procuram organizar as respos- tas que o mercado e o Estado não dão. Ou- tras, em suma, são soluções alternativas à economia capitalista, pensadas e inventa- das dentro das organizações e movimen- tos sociais contra-hegemónicos, inspira- das num pensamento crítico sobre a eco- nomia e a sociedade capitalista e numa avaliação positiva das experiências que visam democratizar a economia e desen- volver alternativas socioeconómicas mais justas, mais democráticas e mais susten- táveis, por meio do trabalho cooperativo e solidário. Uma economia que extravasa o económico O que ressalta de imediato nas iniciati- vas da economia solidária é a presença in- dissociável de dimensões extra-económi- cas, ou, para ser mais rigoroso, de princí- pios de economicidade distintos dos da economia de mercado capitalista e que ex- primem uma forte ligação aos contextos sociais em sentido amplo (societais, polí- ticos, culturais e ambientais, etc.) em que se geraram131 . Referiremos apenas quatro dessas dimensões. Primeiro, a gestão democrática ou au- togestão como método de tomar decisões e de governar. Entendida como resultado da decisão de desenvolver uma actividade económica baseada no trabalho associado, em que as decisões fundamentais têm de ser tomadas pelo colectivo, a autogestão vai muito além da co-responsabilidade dos trabalhadores pelos resultados do seu empreendimento ou da sua participação na organização do processo produtivo. Sendo um modo de os próprios grupos so- ciais solucionarem colectiva e autonoma- mente os seus problemas, as iniciativas de economia solidária não se confundem com os modos de intervenção social atra- vés dos quais uma organização ou enti- dade pretende solucionar problemas sen- tidos por grupos sociais desfavorecidos. Segundo, a solidariedade entre iguais. Ela é identificada aqui com uma justa dis- tribuição de oportunidades, bens e resul- tados entre indivíduos e grupos que com- partilham os mesmos problemas e aspira- ções, envolvendo principalmente a coope-

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01-08-2018

PEDRO PASCOINHO . Contra ption (2018) . Na Galeria Acervo, Lisboa, até 14 de Setembro

Economia

Entre o modelo europeu e o latino-americano

A economia solidária em Portugal: algumas questões e desafios Em Portugal, por falta de enquadramento na Lei de Bases da Economia Social, a economia social e solidária tende a ser invisibilizada e excluída das ajudas públicas. O que caracteriza esta economia, o que a distingue da economia social, e como se relaciona com o mercado? Que papel pode ter no aprofundamento da democracia?

PEDRO HESPANHA *

E conomia solidária é hoje a designa-ção genérica utilizada em muitos países para cobrir um vasto con-

junto de práticas económicas que não po-dem ser entendidas nem a partir do indi-vidualismo possessivo da empresa que es-tabelece o primado da valorização do ca-pital sobre a valorização das pessoas, nem da preocupação reformista da economia social que, tendo obtido reconhecimento pelo seu papel complementar do Estado Social, se foi mostrando cada vez mais dis-ponível para conviver e se adaptar ao sis-tema económico e social capitalista.

Numa definição muito ampla, a econo-mia solidária engloba as práticas econó-micas baseadas no trabalho associado, na gestão democrática e na solidariedade en-tre iguais. Essas práticas radicam tanto nas formas persistentes de economia popular ou de cooperação operária que resistiram à mercadorização do trabalho, quanto nas formas mais recentes de busca de alter-nativas ao desmantelamento dos direitos sociais e dos serviços sociais públicos de-sencadeado pelo rumo que as políticas e o mercado têm tomado. Num caso e nou-tro, como refere Jean-Louis Laville num livro recentemente publicado em portu-guês, o que marca a diferença é o propó-sito de pessoas e grupos resolverem jun-tos problemas da existência que cada qual isoladamente não consegue e a vontade de contribuírem para «uma outra econo-mia preocupada com o bem comum e com a defesa dos modos de vida ameaçados»Ell.

