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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES LICENCIATURA PLENA EM LETRAS HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGESA A DUALIDADE DA CONSCIÊNCIA EM AUGUSTO DOS ANJOS: UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA THIAGO DA SILVA ALMEIDA JOÃO PESSOA MARÇO DE 2013

A DUALIDADE DA CONSCIÊNCIA EM AUGUSTO DOS ANJOS: UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA

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THIAGO DA SILVA ALMEIDA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

LICENCIATURA PLENA EM LETRAS

HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGESA

A DUALIDADE DA CONSCIÊNCIA EM AUGUSTO DOS ANJOS: UMA ABORDAGEM

SEMIÓTICA

THIAGO DA SILVA ALMEIDA

JOÃO PESSOA

MARÇO DE 2013

THIAGO DA SILVA ALMEIDA

A DUALIDADE DA CONSCIÊNCIA EM AUGUSTO DOS ANJOS: UMA ABORDAGEM

SEMIÓTICA

Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em

Letras da Universidade Federal da Paraíba como

requisito para obtenção do grau de Licenciado em

Letras, habilitação em Língua Portuguesa.

Orientadora:

Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

JOÃO PESSOA

MARÇO DE 2013

Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade Federal da Paraíba.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Almeida, Thiago da Silva.

A dualidade da consciência em Augusto dos Anjos: uma abordagem

semiótica. / Thiago da Silva Almeida. - João Pessoa, 2013.

31f.

Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal da Paraíba -

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

1. Teoria Semiótica. 2. Discurso. 3. Anjos, Augusto dos - Sonetos. I.

Título.

BSE-CCHLA CDU 81’22

A DUALIDADE DA CONSCIÊNCIA EM AUGUSTO DOS ANJOS: UMA ABORDAGEM

SEMIÓTICA

Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da Paraíba

como requisito para obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação em Língua

Portuguesa.

Data de aprovação: ____/____/____

Banca examinadora

Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista, DLCV, UFPB

Orientadora

Prof.º Dr. Hermano de França Rodrigues, DLCV, UFPB

Examinador

Prof.ª Dr.ª Carmen Sevilha Gonçalves dos Santos, CE, UFPB

Examinador

AGRADECIMENTOS

A Deus, Pai de infinita bondade, que me proporcionou o dom da inteligência.

Aos meus pais, José Soares de Almeida Filho e Vera Lúcia Pinheiro da Silva Almeida, por

terem me apoiado quando optei abandonar o trabalho para estudar.

À minha irmã, Talisse Silva de Almeida, por ter sempre acreditado em mim.

À minha namorada Daniella Íris de Oliveira Silva, que esteve sempre comigo em diversas

decisões, me apoiando e aconselhando.

Ao meu amigo Flaviano Batista do Nascimento, que me impulsionou a estudar poesia. Seu

exemplo de superação é, para mim, um motivo de inspiração para estudar ainda mais.

AGRADECIMENTO ESPECIAL

À minha orientadora Prof.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista, pela

oportunidade de estar na Iniciação Científica, pela exigência, pelo comprometimento e por ter

compartilhado do seu saber para a realização deste trabalho.

Será preciso uma inteligência profunda para compreender que com as relações de vida dos

homens, com as suas ligações sociais, com a sua existência social, mudam também as suas

representações, intuições e conceitos, numa palavra, [muda] também a sua consciência?

Karl Marx

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 08

2 TEORIA SEMIÓTICA............................................................................................ 10

2.1 Origem............................................................................................................... 10

2.2 Conceito............................................................................................................. 11

2.3 Níveis de abordagem......................................................................................... 11

2.3.1 Nível fundamental............................................................................ 11

2.3.2 Nível narrativo.............................................. ................................... 12

2.3.3 Nível discursivo............................................................................... 15

3 ANÁLISE SEMIOTICA DO SONETO

IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA...................................................... 19

4 ANÁLISE SEMIOTICA DO SONETO O MORCEGO......................................... 23

5 CONCLUSÕES....................................................................................................... 27

6 REFERÊNCIAS...................................................................................................... 29

7 ANEXOS................................................................................................................. 31

7.1. Anexo 1........................................................................................................ 31

7.2. Anexo 2........................................................................................................ 32

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1. INTRODUÇÃO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso teve por objetivo analisar, do ponto de

vista da semiótica de linha francesa ou greimasiana, dois sonetos do poeta paraibano Augusto

dos Anjos, enfatizando os aspectos da constituição da consciência que se encontra subjacente

à temática central dos poemas, utilizados como corpus. Para tanto, recorreu-se a

considerações do filósofo alemão Martin Heidegger sobre os aspectos da consciência.

O percurso metodológico utilizado para o desenvolvimento das análises foi composto

de leituras teóricas sobre a semiótica do discurso, tendo como principais expoentes:

GREIMAS, COURTÉS, PAIS e FONTANILLE, entre outros. A importância do referencial

teórico escolhido reside no fato de que se trata de uma teoria que se preocupa com o estudo da

significação, prevista e manifestada em discurso e, portanto, que considera a posição do

sujeito em relação à enunciação e ao enunciado que produz.

Inicialmente, descreveu-se toda a teoria semiótica escolhida com base nos estudos dos

autores antes citados, descrevendo as três estruturas ou percursos que a significação faz desde

o momento que sai da mente do enunciador até sua expressão em discurso. Em seguida,

analisaram-se os dois sonetos, do ponto de vista semiótico, a fim de obter a ideologia

subjacente aos discursos. Na discursivização, houve a necessidade de colocar alguns

momentos dos escritos filosóficos de Martin Heidegger sobre a consciência que, para o

filósofo alemão, pode ser “boa” ou “má”, tentando responder ao questionamento que os dois

textos levantam sobre o tema. Diante disto, trabalha-se com a hipótese de que, como o poeta

Augusto aborda o tema do pessimismo na maior parte de suas poesias, a consciência teria um

aspecto negativo na percepção do eu-lírico. Incluíram-se, antes das análises, alguns elementos

sobre a vida do autor e a publicação dos textos em análise, com o intuito de elucidar alguns

fatos que ajudem as análises.

O corpus se constituiu dos sonetos O morcego e Idealização da Humanidade Futura,

extraídos da obra Eu, o único livro escrito e publicado por Augusto dos Anjos. A escolha dos

textos reflete os propósitos estabelecidos neste trabalho: cada um caracteriza, ou melhor,

figurativiza a consciência distintamente e, nesta ocasião, a importância de trabalhá-los reside

na possibilidade de estabelecer determinadas relações que possam, eventualmente, convergir

para alguma semelhança.

