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Novos membros: conteúdo adicional 5: a disciplina da igreja | 1 A disciplina da igreja (parte 1): questões introdutórias Misael Batista do Nascimento. Atualizado em 05 de julho de 2020. Introdução Nosso propósito é apresentar o ensino sobre disciplina cristã. Faremos isso em três partes, primeiramente olhando para algumas informações introdutórias. No estudo seguinte, compreenderemos quais são os passos bíblicos para o exercício da disciplina, Mateus 18.15-20. No último estudo, conheceremos como a disciplina cristã acontece nas igrejas presbiterianas, conforme o Código de Disciplina da Igreja Presbiteriana do Brasil (CD/IPB). 1.1. O que é disciplina? A palavra “disciplina” tem ligação com ensino, instrução e educação e possui a mesma raiz do termo “discípulo”. 1 Segundo John Driver, discipular dentro do contexto cristão é “convidar homens e mulheres, irmãos e irmãs, a submeter-se ao senhorio de Jesus Cristo, numa comunidade de discípulos”. 2 Um discípulo é mais que um aluno ou estudante, pois além de aprender os fatos e absorver as ideias do seu mestre, ele também assume o compromisso de imitá-lo (1Co 11.1; Ef 5.1; Fp 3.17; 1Ts 1.6). Dessa forma, podemos conceituar disciplina da igreja como um processo encaminhado por Deus, por meio do qual cristãos ajudam uns aos outros a viver sob o senhorio de Cristo. Uma vez que os vocábulos discípulo e disciplina são intimamente ligados, não há discipulado sem disciplina e a finalidade desta última é nos tornar mais parecidos com o Senhor Jesus Cristo. 1.2. A disciplina em Atos e na igreja reformada Desde os primórdios, a igreja já se preocupava com a prática da disciplina. Como não há espaço para uma exposição exaustiva do assunto ao longo dos séculos, pontuaremos algumas ocorrências 1 SHEDD, Russell. Disciplina na Igreja. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2013. Edição do Kindle, posição 242 de 1617; DRIVER, John. Contra a Corrente: Ensaios de Eclesiologia Radical. Campinas: Editora Cristã Unida, 1994, p. 64. 2 DRIVER, op. cit., loc. cit.

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A disciplina da igreja (parte 1): questões introdutórias

Misael Batista do Nascimento. Atualizado em 05 de julho de 2020.

Introdução

Nosso propósito é apresentar o ensino sobre disciplina cristã. Faremos isso em três partes, primeiramente olhando para algumas informações introdutórias. No estudo seguinte, compreenderemos quais são os passos bíblicos para o exercício da disciplina, Mateus 18.15-20. No último estudo, conheceremos como a disciplina cristã acontece nas igrejas presbiterianas, conforme o Código de Disciplina da Igreja Presbiteriana do Brasil (CD/IPB).

1.1. O que é disciplina?

A palavra “disciplina” tem ligação com ensino, instrução e educação e possui a mesma raiz do termo “discípulo”.1 Segundo John Driver, discipular dentro do contexto cristão é “convidar homens e mulheres, irmãos e irmãs, a submeter-se ao senhorio de Jesus Cristo, numa comunidade de discípulos”.2 Um discípulo é mais que um aluno ou estudante, pois além de aprender os fatos e absorver as ideias do seu mestre, ele também assume o compromisso de imitá-lo (1Co 11.1; Ef 5.1; Fp 3.17; 1Ts 1.6).

Dessa forma, podemos conceituar disciplina da igreja como um processo encaminhado por Deus, por meio do qual cristãos ajudam uns aos outros a viver sob o senhorio de Cristo. Uma vez que os vocábulos discípulo e disciplina são intimamente ligados, não há discipulado sem disciplina e a finalidade desta última é nos tornar mais parecidos com o Senhor Jesus Cristo.

1.2. A disciplina em Atos e na igreja reformada

Desde os primórdios, a igreja já se preocupava com a prática da disciplina. Como não há espaço para uma exposição exaustiva do assunto ao longo dos séculos, pontuaremos algumas ocorrências

1 SHEDD, Russell. Disciplina na Igreja. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2013. Edição do Kindle, posição 242 de 1617; DRIVER, John. Contra a Corrente: Ensaios de Eclesiologia Radical. Campinas: Editora Cristã Unida, 1994, p. 64. 2 DRIVER, op. cit., loc. cit.

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em Atos e entre alguns reformadores do século 16 até os puritanos ingleses do século 17.

1.2.1. Um exemplo em Atos

Em Jerusalém, logo depois do Pentecostes, os crentes gozavam de uma vida em que tudo era partilhado (At 4.32-35). A harmonia foi interrompida pelo relato da desonestidade de Ananias e Safira, que venderam uma propriedade e doaram parte do valor para a igreja, mas mentiram ao informar que doavam todo o valor obtido na venda (At 5.1-2). O apóstolo Pedro disse a Ananias que ele mentiu ao próprio Espírito Santo e, em seguida, Ananias caiu morto e foi sepultado (At 5.3-6). Safira morreu horas depois, também após ser confrontada por Pedro (At 5.7-11).

O relato abre espaço para algumas cogitações:

1. Há uma relação entre santidade e a vida cheia do Espírito. O livro de Atos inicia com a ascensão de Jesus e a descida do Espírito Santo, enchendo a igreja de poder para o testemunho (At 1.1—2.47). uma igreja cheia do Espírito Santo lamenta o pecado e luta contra ele. O Espírito Santo é entristecido em uma comunidade onde o pecado é visto com descaso ou como algo normal (Ef 4.17-32).

2. Há uma relação entre pecados ocultos e sujeição a Satanás. Ananias foi influenciado por Satanás (At 5.3). O cristão que mantém pecados ocultos dá ouvidos ao tentador (cf. 1Pe 5.8-9).

3. Há um vínculo entre a saúde espiritual e o temor a Deus, pois a punição de Ananias e Safira produziu “grande temor” (At 5.11; cf. Pv 1.7). Como explica Russel Shedd:

Significa dizer que outros membros que chegassem a pensar em esconder de seus irmãos algum pecado não tinham coragem para fazê-lo. Dos não convertidos, houve receio de “juntar-se a eles” (v. 13), porque perceberam o perigo do poder sobrenatural que operava no meio da igreja de forma julgadora, não apenas de maneira benéfica. Todos nós devemos aprender com a igreja de Jerusalém que Deus se importa com os pecados de seus filhos.3

Augustus Nicodemus entende que o temor tem o efeito de “deter os que estão propensos a pecar”.4 E prossegue: “Quando uma igreja exerce a disciplina de forma regular e bíblica sobre seus membros, todos sentirão um temor maior do pecado e de seus efeitos. Numa igreja onde reina a impunidade, todos se sentem à vontade para transgredir”.5

4. A graça de Deus não compactua com o pecado. Talvez você já tenha ouvido dizer que o Deus do Novo Testamento é gracioso, que o evangelho aponta para o “caminho da graça” e, portanto, somente os crentes do Antigo Testamento precisavam temer o castigo ou disciplina divinos. A igreja em Atos desfrutava da bênção do evangelho, mas isso não significa que, naquele contexto, Deus não se importava com a prática do pecado.

3 SHEDD, op. cit., posição 1191 de 1617. 4 LOPES, Augustus Nicodemus. Mantendo a Igreja Pura. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 42. 5 LOPES, op. cit., loc. cit.