Importa reconhecer que nem sempre os sujeitos que desenvolvem tais práticas se identificam com a designação de econo-mia solidária. São várias as razões desta dissonância entre «o nome» e «a coisa»: desde logo, devido à relativa ambiguidade do conceito de solidariedade, fortemente apropriado pelas instituições de cariz fi-lantrópico ou religioso; depois, devido ao aparecimento recente de novas terminolo-gias cujas diferenças dificilmente se apre-endem (economia cívica, economia cola-borativa, economia de partilha, economia circular, etc.)[21.

A diversidade e atipicidade de formas como se apresenta a economia solidária é um traço específico a sublinhar que con-trasta, por exemplo, com o carácter limi-tado e taxativo das modalidades da econo-mia social. Muitas dessas formas têm raí-zes fortes no passado, como é o caso, en-tre outros, do trabalho comunitário ou da entreajuda camponesa, das iniciativas de solidariedade popular, do mutualismo ru-

ral ou operário, das cooperativas nas suas diferentes formas ou da produção autoge-rida. Outras são mais recentes e surgem, mais ou menos espontaneamente, de si-tuações críticas vivenciadas pelas cama-das mais vulneráveis da população, em que estas procuram organizar as respos-tas que o mercado e o Estado não dão. Ou-tras, em suma, são soluções alternativas à economia capitalista, pensadas e inventa-

das dentro das organizações e movimen-tos sociais contra-hegemónicos, inspira-das num pensamento crítico sobre a eco-nomia e a sociedade capitalista e numa avaliação positiva das experiências que visam democratizar a economia e desen-volver alternativas socioeconómicas mais justas, mais democráticas e mais susten-táveis, por meio do trabalho cooperativo e solidário.

Uma economia que extravasa o económico

O que ressalta de imediato nas iniciati-vas da economia solidária é a presença in-dissociável de dimensões extra-económi-cas, ou, para ser mais rigoroso, de princí-pios de economicidade distintos dos da economia de mercado capitalista e que ex-primem uma forte ligação aos contextos sociais em sentido amplo (societais, polí-ticos, culturais e ambientais, etc.) em que se geraram131. Referiremos apenas quatro dessas dimensões.

Primeiro, a gestão democrática ou au-togestão como método de tomar decisões e de governar. Entendida como resultado da decisão de desenvolver uma actividade económica baseada no trabalho associado, em que as decisões fundamentais têm de ser tomadas pelo colectivo, a autogestão vai muito além da co-responsabilidade dos trabalhadores pelos resultados do seu empreendimento ou da sua participação na organização do processo produtivo. Sendo um modo de os próprios grupos so-ciais solucionarem colectiva e autonoma-mente os seus problemas, as iniciativas de economia solidária não se confundem com os modos de intervenção social atra-vés dos quais uma organização ou enti-dade pretende solucionar problemas sen-tidos por grupos sociais desfavorecidos.

Segundo, a solidariedade entre iguais. Ela é identificada aqui com uma justa dis-tribuição de oportunidades, bens e resul-tados entre indivíduos e grupos que com-partilham os mesmos problemas e aspira-ções, envolvendo principalmente a coope-

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ração com base em relações de proximi-dade e confiança, cimentada na vontade de compartilhar recursos e coordenar os interesses particulares como interesse co-mum de viver melhor. Este cimento que aproxima as pessoas pode ter os mais di-versos fundamentos e, não raro, combina vários deles: ethos de similitude, consci-ência da interdependência social ou de dí-vida social, imperativo religioso, político ou ético141. A solidariedade da economia solidária não se confunde, portanto, com aquela outra solidariedade, de base reli-giosa ou secular, fundada nos valores da caridade, do altruísmo ou da filantropia. A responsabilidade social das empresas, o empreendedorismo social e o volun-tariado social são as expressões mais co-muns desse outro tipo de solidariedade, assimétrica e paternalista.