Como no corpus em estudo há toda uma preocupação com a constituição do ser, a

relevância desta pesquisa se funda na possibilidade de estudar este ente que se instaura

também pelas suas ações no discurso. Logo, a linha de pesquisa semiótica escolhida aborda

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aspectos da constituição do sujeito enquanto ser investidos de valores modais. Tal estudo se

torna ainda oportuno pela necessidade de aplicação de uma teoria a um dado corpus,

procedimento muito importante para o estudioso em Letras.

Vejamos, agora, o lugar da amostragem escolhida para análise no âmbito da obra do

autor, cuja poética é bastante complexa, devido ao uso de termos e expressões que estão na

base da biologia, da metafísica e da química. Esse vocabulário científico reveste sua poesia de

um tom pessimista, angustiante e voltada para a deterioração da condição humana como

argumenta Órris Soares (1963,44): “O Eu é um livro de sofrimento, de verdade e de protesto,

sofre as dores que dilaceram o homem e aquelas do cosmos”.

À maneira de Euclides da Cunha, na prosa, de “Os Sertões”, o autor fundiu o saber

científico com o saber poético, criando uma obra de grande singularidade. Tal característica

causou embate com os padrões poéticos vigentes da época, o que impossibilitou o autor de

filiar-se a uma escola literária. É possível, entretanto, encontrar em sua obra características

simbolistas, com influências em Cruz e Sousa, Antero de Quental, Cesário Verde e outros; do

formalismo parnasiano, do pessimismo romântico, da filosofia alemã com Schopenhauer, do

selecionismo de Darwin e do negativismo de Haëckel. Por fim, foi um poeta de um livro à

semelhança de Charles Baudelaire com as suas Flores do Mal.

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2. TEORIA SEMIÓTICA

2.1.Origem

Os estudos semióticos tiveram origem na Antiguidade com Platão (427-347), passando

pelo seu discípulo Aristóteles (384-322) e outros.

Platão concebeu o signo de forma triádica com os seguintes componentes: onoma

(nome), eidos (noção ou ideia) e pragma (a coisa referente). Uma das principais indagações

do filósofo era se a relação entre o nome, às ideias e às coisas se dava de forma natural ou

arbitrariamente. Uma de suas conclusões foi que as palavras não refletem aquilo que as coisas

realmente são. Enquanto Aristóteles entendeu o signo no domínio da lógica e da retórica,

considerando como uma “premissa que leva a uma conclusão” (apud. BATISTA, 2001: 133).

Ainda na Antiguidade, no século II da era cristã, Galeno, médico e filósofo romano,

nomeou o estudo dos signos de Semêiósis e concebeu-a como a interpretação dos sintomas

médicos.

No final da Idade Antiga e influenciando grandemente o pensamento medieval, Santo

Agostinho (354 – 430) ampliou o estudo dos signos aos elementos não-verbais, criando uma

pan-semiótica, isto é, um mundo semioticamente construído. Propôs a distinção entre signos

naturais e signos convencionais, da qual os primeiros “são aqueles produzidos sem a intenção

de uso como signo, mas nem por isso conduzem à cognição de outra coisa” (Winfried, 1995:

32). Enquanto os segundos

Na Idade Moderna, especificamente em 1960, John Locke, filósofo inglês, postula em

seu Essay on a human understand uma “doutrina dos signos”, nomeando o estudo em

questão de Semiotikê, que é aplicado aos signos verbais, não-verbais e sincréticos.

No fim do século XIX, Charles Sanders Peirce retoma a relação triádica do signo,

vendo-o como constituído de:

representamen, o elemento perceptível ao receptor, ou o significante da teoria

saussureana; o objeto que é o referente, a coisa material ou mental que o

representamen reprensenta e o interpretante, que é a significação do signo, melhor,

dizendo, o efeito do signo na mente do intérprete. (BATISTA, 1999: 15).

A seguir, Saussure (CLG, 1967: 80) concebe um signo como dois elementos: o

significante, que é a imagem acústica e o significado que é o conceito. Ele chamou

significação a junção do significado com o significante.

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Hjelmslev (1961:63) interpretou o pensamento saussuriano e considerou o significante

como expressão e o significado como conteúdo. Ambos, conteúdo e expressão, possuem, no

dizer do autor, uma substância, que é paradigmática e uma forma que é sintagmática, criando

uma nova dicotomia dentro da linguística. Ele considerou que a língua não é um sistema de

signos, mas de figuras. O estudo da figura pode ser aplicado não só aos elementos verbais,

como aos não-verbais.

A partir dos estudos hjelmslevianos, Greimas e os semioticistas da Escola de Altos

Estudos em Ciências Sociais de Paris, elaboraram a teoria que hoje se chama Semiótica de

Linha Francesa e que se opõe à Semiótica Americana iniciada por Peirce (1978) e à Russa,

que é uma proposta de Lotman (1971). Como, neste trabalho, escolhemos a teoria de Linha

Francesa, a ela dedicaremos maior empenho nos itens seguintes.

2.2.Conceito

A teoria semiótica de linha francesa ou greimasiana é a ciência que se ocupa com o

estudo da significação. Esta se define como a relação de dependência entre o plano do

conteúdo e o plano da expressão no interior do texto. Segundo BATISTA (2009:1), “a

significação é concebida como função semiótica e definida no interior dos signos verbais, não

verbais e complexos ou sincréticos”.

Greimas entendeu a significação como um percurso gerativo que dá investimento

semântico às ações dos sujeitos e, para tanto, trabalha com três níveis de análise. Estes vão do

mais superficial ao mais profundo e que são denominados: Estrutura Fundamental, Estruturas

Narrativas e Estruturas Discursivas. Os dois primeiros níveis dispõem de dois componentes:

um sintático e outro semântico, que são categorizadas em sintaxe narrativa, semântica

narrativa, sintaxe discursiva e semântica discursiva.

2.3. Níveis de abordagem

2.3.1. Nível fundamental

A estrutura profunda ou nível fundamental elenca as categorias semânticas subjacentes

à construção textual que estão dispostas em oposição, mas que compartilhem um traço

semântico comum. Nesse sentido, é lúcido contrapor, por exemplo, os lexemas /vida/ vs

/morte/, pois ambos estão inseridos dentro de um mesmo campo semântico. É preciso

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apontar, ainda, que, dependendo das intenções que o texto pretende, tais categorias sofrem o

processo de timização, categorizado a partir de dois componentes: euforia e disforia. A

primeira diz respeito aos elementos tomados de força ou importância positiva para um dado

sujeito e a segunda de caráter negativo para este sujeito ou outros envolvidos na narrativa.