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5. Em algumas situações, a disciplina deve ser pública. Em seu comentário de Atos, John Stott afirma que:

Se a hipocrisia de Ananias e Safira não tivesse sido exposta e castigada publicamente, o ideal cristão de uma comunhão aberta não teria sido preservado, e a afirmação atual: “existem tantos hipócritas dentro da igreja” teria sido ouvida desde o início.6

Stott entende que o relato enfatiza a necessidade de disciplina, que com o tempo “veio a ser associada à excomunhão”7 e sugere a seguinte regra:

Uma boa regra geral é tratar secretamente os pecados secretos, tratar particularmente os pecados particulares, e publicamente apenas os pecados públicos. As igrejas são sábias quando seguem os estágios sucessivos ensinados por Jesus. Normalmente, o culpado se arrepende antes que seja alcançado o último estágio da excomunhão. Mas quando uma pessoa não se arrepende de ofensas sérias e que se tornaram um escândalo público, o caso deve ser julgado.8

O relato sobre Ananias e Safira destaca o tratamento incisivo do pecado. Nesse pormenor, Atos 5 fornece um ponto de reflexão importante para a igreja contemporânea. Se queremos nos parecer com a igreja relatada na Bíblia, precisamos estar cientes de que naquela comunidade onde o pão era partilhado, as necessidades supridas e o bom testemunho vivenciado, uma ocorrência de pecado de hipocrisia foi considerada seríssima. Notemos ainda que a disciplina de Ananias e Safira foi extraordinária, ou seja, ainda que Pedro tenha sido um agente de sua aplicação, Deus mesmo revelou e castigou o pecado cometido. O modo ordinário de praticar a disciplina é orientado pelo próprio Senhor Jesus Cristo, em Mateus 18, conforme veremos no próximo estudo. Quanto ao ocorrido com Ananias e Safira, o melhor é entender o episódio conforme a recomendação do Dr. Shedd:

[...] a morte do casal Ananias e Safira mostra-nos que não cabe à igreja procurar saber os pensamentos secretos de seus membros. Deus cuidará do que fica escondido na mente dos homens. Nenhuma hipocrisia pode ser encoberta aos olhos santos de Deus (cf. Ef 5.13). Não foi a igreja de Jerusalém que disciplinou o casal, ou seja, não partiu da igreja reunir uma sessão extraordinária para avaliar a seriedade do pecado, muito menos deliberar o que deveria ser feito para retirar a culpa do meio da comunidade. Aqui se cumpriu a declaração de Jesus: “Todo ramo que está em mim e não dá fruto, ele [o Pai] o corta” (Jo 15.2).9

1.2.2. A disciplina reformada

Com o passar do tempo, a concepção bíblica de disciplina foi incorporada a um sistema penitencial. Tanto na Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) quanto na Igreja Ortodoxa

6 STOTT, John. A Mensagem de Atos. Reimp. 2003. São Paulo: Aliança Bíblia Universitária (ABU), 1994, p. 123. (A Bíblia Fala Hoje). 7 STOTT, op. cit., loc. cit. 8 Ibid., p. 123-124. 9 SHEDD, op. cit., posição 1204 de 1617.

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Grega (IOG), o perdão e a disciplina foram conectados a punições estipuladas pelos sacerdotes.10

Lutero discordou desse modelo, de modo que em sua igreja a disciplina era pessoal através da pregação da Palavra e, em casos extremos, a exclusão da mesa.11

Calvino valorizou a disciplina eclesiástica. Para ele, se a salvação através de Jesus Cristo é a alma da igreja, a disciplina é como os nervos que ligam os membros do corpo.

Portanto, assim como a doutrina salvífica de Cristo é a alma da igreja, também a disciplina é como que sua nervatura, em virtude da qual sucede que os membros do corpo entre si se liguem, cada um em seu lugar. Portanto, todos quantos desejam que seja eliminada a disciplina, ou impedem o restabelecimento, quer façam isto deliberadamente, quer por irreflexão, realmente buscam a total subversão da igreja.12

A disciplina funciona como instrumento de contenção e correção, como freio, aguilhão e palmatória. É como um remédio, prescrito pelo próprio Cristo para o bem dos fiéis.

Portanto, a disciplina é como um freio com que se contêm e se domam aqueles que se enfurecem contra a doutrina de Cristo; ou como um espeto com que sejam espetados os de pouca disposição; ou às vezes até mesmo como castigo paterno com que têm de ser castigados, com clemência e segundo a mansidão do Espírito de Cristo, os que caem mais gravemente. Vemos, pois, que é o princípio certo de uma grande desgraça para a igreja não ter cuidado nem preocupar-se de manter o povo na disciplina, e consentir que se desmande. De fato, este é o único remédio que Cristo não só preceitua, mas também foi sempre usado entre os pios.13

Os reformadores investiram tempo em estudar a Escritura, a fim de descobrir quais são as marcas da verdadeira igreja, reconhecendo inicialmente duas marcas: a fiel pregação da Palavra e a administração correta dos sacramentos. Calvino compreendeu a disciplina como terceira marca, essencial para a manutenção da pureza doutrinária e santidade prática. Cristo deseja sua igreja “sem mácula, porém santa e sem defeito”, e a disciplina é o meio que ele usa para realizar essa purificação (Ef 5.27). Para uma igreja permanecer fiel na pregação do evangelho, ela não pode ser negligente no exercício da disciplina, pois, agindo dessa forma, ela estaria desobedecendo à instituição do próprio Cristo que lhe outorgou esse dever e autoridade.

D. Downham informa sobre as lutas de Calvino em Genebra, para implementar a prática bíblica da disciplina.

Durante seu primeiro ministério na cidade, ele se recusou a ministrar a Ceia do Senhor por causa das maldades da cidade. Cidadãos libertinos reagiram contra seu zelo inflexível, dando o nome de Calvino a seus cachorros, e ele foi expulso da cidade por três anos. Ao retornar, Calvino estabeleceu um tribunal da Igreja, composto de seis pastores da cidade e de doze

10 DRIVER, op. cit., p. 59-60. 11 Ibid., p. 60-61. 12 CALVINO, João. As Institutas: Edição Clássica. 2ª ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006, v. 4, iv.xii.1, p. 223. Logos Software. 13 CALVINO, op. cit., loc. cit.

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presbíteros de suas congregações, que se reuniam cada quinta-feira para disciplinar “todo tipo de malfeitor, sem acepção de pessoas”.14

Calvino inspirou os demais reformadores e pais puritanos. Na Genebra de Calvino, no que diz respeito ao exercício da disciplina, não havia como separar absolutamente a Igreja do Estado,15 mas no puritanismo do séc. 17 o conceito reformado de disciplina eclesiástica se consolidou. Os puritanos eram chamados de “Disciplinadores”, pois, para eles, a disciplina é necessária para preservar a igreja da perdição causada por desordens dentro da congregação.16

Esse entendimento culminou nos Símbolos de Fé. Na Confissão de Fé de Westminster, a disciplina é chamada de “censura eclesiástica”, como segue:

As censuras eclesiásticas são necessárias para chamar e ganhar (para Cristo) os irmãos transgressores, para impedir que outros pratiquem ofensas semelhantes, para lançar fora o velho fermento que poderia corromper a massa inteira, para vindicar a honra de Cristo e a santa profissão do evangelho, e para evitar a ira de Deus, a qual, com justiça, pode cair sobre a igreja, se ela permitir que o pacto divino e os seus selos sejam profanados por ofensores notórios e obstinados.17

1.3. A necessidade bíblica da disciplina

A disciplina é ordenada pelo próprio Senhor Jesus Cristo, em Mateus 18.15-20. O Senhor só menciona a palavra “igreja” duas vezes e justamente em uma destas ocasiões, a palavra se relaciona com a disciplina eclesial. O Senhor ensina que a igreja tem o “poder das chaves”, de “ligar e desligar” (Mt 16.18-19; 18.17-18). Tal poder é exercido tanto na pregação quanto na disciplina, como veremos no próximo estudo.