Terceiro, a dimensão política. Esta di-mensão, que nem sempre é assumida como tal, identifica-se, antes de tudo, com a sua condição de contrapoder e manifesta--se de múltiplas formas: a) na resistência -ou na busca de alternativas - a um sistema de relações económicas que, ao estimular a competição e o risco, favorece a posição de quem tem mais recursos e mais poder; b) na re-significação do tecido democrá-tico, alargando o poder de deliberação dos sujeitos, desmercantilizando a vida e apro-fundando os direitos, muitos dos quais re-lacionadas com lutas (feminista, ecológica, anticolonial) invisibilizadas pelo capita-lismo como modelo civilizacional151; c) em urna variada gama de práticas de expres-são política: da reivindicação contestatária à auto-resolução dos problemas; da orga-nização de movimentos de base à dissemi-nação de agendas de luta pelos direitos de cidadania, da pressão sobre as instituições à resistência activa ou passiva diante das imposições destas161.

Além de serem um espaço de vida as-sociativa e deliberação colectiva, as ini-ciativas da economia solidária funcionam também como escolas de democracia, de defesa do interesse público e motores de participação cívica, e ainda como espaços comunicativos, para desenvolver a capaci-dade de realizar debates, de resolver con-flitos e de estabelecer consensos entre in-divíduos e grupos com valores, interesses e identidades diversos.

O que é distinto na economia solidária em Portugal?

Finalmente, a dimensão ambiental. A preocupação que subjaz a muitas das ini-ciativas da economia solidária é a melho-ria da qualidade de vida e o respeito pelo meio ambiente. Vivemos em Portugal, e na Europa em geral, um momento de expan-são do movimento de transição, de cresci-mento da agricultura urbana, de uma visí-vel expansão de iniciativas críticas de soli-

dariedade e consumo, de estímulo a curto--circuitos. Tudo isso mobiliza as pessoas para modos de produzir, trocar e consu-mir mais sustentáveis e capazes de redu-zir o desperdício de recursos. Mas a pre-sença até hoje, em dimensão muito signi-ficativa, de uma pequena agricultura par-cialmente destinada ao autoconsumo das famílias também explica a forte preocupa-ção generalizada na sociedade portuguesa não só com a qualidade dos alimentos mas também com a preservação dos recursos.

Existem na sociedade portuguesa algu-mas particularidades que podem situar a economia solidária entre o modelo euro-peu e o modelo latino-americano, ou com um pouco mais de rigor, combinando tra-ços de um e outro. Portugal tem sido ca-racterizado como uma sociedade semi-periférica no contexto do sistema mun-dial, no sentido em que, a par de caracte-rísticas sociais próprias dos países mais desenvolvidos do centro, mantém outras que a aproximam dos países da periferia, num quadro de assimetrias que se expli-cam a partir da sua condição passada de país de intermediação entre centro e peri-feria. Entre essas características estão for-mas de uso dos recursos, de produção e de troca cujo fundamento económico tem a ver com a persistência de tradições co-munitárias e a vitalidade de práticas eco-nómicas populares baseadas em regras de reciprocidade e motivadas por um de-sejo de reprodução ampliada da vida. Ao mesmo tempo que essas formas conse-guiram resistir à hegemonia do mercado, através de uma integração adversa que as não descaracterizou totalmente, elas ser-vem hoje de suporte a todo um conjunto de actividades que se mostram particular-mente ajustadas a compensar o retrocesso do estado social e os excessos do utilita-rismo individualista. Em resultado disto, verifica-se uma crescente mobilização das comunidades rurais ou urbanas em torno de interesses partilhados (multiculturali-dade, democratização do espaço público, serviços de interesse comum, promoção da cultura e criatividade locais), muitas ve-zes com envolvimento próximo das autar-quias locais e de outras organizações não governamentais.