A organização fundamental é representada, espacialmente, através de um octógono

semiótico onde são definidas as relações de contrariedade, de contraditoriedade e de

implicação do texto. Vejam-se o octógono seguinte, a fim de que estas relações sejam

compreendidas:

: relação entre contrários

: relação entre contraditórios

: relação de implicação

: tensões dialéticas

As categorias sêmicas da dêixis positiva superior deixam antever que /vida/ é o

contrário de /morte/. Aplicando-se a partícula de negação a cada um deles obtém-se os

contraditórios /não-morte/ e /não-vida/. E, por fim, a implicação consiste na correlação

sistematizada dessas categorias, na qual /vida/ implica /não-morte/ e /morte/ implica /não-

vida/.

Essas considerações estão enraizadas em A.J. Greimas (1975:127) e compõem o Jogo

das Restrições Semióticas nas quais o autor conceitua as estruturas profundas como sendo

aquelas que “definem a maneira de ser fundamental de um indivíduo ou de uma sociedade e

que determinam as condições de existência dos objetos semióticos”.

2.3.2. Nível narrativo

As estruturas narrativas ou nível intermediário, segundo Batista (2001:150), são

também chamadas pelo nome singular de “narrativização”, e compreende uma sintaxe e uma

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semântica narrativa. A sintaxe narrativa compreende “o desempenho de um Sujeito que

realiza um percurso em busca de seu Objeto de valor, sendo instigado por um Destinador que

é o idealizador da narrativa e ajudado por um Adjuvante ou prejudicado por um Oponente.”

(id. ibidem).

Entende-se que o sujeito é o actante sintático cuja existência semiótica é pressuposta

pela presença ou existência de outro actante, que é seu objeto de valor.

O destinador é o actante narrativo que exerce um fazer sobre o sujeito, modificando-o,

isto é, é ele que, qualificando o sujeito para a ação e com ele estabelecendo um contrato, é

responsável transmissão e circulação dos valores modais. Ou, ainda, nos termos de

COURTÉS (1979:32), o destinador “exerce um fazer visando provocar o fazer do sujeito”. A

partir dessa definição, infere-se que o destinador tem a função de manipulador do sujeito,

exercendo um fazer persuasivo. O destinador pode, inclusive, manifestar-se a partir de um

ente que se encontra no próprio sujeito e, neste caso, manifestando-se uma auto-destinação.

O destinatário é o actante narrativo que recebe a competência para fazer, ou seja, nele

são investidas todas as qualificações propiciadas pelo destinador. A princípio existe uma

equivalência entre sujeito e destinatário, porém a existência desta categoria é pressuposta pela

presença do destinador, e não do objeto. O destinatário exerce o papel de manipulado e,

consequentemente, opera um fazer interpretativo, podendo aceitar ou recusar a relação

contratual e ainda ser sancionado positivamente ou negativamente pelo destinador.

O adjuvante é o actante narrativo que tem o papel de ajudar, auxiliar o sujeito,

facilitando sua busca. De modo contrário, o oponente, também denominado oponente-traidor

por Greimas, tanto pode ser ele mesmo um incômodo como gerar obstáculos para o sujeito,

impedindo-o de realizar seu objetivo.

Opondo-se ao sujeito, tem-se o antissujeito que é o actante sintático que disputa com

o sujeito o mesmo objeto de valor ou cujo objeto-valor se opõe ao do sujeito. Este actante, da

mesma forma que o seu oposto, permite acionar mais dois outros actantes: o antidestinador,

que é seu destinador e o antidestinatário, que estabelece uma relação contratual com o

antidestinador.

O sujeito e o objeto se apresentam numa relação transitiva, que pode ser de natureza

conjuntiva ou disjuntiva. Estas, por sua vez, estão inseridas num esquema categórico cujo no

eixo possui a categoria da junção enquanto nível superordenado. A partir disso, diferenciam-

se os enunciados conjuntivos (sujeito tem posse do objeto) dos enunciados disjuntivos (sujeito

não obtém o valor desejado), que também são generalizados sob um eixo categorial

denominado enunciado de estado que vão assinalar se o sujeito está conjunto (representado

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graficamente pelo esquema S∩O) ou disjunto (representado graficamente pelo esquema S∪O)

de seu objeto de valor.

Há ainda os enunciados ditos de fazer que dizem respeito às transformações ocorridas

na narrativa e operadas pelo sujeito do fazer. Este fazer transformador é o resultado das ações

que o sujeito executa e que o põe em conjunção ou em disjunção com o objeto almejado.

Conclui-se, então, que os enunciados de fazer são enunciados que regem um enunciado de

estado (Cf. Courtés, 1979:19), que graficamente se representa: F [S∩O (S∪O)] que se

lê: fazer transformador em que o sujeito conjunto com se objeto de valor passa a sujeito

disjunto do seu objeto de valor.

A semântica do nível narrativo é o estudo das modalizações que estão na construção

dos valores disseminados na narrativa. Nas palavras de BATISTA (2009:3) a semântica

narrativa “determina a modalidade assumida pelo sujeito no seu percurso em busca do valor”.

Significa que, para realizar algo, o sujeito precisa querer ou dever fazer algo Estas modalidades

mostram também a importância que tem o objeto para esse sujeito.

Segundo Fontanille (2012:169):

As modalidades são predicados que atuam sobre outros predicados e, portanto, eles

são predicados que modificam o estatuto de outros predicados. Ademais, eles

asseguram uma mediação entre os actantes e seu predicado de base no interior de

uma cena predicativa.

São, portanto, cinco os tipos de predicados modais: querer, dever, saber, poder e crer.

Estes, como citado acima, regem os dois outros predicados de base que são o ser e o fazer. Da

combinação dos predicados modais com os predicados de base resulta na formação de

predicados complexos:

Ser fazer

querer querer-ser querer-fazer

dever dever-ser dever-fazer

fazer fazer-ser fazer-fazer

crer crer-fazer crer-fazer

saber saber-ser saber-fazer

poder poder-ser poder-fazer

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Pelo exposto, vê-se que existem dois tipos de modalização: uma do ser e outra do

fazer. A primeira diz respeito ao predicado do ser que é chamada modalização do ser ou

modalização veridictória, pois permite verificar se a relação do sujeito com o objeto ou até

mesmo com os outros actantes é dita verdadeira, falsa, secreta ou mentirosa. Esta incide nos

enunciados conjuntivos e nos enunciados disjuntivos, modificando, assim, as relações do

sujeito com o objeto de valor. A outra modalização está vinculada ao predicado do fazer e

incide sobre a ação do sujeito que transforma o mundo.