Paulo ensina que a igreja não deve permitir que permaneça em seu meio, como membro declarado, uma pessoa que pratica imoralidade (1Co 5.1-13). As pessoas que vivem em pecado escandaloso devem ser publicamente repreendidas (1Tm 5.20). Os crentes precisam evitar a companhia daqueles que, dizendo-se cristãos, se comportam “desordenadamente”, ou que causam divisões (2Ts 3.6; Tt 3.10-11).

14 DOWNHAM, D. A Disciplina na Congregação Puritana. In: Monergismo. Disponível em: <http://www.moner-gismo.com/textos/igreja/disciplina_congregacao_puritana_downham.htm>. Acesso em: 27 jun. 2020.] Thea Van Halsema documenta que a hostilidade a Calvino continuou mesmo na segunda fase de seu ministério em Genebra, como segue: “Outras pessoas o desabonavam dando a seus cachorros o nome de Calvino. Certo dia, um grupo rude o empurrou na ponte que atravessava o gélido Ródano. Era tudo como nos dias de 1538, quando fora expulso da cidade”; cf. VAN HALSEMA, Thea B. João Calvino Era Assim: A Vibrante História de um dos Grandes Líderes da Re-forma. São Paulo: Os Puritanos, 2013. Edição do Kindle, posição 2071 de 2517. 15 DRIVER, op. cit., p. 61. Como herdeiro da Reforma Radical, Driver infelizmente denomina a igreja reformada de “constantiniana”, ou seja, herdeira do legado do Imperador Constantino, mas o mais exato é chamá-la simples-mente de igreja bíblica. 16 DOWNHAM, op. cit., loc. cit. 17 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER. Confissão de Fé, xxx.iii. In: BÍBLIA DE ESTUDO HERANÇA REFORMADA. [BEHR]. São Paulo; Barueri: Cultura Cristã; Sociedade Bíblica do Brasil, 2018, p. 2017.

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A carta aos Hebreus nos convoca a caminhar neste mundo evitando o pecado e temendo ao Senhor (Hb 10.26-31). Enquanto lutamos contra o pecado e somos corrigidos pelo Senhor, evidencia-se que somos, de fato, filhos de Deus (Hb 12.4-13).

Nas cartas às igrejas do Apocalipse, os crentes de Éfeso são elogiados porque não suportaram os “homens maus”, ao passo que as igrejas de Pérgamo e Tiatira são advertidas porque abrigaram falsos ensinos, idolatria e prostituição (Ap 2.2, 14, 20).

Enquanto isso, se um irmão se diz arrependido por uma falha cometida, a igreja deve perdoá-lo e acolhê-lo em amor (2Co 2.5-10).

Por fim, a igreja é chamada de “raça eleita, sacerdócio real, nação santa” (1Pe 2.9). Ela é também “a noiva, a esposa do Cordeiro” (Ap 19.7; 21.9). Faz-se necessário que seu comportamento neste mundo seja distinto, para que o mundo perceba a sua diferença e o nome de Deus seja glorificado através dela (Mt 5.14-16; Fp 2.14-16; cf. Rm 2.17-24).

1.4. Quatro características da disciplina cristã

John Driver, entende que a disciplina bíblica possui algumas características, dentre as quais destacamos quatro:]18

1. É pessoal. 2. É comunitária. 3. É restauradora. 4. Possui autoridade.

A disciplina é pessoal. “O caminho até a restauração é pessoal e deve ser tomado em espírito de brandura (Gl 6.1-2)”.19

A disciplina é comunitária. “A comunidade inteira compartilha da responsabilidade do processo de restauração, embora isso não implique necessariamente que a congregação inteira participe em cada caso de admoestação fraterna”.20

A disciplina é restauradora. “O propósito da disciplina é a restauração através do perdão e da reconciliação”.21

A disciplina possui autoridade. “A autoridade outorgada à igreja é, em certo sentido, paralela à autoridade do próprio Jesus”.22

18 DRIVER, op. cit., p. 66-69. 19 Ibid. p. 66. 20 Ibid., loc. cit. 21 Ibid., p. 67. 22 Ibid., p. 68.

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1.5. Os objetivos da disciplina

Para Calvino, a disciplina atende a três propósitos específicos:

1. Não dar o aval de cristão a quem não é digno dele.23 Isso significa que aqueles que levam uma vida não condizente com o evangelho não podem permanecer nela. A igreja como corpo, não pode tolerar um membro que não obedeça a ordem do Cabeça que é Cristo. Isso deve ser assim para que não se infame o nome da igreja e se profane a Ceia do Senhor.24

2. Evitar a corrupção dos íntegros.25 Os que estão caminhando em santidade podem ser corrompidos pelos exemplos maus. Por isso Paulo recomendou que o ofensor fosse disciplinado (em 1Co 5.2-6), para que a totalidade da massa não fosse “levedada” por “um pouco de fermento”.

3. Levar os pecadores ao arrependimento.26 Ao sentir a correção, o eleito reconhece o seu erro e se fortalece na prática da santidade.

1.6. Os perigos da falta de disciplina

Baseando-se em 1Coríntios 5.1-13, o Presb. Francisco Solano Portela Neto, nos alerta para alguns perigos da falta de disciplina:27

1. Alguns pecados dentro da igreja podem se tornar notórios. 2. O pecado pode deixar uma igreja acomodada e orgulhosa. 3. O pecado coloca a saúde espiritual de uma igreja em risco. 4. O pecado pode manchar o testemunho de uma igreja. 5. Sem disciplina, os enganadores permanecem dentro da igreja.

O pecado na igreja entra em choque com o seu caráter santo, mas ele ocorre. Alguns pecados podem atingir um estágio público e notório. Na igreja de Corinto, a situação estava tão crítica que poderia chocar até mesmo os gentios; uma questão se agravou até chegar ao conhecimento de Paulo (1Co 5.1).

A igreja em Corinto se tornou acomodada e orgulhosa. Paulo diz no v. 2 que se espantava pelo fato de alguns irmãos “não chegarem a lamentar” a situação de pecado da igreja. Os coríntios até se mostravam orgulhosos da situação deles (1Co 5.2-5).

Os crentes corriam risco espiritual. No v. 6, Paulo pergunta: “Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda?” A igreja tinha de ser “massa sem fermento” — pura. Deixar que o

23 CALVINO, op. cit., iv.xii.5, p. 226. 24 Ibid., loc. cit. 25 Ibidem. 26 Ibid., iv.xii.5, p. 227. 27 PORTELA NETO, Francisco Solano. A Disciplina na Igreja. In: Monergismo. Disponível em: <http://www.moner-gismo.com/textos/igreja/disciplina_igreja_solano.htm>. Acesso em: 28 jun. 2020.

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comportamento incompatível com Cristo permaneça sem disciplina coloca em risco a saúde espiritual do povo de Deus (cf. 1Co 5.6-7).