À diversidade de formas de que se re-veste esta outra economia associam-se, também, formas diferentes de promover o desenvolvimento local e de actuar nas suas várias dimensões. Em primeiro lugar, as iniciativas que promovem o desenvol-vimento, na sua vertente mais económica, aquelas que geram rendimento e emprego em situações em que a economia de mer-cado é incapaz de o fazer: autogestão de empresas falidas, as cooperativas de tra-balho, os empreendimentos geridos por desempregados ou trabalhadores precá-rios, as cooperativas de crédito, as associa-ções fiduciárias e as cooperativas de con-

sumo. Em segundo lugar as iniciativas que adoptam uma abordagem integrada dos problemas e das respostas, procurando aproximar actores que ganham em coope-rar: produtores e consumidores dos mes-mos produtoS (mercados solidários, inter-mediação solidária - cabazes e hortas so-lidárias, circuitos curtos); produtores que isoladamente têm dificuldade em escoar os seus produtos (redes colaborativas so-lidárias; cooperativas de artesãos, de re-ciclagem de resíduos, lojas de comércio justo; redes solidárias e clubes de trocas). E, em terceiro lugar, as iniciativas que per-mitem aumentar o bem-estar e melhorar as condições de vida: serviços sociais de proximidade, creches colectivas, cantinas populares, ateliers terapêuticos, clínicas populares, sistemas de partilha de bens (habitação, transporte particular, livros, medicamentos). É desta diversidade e ri-queza do seu campo de acção que a econo-mia solidária está a retirar o seu sucesso em PortugaL

Embora ainda não exista um mapea-mento exaustivo das iniciativas de econo-mia solidária em Portugal, vários estudos de terreno têm reportado a sua diversidade. A economia solidária em Portugal pode assu-mir muitas formas diferentes - algumas das quais não são formalmente reconhecidas e outras ganham mais espaço de acordo com as novas necessidades sociais.

Um grande número de iniciativas de economia solidária, principalmente em áreas urbanas, são claramente inspiradas em princípios que novos movimentos so-ciais introduziram na sociedade portu-guesa: protecção ambiental, liberdade de criar, administrar e sustentar os bens co-muns, protecção ao consumidor, igual-dade de género, liberdade de expressão, orientação sexual, pacifismo. Em geral, es-sas iniciativas têm objectivos culturais e políticos muito explícitos, procurando es-tabelecer novos modos de vida e influen-ciar políticas públicas. Por esta razão, a ex-pressão pública dos seus objectivos é uma estratégia importante, através de diferen-tes formas: presença nos meios de comu-nicação social, organização e participação em reuniões públicas, reivindicação per-

sistente junto de entidades públicas e gru-pos de interesses. Apesar da sua tremenda visibilidade pública, essas iniciativas são ostensivamente ignoradas, se não contes-tadas, muitas vezes insidiosamente, pelos governos e instituições públicas.

A visibilidade da economia solidária, po-rém, não é a regra. Numa sociedade em que coexistem relações económicas pré-capita-listas a par de relações económicas de mer-cado livre, estas últimas conseguem ofus-car completamente as formas associativas tradicionais baseadas numa economia de reciprocidade e, por isso, a racionalidade auto-interessada, calculista e competitiva do homo ceconomicus pode ser conside-rada como uma primeira evidência do pro-cesso de invisibilização estrutural da eco-nomia solidária O discurso económico do-minante ignora essa realidade e não conse-gue entender os critérios sociais e culturais que afectam as decisões económicas, con-siderando assim economicamente irrele-vante o investimento em laços solidários e sociais. Sempre que uma determinada en-tidade é desacreditada e considerada in-visível, não inteligível ou descartável pelo pensamento mainstream, a sua não-exis-tência é largamente assumida como tal ou como uma forma de resíduori.

Assim, um primeiro factor de invisibili-zação da economia solidária tem origem no «monopólio intelectual» do pensa-mento económico que defende ser o homo ceconomicus racional e motivado o motor da economia Por trás desse pensamento está a ideia de que as motivações aquisi-tivas e egoístas e a racionalidade instru-mental são a base da ciência económica e que as motivações são «dadas» ou «fixas». Sempre que as motivações dependem do contexto em que a interacção ocorre, elas são ignoradas ou marginalizadas181.