A competência é a fase em que são atribuídos valores modais ao sujeito da ação. Neste

sentido, a competência do o sujeito realizador é constituída de um poder e/ou um saber. Esta

fase pressupõe a o seguinte, a performance, que é a fase em que ocorre a transformação

essencial da narrativa mediada por um fazer. É aqui que o sujeito entra em conjunto ou

disjunto do seu objeto de valor. Se a desempenho se realizou, então se tem a última fase do

percurso, a sanção, que compreende as punições e recompensas destinadas aos atores

envolvidos na narrativa.

O percurso narrativo do sujeito é composto de uma estrutura complexa compreendida

de quatro fases conhecidas como manipulação, competência, performance e sanção. Cada um

dos actantes explanados acima é passível de se manifestar nestes estágios e sua ausência é

inteiramente justificável.

No estudo das modalidades, Pais (1993) classifica os discursos em manipulatórios, o

do fazer-fazer, sedutor, o do fazer-crer e ainda persuasivo, quando entram as modalidades do

fazer-querer e fazer-dever.

Segundo Fiorin (2011:30), a fase da manipulação caracteriza-se pela persuasão entre

sujeitos em que um leva o outro a querer ou dever fazer alguma coisa. É aqui que se

estabelecem as relações entre sujeito-manipulador e sujeito-manipulado, mediadas pelos

seguintes tipos de manipulação:

a) tentação: constroi-se uma visão positiva do destinador e este recompensando o

destinatário;

b) intimidação: o destinador passa uma visão negativa dele ao destinatário que pode

ser sancionado negativamente;

c) sedução: forma-se uma imagem positiva do destinador e do destinatário;

d) provocação: destinador constroi uma imagem negativa do destinatário.

2.3.3. Nível discursivo

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A discursivização tem a característica de ser o patamar mais superficial em relação aos

outros níveis de significação, pois as relações são manifestadas na superfície do texto. Aqui, o

sujeito do discurso adquire voz e, por meio do discurso-enunciado, escolhe os temas, as

figuras, os atores, o tempo e o espaço discursivos. Portanto, o discurso é a unidade máxima

onde se manifestam, no plano do conteúdo, categorias temporais, espaciais, argumentativas,

temáticas e figurativas.

O nível discursivo, Courtés (1979) pensou como constituído de dois componentes:

sintaxe discursiva e semântica discursiva. Cabe à sintaxe do nível discursivo analisar as

relações intersubjetivas entre enunciador e enunciatário, os efeitos de realidade ou referente e

os efeitos de proximidade e distanciamento produzidos pela enunciação. Esta é a instância que

instaura as categorias de pessoa, de tempo e espaço discursivos, fazendo da narrativa um

acontecimento real como se os sujeitos nela envolvidos fossem de carne e osso.

Nas relações intersubjetivas, ocorridas entre enunciador e enunciatário, o enunciador

executa um fazer persuasivo, levando-o ao enunciatário, que executa um fazer interpretativo,

do que está sendo dito. Neste fazer persuasivo, o enunciador utiliza dois procedimentos para

tentar manipular o enunciatário: os efeitos de realidade e os de proximidade e distanciamento.

No entender de BARROS (1999:61), os procedimentos de referência à realidade são: a)

actorialização, que é a constituição das pessoas do discurso; b) a espacialização, a constituição

do espaço e c) a temporalização, constituição do tempo.

A actorialização é o processo em que se dá a escolha do ator, que é uma entidade

discursiva que cumpre papéis actanciais. Quando assume tais papéis, o ator se encontra na

superfície narrativa, e quando assume um papel temático, encontra-se na superfície discursiva.

O papel temático é a função social desempenhada pelo ator. A espacialização se refere ao

lugar propriamente dito e a percepção que os Sujeitos têm desse espaço. Deve-se levar em

consideração o contexto sociocultural e o espaço discursivo que o emissor e o receptor vivem.

A temporalização diz respeito à percepção que os Sujeitos têm em relação ao tempo

cronológico, englobando o tempo histórico, o momento de duração do discurso e o próprio

tempo textual produzido pelo discurso.

No interior do enunciado, para FIORIN (2011:56), são manifestadas duas categorias

principais de sujeitos: o eu e o tu que, ao se relacionarem, totalizam quatro instâncias:

a) eu pressuposto, enunciador;

b) tu pressuposto, enunciatário

c) eu projetado, narrador.

d) tu projetado, narratário.

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Sobre a produção da subjetividade na enunciação, assim se expressa Benveniste (1989:

84-85): “(...) a emergência dos índices de pessoa (a relação eu-tu) que não se produz senão na

e pela enunciação: o termo eu denotando o indivíduo que profere a enunciação, e o termo tu, o

indivíduo que aí está presente como alocutário”.

A enunciação também cria efeitos de proximidade e de distanciamento, que estão

vinculados às operações de debreagem. Segundo Greimas & Courtés (2011: 112) existem

dois tipos de debreagem: a enunciva que se manifesta em terceira pessoa e projeta um

discurso de caráter objetivo e enunciativa, em primeira pessoa, a partir da qual se projeta um

discurso mais subjetivo.

Batista (1999: 55), com base em Rastier (1974:93-94) classificou os sujeitos em

enunciador/enunciatário-ator quando o discurso acontece em primeira pessoa, e enunciador-

narrador/enunciatário-narratário, quando o discurso acontece em terceira pessoa.

A semântica do nível discursivo compreende os percursos temáticos e figurativos do

enunciado, também chamados de procedimentos de tematização e figurativização.

A tematização ocorre a partir do momento em que os valores narrativos assumidos

pelo sujeito são formulados abstratamente e organizados em percursos que são constituídos de

traços semânticos. Os temas são de natureza abstrata e estabelecem uma interpretação de

todos os fatos que ocorrem no mundo.

A figurativização é o procedimento semântico através do qual os percursos temáticos

são revestidos pelas figuras, que são conteúdos concretos do mundo natural e, como os temas,

selecionam componentes do léxico da língua. A figura, por ter caráter concreto, cria a ilusão

de realidade.