O testemunho da igreja estava sendo manchado. A igreja devia ser conhecida pela “sinceridade e verdade” e não pelo “fermento da maldade e da malícia” (1Co 5.8).

Os enganadores não devem permanecer na igreja. No v. 9, Paulo reconhece que o mundo é constituído de impuros. Ele não diz que a igreja deve se isolar do mundo, mas reforça que não deve haver comunhão com aquele que se diz irmão e demonstrar comportamento contrário a Jesus Cristo (1Co 5. 11).

Paulo determina que o indivíduo perverso seja tirado do meio da igreja. A igreja que não é zelosa com a disciplina atrai vários perigos para seu testemunho e saúde espiritual.

Conclusão

Considerando o que estudamos, podemos resumir os ensinos com relação a disciplina nos seguintes tópicos:

• A disciplina instituída por Cristo é uma marca da igreja verdadeira. • A disciplina é pessoal, comunitária e restauradora, exercida através da autoridade

que o próprio Cristo concedeu à igreja. • Os objetivos da disciplina são não dar o aval de cristão a quem não é digno dele,

evitar a corrupção dos íntegros e motivar os pecadores ao arrependimento. • A disciplina cristã é necessária e recomendada pelas Escrituras. Quando uma igreja

não disciplina, prejudica seu testemunho e saúde espiritual.

Começamos a compreender que, quando nos assumimos como cristãos, passamos a viver como filhos de Deus e parte da família de Deus. No convívio com o Senhor e uns com os outros, somos aprimorados por conselhos e correções. O próprio Senhor Jesus Cristo explica como isso deve ocorrer na prática. Aprenderemos mais sobre isso no próximo estudo.

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II. A disciplina da igreja (parte 2): passos práticos da disciplina

Misael Batista do Nascimento. Atualizado em 05 de julho de 2020.

Introdução

Até aqui aprendemos o que é disciplina cristã, a sua importância e o que acontece quando ela é negligenciada. Neste estudo, aprenderemos sobre o poder das chaves do reino dos céus, olharemos para o contexto amplo de Mateus 18, descobriremos quais são os passos ou estágios da disciplina, conforme o ensino de nosso Senhor Jesus Cristo e concluiremos com alguns esclarecimentos necessários.

2.1. O poder das chaves do reino dos céus

A disciplina cristã é exercida dentro do contexto da doutrina das chaves do reino, ensinada por Jesus Cristo em Mateus 16.15-19.

15 Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou? 16 Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. 17 Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus. 18 Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. 19 Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus.

Nesta passagem, podemos sublinhar três ensinos:

1. Jesus é o Cristo divino. 2. O próprio Jesus Cristo edifica sua igreja. 3. Jesus concede o “poder das chaves” à igreja.

Notemos que Deus Pai revela a Pedro que Jesus é “o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v. 15, 17). Em seguida, Jesus Cristo diz que edificará a igreja sobre a “pedra” desta declaração, acerca de quem ele é (o Divino Cristo). Nosso Senhor fará isso de tal modo que os poderes infernais não resistirão ao avanço da igreja (v. 18). Por fim, a edificação da igreja demanda o exercício do “poder das chaves”. Jesus dá “as chaves do reino dos céus” a Pedro e, por conseguinte, à igreja cristã. De acordo com William Hendriksen, os crentes protestantes não precisam ter medo de

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admitir que a palavra de Jesus se dirige originalmente a Pedro: “Salta imediatamente à vista que essas palavras são ainda dirigidas a Pedro. ‘Não pode haver equívoco de que Pedro é descrito como que exercendo na terra o poder das chaves do reino’”.28 Mesmo assim, ao longo de sua exposição, ele deixa claro que os termos se aplicam à totalidade da igreja.

É o dever da igreja como um todo e representada por aqueles que, pelo Senhor, foram designados para governar sobre ela, atar, isto é, proibir a violação desses princípios, e desatar, isto é, permitir tudo quanto esteja em harmonia com eles. Acha-se implícito o direito de exclusão ou excomunhão da igreja, e, com base no arrependimento, de readmissão à igreja. É por essa razão que Jesus, falando agora no plural e referindo-se aos apóstolos como um grupo (que por sua vez representam a igreja), reitera o que previamente (16.19) havia dito no singular, a Pedro.29

Jonathan Leeman argumenta que Mateus 18.18 lança luz sobre Mateus 16.19, no sentido de que lá, “ligar” e “desligar” consta no plural, referindo-se a uma ação conjunta da igreja.30 Por meio destas chaves, a igreja poderá “ligar” e “desligar” na terra o que Deus “ligou” e “desligou” no céu (v. 19). Hendriksen explica que “ligar e desligar são termos rabínicos, significando proibir e permitir”.31 Isso combina com a explicação de Driver,32 para quem:

“Ligar” significava “proibir”, “tornar obrigatório”, “mandar” (alguma atitude ética). “Desligar” significava “permitir”, “deixar em liberdade” (diante de várias opções éticas). Este era o sentido em que estes termos eram usados entre os rabinos judeus na época de Jesus. Em suas interpretações da Lei de Israel eles “ligavam” ou “desligavam” (quer dizer, proibiam ou permitiam) de acordo com a natureza da cada caso.33

A Bíblia de Estudo Herança Reformada explica o poder das chaves como a:

Autoridade da igreja como agente do reino de Deus (Is 22.22; Lc 11.52; Ap 1.18; 3.7), a qual não é exercida por meio de tradições humanas ou autoridade arbitrária, mas por meio da pregação da Palavra de Cristo e pelo exercício da disciplina e da ordem da igreja ordenados pela sua Palavra (At 2.38-39; 3.16-20; 4.12; 10.34-43).34

Leeman esclarece a metáfora das chaves do seguinte modo:

O que as chaves fazem? As chaves trancam e destrancam portas. As chaves permitem que algumas pessoas entrem, mantendo as outras pessoas do lado de fora, o que é exatamente o que Jesus queria que esse grupo de pessoas reunidas em seu nome fizesse — controlasse quem entrava e quem ficava de fora.35

28 HENDRIKSEN, William. Mateus. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, v. 2, p. 182. (Comentário do Novo Tes-tamento). Logos Software. 29 HENDRIKSEN, op. cit., p. 243. 30 LEEMAN, Jonathan. A Igreja e a Surpreendente Ofensa do Amor de Deus: Reintroduzindo as Doutrinas Sobre a Mem-bresia e a Disciplina da Igreja. São José dos Campos: Editora Fiel, 2013, p. 220-221. 31 HENDRIKSEN, op. cit., p. 182. 32 DRIVER, John. Comunidade e Compromisso. Campinas: Editora Cristã Unida, 1992, p. 35-37. 33 DRIVER, 1992, p. 35-36. 34 BEHR, p. 1355. 35 LEEMAN, op. cit., p. 35.

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De acordo com Hendriksen, a autoridade para exercer o poder das chaves, depende sempre da obediência dos líderes da igreja à Palavra de Deus. “Quase nem seria necessário acrescentar que tal autoridade sobre a fé e a moral, e consequentemente também sobre a afiliação na igreja, só pode ser exercida quando isso é feito em plena harmonia com o ensino de Jesus ou, expressando-o em outros termos, com a Palavra de Deus”.36

A disciplina aplica a pregação, no sentido de que, enquanto esta última chama à obediência, a primeira pune os desobedientes. A pregação proclama a verdade, a disciplina confirma que os crentes, de fato, seguem a verdade. A disciplina não contraria a graça ou o amor, mas os confirma, uma vez que o amor de Deus produz santidade (cf. Hb 12, citado no estudo anterior).

Na Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), o conceito de “chaves do reino” está ligado à sucessão apostólica ou liderança papal. O papa, como “vigário” (representante) de Deus e sucessor do apóstolo Pedro, possui as chaves do reino dos céus:

O Senhor constituiu em pedra de sua Igreja somente Simão, a quem deu o nome de Pedro. Entregou-lhe as chaves desta Igreja, o instituiu pastor de todo o rebanho. No entanto, o múnus de ligar e desligar, que foi dado a Pedro, consta que também foi dado ao colégio dos Apóstolos, unido a seu chefe. Este ofício pastoral de Pedro e dos Apóstolos faz parte dos fundamentos da Igreja e é continuado pelos Bispos, sob o primado do Papa.37

Esta interpretação é rejeitada pelos cristãos protestantes e evangélicos.

Em suma, para os primeiros ouvintes de nosso Senhor, “ligar” ou “desligar”, se relacionam a “proibir” ou “permitir”. Pedro confessa que Jesus é Cristo e Deus. Em seguida, Jesus promete edificar sua igreja, concedendo a ela a autoridade de abrir a porta do reino — de pregar o evangelho, “abrindo a porta de entrada do reino”, assim como autoridade para regular a conduta requerida no discipulado.

2.2. O contexto amplo de Mateus 18 e duas considerações

A disciplina cristã também é ensinada dentro do contexto do capítulo 18 de Mateus, que preconiza “bondade para com os pequeninos e o espírito perdoador para com todos”.38 Isso deveria nos ajudar a entender que a tônica do ensino de Jesus, em Mateus 18.15-20, não é o estabelecimento de um sistema de punição, e sim, de procedimentos de perdão e reconciliação. Comentando as palavras de Jesus — “Se teu irmão pecar [contra ti]” — em Mateus 18.15, R. C. Sproul chama nossa atenção para o seguinte:

Este texto não é uma licença para que os cristãos se tornem litigiosos, processando os irmãos a cada experiência insignificante ou infeliz. Em outra passagem, a Bíblia diz que “o amor

36 HENDRIKSEN, op. cit., p. 183. 37 LIBRERIA EDITRICE VATICANA. Catecismo da Igreja Católica: Novíssima Edição de Acordo com o Texto Oficial em Latim. 19ª ed. Brasília; Embu, SP; Petrópolis, RJ; São Paulo, SP: Edições CNBB; Editora Ave-Maria; Editora Vozes; Paulinas Editora; Paulus Editora; Edições Loyola Jesuítas, 2017, #881, p. 253. 38 HENDRIKSEN, op. cit., p. 221.

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cobre multidão de pecados” (1Pe 4.8). Isto significa que eu não preciso iniciar o processo de reconciliação a cada vez que meu irmão me aborrecer, desagradar ou irritar de forma mínima. As ofensas pequenas devem ser cobertas por graça e caridade.39

Outra observação edificante é sugerida por Sproul, ao distinguir ofensa cometida de ofensa recebida.

Se eu proferir um insulto, uma calúnia ou uma mentira contra você, eu certamente cometi uma ofensa. No entanto, você pode ou não optar por receber a ofensa. Da mesma forma, é possível que eu diga ou faça algo que não seja pecaminoso, mas você considere ofensivo. Neste caso, eu não cometi uma ofensa contra você, mas você escolheu receber uma ofensa. Os pregadores se deparam com esta situação com frequência.40

Ditas estas coisas, estamos prontos para examinar os passos ou estágios da disciplina, ordenados por nosso Redentor.

2.3. Os três passos ou estágios da disciplina cristã

As instruções de Jesus sobre disciplina cristã podem ser conferidas em Mateus 18.15-20:

15 Se teu irmão pecar [contra ti], vai argui-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão. 16 Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça. 17 E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano. 18 Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado nos céus. 19 Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus. 20 Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles.

Apesar de alguns manuscritos não trazerem a expressão “contra você” (v. 15), o contexto geral do capítulo — a inevitabilidade dos escândalos (v. 6-9); a parábola da ovelha perdida (v. 10-14); a regra do perdão virtualmente ilimitado ao irmão transgressor (v. 21-22) e a parábola do credor incompassivo (v. 23-35) — favorece a manutenção desta cláusula. Nosso Senhor está ensinando sobre como lidar com irmãos que nos ofendem.41

39 SPROUL, R. C. Estudos Bíblicos Expositivos em Mateus. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 485. 40 SPROUL, op. cit., p. 485-486. 41 Cf. HENDRIKSEN, op. cit., p. 237-238: “Muita discussão se tem centrado em torno da frase: “contra você”. Ma-teus realmente escreveu isso? Jesus realmente disse isso? Ou é preciso omitir a frase diante do fato de alguns dos melhores e mais antigos manuscritos o omitirem? [...] Eis minha opinião pessoal: a principal questão não é a reten-ção ou a omissão da frase. Ainda quando as palavras como tais sejam deixadas fora do texto, e este simplesmente diga: “Ora, se um irmão pecar, vá e mostre-lhe seu erro enquanto você está a sós com ele”, a admoestação a ter uma entrevista privativa com o irmão faltoso não favorece um pouco a suposição de que o pecado em pauta foi também de caráter privativo?”

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A partir daqui, nosso Senhor orienta três passos ou estágios da disciplina cristã:

1. Conversa privativa com o ofensor. 2. Nova conversa com o ofensor, levando testemunhas. 3. Encaminhamento do assunto à igreja.

Chama a atenção o uso do verbo “arguir” (elenchō), em Mateus 18.15, cujo sentido é de repreensão forte ou condenação; daí as traduções da ARC e NAA, “vá e repreenda-o” e da NVI, “vá e [...] mostre-lhe o erro”. Em cada instância, o objetivo é resolver a questão — “ganhar o irmão” (Mt 18.15). Além disso, Jesus menciona duas vezes um verbo que tem o sentido de “prestar atenção” (akouō), traduzido como “ouvir” (Mt 18.15,16) e duas vezes um verbo que significa “desobedecer” (parakouō), traduzido como “não os atender” e “se recusar a ouvir” (Mt 18.17). A ideia básica é que Deus usa um cristão para chamar outro à correção. O irmão repreendido pode acolher a correção ou não.

Pensemos no primeiro estágio disciplinar. A abordagem inicial é particular: “Ora, se um irmão pecar contra ti, vai e mostra seu erro enquanto estiveres a sós com ele” (Mt 18.15; tradução de Hendriksen).42 Se um irmão nos ofender, temos de conversar com ele privativamente. Se ele der ouvidos, ele foi “ganho” e tudo está resolvido.

Há um segundo estágio disciplinar. Caso o irmão faltoso não ouça, nós não devemos desistir. Com amor e paciência temos de visitá-lo novamente, acompanhados de testemunhas: “Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça” (Mt 18.16). Jesus se refere a uma orientação de Deuteronômio 19.15: “Uma só testemunha não se levantará contra alguém por qualquer iniquidade ou por qualquer pecado, seja qual for que cometer; pelo depoimento de duas ou três testemunhas, se estabelecerá o fato”. O apóstolo Paulo também aplicou esta instrução, quando escreveu aos cristãos de Corinto: “Esta é a terceira vez que vou ter convosco. Por boca de duas ou três testemunhas, toda questão será decidida”. E orientou Timóteo a fazer uso do princípio na disciplina de oficiais: “Não aceites denúncia contra presbíteros, senão exclusivamente sob o depoimento de duas ou três testemunhas” (1Tm 5.19).

Notemos nossa dependência de Deus e dos irmãos. E entendamos a razão de nosso Senhor afirmar que seus seguidores devem ser como crianças (Mt 18.3-4). Se não tivemos êxito em nosso esforço particular, precisamos pedir ajuda a outros irmãos. Juntos buscaremos persuadir o faltoso, na esperança de que Deus lhe conceda arrependimento, depois de ter sido “estabelecida toda palavra” (Mt 18.16; cf. 2Tm 2.25). Se o irmão faltoso atender aos irmãos conselheiros, o problema foi resolvido.

O terceiro estágio da disciplina consta em Mateus 18.17: “E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano”. Caso o faltoso não dê ouvidos às admoestações anteriores, o caso deve ser levado à igreja. A palavra “igreja”, utilizada neste versículo, refere-se à comunidade local dos crentes.

42 HENDRIKSEN, op. cit., p. 221.

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As denominações protestantes e evangélicas praticam esta instrução final de diferentes maneiras. Em igrejas congregacionais, casos de disciplina podem ser tratados pelos membros da igreja reunidos em sessão administrativa. Em igrejas presbiterianas o caso é levado ao Conselho, que representa a igreja. Outro detalhe a considerar é que quando uma disciplina chega à igreja, isso não significa que o pecado tenha sido público. De fato, conselhos tratam de casos disciplinares que nem sempre são de conhecimento de todos os membros da igreja. Somente quando a prática do pecado possui dimensões públicas é que a disciplina é comunicada à congregação.

Questões trazidas à igreja resultam em correção ou excomunhão. A correção acontece quando o indivíduo responde positivamente ao processo disciplinar. A excomunhão acontece quando o indivíduo se recusa a ouvir a igreja.

As implicações da excomunhão são sérias. Pode ocorrer do indivíduo ser afastado da comunhão da Ceia do Senhor por tempo indeterminado, até demonstrar arrependimento. Leeman explica que:

Esse ligar e desligar acontece em meio a pessoas reais, de carne e osso, na terra — não em meio a realidades abstratas e idealizadas. Isso acontece necessariamente de maneira local, porque os seres humanos existem de maneira local. [...] Se esse ajuntamento real e não abstrato determina que a profissão de fé de um indivíduo é fidedigna, ele une esse indivíduo a ele mesmo. Caso contrário, não o une. Como essas pessoas exercem sua autoridade para unir? Elas o unem por meio de dois mecanismos externos, visíveis e institucionais, concedidos a eles por Jesus: uma iniciação através do batismo e a participação contínua por meio da ceia da nova aliança. Como eles desobrigam ou desligam alguém? Eles negam ao indivíduo a oportunidade de participar dessa ceia contínua.43

E pode ocorrer do indivíduo preferir não dar ouvidos aos conselhos bíblicos ministrados pelos irmãos e rejeitar a instrução dos líderes espirituais a quem ele prometeu obedecer (1Ts 5.12-13; Hb 13.17). Quando ele insiste em não voltar atrás em seu procedimento pecaminoso, o Conselho delibera sua exclusão da igreja local. Então ele deixa de ser chamado de irmão e passa a ser tratado como “um gentio e publicano”, ou seja, um não cristão (Mt 18.17; cf. 1Co 5.9-13). Dito de outro modo, para o Senhor Jesus, o impenitente não é um crente fraco e sim um apóstata — uma pessoa que conhece a Palavra de Deus, mas prefere não abandonar o pecado (Mt 7.6; 2Pe 2.20-22). Uma vez que rejeitou o domínio de Cristo, o indivíduo excluído deixa a jurisdição da igreja e retorna para o domínio de Satanás (1Co 5.5; 1Tm 1.20). Pode ser que Deus o traga de volta, ou não (Hb 6.4-8; 1Jo 2.19). Se ele for um eleito para a salvação, sofrerá sob o poder do diabo durante um período até que, divinamente agraciado com arrependimento, retorne à igreja.

Quando uma pessoa excluída é alcançada pela graça de Deus e deseja retornar a comunhão, ela reafirma publicamente a sua fé em uma cerimônia pública, culminando um processo denominado admissão por restauração. Eis um trecho da liturgia do culto:

43 LEEMAN, op. cit., p. 35-36.

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Meu querido irmão(ã), tenha em seu coração a segurança de que, sendo o seu arrependimento tal como professou, já o Senhor o recebeu de novo em sua infinita misericórdia. Ele mesmo nos ensina em seu evangelho que há mais alegria e gozo por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de arrependimento. Seja diligente daqui em diante em se guardar para não cair em pecado. Ame a Cristo, que muito amou você, perdoando os seus pecados. [...]. Visto que você [...] foi excluído da comunhão dos fiéis, mas manifestou arrependimento satisfatório à igreja, em nome do Senhor Jesus Cristo e por sua autoridade o declaro absolvido da sentença de exclusão contra você pronunciada, e recebo o(a) irmão(ã) na comunhão da igreja, para que possa ser participante de todos os benefícios do Senhor Jesus para a sua salvação eterna. Amém.44

Nesse contexto, os verbos “ligar” e “desligar”, em Mateus 18.18, denotam o estado disciplinar do faltoso. “Ligar” significa “não perdoar”, “excluir da comunhão”, “reter” (os pecados). “Desligar” significa “absolver, “perdoar” “remitir” (os pecados). Este significado de “ligar e desligar” é percebido claramente nas passagens paralelas — Lucas 17.3 e João 20.23 — bem como no contexto geral do capítulo 18 de Mateus.45

2.4. Alguns esclarecimentos necessários

Tanto Mateus 16.19, quanto Mateus 18.18, não estão afirmando que a ação da igreja na terra (“ligando” ou “desligando”) afeta a ação de Deus no céu, e sim que a igreja realiza na terra aquilo que Deus já decretou no céu.46 Como sugere Grudem, a disciplina cristã realiza, na terra, uma disciplina celestial:

Sempre que a igreja cumpre o papel de disciplinar pode estar confiante que Deus já começou o processo espiritualmente. Sempre que ela tira alguém da disciplina, perdoa o pecador e restaura relacionamentos pessoais, a igreja pode estar confiante que Deus já começou a restauração espiritualmente (Jo 20.23). Desse modo, Jesus promete que o relacionamento espiritual entre Deus e a pessoa sujeita à disciplina será imediatamente afetado em maneiras coerentes com a direção da ação disciplinar da igreja. A disciplina eclesiástica legítima, portanto, envolve a tremenda certeza de que a disciplina celestial correspondente já teve início.47

No meio evangélico, há quem afirme que os termos “ligar” e “desligar”, de Mateus 16.19; 18.18-19, devem ser aplicados à oração de intercessão e concordância. “Ligar” e “desligar” são vinculados à confissão positiva, de modo que, se um cristão, preferencialmente concordando com

44 MARRA, Cláudio. (Org.). Manual do Culto. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 73. 45 DRIVER, 1992, p. 35. 46 Frederico Lourenço informa que “a utilização aqui do futuro perfeito passivo (perifrástico: éstai dedemênon)” não facilita “determinar ao certo o sentido que Mateus pretende dar a essa construção verbal. ‘Aquilo que ligares na terra será aquilo que já foi ligado por Deus?’ Ou tratar-se-á, antes, de sublinhar a simultaneidade do ato de ligar, que acontece ao mesmo tempo na terra e no céu?” cf. LOURENÇO, Frederico. Bíblia, Volume I: Os Quatro Evange-lhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, nota 16.19, p. 113. 47 GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 748.

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outros, “determinar” algo aqui na terra, isso será efetivado na esfera celestial e realizado na terra. Tal interpretação atrai por causa do link aparente dos atos de “ligar” e “desligar” com a oração. A interpretação mais bíblica, porém, defende que o “ligar” e “desligar” têm a ver com a pregação e aplicação do evangelho, bem como com o exercício da disciplina cristã. A passagem de Mateus 18.18-20 se refere não à oração propriamente dita, mas à excomunhão de uma pessoa que se recusou a obedecer ao evangelho, confirmando sua incredulidade e dureza de coração.

Conclusão

Afirmamos a importância da disciplina na vida do discípulo e da Igreja de Jesus Cristo. O seguidor de Cristo anda segundo as Sagradas Escrituras e observa as instruções do Senhor Jesus: conversar com o faltoso privativamente; conversar com o faltoso levando testemunhas; encaminhar a questão para o Conselho. Ele suplica a Deus para que, em todo processo disciplinar, haja a restauração do pecador.

E como o Conselho lida com o assunto, quando recebe uma queixa ou denúncia? Aprenderemos sobre isso no próximo estudo.

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III. A disciplina da igreja (conclusão): o Código de Disciplina da IPB

Misael Batista do Nascimento. Atualizado em 05 de julho de 2020.

Introdução

O estudo da disciplina eclesiástica exige um entendimento, ainda que resumido, do Código de Disciplina da Igreja Presbiteriana do Brasil (CD/IPB). Este código integra o Manual Presbiteriano (MP).48 Conheceremos o conceito, objetivos e estrutura do CD/IPB, aprenderemos sobre os usos comuns do CD/IPB e, por fim, a relação entre o CD/IPB e a Sagrada Escritura.

3.1. Conceito, objetivos e estrutura do CD/IPB

O CD/IPB é o conjunto de leis que regulamenta os processos disciplinares dentro da Igreja Presbiteriana do Brasil.

O objetivo do Supremo Concílio em promulgar o MP em 1950, foi estabelecer o perfil e modo de operação das igrejas da denominação. Com isso, reduz-se o perigo de perda de identidade ou de inconsistência na gestão pastoral e legal das igrejas e concílios. Para cada igreja presbiteriana do Brasil, valem as mesmas regras organizacionais estabelecidas no Manual. O MP regula as questões de ordem administrativa, litúrgica e disciplinar.

Logo depois da Constituição Interna da IPB (CI/IPB), consta no MP o CD/IPB. Quanto à estrutura, o CD/IPB é organizado em nove capítulos e um índice remissivo, listados abaixo:

• Capítulo I, introdutório, definindo a natureza e a finalidade da disciplina eclesiástica.

• Capítulo II, que define o que são as faltas: “é tudo que, na doutrina e prática dos membros e concílios da igreja, não esteja de conformidade com os ensinos da Sagrada Escritura, ou transgrida e prejudique a paz, a unidade, a pureza, a ordem e a boa administração da comunidade cristã” (Art. 4º).

• Capítulo III, que trata das penalidades impostas aos faltosos. • Capítulo IV, que trata do modo de estabelecimento e funcionamento dos Tribunais

da igreja.

48 SUPREMO CONCÍLIO DA IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL. [SC/IPB]. Manual Presbiteriano.[MP]. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.

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• Capítulo V, que trata da suspeição e da incompetência, o que ocorre quando qualquer parte sob o Tribunal é considerada suspeita ou inadequada para o julgamento da questão.

• Capítulo VI, que trata da organização e forma do processo disciplinar. • Capítulo VII, que trata dos recursos em geral. • Capítulo VIII, o mais curto de todos, que trata da execução do processo. • Capítulo IX, que trata da restauração dos disciplinados. • Índice remissivo.

3.2. Usos comuns do CD/IPB

O CD/IPB regulamenta as situações disciplinares nos âmbitos dos Conselhos, Presbitérios, Sínodos e Supremo Concílio. Vejamos sua aplicação mais comum, no exercício da disciplina em uma igreja local.

3.2.1. Início de formalização do 3º estágio disciplinar

Pastores, presbíteros regentes, diáconos ou quaisquer membros da igreja podem ser convidados (por uma pessoa que tenha dado o passo disciplinar 1) a ajudar na visita do passo ou estágio 2 e até encaminhar uma situação oficialmente ao Conselho, no passo 3. Você pode também realizar a primeira visita sozinho, depois chamar outras pessoas, quem sabe irmãos mais próximos do faltoso, a fim de realizar o passo 2 e somente acionar um oficial ou pastor no encaminhamento do passo 3.

Os oficiais e pastores podem encaminhar todos os três passos. Um diácono ou presbítero pode verificar uma falha em um irmão e admoestá-lo.49 Se a situação não for resolvida, ele pode convidar outro oficial para o estágio 2. Se o problema persistir, a situação pode ser tratada como estágio 3 no Conselho.

O ato de encaminhar um irmão no estágio 3 implica escrever uma queixa ou denúncia (Art. 42 do CD/IPB). O queixoso ou denunciante apresenta a situação apoiado pelas testemunhas que o acompanharam no estágio 2. Quem apresenta a queixa está sujeito à censura de difamador, caso seja demonstrado que agiu de má fé, nos termos do Art. 47 do CD/IPB.

Caso decida acolher a denúncia ou queixa, o Conselho é constituído como Tribunal e abre um processo, conforme regulamentação do capítulo VI do CD/IPB. São registrados os atos processuais, a falta cometida e a penalidade disciplinar estabelecida pelo Conselho, nos termos dos capítulos II e III do CD/IPB. Cada detalhe é encaminhado a fim de coibir abusos de autoridade, uma vez que os Concílios da Igreja Presbiteriana do Brasil não podem exigir dos membros nada

49 SC/IPB. Constituição Interna da Igreja Presbiteriana do Brasil (CI/IPB), Art. 36, alínea “f”, Art. 51, alínea “a”, Art. 53, alínea “c”.

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que não seja bíblico (Art. 4 § único). Mesmo quando há desobediência comprovada à Escritura, o modo de encaminhar e aplicar a disciplina deve também corresponder aos padrões amorosos da Palavra de Deus, de acordo com parâmetros do CD/IPB. Caso entenda que seu caso foi julgado erroneamente, o indivíduo (ou Concílio) pode recorrer a uma instância superior, como consta no capítulo VII do CD/IPB. Todas as ações são registradas em ata, a fim de tornar-se verificável a correção ou falha do processo de disciplina.

3.2.2. O processo de disciplina no Conselho

A primeira providência do Conselho consiste em verificar a pertinência do processo, nos termos do Art. 46.

A segunda providência do Conselho consiste em tentar resolver a questão sem a necessidade de aplicação de penas disciplinares (Art. 43). Uma reconciliação pacífica entre partes, orientada pelo amor, é o ideal de Deus para seus filhos. Nesse caso, tudo é finalizado com uma admoestação bíblica, para a glória de Deus.

Caso não haja possibilidade de resolver a questão, o Conselho é estabelecido como Tribunal, nos termos do Art. 18.

O Art. 48, alíneas “a” até “c”, orienta os atos de formalização processual, quais sejam, autuação (confecção de pasta com os documentos pertinentes) e citação (convocação para depoimento). O Conselho mantém um arquivo onde são mantidos os documentos referentes aos casos de disciplina. A documentação das pastas, mais os registros das atas do Conselho, formam o corpo documental passível de análise, em caso de recurso.

A convocação para depoimento deve ocorrer em prazo de pelo menos oito dias, em data, lugar e horário conveniente ao acusado, que deverá comparecer pessoalmente (Art. 44 § único, Art 48 § 1º e 2º). Nessa conversa, o denunciado admite ou não o pecado, abrindo espaço para três possibilidades de encaminhamento.

1. Admissão do erro e disposição para corrigi-lo. Nesse caso, há aplicação de pena correspondente à falta e acompanhamento pastoral como auxílio à restauração. No momento adequado, ocorre a restauração (Art. 9, alíneas “a” e “b”).

2. Admissão do erro e persistência no pecado. Nesse caso ocorre uma admoestação para arrependimento e fé. Se o ofensor continuar resistindo às admoestações do Conselho, ocorre a exclusão (Art. 9, alínea “c” do CD/IPB e Art. 23, alínea “a” da CI/IPB).

3. Afirmação de inocência — negação da acusação. Nesse caso, são acionadas as testemunhas. O acusado também poderá nomear um defensor ou procurador (Arts. 44, 56-59).

Todos os processos são encaminhados até a apuração dos fatos e julgamento condizente, nos termos dos Arts. 60-64 e 68-112, 133, destacando-se que, no caso das faltas veladas, isso se dá

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“perante o tribunal ou em particular” e, no caso de públicas, “além da ciência pessoal, dar-se-á conhecimento à igreja” (Art. 14).

Observe-se ainda que “toda e qualquer pena deve ser aplicada com prudência, discrição e caridade, a fim de despertar arrependimento no culpado e simpatia da igreja” (Art. 15).

3.2.3. Instâncias de julgamento

Membros e oficiais são julgados por Conselhos. Pastores são julgados por presbitérios. Presbitérios por Sínodos e Sínodos, por sua vez, são julgados pelo Supremo Concílio (Art. 19-23).

O julgamento de um pastor é iniciado na igreja local.

• O pastor é pastoreado pela igreja local. Pastores não estão acima, e sim, dentro do corpo de Cristo. Isso quer dizer que ele devem ser humildes e abertos para receberem admoestação dos crentes. Por outro lado, igrejas não devem se escandalizar ao saber que seus pastores são seres humanos falíveis, e precisam estar prontas a corrigi-los no temor e amor do Senhor. Pelos membros da igreja, os pastores são disciplinados nos passos ou estágios 1 e 2.

• Em segundo lugar, o pastor é pastoreado pelo Conselho (Art. 36 § único e Art. 39, da CI/IPB). Ele é um presbítero entre presbíteros, e deve cuidar para não se posicionar como superior aos seus irmãos (1Pe 5.1). Ministros presbiterianos bíblicos estão prontos a ouvir seus pares, no âmbito do Conselho. Dentro do Conselho, os pastores são disciplinados nos passos ou estágios 1 e 2.

• O pastor que não ouve igreja nos passos 1 e 2, é encaminhado ao Presbitério, no passo 3. Isso é feito através de denúncia ou queixa, nos termos do CD/IPB. Um pastor que não se submete à disciplina de seu Presbitério é deposto do ministério (Art. 9, alínea “d”, do CD/IPB).

3.3. O CD/IPB e a Sagrada Escritura

O CD/IPB regulamenta os processos disciplinares a partir dos ensinos gerais da Escritura.

• O CD/IPB exige a prática dos passos disciplinares de Mateus 18.15ss (Art. 46, alínea “b”).

• O CD/IPB compreende o valor da disciplina como instrumento divino para “exercer a justiça, manter a paz, [...] preservar a unidade e promover a edificação da igreja de Cristo”.50 Isso corresponde aos princípios bíblicos que motivaram os pais reformadores a compreenderem a disciplina como marca da Igreja.

50 CD/IPB. Preâmbulo, p. 138.

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7 Portanto, nós cremos, confessamos e declaramos que as marcas da verdadeira Igreja são, primeiro e antes de tudo, a verdadeira pregação da Palavra de Deus, na qual Deus mesmo se revelou a nós, como nos declaram os escritos dos profetas e apóstolos; segundo, a correta administração dos sacramentos de Jesus Cristo, os quais devem ser associados à Palavra e à promessa de Deus para selá-las e confirmá-las em nossos corações; 8 e, finalmente, a disciplina eclesiástica corretamente administrada, como prescreve a Palavra de Deus, para reprimir o vício e estimular a virtude. 9 Onde quer que essas marcas se encontrem e continuem por algum tempo – ainda que o número de pessoas não exceda de duas ou três – ali, sem dúvida alguma, está a verdadeira Igreja de Cristo, o qual, segundo a sua promessa, está no meio dela. 10 Isto não se refere à Igreja universal de que falamos antes, mas às igrejas particulares, tais como as que havia em Corinto, 11 na Galácia, 12 em Éfeso 13 e noutros lugares onde o ministério foi implantado por Paulo e às quais ele mesmo chamou igrejas de Deus. Confissão de Fé Escocesa.

A disciplina aplicada na Igreja Presbiteriana do Brasil visa a glória de Deus e o benefício do acusado, nos termos bíblicos da prática da santidade e do amor cristãos.

Os parâmetros estabelecidos pelo CD/IPB, devidamente seguidos, limitam a possibilidade de falsas acusações, abrem espaço para ampla defesa do acusado, organizam o modo de condução dos processos disciplinares e possibilitam o exercício da justiça entre os irmãos. Nesse sentido, o CD/IPB é bíblico e útil como instrumento de manutenção da pureza, decência e ordem da igreja (1Co 6.1-2; 14.40).

Conclusão

A explicação da disciplina cristã como marca da igreja é biblicamente embasada. O grande desafio encontra-se na prática, pois as igrejas temem se tornar legalistas, orientadas por regras rígidas. Tal temor é legítimo, uma vez que o reino de Deus é “justiça, e paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Quando uma igreja proíbe o desfrute da alegria e se torna uma corporação de policiamento moral, a graça desaparece e a fé verdadeira murcha. Por outro lado, igrejas também correm risco de relaxar quanto ao pecado. Com medo de regras, eles podem se abrir para o liberalismo moral. Quando Deus e sua lei são desprezadas, não existe mais fé e discipulado cristãos (Is 8.16; 24.5).

A igreja precisa possuir as marcas de autenticidade. A pregação da Palavra e a administração correta dos sacramentos, sem a prática da disciplina, se tornam como tinta embelezando sepulcros (Mt 23.27). Viver o evangelho demanda coragem concedida pelo Espírito do Senhor (Is 11.2; 2Tm 1.7). Ensinar uns aos outros todas as coisas que o Senhor ordenou implica recorrer continuamente a Jesus, que está conosco todos os dias, até a consumação do século (Mt 28.20).

A cultura vigente tenta nos moldar segundo um padrão cada vez mais individualista. As igrejas são pressionadas a se tornarem meros centros de convivência que disponibilizam “alívio” psicológico aos seus membros. Não podemos ouvir o “canto da sereia”. Se queremos ser “uma família de discípulos de Jesus Cristo comprometida com a Bíblia”, temos de nos dispor a viver a disciplina cristã.

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