Um paradoxo evitável

Outro factor importante de invisibiliza-ção consiste na regulação pública da eco-nomia Nas sociedades contemporâneas, as instituições legislativas e reguladoras produzem deliberadamente a invisibiliza-ção, submetendo «histórias concretas e

[11 Jean-Louis Laville, A Economia Social e Solidária. Práticas, Teorias e Debates, Almedina, Coimbra, 2018. [2] Pedro Hespanha e Luciane Lucas dos Santos, «O nome e a coisa. Sobre a invisibilidade e a ausência de reconhecimento institucional da Economia Solidária em Portugal», Revista de Economia Solidária, ft' 9, 2016, pp. 22-68. [3] O manifesto da Rede Portuguesa de Economia Solidária (RedPES) refere que na economia solidária «se conjuga economia com solidariedade, perspectiva ecológica, diversidade cultural, reflexão critica, democracia participativa e desenvolvimento Local». [4] Steiner Stjerno, Sol/dant)/ in Europe. The History of an ldea, Cambridge University Press, Cambridge, 2004; Serge Paugam (org.), Repenser la Solidarité. L'apport des sciences sociales, Presses Universitaires de France, Paris, 2007 (cf. pp. 5-28); e Richard Sennett, Juntos, Record, Rio de Janeiro, 2012. [5] Luciane Lucas dos Santos, «Os clubes de troca na economia solidária: por um modelo critico e emancipatório de consumo», em Pedro Hespanha e Aline Mendonça Santos (org.), Economia Solidária: questões teóricas e epistemológicas, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 169-203. [6] Jean-Louis Laville, «Economia Solidária: um movimento internacional», Revista Critica de Ciências Sociais, n.° 84, 2009, pp. 7-47. [7] Boaventura de Sousa Santos, «Public Sphere and Epistemologies Cif the South», Africa Development, vol. XXXVII, ri.° 1, 2012, pp. 43-67. [8] Boaventura de Sousa Santos, Toward a New Common Sense: Law, Science and Polida in the Paradigmatic Transition, Routledge, Nova Iorque, 1995.

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Economia

formas de vida contextualizadas à abs-tracção da burocratização e da monetari-zação, ou destruindo as dinâmicas orgâni-cas e os padrões internos de autoprodução e auto-reprodução das diferentes esferas so-ciais (economia, família, educação, etc.)»19].

Uma afirmação óbvia sobre o reconheci-mento institucional da economia solidária é que a relativa invisibilidade da economia solidária tem uma contrapartida directa no seu escasso reconhecimento público e, acima de tudo, no reconhecimento institu-cional quase nulo. O reconhecimento pelo Estado - não apenas da sua existência, mas também da sua relevância - permanece praticamente inalterado hoje, diferente-mente do que ocorre em outros países eu-ropeus e, sobretudo, na América Latina.

Paradoxalmente, algumas formas de eco-nomia solidária em Portugal beneficiam de um amplo reconhecimento legal pela Cons-tituição da República (1976), mas sofreram uma total marginalização pela Lei de Ba-ses da Economia Social (2013). De facto, a Constituição considera o sector «coopera-tivo e social» como um dos três sectores da propriedade económica, juntamente com o sector público e o sector privado e especi-fica quatro tipos de economia compreendi-dos nesse sector: a economia cooperativa, a economia das comunidades locais, a eco-nomia colectiva dos trabalhadores e a eco-nomia das «pessoas colectivas, sem carácter lucrativo, que tenham como principal objec-tivo a solidariedade social, designadamente entidades de natureza mutualista» (art2. 82,

4). Em 2013, e com vista a regulamentar o disposto na Constituição quanto ao sector cooperativo e social, o Parlamento aprova as bases gerais do regime jurídico da eco-nomia social que define taxativamente as entidades que integram a economia social e estabelece duas condições que deixam de fora muitos colectivos de economia solidá-ria: estarem dotados de personalidade jurí-dica e constarem da base de dados da eco-nomia social (art2 49).