Segundo BATISTA (2001: 3-4) “A figurativização consiste em transformar em figuras

de superfície as figuras do plano do conteúdo, utilizando-se a nomenclatura proposta por

Hjelmslev (...). A tematização inicia-se pela identificação dos traços semânticos pertinentes ao

discurso e neles reiterados, podendo-se colocá-las em sequência pela ordem em que aparecem

no texto”.

A figurativização recai sobre a recorrência de figuras de expressão – que diferem da

noção de significante saussuriana – que vão se relacionar a outras figuras por isotopia

semântica, resultando num conteúdo semântico o qual engendrará a(s) significação (ões) dos

valores assumidos pelo sujeito da narrativa.

A tematização é o procedimento pelo qual o sujeito da narrativa dissemina, sob a

forma de temas, os valores inerentes a si mesmo quanto os que foram obtidos. A tematização

pode ainda incidir na figura do sujeito a partir do seu papel temático, que é a sua função social

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no discurso. Quando um determinado agente, seja ele humano ou antropomorfizado,

desempenhando um papel actancial no discurso e, ao mesmo tempo, possuindo uma dada

função social, este indivíduo é reconhecido, em semântica discursiva, como um Ator.

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3. ANÁLISE SEMIÓTICA DO SONETO IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE

FUTURA

3.1.Estruturas narrativas

Na análise da sintaxe narrativa deste soneto, há a presença de três sujeitos semióticos,

S1 e S2 discursivizado pelo eu e S3, pela humanidade, figurativizada pelos homens ou pela

multidão.

S1 tem por objeto de valor encontrar a luz na multidão. Luz significa sabedoria,

pureza, caráter, racionalidade. Porém, esses atributos ele deseja encontrar na humanidade. S1

age destinado pela sua própria consciência que estava perturbada (Rugia nos meus centros

cerebrais / A multidão dos séculos futuros) que o impulsionava a agir,

Foi esta perturbação que impulsionou S1 ir em busca de seu objeto de valor, porém ele

termina disjunto pois afirma ter encontrado moléculas de lama e a mosca alegre da

putrefação, ou seja, tratava-se de uma humanidade desonesta, impura e sobretudo desumana

e, portanto, sem luz. Não se manifesta o adjuvante, porém o oponente de S1 está

manifestado pela própria humanidade.

S2, figurativizado pelo eu, tem como valor buscar o saber/o conhecimento sobre a

humanidade nos livros (Não sei que livro, em letras garrafais / Meus olhos liam). Portanto, o

livro foi o destinador do seu saber. E ele atinge o poder-saber sobre o homem e descobre que

a humanidade possuía ímpetos impuros, fazia ações escusas, sua consciência era constituída

de moléculas de lama, etc. O sujeito, portanto, termina conjunto com seu objeto de valor,

podendo-lhe ser atribuído o esquema narrativo seguinte: S∩O.

S1 e S2 são figurativizados pelo mesmo ator – o eu que se encontra em conflito dentro

de si mesmo, o que se configura como subjetividade semiótica. O eu quer a luz e, ao mesmo

tempo, quer obter um saber sobre o homem. Ele não encontra a luz no saber sobre o homem,

somente a putrefação.

S3, a Humanidade, possui como objeto de valor a irracionalidade, ou seja, S1 não

respeita mais as diferenças e por isso cabe-lhe o estatuto de um sujeito desumano. Aquilo que

o impulsionou a atingir esse valor foi o seu destinador, identificado como a herança dotada de

ímpetos impuros. Foi ela que transmitiu esses valores negativos que fizeram de S3 um sujeito

insensato, inconsequente. S3 termina seu percurso conjunto com seu objeto de valor. Todas as

impurezas herdadas fazem parte dessa essência sancionada negativamente.

Na componente semântica do nível narrativo, S1 se instaura por um querer-

achar/possuir a luz para si e para a humanidade. Ele fica disjunto e, portanto, não atinge o

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poder-ser/fazer. O S2 se instaura por um querer-saber: penetrar na consciência da multidão, a

fim de buscar o conhecimento. Na organização modal de sua competência, S2 obtém um

saber sobre os homens, aprendido dos livros que leu. Ele atingiu o seu objeto de valor e,

portanto, o poder-saber e o poder-fazer/penetrar na consciência dos homens e descobri toda a

negatividade que lá existe.

S3 se instaura na narrativa por um querer-ser-desumano, devido à herança que

recebeu dos antepassados, o que alterou seu estado racional, tornando-o um sujeito insensato.

Como S3 age conforme seus próprios ímpetos e ainda impuros. Portanto, o saber que ele lhe

foi herdado é o de ser individualista, egoísta, egocêntrico, e todos esses atributos é o que vai

constituir sua competência modalizada segundo um saber-ser-isso.

3.2.Estruturas discursivas

Na componente sintática do nível discursivo do soneto, é evidente o discurso em

primeira pessoa, identificada por um eu enunciador. Este sente uma perturbação exercida por

uma multidão que é reconhecida como a própria humanidade.

Pode-se observar uma relação do individual para o coletivo, ou seja, um sujeito uno

em relação a toda uma genealogia. Sendo que a constituição da consciência desta humanidade

se deu por uma ação corruptível sofrida por ela, tal corrupção teve sua origem na relação com

as diferenças raciais. O homem, concebido na sua pluralidade, mesmo vivendo em sociedade

e uma vez se relacionando com o outro pelas diferenças, tende a não respeitar essas diferenças

por estar pensando em si mesmo, resultando na irracionalidade étnica proposta no soneto.

Vivendo de maneira individual, esse homem abdica da coletividade, resultando num indivíduo

com menos consciência de si. Aqui a humanidade é idealizada, ou seja, uma ironia presente

no título do soneto que funciona mais como uma crítica à raça humana, pois o enunciador

quer mostrar que o homem é egoísta e insensato por natureza, daí a ideia de algo que foi

herdado. E ainda, um ser que, por querer devorar outros homens, não evolui (protozoários,

seres primitivos) e por essa razão possui esse comportamento animalesco (rugia). Por essa

razão, o homem que vive de tal maneira, constitui-se ou constitui sua consciência de forma

degradante.