Enquanto a economia social é conside-rada como parceira do Estado em áreas como assistência, saúde, educação, agri-cultura, habitação, cultura, meio ambiente, desenvolvimento local e desporto, a eco-nomia solidária é omitida na lei, ao con-trário do que acontece em outros países europeus. Assim, a menos que as iniciati-vas de economia solidária preencham os pré-requisitos de identidade e os registo legais, elas estão fora do âmbito da lei e não podem invocar as obrigações do Es-tado para com elas. Entre essas obrigações contam-se, designadamente, o «estimulo e apoio à criação e à actividade»; a «cria-ção de mecanismos que permitam reforçar a autossustentabilidade económico-finan-ceira»; o apoio à «diversidade de iniciati-vas»; o «incentivo à investigação e à inova-ção, à formação profissional e ao acesso aos processos de inovação tecnológica e de ges-tão organizacional» (arte 92 e 102 da LES). Levado ao extremo, o paradoxo do não re-conhecimento acarreta o risco de, para ob-ter alguma ajuda pública, as iniciativas de

economia solidária serem levadas a adop-tar o modelo da economia social.

Existe uma diferença, nem sempre clara-mente explicitada, entre a economia solidá-ria e o que tem sido designado, desde o sé-culo XIX, como economia social, isto é, orga-nizações destinadas a prestar serviços aos seus membros ou à comunidade, com au-tonomia de gestão e controlo democrático, em que o lucro é um objectivo secundário. Como já foi referido, a economia social, so-bretudo após a consolidação do Estado So-cial, beneficiou de um elevado reconheci-mento institucional e, em consequência, perdeu muita da sua autonomia e fiexibili-dadel101. As iniciativas mais espontâneas, democráticas e emancipatórias, mais difi-ceis de enquadrar institucionalmente, fica-ram de fora da economia social, tendo-se a economia solidária tornado assim a desig-nação comum dessas formas emergentes ou formas tradicionais não enquadradas.

Não se reconhecendo no perfil da econo-mia social, desde logo pela descoincidên-cia entre as práticas e os ideais normativos mas também pelo foco excessivo na dimen-são organizacional ou no isomorfismo ins-titucional/mercantil, a economia solidária

disputa com ela o reforço da solidariedade democrática, não só aquela fundada nos di-reitos e na redistribuição pública, mas tam-bém a fundada em laços sociais igualitários.

Por isso, faz sentido identificar as com-plementaridades e as diferenças entre es-tas duas realidades, com vista a explorar as sinergias entre a economia social e a eco-nomia solidária precisamente para refor-çar a posição de ambas face ao Estado e ao mercado e reforçar a sua legitimidade so-cial e política. Tem razão Jean-Louis Laville quando defende que o uso da designação economia social e solidária, ainda que as-sumido como uma concessão táctica, tem-porária e superficial, pode identificar os contributos possíveis que cada qual pode trazer para a consolidação de uma efec-tiva democracia económica, integrando a redistribuição dos mais diversos recursos e a valorização da autonomia dos sujeitos implicados nas iniciativas[11]. ■

• Sociólogo, professor jubilado da Faculdade de

Economia da Universidade de Coimbra,

investigador do Centro de Estudos Sociais.e

tradutor e prefaciador do livro de 1.-L. Laville,

Economia Social e Soklária. Práticas, Teorias e Debates.

[9] Francisco Louçã .e José Maria Castro Caldas, Economia(s), Afrontamento, Porto, 2009. [10] Trabalhos recentes vieram fazer luz sobre esse processo de transformação da economia social em Portugal: Alvaro Garrido, Cooperação e Solidariedade. Uma História da Economia Social, Tinta da China, Lisboa, 2016; Jordi Estivill, «Os primórdios da economia social em Portugal. Contributos de Ramón de la Sagra — 1Parte», Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol. XXXIII, 2017, pp. 19-45; — II Parte, ibidem, vol. XXXIV, 2017, pp. 11-26. [11] Jean-Louis Laville, A Economia Social e Solidária. Práticas, Teorias e Debates, Almedina, Coimbra, 2018.

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ue Economia solidária: questões e desafios

PEDRO HESPANHA

MENSAL . II SÉRIE . N.° 142 . AGOSTO 2018. 4,90 EUROS . DIRECTORA: SANDRA MONTEIRO

Financeirização do Estado, política de habitação e subsídios à especulação ANA CORDEIRO SANTOS

A fábula do 31 de Agosto de 2013 SERGE HALIMI

Há exactamente cinco anos, uma interpretação da história das relações internacionais triunfou em todas as capitais ocidentais. Repisada de forma metódica, tornou-se uma

religião oficial. Explica a interpretação, em substância, que o presi-dente Barack Obama cometeu um erro de pesadas consequências quando, a 31 de Agosto de 2013, renunciou a atacar o exército sírio depois de este se ter tornado culpado de um bombardea-mento químico mortífero num bairro suburbano de Damasco. Esta pusilanimidade do presidente teria garantido a manutenção no poder de um regime que teria massacrado uma parte da sua população. De resto, como sustenta entre muitos outros o antigo presidente François Hollande, «o regime sírio não foi o único a

acreditar que tudo lhe era permitido. Vladimir Putin compreendeu

que podia anexar a Crimeia e desestabilizar o Leste da Ucrânia»111.

Tamanha reconstituição histórica, colorida com a referência obri-gatória a Winston Churchill (que compreende que os Acordos de Munique iriam abrir caminho a outras agressões nazis), legitima por antecipação as guerras preventivas e a chamada política de «paz pela força». Em particular em relação à Rússia.

Tem a palavra a defesa. O presidente Obama, instruído pelas aventuras dos Estados Unidos no Afeganistão, no Médio Oriente e na Líbia, encorajadas por análises alarmistas e enganadoras dos serviços de informações americanos, sabia o custo que se paga por fazer depender o crédito de um país da intervenção re-petida dos seus exércitos em terra estrangeira. «Não deveriamos terminar as duas guerras que iniciámos antes de nos lançarmos

numa terceira?», sugeriu-lhe inclusivamente, no caso da Síria, o seu antigo ministro da Defesa Robert Gates[2].

Paradoxalmente, alguns dos advogados mais inconsoláveis desta intervenção — o The New York Times e todos os jornais europeus que recopiam os seus editoriais — gostam de denunciar o absolutismo presidencial e de insistir no respeito pelos contra-poderes e pelo direito. Ora, um bombardeamento ocidental da Síria não se enquadrava na legítima defesa e não poderia valer--se de qualquer autorização da Organização das Nações Unidas (ONU). Também não beneficiava do apoio da opinião pública ocidental, nem do Congresso dos Estados Unidos, nem do mais fiel aliado deste país, o Reino Unido, uma vez que a Câmara dos Comuns se lhe opôs.

Há outros pontos de comparação entre Churchill e Munique que também podem ser escolhidos. Este, por exemplo: em 1991, uma coligação internacional fundada numa resolução da ONU forçou o exército iraquiano a evacuar o Koweit. Mal este objectivo foi atingido, os neoconservadores criticaram o presi-dente americano George H. Bush por não ter ido «até ao fim», derrubando Saddam Hussein. Durante mais de dez anos, eles foram repetindo que quase todos os problemas da região resul-tavam desta trágica «fuga».

Em 2003, o seu desejo foi finalmente atendido; Churchill rein-carnado; o Iraque ocupado; Saddam Hussein enforcado. Desde então, o Médio Oriente assemelha-se realmente a um paraíso?

[11 «François Hollande: "Que! est cet allié turc qui frappe nos propres

alliés?" », Le Monde, 12 de Março de 2018.

[21 Citado por Jeffrey Goldberg, «The Obama doctrine», The Atlantic,

Boston, Abril de 2016

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