A partir disso, verificam-se algumas considerações que o filósofo Heidegger (1997:

79) aponta: “A vivência da consciência” surge após o ato realizado ou omitido. A citação

exprime bem o propósito do verbo tornara, pois a formação de uma consciência degradante

aconteceu depois de realizada algum tipo de ação, seja ela instigada por parte do próprio

21

homem ou por algum fator externo. Neste caso, não se pode afirmar, segundo o filósofo, se

essa consciência é caracterizada como “boa” ou como “má”, pois a primeira, censura e a

segunda, adverte. Já o eu lírico demonstra-se um ser consciente e sua função é fazer o

julgamento final, uma constatação e, por essa razão sua consciência se enquadra na “má”

consciência, justamente por esse aspecto de criticar, de reprovar, de censurar. Para ele, a

consciência deveria ser a luz que os céus inflama, isto é, uma consciência nem boa nem má,

mas uma consciência limpa ou pura.

As relações intersubjetivas mostram uma debreagem actancial marcada por um

enunciador debreado no espaço do aqui e no tempo do agora ou presente. Relata os fatos em

terceira pessoa, mas depois, no primeiro terceto, se impõe no discurso em primeira pessoa,

mas mesmo assim continua debreado. O eu, instância do enunciador, fala a respeito de um ele,

que não participa do processo comunicativo, pois se trata de uma não-pessoa.

Na debreagem temporal, o tempo discursivo é construído pela predominância de

verbos no pretérito imperfeito ou do infectum: rugia, tornara, liam, realizavam, meti, achei

que mostram um processo inconcluso ou contínuo. Denotam um recuo no tempo atentando

para as origens de um povo, mas continua em processo na atualidade. A ação de tornar é

anterior à ação de rugir; esta por sua vez, é concomitante à ação de ler e realizar e posterior à

ação de meter e achar. Pode-se, através dessas relações temporais, recuperar os diferentes

momentos em que as ações se sucederam.

Na debreagem espacial, a percepção que o enunciador tem do espaço – no húmus dos

monturos, na consciência – é de que se trata um lugar de decomposição, de caos, onde a

sociedade se desenvolve e se torna corrupta.

Tem-se aqui A multidão enquanto ator discursivo debreado do tempo e do espaço do

enunciador, pois como o tempo verbal se situa no momento passado e, ao mesmo tempo, se

configura sob um aspecto inacabado, significa dizer que tal ação era recorrente na mente do

enunciador que, por sua vez, se encontra em outro tempo. Mas este ator se encontra ainda

embreado com seu próprio tempo pelo fato de sua instauração ocorrer em plena relação com o

passado. O enunciador já projeta uma visão negativa sobre essa humanidade, identificando

um comportamento animalesco da humanidade reforçada pelo verbo rugir.

Na Semântica discursiva, a recorrência de termos como multidão, homens,

etnicamente, genealogias, animais, escolhidos pelo sujeito da enunciação permitem organizar

o tema humanidade. Os lexemas impuro, húmus, monturos, obscuros, protozoários, lama,

mosca, putrefação revestem o tema da corrupção, pois permitem constatar que a humanidade

22

foi corrompida etnicamente e, onde havia um estado inicial de racionalidade, passa-se para

um estado final de irracionalidade.

A figura protozoário remete para seres humanos que se comportavam primitivamente

e que não conseguiram evoluir. A figura da mosca indica o aspecto de materialidade se

contraposta à figura da luz que sugere a espiritualidade.

3.3.Estrutura fundamental

No texto, há uma estrutura fundamental que põe o lexema humanidade enquanto eixo

semântico e os lexemas /racional/ vs /irracional/ na relação entre os contrários, pois são

categorias aferidas a partir de um momento /anterior/ e /posterior/ de transformação na

essência humana. A categoria /racional/ implica, pela negação, a categoria /não-irracional/

que, na tensão dialética resulta em /sabedoria/, ou seja, negando-se o estado de irracionalidade

étnica obtém-se o objeto de valor de S1 que é encontrar a luz que os céus inflama. Do mesmo

modo, a categoria /irracional/ implica a categoria /não-racional/ que, na tensão dialética

obtém-se /ignorância/, que é justamente o que S2 encontrou: moléculas de lama e a mosca da

putrefação. Por fim, a tensão dialética entre não-racional e não-irracional resulta em

/animalidade/.

23

4. ANÁLISE SEMIÓTICA DO SONETO O MORCEGO

4.1. Estruturas narrativas

Neste soneto, que descreve também aspectos da consciência, há a presença de três

sujeitos semióticos que se encontram figurativizados pelo eu discursivo. São diferentes vozes

que se encontram dentro do próprio eu.

O S1 tem como objeto de valor é a tranquilidade (para relaxar e dormir). Tal Objeto-

valor representa o afastamento de toda a visão desagradável que lhe prejudica o sossego e,

portanto, tem como oponente o morcego, que é a sua própria consciência. Esta lhe provoca

dor que lhe fere o mais profundo de alma, atingindo o físico, conforme aponta o verso:

Morde-me a goela ígneo e escaldante molho

Existe uma auto-destinação, uma vez que o valor partiu da necessidade do próprio

sujeito. O fato de ele querer um objeto de valor que se contrapõe ao da consciência faz dela o

antissujeito de S1. Ele utiliza vários recursos para tentar livrar-se de sua inquietação: pegar de

um pau, fechar o ferrolho, concentrar-se, e até pensar em levantar outra parede para

esconder-se. São todas estas figuras que representam o movimento mental, o esforço para

afastar a intranquilidade (o morcego), configurando-se como adjuvante nesta narrativa. Por

mais que S1 tente fugir desse sentimento que o atormenta, ele não consegue e, apesar das

tentativas para livrar-se da dor mortal que lhe provoca a consciência, termina seu programa

narrativo privado ou disjunto do seu objeto de valor, sancionado, então, negativamente.

E olho o teto. E vejo-o, ainda, igual a um olho,

Circularmente sobre a minha rede!”

S2 é figurativizado pela consciência e tem como objeto de valor tirar a tranquilidade

do S1, feri-lo, deixá-lo abalado, provocar-lhe dor mental e física (situada na garganta). O S1 é

o antissujeito do S2 porque ambos têm valores opostos. A própria consciência é o destinador

da ação, configurando-se com uma auto-destinação. Seu adjuvante é o mal que foi cometido

pelo sujeito da consciência (S1). O oponente são as atitudes tomadas pelo S1 para afugentar a

dor da consciência.

S3 é figurativizado pelo enunciatário textual, não identificado como ator e constituído

por mais de uma pessoa, o que é confirmado pelo uso da segunda pessoa do plural (vede). O

S3 nada mais é do que o outro eu, o alter-ego, na opinião de Eward Lopes (apud. BATISTA,

24

2012:3). Ele tem por objeto de valor escutar o outro, ouvi-lo, descarregar o seu sofrimento. Se

o S1, ao comunicar-se com o S3, quis chamar-lhe a atenção, o S3 é, então o sujeito sobre o

qual recai o apelo.

Na semântica do nível narrativo, S1 se instaura por um querer-ter tranquilidade, que

se encontra na ordem do ser. Na medida em que ele tenta afastar a consciência/morcego de si,

ele executa um fazer constituído das várias ações já apresentadas. Esse fazer do sujeito

significa não apenas o afastamento dessa visão desagradável que o atormenta, mas a obtenção

da possibilidade de momentos de tranquilidade para si. S1 não atinge o poder-fazer porque

não consegue alterar a relação conflituosa com a sua própria consciência e, portanto, acaba

disjunto do seu objeto de valor, como ele mesmo afirma:

Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto.

S2 se instaura por um dever-fazer, isto é, julgar ação do outro, apontando-lhe o erro. E o S3,

também na instância do dever, precisa escutar o desabafo do S1.

4.2. Estruturas discursivas

Na sintaxe discursiva, há a presença de um enunciador que constrói a consciência

humana a partir dos atributos e ações de um morcego.

Não há evidências, neste soneto, de que se trata de uma voz masculina ou feminina,

mas de um eu discursivo que fala consigo mesmo e repudia sua própria consciência. Na

verdade, tem-se um único ator para discursivizar três sujeitos semióticos, com valores

distintos: a tranquilidade, a negação dessa tranquilidade e a neutralidade entre essas duas

ações. Todos os enunciados são parte de um fluxo de consciência que revela as ações dentro

de um mesmo sujeito que ora é, ou possui as qualidades, ora movimenta-se no texto em busca

de criar ações que destroem a sua consciência negativa, ora consegue se desculpar para si

mesmo. Na sua caracterização, fica evidente o aspecto de inquietude e perturbação (a culpa)

por ter cometido alguma violação grave que ocasionou um abalo em sua estrutura psíquica e

física. A consciência fala sempre com relação a um determinado ato realizado ou desejado,

aponta Heidegger (1997: 78). É perceptível que a consciência é caracteriza como algo que

incomoda e, por essa razão, o indivíduo é levado a construir barreiras para afastá-la de si, pois

ela está relacionada ao ato de punição. Se esse sujeito sente-se angustiado por ter cometido

25

alguma transgressão, é inegável o sentimento de culpa por ele assumido. A respeito disso,

Heidegger (1997: 79) afirma A consciência é primordialmente “má”. Com isso se diz que

toda a experiência da consciência faz, em primeiro lugar, a experiência de “culpa”.

Neste soneto, as relações são construídas na individualidade, o que justifica todo o seu

caráter introspectivo. Portanto, na fala consigo mesmo, manifesta-se um conflito interior

onde o único obstáculo desse sujeito é ele próprio. Este conflito interior é o que se chama

subjetividade semiótica.

As relações intersubjetivas mostram uma embreagem actancial marcada por um

enunciador embreado no espaço do aqui e no tempo do agora ou presente, e se expressa em

primeira pessoa. O enunciador instaura um tu implícito, que é o seu enunciatário por meio do

pronome vós conduzido pela forma verbal vede. Ao institui-lo, o enunciador convida-o a

compartilhar da imagem desagradável que ele presencia e, assim, desabafa e justifica-se

perante si mesmo: “E agora vede:”.

A coerência do discurso em primeira pessoa é reforçada pela presença de elementos

que estão na zona identitária do eu, conforme se encontra em Rastier, (2010: 23). Os

determinantes em destaque nos sintagmas “meu quarto”, minha rede, “este morcego”, são

elementos dêiticos que situam seus respectivos determinados em torno do enunciador,

contribuindo para tornar o discurso real pela proximidade que se estabelece.

Na embreagem temporal, o tempo discursivo é construído pela predominância de

verbos no presente do indicativo e na primeira pessoa: recolho, morde, ergo, olho, faço, vejo,

pego, concentra, o que torna o discurso tanto real quanto atualizado, como se os fatos

estivessem ocorrendo em concomitância com o tempo do leitor e no momento do agora.

Na embreagem espacial, a percepção que o enunciador tem do espaço – seu quarto, na

rede – é de que se trata de um lugar de repouso, onde a mente deveria estar em descanso,

porém é nesse momento que a consciência vem desfazer o estado de calmaria, tornando o

espaço um local de perturbação do espírito.

A ilusão de veracidade da qual se obtém, comparando a consciência humana a um

morcego, é criada a partir dos atributos e ações que mostram o modo ser deste animal. O eu

discursivo, ao afirmar que a consciência sempre retorna no estado de repouso da mente,

retoma toda uma simbologia sobre a qual o morcego foi considerado símbolo de imortalidade.

Além disso, o enunciador faz a alusão à figura do vampiro – Morde-me a goela – para

designar o quão atormentado este sujeito estava a ponto de perder seus princípios vitais. Outro

artifício que o enunciador utiliza para tornar o discurso real é descrever ações de proximidade

com seu oponente: “Morde-me a goela”, “Chego a tocá-lo”, “Que ventre produziu tão feio

26

parto”. Cada uma dessas ações mostra o quão próximo o enunciador está do morcego que é a

sua própria consciência e este conflito nunca acabará, porque se estabelece dentro dele

mesmo, não tendo com ele se desvencilhar dele mesmo.

4.3. Estrutura fundamental

Pensando nesse sujeito discursivo que é múltiplo e, portanto, encontra-se num conflito

consigo mesmo e com sua consciência, partimos do termo base tranquilidade para estabelecer

os demais termos do octógono semiótico. O contrário de tranquilidade é perturbação. A

tranquilidade implica em não-perturbação e a perturbação implica em não-tranquilidade. Não-

tranquilidade e não-perturbação são os contraditórios de tranquilidade e perturbação,

respectivamente. A /consciência/ é o resultado da tensão dialética estabelecida entre

/tranquilidade/ e /perturbação/. Quando se encontra, na tensão, tranquilidade e não-

perturbação, tem-se a /neutralidade/ do sujeito. Entre /perturbação/ e /não-tranquilidade/

resulta no /repouso/ do sujeito e, por fim, reunindo a /não-perturbação/ com a /não-

tranquilidade/ surge o estado de /inconsciência/.

27

5. CONCLUSÕES

As análises dos textos mostraram algumas semelhanças no que diz respeito à

narrativização dos sujeitos: ambos marcaram a presença de três sujeitos semióticos.

No primeiro texto analisado, configurou-se a presença de um ator para discursivizar

dois sujeitos semióticos, cada um instaurando-se por uma modalidade complexa diferente: O

primeiro sujeito se instaurou por um querer-achar/possuir, mas termina disjunto com o objeto

de valor; já o segundo sujeito se instaurou por um querer-saber, terminando conjunto com o

objeto de valor. O terceiro sujeito semiótico, figurativizado pela humanidade, se instaurou por

um querer-ser desumano, terminando conjunto com o objeto de valor que é a irracionalidade.

No segundo texto, houve a presença de um ator discursivizando três sujeitos

semióticos, cada um modalizado distintamente: S1, sujeito do querer-ter/possuir, acaba em

estado de disjunção; S2 se instaura por um dever-fazer/ouvir, visto que possui a função de

amparar o sujeito na narrativa, terminado conjunto do objeto de valor e S3 se instaurando por

um dever-fazer, terminam em estado conjuntivo com o objeto de valor.

Ambos os textos manifestaram o aspecto da subjetividade semiótica, isto é, vários

sujeitos discursivizados por um mesmo ator discursivo, resultando daí uma relação

conflituosa no interior deles próprios, isto é, intrassubjetiva.

Retomando os aspectos da consciência, as pesquisas indicaram que, nos textos

analisados, ela é vista tanto de forma negativa como positiva e, portanto, nem sempre

corrobora com a hipótese segundo a qual o pensamento, na poesia de Augusto dos Anjos,

tendia para um viés pessimista. Considerando o conceito de consciência proposto por

Heidegger, verificou-se que ela ora é punitiva, levando o sujeito a um estado de culpa, ora é

reflexiva, levando o sujeito a repensar seus atos. No primeiro texto analisado, os dois sujeitos,

demostrando-se conscientes de seus atos, julgam negativamente a humanidade por tudo o que

ela tem feito e, portanto, nestes dois sujeitos, “a consciência possui uma função crítica” nas

palavras do filósofo alemão. No segundo texto analisado, a consciência dos sujeitos “fala

sempre com relação a um determinado ato realizado ou desejado” e, neste caso, tem-se uma

“boa” consciência porque adverte o sujeito, levando-o a conscientização de suas atitudes e

instruindo-o a não realizar atos errados.

Um aspecto que demarca bem a diferença entre os textos analisados é a questão tempo

e do espaço discursivo. No soneto Idealização da Humanidade Futura têm-se ações que

mostram o quão egoísta se torna o homem a ponto de não querer mudar, além de apontar um

aspecto de objetividade em relação aos acontecimentos. A voz discursiva se encontra num

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espaço desconhecido, porém como há marcas de subjetividade no soneto, é possível um

espaço marcado pelo próprio íntimo do sujeito. Já no soneto O Morcego, tem-se um tempo

quando o sujeito expõe todo o seu desconforto consigo mesmo, tornando o ambiente

estritamente subjetivo. O espaço, aqui, é marcado: o próprio quarto do sujeito, que também

está relacionado à sua própria intimidade.

A pesquisa foi além daquilo que foi proposto, pelo fato de se ter descoberto, nos textos

analisados, como se processam aspectos referentes à subjetividade semiótica e, além de

ampliar o universo das análises, constituiu-se de uma fonte científica para próximos estudos

nesta linha semiótica.

29

6. REFERÊNCIAS

ANDRADE, Maria Margarida de. Redação científica: elaboração do TCC passo a passo. São

Paulo: Factash, 2007.

ANJOS, Augusto. Eu: poesias completas. 29ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963.

BATISTA, M. F. B. M. A enunciação: do fazer persuasivo ao interpretativo. In: XIX Jornada

Nacional de Estudos Linguísticos, 2002, Fortaleza. Programa & Resumos - XIX Jornada

Nacional de Estudos Linguísticos. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2002. v. 1. p. 72-72.

BATISTA, M.F.B.M. O discurso Semiótico. In: ALVES, Eliane F.et al. Linguagem em foco.

João Pessoa: Editora Universitária/Ideia, 2001.

BATISTA, M. F. B. M. O percurso gerativo da significação. Revista do GELNE (UFC),

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BATISTA, M. F. B. M. O Romanceiro Tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem

semiótica. (tese de doutorado). São Paulo, 1999.

BATISTA, M. F. B. M. Semiótica e cultura: valores em circulação na literatura popular.

Manaus: Anais da 61ª Reunião Anual da SBPC, 2009.

COURTÉS, Joseph. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Livraria

Almedina, 1979.

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Tradução de Jean Cristtus Portela. São

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GREIMAS, A.J. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Tradução de Ana Cristina Cruz Cezar [e

outros]. Petrópolis: Vozes, 1975.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 5ª ed. Petrópolis: Editora

Vozes, 1997.

30

HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. 2ªed. São Paulo:

Perspectiva.

LOTMAN, Iúri et al. Ensaios de semiótica soviética (trad. Victória Navas e Salvato Teles de

Menezes). Lisboa: Horizonte, 1981). In: MACHADO, Irene (Org). Semiótica e semiosfera.

São Paulo: Annablume/Fapesp, 2007.

PAIS, Cidmar Teodoro. Texto, discurso e universo de discurso. In: Revista Brasileira de

linguística, Plêiade, v.8, n.1, ano 8, São Paulo: 1995.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo:

Perspectiva, 2005.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix.

SOARES, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos, Eu: poesias

completas. Rio de Janeiro: São José, 1963.

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7. ANEXOS

7.1. Anexo 1

Idealização da Humanidade Futura

Rugia nos meus centros cerebrais

A multidão dos séculos futuros

– Homens que a herança de ímpeto impuros

Tornara etnicamente irracionais! –

Não sei que livro, em letras garrafais,

Meus olhos liam! No húmus dos monturos,

Realizavam-se os partos mais obscuros,

Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários

Meti todos os dedos mercenários

Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,

Somente achei moléculas de lama

E a mosca alegre da putrefação!

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7.2. Anexo 2

O Morcego

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:

Na bruta ardência orgânica da sede,

Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede”

– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho

E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,

Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego

A tocá-lo. Minh’alma se concentra.

Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!

Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto!