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GERSON BRITTO DE BARROS
A DIMENSÃO ESTÉTICA DA EXPERIÊNCIA DOCENTE: UM ESTUDO SOBRE A
CONTRIBUIÇÃO DA OBRA LITERÁRIA
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2014
GERSON BRITTO DE BARROS
A DIMENSÃO ESTÉTICA DA EXPERIÊNCIA DOCENTE: UM ESTUDO SOBRE A
CONTRIBUIÇÃO DA OBRA LITERÁRIA
Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação, Universidade Cidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Profa. Dra. Margaréte May Berkenbrock Rosito.
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2014
Sistema de Bibliotecas do Grupo Cruzeiro do Sul Educacional
B277d Barros, Gerson Britto de.
A dimensão estética da experiência docente: um estudo
sobre a contribuição da obra literária. / Gerson Britto de
Barros. São Paulo, 2014.
73 p.
Inclui bibliografia
Dissertação (Mestrado) ̶ Universidade Cidade de São
Paulo - Orientadora: Profa. Dra. Margaréte May Berkenbrock
Rosito.
1. Educação estética. 2. Experiências de aprendizagem. 3.
Formação docente. 4. Obras literárias. I. Rosito, Margaréte
May Berkenbrock, org. II. Título.
CDD 371.1
Banca Examinadora
________________________________________
________________________________________
________________________________________
Dedico este trabalho à minha mãe Aída, pelo
amor incondicional e por ter sempre acreditado em
mim em todos os momentos da minha vida.
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Margaréte May, orientadora deste trabalho, pela
contribuição e dedicação.
Aos Membros da Banca Examinadora, Prof. Dr. Julio Gomes de Almeida e
Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos pelas contribuições necessárias à finalização do
trabalho.
Aos professores do Programa Mestrado em Educação, da Universidade da
Cidade de São Paulo – UNICID: Profa. Dra. Ecleide Cunico Furlanetto, Profa. Dra.
Célia Maria Haas, Prof. Dr. Júlio Gomes de Almeida, Prof. Dr. Jair Militão da Silva e
Prof. Dr. Potiguara Acácio Pereira pela contribuição significativa na minha formação.
À Ingryd, companheira inseparável, pelo incentivo incondicional, generosidade
e pelas idas e vindas ao aeroporto durante todas as madrugadas.
À Andressa e André, pelo primeiro abraço, acolhimento, apoio e pelas várias
idas e vindas ao aeroporto.
Aos amigos Antônio e Mercione pela amizade e acolhimento em São Paulo.
Ao amigo Antônio Brito pela imensa generosidade durante as madrugadas no
aeroporto.
Aos meus irmãos Ana Cristina e Carlos André pelo incentivo.
À minha sobrinha Mayara, pelo incentivo, carinho e amor que me dedica.
À minha filha Amanda, pelo incentivo.
À minha tia Andréa, pelo amor de uma vida inteira.
Aos meus amigos do Mestrado, especialmente, Maria Luzimar, Humberto,
Benilda, Valéria, Rosiete, Rosangela e Verônica pela generosidade e solidariedade.
À amiga Tânia, pelo incentivo, generosidade e solidariedade de sempre.
À professora Cláudia Medeiros, pelo incentivo e acolhimento nos primeiros
passos.
Aos meus alunos, por todo carinho e incentivo recebidos.
“Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a
tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do
sonho. É com isso que enfrento essa dura e
fascinante tarefa de viver.”
Ariano Suassuna
RESUMO
Apresenta-se como objeto de estudo a dimensão estética da experiência docente, a partir da contribuição da obra literária. Estabelece-se, como problema, o sentido da dimensão estética da experiência docente na obra literária A Língua de Eulália: novela sociolinguística, de Marcos Bagno. O objetivo deste trabalho é compreender o sentido da dimensão estética nos processos pedagógicos presentes na obra literária. A hipótese é de que a obra literária é um ponto de partida para a construção da identidade da prática docente. Para a compreensão da obra literária à luz da dimensão estética adotamos a perspectiva da dimensão da Educação Estética, em Schiller, focalizando a compreensão do jogo lúdico entre o sensível e a razão. Recorre-se a Adorno nos aspectos relacionados aos parâmetros da estética da indústria cultural e de massificação da cultura. Adota-se Freire e a crítica à Educação Bancária. Aplica-se nos aspectos de teoria literária, Coutinho, Eagleton e Samuel. Recorre-se a Jauss com a Estética da Recepção e a Iser com a Teoria do Efeito. A reflexão é concretizada, a partir do objeto material A Língua de Eulália: novela sociolinguística, de Marcos Bagno. Utiliza-se a análise documental, na coleta de dados, que são analisados, compreendidos e interpretados por intermédio da compreensão filosófica, fundamentada no enfoque hermenêutico, na perspectiva de Gadamer e Ricouer. Assim, o estudo permitiu compreender que a obra literária, no gênero da novela sociolinguística, A Língua de Eulália, tem um papel significativo no processo formativo do professor na possibilidade de uma educação estética dentro dos pressupostos de humanização e emancipação, quando a narrativa proporciona uma reflexão sobre o feio e o belo de certos usos e da existência das variedades em nossa língua, é um ponto de partida para a construção da identidade da prática docente.
Palavras-Chave: Educação Estética. Obra Literária. Formação. Experiência Docente
ABSTRACT
This work presents as an object of study the aesthetic dimension of teaching experience, a study on the contribution of the literary work. It establishes as a problem, the meaning of the aesthetic dimension of teaching practice in the literary work A língua de Eulalia: novela sociolinguística, by Marcos Bagno. The objective of this work is to understand the meaning of the aesthetic dimension in the pedagogical processes present in literary work. The hypothesis is that the literary work is a starting point for the construction of the identity of teaching practice. For understanding the literary work in the light of aesthetic dimension we adopt the perspective of the size of Aesthetic Education, in Schiller, focusing on understanding the playful game between the sensible and the reason. We resort to Adorno in aspects related to the aesthetic parameters of the culture industry and mass culture. It adopts Freire and the criticism regarding Banking Education. It applies to issues of literary theory, Coutinho, Samuel and Eagleton. It resorts to Jauss with the Aesthetics of Reception and Iser with the Theory of the Effect. The reflection is realized, from the material object A língua de Eulalia: novela sociolinguística, by Marcos Bagno. It uses document analysis on data collection, which are analyzed, understood and interpreted through the philosophical understanding, based on the hermeneutic approach, on the perspective of Gadamer and Ricoeur. Thus, this study has allowed to understand that the literary work, sociolinguist novel style, A Língua de Eulália, has a significant role in the process of teachers formation in the context of the possibility of an esthetic education considering the assumptions of humanization and emancipation, when the narrative offers a reflexion about the ugly and the beauty in given contexts as well as the existence of variations in our language, it is a starting point to the identity construction in the teaching practice.
Keywords: Aesthetic Education. Literary work. Training. Teaching Practice
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CESMAC Centro Universitário CESMAC PNP Português não-padrão PP Português padrão TCC Trabalho de Conclusão de Curso
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1 EDUCAÇÃO ESTÉTICA E OBRA LITERÁRIA: VÍNCULOS INDISSOCIÁVEIS 14
1.1 Educação Estética: uma presença na contemporaneidade 14
1.2 Experiência Estética: um processo formativo decorrente da reflexão da literatura 22
1.3 Uma compreensão voltada à presença da arte na obra literária como fenômeno da Educação Estética 26
2 A DIMENSÃO ESTÉTICA NA EXPERIÊNCIA DOCENTE: UMA COMPREENSÃO DO PAPEL DA OBRA LITERÁRIA 31
2.1 A dimensão estética da Literatura: o reconhecimento da própria identidade 31
2.1.1 Gênero literário novela: em busca do sentido estético 34
2.2 A estética da diversidade: em busca do sentido da experiência docente 37
2.3 Experiência docente: a literatura como um elemento transformador do olhar docente 40
3 A ESTÉTICA DE EULÁLIA: UMA REFLEXÃO DA EXPERIÊNCIA DOCENTE A PARTIR DA OBRA 42
3.1 A estética da literatura: compreensão através de um enfoque hermenêutico 42
3.2 A estética da linguagem: uma compreensão do objeto de estudo 46
3.3 A estética da transparência: a possibilidade de ver-se através dos personagens 61
CONSIDERAÇÕES FINAIS 64
REFERÊNCIAS 67
10
INTRODUÇÃO
Este estudo tem como foco a compreensão da dimensão estética da
experiência docente, por meio da obra literária, nos processos formativos do curso
de Letras e Pedagogia. Elege-se a obra A Língua de Eulália: uma novela
sociolinguística, de Marcos Bagno, que traz uma discussão polêmica sobre o mito
da língua do português padrão (PP), praticado predominantemente na escrita, como
uma variante e, o português não-padrão (PNP), que contempla o conjunto de todas
as variantes, principalmente as orais. Constata-se, no cotidiano da sala de aula a
importância da obra literária na formação inicial de professores, pois o texto literário
promove uma discussão sobre a atuação do professor e seus processos formativos,
considerando sua função humanizadora.
A Literatura aproxima o sujeito com a sociedade e com o mundo pela
transfiguração do texto para o real, o que se configura na relação estabelecida entre
o objeto de leitura a sua função humanizadora no entrecruzar de discursos.
A motivação deste estudo é decorrente da experiência do pesquisador como
docente no ensino superior, com a disciplina Teoria da Literatura e Estágio
Supervisionado de Língua Portuguesa, no curso de Letras e, a disciplina: Saberes e
Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, no Curso de Pedagogia, da
Faculdade de Educação e Comunicação – CESMAC, localizado na cidade de
Maceió-Alagoas.
Havia percebido, no curso de Letras, na orientação do Trabalho de Conclusão
de Curso (TCC) intitulado “O Conto Machadiano: um olhar sobre a personagem
cartomante”, a possibilidade de compreensão da prática docente via literatura, uma
vez que a leitura da obra literária nos permite uma interação cotidiana com a
sociedade em que vivemos e com o mundo. Segundo Freire (2001), o homem com a
invenção de técnicas e instrumentos, integra-se a seu contexto, compreendendo o
mundo, intervindo nele e consequentemente aperfeiçoando-o. Na perspectiva de
Freire, a educação se afirma como aprendizagem de uma vivência fundamentada na
ética, na estética, na política, na ideologia, na moral e no poder.
Neste estudo, para se refletir sobre a importância da obra literária na
formação de professores, recorre-se à compreensão da dimensão estética. Por essa
11
razão, elege-se como problema: o sentido da dimensão estética da obra literária A
Língua de Eulália: uma novela sociolinguística, de Marcos Bagno, nos processos
formativos nos cursos de Letras e Pedagogia.
O estudo tem como eixo norteador as possibilidades e limites, no contexto da
obra literária no desenvolvimento da autonomia e emancipação do sujeito professor,
na formação inicial de professores, no curso de Letras e no curso de Pedagogia.
O objetivo deste trabalho é compreender o sentido da dimensão estética nos
processos formativos presente na obra literária, considerando-se que a Educação
Estética pode propiciar contextos formativos adequados para que os sujeitos
possam se fazer autônomos.
Estabelece-se a hipótese de que a obra literária é um ponto de partida para a
construção da identidade do docente, neste contexto de interação e construção, a
relação dialética entre o fazer e o pensar, aprimora a intervenção do sujeito na
sociedade, que ocorre via dimensão estética, levando-o à busca da identidade, nos
processos formativos, como possibilidade de libertação do professor bancário.
Para a compreensão da obra à luz da dimensão estética adotamos a
perspectiva da dimensão da Educação Estética, em Schiller, focalizando a
compreensão do jogo lúdico entre o sensível e a razão. Schiller considera a
educação como responsável pela condução do homem à beleza. Desta forma, a
Educação Estética pode permitir que o homem passe dos meros sentimentos vitais
para os sentimentos de beleza. Schiller vê, no desenvolvimento do impulso lúdico,
que gera a beleza, a possibilidade da humanidade ser mais sublime,
consequentemente, mais livre. (CAMINHA, 2008, p. 9)
Observa-se, neste estudo, aspectos relacionados aos parâmetros da estética
da indústria cultural, em Adorno, de massificação da cultura, e a crítica à Educação
Bancária, em Freire. Na compreensão de Adorno, por meio das categorias da
emancipação da massificação cultural e experiência formativa em que a arte produz
a possibilidade de uma experiência que tenha significação própria, livre das normas
ou regras que são impostas pela indústria cultural. A compreensão do sentido da
prática docente e a abordagem da caracterização da arte, fora dos parâmetros da
indústria cultural, instaura uma reflexão sobre a educação libertadora, cujo objetivo é
a humanização do indivíduo.
Adota-se o conceito de educação, na perspectiva de Freire, no rompimento de
uma Educação Bancária, que tem como base a mera transmissão de conteúdos, e o
12
processo de conscientização, compreendido, neste estudo, como processo entre
consciência estética, crítica, ideológica e epistemológica, visando apontar que a
ação educativa e formativa deve ser sempre um ato de recriação, de construção e
reconstrução de significados e em certas situações, de intervenção do sujeito sobre
a realidade da sala de aula. Freire (2010) diz que a primeira aproximação do
indivíduo com o mundo é por via da curiosidade estética, que seria o caminho da
curiosidade epistemológica na busca de tornar-se consciente sobre a relação do
individuo consigo e com o mundo.
Na perspectiva de Schiller, Adorno e Freire o desenvolvimento da autonomia
e a emancipação é possível caso haja um processo pedagógico que crie condições
para que os indivíduos, socialmente, libertem-se da concepção de educação
bancária.
Neste trabalho, uma oposição à Educação Bancária, compreende o
desenvolvimento da humanização, de uma maior atenção dos sujeitos, em relação à
manipulação estética inerente à indústria cultural. Esta humanização pode ser
oriunda da obra literária que releva o papel da experiência do sujeito-aluno,
possibilitando, dessa forma, a compreensão da situação existencial na qual o
indivíduo se insere.
Esta reflexão é concretizada, a partir do objeto material, a obra A Língua de
Eulália: uma novela sociolinguística. Portanto, utiliza-se a análise documental, na
coleta de dados, que são analisados, compreendidos e interpretados por intermédio
da compreensão filosófica, fundamentada no enfoque hermenêutico, na perspectiva
de Gadamer e a articulação com a narrativa de Ricoeur.
Através desse processo, uma reflexão crítica é instaurada, em um
determinado momento histórico. A compreensão ocorre, em um contexto, fazendo
com que a interpretação seja um conhecimento adquirido, por meio da linguagem,
analisando o dito e o não dito.
A Hermenêutica, na perspectiva de Gadamer, legitima a verdade a partir da
experiência da arte que amplia o espaço do pesquisador ao afirmar que na
interpretação de uma obra, há uma possibilidade considerável de resultar em um
novo significado para o texto. “Quando a obra passa de um contexto histórico para
outro, novos significados podem ser dela extraídos”. (EAGLETON, 2006, p. 98).
Para isso, leva-se em consideração a posição histórica do pesquisador e sua
capacidade de diálogo com o texto. Diante da sua posição histórica e colocando em
13
evidência as experiências anteriores, o pesquisador conquista seu espaço como
produtor de sentidos.
A dissertação é estruturada da seguinte maneira: o primeiro capítulo traz a
dimensão estética da educação vinculada à literatura, tendo como principal
referência o conceito apresentado por Schiller, Adorno e Freire. No âmbito da
Educação Estética, a formação compreendida pela obra literária visando à
transformação dos sujeitos, a partir do desenvolvimento da autonomia e
emancipação, inseridos num processo formativo.
O segundo capítulo tratará da dimensão estética na experiência docente,
compreendendo o papel da obra literária para o reconhecimento da própria
identidade, encarando a literatura como um elemento transformador do olhar do
docente.
O terceiro capítulo aborda a obra A Língua de Eulália: uma novela
sociolinguística, apresentando os personagens que promovem uma reflexão sobre
a língua padrão e não padrão, fragmentos da língua como possibilidade de
compreender o desenvolvimento e autonomia dos sujeitos via o enfoque
hermenêutico na perspectiva de Gadamer e de Ricoeur.
14
1 EDUCAÇÃO ESTÉTICA E OBRA LITERÁRIA: VÍNCULOS INDISSOCIÁVEIS
Através de Freire e sua concepção de educação libertadora e, em Adorno, a
estética da indústria cultural motivadora da massificação dos sujeitos, pretendemos
explorar mais a construção de sujeitos autônomos e emancipados. A visão de
Schiller, com a percepção do sensível e da razão, atrelados à tarefa educativa do
homem, como subsídio da sensibilidade, dos sentidos, dos sentimentos, também
contribui para compor este quadro teórico. Por fim, contamos com as contribuições
de Coutinho e a transfiguração do real pela arte literária.
1.1 Educação Estética: uma presença na contemporaneidade
As palavras Aisthétikos, aquilo que pode ser compreendido pelos sentidos, e
Aisthesis, percepção ou sensação, dão origem à estética. Desde a Grécia antiga, a
estética faz parte da humanidade se materializando na criação, nas manifestações
de fruição, de criação. Estabelece o despertar de interesses movidos pelos sentidos
ou sensações. (PERISSÉ, 2009, p. 9-10).
Alexander Baumgarten (2000), considerado o criador da palavra estética, com
base nos termos gregos, Aisthétikos, a faculdade de sentir, e Aisthesis, como
sensação, considera a estética como uma disciplina científica, doutrina do
conhecimento sensível observada na ciência da estética e na ciência da percepção.
Desta forma, se tenta levar a compreensão aquilo que é sentido de maneira
obscura, desconcertante e confusa que tem como forma de expressão o universo
artístico. Nesse contexto, Baumgarten esclarece que: “a Estética nos permitirá
aperfeiçoar nosso conhecimento da beleza, a arte de pensar a beleza e de pensar
belamente”. (BAUMGARTEN apud PERISSÉ, 2009, p. 11)
Perissé apresenta o objeto e a natureza da estética:
A Estética volta-se para a realidade como um todo, atenta ao belo ou ao que de algum modo manifesta beleza, harmonia, impacto ou grandeza: obras de arte, elementos da natureza, o corpo humano, objetos em geral. E o faz reflexivamente, filosoficamente, recolhendo e elaborando o que os sentidos em particular (a visão e a audição) nos transmitem de prazeroso. (PERISSÉ, 2009, p.24)
15
Na Crítica da Razão Pura, Kant (2008) faz a separação da ciência da arte e
consequentemente ocorre um distanciamento de Baumgarten. Segundo o autor, a
estética faz referência ao juízo estético ou juízo do gosto da arte e do belo, como
elementos passíveis de uma investigação ou especulação. Observa-se, a doutrina
da forma e conteúdo, no primeiro momento, do conhecimento que é sensível,
denomina-se de estética transcendental. A teoria kantiana faz uma definição do belo
como aquilo que apreende os sentidos diante da razão de ser o que é, efetivamente,
em si mesmo da arte.
Já Hegel (1993) apresenta como dificuldade sobre o estudo estética, que o
belo, seu objeto, não é de existência material e sim subjetiva, ligada à atividade
espiritual do indivíduo. Ampliando o histórico, Abbagnamo (2000) afirma:
Dissemos arte e belo porque as investigações em torno desses dois objetos coincidem ou, pelo menos, estão estreitamente mesclados na filosofia moderna e contemporânea. Isso não ocorria, porém, na filosofia antiga, em que as noções de arte e de belo eram consideradas diferentes reciprocamente independentes. A doutrina da arte era chamada pelos antigos com o nome de seu próprio objeto, poética, ou seja, arte produtiva, produtiva de imagens (Platão, so. 265ª; Aristóteles, Ret., I, 11, 1371 b 7), enquanto o belo (não incluído no número dos objetos produzíveis) não se incluía na poética e era considerado a parte. Assim para Platão, o belo é a manifestação evidente das Ideias (isto dos valores) sendo por isso, a via de acesso mais fácil e óbvia a tais valores (fed., 250e), ao passo que a arte é imitação das coisas sensíveis ou dos acontecimentos ou dos acontecimentos que se desenrolam no mundo sensível, constituindo, antes, recusa de ultrapassar a aparência sensível em direção à realidade e aos valores (Rep. X, 598c). Para Aristóteles, o belo consiste na ordem, na simetria, numa grandeza que se preste a ser facilmente abarcada pela visão em seu conjunto (Poet. 7, 1450b35 ss; MET, XIII 3, 1078 b 1), ao mesmo tempo que retoma e adota a teoria da arte como imitação, apesar de, com a noção de catarse, retirá-la daquela espécie de confinamento à esfera sensível a que fora condenada por Platão. A partir do século XVIII, as noções de arte e belo mostram-se vinculadas, como objetos de uma única investigação, esta conexão foi fruto do conceito de gosto, entendido como forma de discernir o belo, tanto dentro quanto fora da arte (1741). Kant estabelece uma identidade entre artístico e belo, ao afirmar que “a natureza é bela quando tem a aparência da arte” e que “a arte só pode ser chamada de bela quando nós, conquanto conscientes de que é arte, a consideramos como natureza. Finalmente, Schelling invertia a relação tradicional entre arte e natureza, fazendo da arte a 66 norma da natureza e não o contrário. (ABBAGNAMO, 2000, p. 365).
No início do século XX, temos a valorização das ciências exatas. Os
escritores, mais precisamente, Schiller, entendem que só a estética proporcionaria a
reconciliação entre a unidade do espírito e os sentidos, propiciando a formação por
meio de uma educação pelas artes de seres humanos. Observado isso, teríamos a
16
busca pela harmonia na sociedade, consequentemente, seria uma alternativa para
escapar do caos, da inversão de valores e da loucura. (MEDEIROS, 2005, p. 76).
Em Cartas sobre a Educação Estética do Homem, que Schiller escreveu de
1791 a 1793, no século XVIII, o autor fez questionamentos a respeito dos princípios
da Ciência Moderna. Nesta obra, conforme Habermas (1990), observa-se a primeira
interpretação e crítica global da perspectiva moderna feita mediante um registro
estético, de que a forma de pensar da modernidade tende a ignorar o sensível e
consolidar o racional.
A abordagem de Schiller reforça a questão sobre a natureza do homem,
aventando a possibilidade dele ir adiante da sua concepção natural, existência física
para um estado de concepção moral. Desta forma, a Educação Estética propicia o
que a cultura por vezes limita o surgimento de um homem moral e ideal.
Por ser um elemento de mediação, a estética, une o que é real e constitui
como forma de compreender o homem sensível e racional ao mesmo tempo, assim,
um jogo é estabelecido entre os elementos. A dualidade do homem em sua natureza
é reconhecida por Schiller como a racionalidade e a subjetividade. Há uma
manifestação das dimensões que têm a oposição como essência: a razão e o
sensível, o universo e o particular, a alma e o corpo, o tempo e a eternidade, a
pessoa e o Estado, o infinito e o finito, a forma e a matéria, o uno e o múltiplo. A
tensão é estabelecida pela relação entre aquilo que é oposto, entre partes, a estética
é o entremeio do impulso lúdico, tensão entre a razão, impulso formal e as
sensações, impulso sensível.
A razão é o que motiva o homem a ir em busca da justiça e da verdade de
acordo com Schiller. Motivação essa que o faz perseverar pela perfeição e na
superação de sua natureza selvagem. Afirma ainda a existência de dois impulsos: o
impulso formal e o impulso sensível.
No impulso formal encontramos a representação mental e da forma de
pensar, numa perspectiva racional, que objetiva a unidade e a permanência e
prioriza a não retenção da dureza por meio do conteúdo e da sensibilidade.
Na relação com o corpo, expressada pelos sentidos e atrelada a
temporalidade, temos o impulso sensível. O impulso, também denominado de vida,
está ligado ao instinto e à sensibilidade, favorece a forma encontrada na razão, para
que não haja uma simplificação de impressão sobre a realidade. A personalidade é
necessária para que não ocorra a transformação do instinto em fanatismo.
17
O Belo intermedeia o relacionamento entre o impulso formal e o impulso
sensível, condicionando ao impulso lúdico, que por sua vez é representação de
humanidade, “que sua forma fosse viva e sua vida, forma. Somente quando sua
forma vive em nossa sensibilidade e sua vida se forma em nosso entendimento o
homem é forma viva.” (SCHILLER, 2002, p. 77-78).
Nesse sentido, o autor apresenta uma proposta de relação entre a razão e a
sensibilidade. Entretanto a inconsciência de sentimentos, em alguns indivíduos,
remete a possibilidade negativa de identificação e separação. O processo de
desumanização, no qual padecemos, inviabiliza a proposta. Nesse contexto, só o
resgate efetivo do que é reprimido e com o uso da razão, facilitaria a condição de
usufruir de sua liberdade, espiritualidade e autonomia na sua plenitude.
Nas suas manifestações, a arte aponta para o caminho da realização do
homem, assim como, da transformação da natureza e esteio da liberdade humana.
Na linha de pensamento estabelecida por Schiller há o atrelamento dos conceitos
que tem como direção a Educação Estética, são eles, os conceitos de impulso
sensível, formal e lúdico. Essa base conceitual favorece à conquista do homem ideal
que tem consciência do domínio sobre a sua natureza selvagem e caminha no
sentido humano e ético. O desenvolvimento da plenitude do humano se dá na
harmonia, no alcance pedagógico e antropológico.
Através da estética, é possível compreender que, por meio da contemplação
do belo, é imprescindível a associação da razão com a sensibilidade para a
possibilidade de transformação da sociedade que passe a valorizar a vida no planeta
e não tão somente a vida humana.
Schiller ainda observa que urge a educação da faculdade do sentir e
consequentemente a Educação Estética do homem. Faz a proposição do belo como
algo imperativo, tendo leis próprias e forma objetiva, deixando de ser uma mera
apreciação que tem como base a experiência empírica. Sendo assim, a razão não é
a totalidade do pensamento schilleriano
mas o que há de irredutivelmente subjetivo em qualquer representação, seja ela sensível ou empírica, seja ela um conhecimento teórico ou até uma ideia moral da razão. O estético é, por conseguinte, o próprio sentimento de harmonia do espírito consigo mesmo quando as suas faculdades se relacionam entre si num livre , jogo este que, não estando sujeito a leis determinadas de caráter lógico ou moral, não é todavia totalmente anárquico e sem lei. (SANTOS, 1996, p. 213).
18
Para Santos (1996), a dimensão da Educação Estética é detectada na
constituição da humanidade, possibilitando um desenvolvimento harmônico e amplo
de todas as faculdades do sujeito. O autor evidencia ainda que Schiller tem como
prioridade a imaginação, a mediação e o senso comum estético.
Na perspectiva de Schiller, a extensão da dimensão da Educação Estética
nos processos pedagógicos, está marcada na união das potencialidades e
faculdades humanas e administra de forma harmônica o desenvolvimento desses
elementos. Considerada como próprio conteúdo e finalidade da educação, a
dimensão da Educação Estética perpassa o espaço em que transcorre o processo
educativo, os instrumentos, os objetos que formam o meio pedagógico atingem a
educação, no que se refere aos edifícios e ambientes de aprendizagem, aos meios
culturais e humanos e a sua predisposição urbana.
A tendência contemporânea se consolida como um lugar de manifestação da
cultura escrita, científica, epistemológica e digital. Nesse sentido, observa-se que
existe uma Educação Estética do olhar na contemporaneidade que se alimenta
da imagem. A imagem possui sua própria linguagem e, assim, constitui-se, um signo
que apresenta um conjunto significante/ significado. Nesse contexto, a imagem faz
parte da intenção de estabelecer a comunicação de sentimentos, emoções e
valores, produzindo sentido para a vida do sujeito. Traz, decerto, um aspecto
formativo que se traduz na maneira de refletir, refazer e na consolidação das suas
escolhas.
Os meios de comunicação de massa têm influência direta na linguagem. É
indubitável o poder de persuasão da indústria cultural na configuração de valores
estéticos que exercem funções importantes na vida social, educacional, política e
econômica.
O sujeito se rende a exigência do mercado como forma de inserção no
contexto contemporâneo social. Compreende-se Adorno na perspectiva do presente
como forma de posicionamento diante da sociedade, subvertendo a ordem vigente,
na tentativa de romper com o processo ideológico impositivo da indústria cultural. O
significado da palavra estética deve ser dissociado daquilo que é leve, delicado.
Estética deveria incorporar uma forma de viver no mundo, que aprofundasse a
compreensão do indivíduo sobre a vida e o outro, considerando as orientações, as
possibilidades e os limites do outro, observando o seu devido valor.
19
Na abordagem de Adorno (2004) encontramos a informação de que indústria
cultural conduz o homem a um estágio de semiformação. A semiformação é
constituída pela razão instrumental, que condiciona a educação do homem à
semicultura de massa. Nessa orientação, o sujeito restringe sua capacidade de
reflexão sobre a realidade.
Levando em consideração o padrão atual de sociedade, observamos uma
tendência significativa de inclinação ao que é bárbaro e seus indivíduos em franca
reprodução da opressão, notadamente, por meio da indústria cultural.
Encontramos em Adorno e Horkheimer (1985, p. 287), uma abordagem
conceitual de indústria cultural, no primeiro momento, discorrendo como cultura de
massa, da arte como forma de consumo e a partir dessa elaboração é configurada a
conceituação de indústria cultural. Nesse sentido Adorno (2004):
Se de um lado, a indústria cultural especula inegavelmente sobre o estado de consciência e de inconsciência de milhões de pessoas a que se dirige, por outro lado, as massas não são o elemento primário, mas um fator secundário, compreendido no calculo: um apêndice do mecanismo. O consumidor não é, como a indústria cultural gostaria de fazer acreditar, o soberano, o sujeito desta indústria cultural, mas antes o seu objeto. A palavra mass-media, que a indústria cultural cunhou para si, desloca o seu acento para o inofensivo. Aqui não se trata em primeiro lugar das massas, nem das técnicas de comunicação enquanto tais, mas do espírito que estas técnicas insuflam, a voz de seus senhores. A indústria cultural abusa na sua consideração para com as massas a fim de duplicar, consolidar e reforçar sua mentalidade pressuposta como imutável. Tudo que poderia servir para transformar esta mentalidade é por ela excluído. (ADORNO, 2004, p. 17)
Adorno (2004) ainda observa que a indústria cultural não tem como inspiração
as massas, e sim, a própria ideologia. Isso deve-se ao fato de que a ideologia só
teria existência, caso eximisse a adaptação das massas. O princípio da valorização
norteia os produtos culturais e o lucro representa a indústria cultural, que apesar
disso, mantém a sua natureza autônoma.
Novo na indústria cultural é, pelo contrário, o primado imediato e descoberto do efeito que ela calcula com precisão nos seus produtos mais típicos. Se é certo que a autonomia da obra de arte em estado puro raramente se afirmou e esteve sempre atravessada pela busca do efeito, pela indústria cultural esta é tendencialmente acantonada com ou sem a vontade consciente dos seus promotores. Que podem ser tanto órgãos executivos como detentores de poder. (ADORNO, 2004, p.17)
20
O autor esclarece também que o sistema que concentra a economia
proporciona a viabilização da indústria cultural, suas mercadorias culturais e aquilo
que deve ser consumido.
O que na indústria cultural se apresenta como progresso, o continuamente novo que ela exibe, continua sendo o revestimento de um sempre igual; em todos os lugares a verdade esconde um esqueleto que não mudou mais do que não mudou o próprio móvel do lucro, desde que este passou a dominar a cultura. A expressão "indústria", contudo, não deve ser tomada ao pé da letra: ela se refere à estandardização da própria coisa, por exemplo, à estandardização dos filmes western, familiares a todo frequentador de sala de cinema, e a racionalização das técnicas de divulgação; não ao processo de produção no sentido estrito. Se de fato no setor central da indústria cultural, o filme, sob muitos aspectos é um procedimento técnico, dada a generalizada divisão do trabalho, o amplo emprego de máquinas e a separação dos trabalhadores dos meios de produção - separação esta que se exprime no eterno conflito entre os artistas ocupados na indústria cultural e os detentores de poder decisório - não impede que se conservem formas individuais de produção. (ADORNO, 2004, p. 18)
Neste contexto, há evidências de desumanização no conteúdo da indústria
cultural, devido ao êxito da publicidade.
Ela vive por assim dizer como parasita de uma técnica extra artística, da técnica de produção de bens materiais, sem dar-se conta, do que a objetividade desta comporta para a forma intra artística, e além disso, para a lei formal da autonomia estética. Daí resulta o pastiche (Gemisch), essencial a fisionomia da indústria cultural, de streamlining, de solidez, e precisão fotográfica, de um lado, e de resíduos individualistas - atmosfera, romantismo confeccionado e racionalmente dosado - de outro. Se se assume a "aura" de Benjamim - a presença do não presente - como fator determinante da obra de arte tradicional, a indústria cultural é definida pelo fato de que ela não contrapõe ao princípio da aura um princípio diverso, mas conserva a aura, putrificada, como atmosfera nebulosa. (ADORNO, 2004, p. 18)
Adorno (2004) sublinha que a indústria cultural não deve ser subestimada, já
que possui grande importância para a formação da consciência crítica, contribui para
a necessidade de que ela seja levada a sério, de forma crítica e reflexiva.
O que se estabelece é um grande sistema em que as pessoas são constantemente enganadas em relação àquilo de que necessitam. Os produtos fornecidos pelos meios de comunicação de massa passam a idéia de que as necessidades que eles satisfazem são legítimas, próprias dos seres humanos como seres livres que podem exercer seu poder de escolha, quando, na verdade, todas as opções são sempre pensadas a partir de um princípio que torna todas as alternativas idênticas, pois todas acabam sendo meramente mais uma oportunidade de exercer o poder de compra (FREITAS, 2008, p.18).
21
A indústria cultural surgiu no Positivismo, movimento filosófico do início século
XIX, que se fundamentou na ciência e na técnica e os colocou em evidência. Nesta
perspectiva, Adorno apresenta um posicionamento contrário à valorização
exacerbada da ciência e a forma como o capital se apropriou da ciência e da
técnica, predispondo-os a um sistema de extrema opressão.
Evidencia-se em Freire (2001) que por meio da educação encontramos a
possibilidade do ser humano se reconhecer livre, ao conquistá-la, o sujeito
estabelece um estágio de consciência da realidade em que vive, qualificando-o para
contribuir na transformação do seu universo. A contribuição da educação para
“homens e mulheres traz a possibilidade de reconhecimento de cada um como
sujeito da própria história e não um instrumento de manifestação daquilo que é
imposto e evidenciado na educação bancária”. (FREIRE, 2001, p. 40).
A teoria de Freire tem como fundamento o princípio ético, na relação do “estar
no mundo” com o reconhecimento do outro no mundo. (FREIRE, 2001). Nesse
sentido, é observada a capacidade de relacionamento com as pessoas, com a
sociedade e com o sensível. A visão estética de Freire nos diz que:
o mover a ser ético é saber que, sendo a educação, por sua própria natureza, diretiva e política, eu devo, sem jamais negar meu sonho ou minha utopia aos educandos, respeitá-los. Defender com seriedade, rigorosamente, mas também apaixonadamente, uma tese, uma posição, uma preferência, estimulando e respeitando, ao mesmo tempo, ao discurso contrário, é a melhor forma de ensinar, de um lado, o direito de termos o dever de “brigar” por nossas ideias, por nossos sonhos e não apenas de aprender a sintaxe do verbo haver, do outro, o respeito mútuo. (FREIRE, 1997, p. 32)
A dimensão estética, no sentido citado por Freire, atua na mediação
pedagógica que tem como objetivo desenvolver a capacidade sensível e da razão,
assim como, o reconhecimento do poder da sensibilidade, da imaginação e o
significado da dimensão, que é traduzido na exibição da forma de maneira sensível,
materializada na liberdade de uma educação numa perspectiva intelectual e
racional.
22
1.2 Experiência Estética: um processo formativo decorrente da reflexão da
literatura
A experiência com a arte, mais especificamente com a obra literária, exerce
influência significativa e preponderante no estímulo para a construção do
conhecimento através da leitura.
Essa leitura recorda sensações que são reveladoras, que são acordadas de
uma forma repentina onde provoca sentimentos de entusiasmo, de desânimo, de
medo, susto, geradas pelo contato e experiência. Estimulando o ser à reflexão e à
transformação: “há um choque, a quebra da proteção consciente e anuncia-se o
processo de criação” (BENJAMIN, 1992, p. 47)
Essa reflexão, de certa forma, aponta para a dimensão estética na educação,
na formação dos sujeitos, em sala de aula, na relação que estabelecem com a obra
literária relegada, muitas vezes, em nome de uma educação prática, pronta para
usar. Perissé chama a nossa atenção para o seguinte:
A experiência estética nos faz perceber a variedade, a multiplicidade, a complexidade, as diferenças, as muitas verdades que nos rodeiam e solicitam a nossa atenção, gostemos ou não do que estamos vendo ou ouvindo, sempre nos ensina algo sobre a nossa humanidade. (PERISSÉ, 2009, p.90)
Na sala de aula, o uso da obra literária atua como estímulo de sentimentos, o
que se designa de elemento educador, emitindo ao professor a possibilidade de
experienciar, junto com o coletivo, a sua história. Com a atuação da literatura, em
sala, consegue-se adquirir uma relação mais fundamentada entre o ser e o mundo.
Para Ostetto:
A educação estética não se ensina em uma disciplina curricular. Perpassa toda a vida acadêmica e atravessa o cotidiano para além dos muros da universidade. Da mesma forma, a criação, a imaginação não se restringe ao campo artístico, mas é, sobretudo, no diálogo com a arte que poderemos aproximar opostos, tocar o universo do imponderável, onde o oculto do mistério se escondeu. (OSTETTO, 2006, p. 233)
O pressuposto de que uma disciplina representa uma relação de ensino e
aprendizagem, evidencia a experiência humana, no local do ato pedagógico,
colocando a interação como experiência particular e a experiência comum do que é
23
humano. Revela-se o conhecimento, como decorrente da própria experiência, o
sujeito testemunha a própria experiência no contexto humano e universal.
Na perspectiva de Freire, na sala de aula ou fora dela, a diversificação das
ações, nas manifestações expressadas através dos gestos, das atitudes, a forma de
caminhar no ambiente de aprendizagem, a organização dos conteúdos, fará a
composição da essência estética do ato do conhecimento. As ações tendem a ter
reflexos no alunado, de maior ou menor intensidade. Os alunos fazem a indicação
de uma prática educativa, que pode ser respeitada ou não, no comportamento do
professor, quando o docente na leva em consideração as identidades e diferenças
culturais. Esta seria a maneira ideal de “estar sendo com seus alunos”. (FREIRE,
2001, p. 32).
Sendo assim, para Freire, o professor torna-se artista quando, em sala,
propõe o debate, cria, interpreta, ensina e também aprende. O processo artístico se
consolida na promoção da interação com os alunos na relação quase simultânea do
conhecer, criar e recriar. Freire afirma o seguinte:
Eu penso que no momento em que você entra na sala de aula, no momento que você diz aos estudantes: Oi! Como vão vocês? Você inicia uma relação estética. Nós fazemos arte e política quando ajudamos na formação dos estudantes, sabendo disso ou não. Conhecer o que de fato fazemos nos ajudará a sermos melhores (FREIRE apud GADOTTI, 1996, p. 509).
Freire ainda expõe como aprendizado, na estética, princípios importantes,
como a abordagem do professor e do aluno, a postura de ambos, e o entendimento
adquirido entre as partes.
Quando se ensina e se educa, por meio da arte, torna-se imerso em uma
dimensão estética que produz desenvolvimento de capacidade humanizadora.
Dessa forma, a Educação Estética se traduz no entendimento do indivíduo, da forma
pela qual ele se compreende e se situa no mundo, assim, a atitude tanto do
professor, quanto do aluno torna-se imprescindível.
Segundo Maffesoli (1999), o termo experiência estética seria mais adequado
para a descrição do ambiente estético em que ocorre a aprendizagem, todos os
acontecimentos tem importância na construção desse universo, leia-se: os detalhes,
os fragmentos, as coisas mais elementares. Diante disso, temos a estética
(aisthesis), a sensação comum, que “parece ser o melhor meio de denominar o
24
‘consenso’ que se elabora aos nossos olhos, o dos sentimentos partilhados ou
sensações exacerbadas” (MAFFESOLI, 1999, p. 49).
A estética oportuniza um suporte epistemológico em que os sentimentos e as
emoções têm a função de mediadores de significados, sendo passíveis de
interpretação e construção do conhecimento, o contexto de criação e recriação é
produzido nas relações interpessoais e no ambiente escolar.
Ver não determina, essencialmente, conhecer e produzir conhecimento, e
sim, ver e fazer a tradução, já que a observação é encoberta pelo significado. “Para
pensar a criação é preciso contextualizá-la nas várias realidades que se sobrepõem
e se antepõem à cultura visual cotidiana, em sua esteticidade.” (DELEUZE, 1997,
p.53).
Na concepção de Vygostky (1999), é uma forma de conhecimento, o reagir
estético que tem relação com os sentimentos humanos presentes na formação
humana. A ação do docente é importante para o entendimento do aluno do discurso
proveniente da prática na clareza dos atos e reflexões. A forma de agir do professor
tem uma quantidade considerável de significados para o aluno, por conseguinte,
referência de construção no processo de aprendizagem de ética, moral e estética.
Já para Freire (1997), o conhecimento e a reflexão através de experiências
existenciais podem ocorrer, entre professor e aluno, por meio de um diálogo, em que
se estabelece formas de conhecimento e tradução. O autor também defende que por
meio de um interesse estético é possível obter uma consciência entre o sujeito e o
mundo.
O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que minimiza, que manda que "ele se ponha em seu lugar" ao mais tênue sinal de sua rebeldia legitima, tanto quanto o professor que se exige do cumprimento de seu dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. É neste sentido que o professor autoritário, que por isso mesmo afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto. (FREIRE, 1997, p. 35)
Neste sentido, é essencial salientar que em Freire o conhecimento decorre da
curiosidade estética e tem como destino à epistemologia. É por meio deste
conhecimento epistêmico que o indivíduo rompe com a alienação produzida pela
indústria cultural, pois a produção do conhecimento está vinculada à reflexão
25
filosófica. E para isto, é necessária uma autorreflexão, para que as produções de
novos conhecimentos possam sugerir um meio de emancipação do indivíduo nesta
sociedade que se deixa manipular pela indústria cultural.
Josso (2004) contribui para esta discussão através de sua abordagem de que
uma vivência é convertida em experiência quando ela é acrescida de valores sociais
e de reflexão. Desse modo, observa-se que existe uma diferença significativa entre
esses dois termos, ou seja, a experiência obtida se dá através da vivência, além de
ser preciso ter autoconhecimento e conhecer o mundo.
Na visão de Adorno, o mundo atual traz uma uniformização estética
caracterizada pela falta da experiência própria, de um conteúdo de valor, e com um
certo distanciamento do que foi vivido.
A respeito desta questão, Freire defende que “o homem deve estabelecer
relações com o mundo e, por um jogo de criação e re-criação a partir do mundo da
natureza, chegar e efetuar uma contribuição pessoal, uma obra cultural” (FREIRE,
2001, p. 108). Nesse trecho identifica-se uma conexão do homem, com o mundo,
consigo e consequentemente com o outro.
Em consonância, Benjamin diz que a experiência é a “fonte a que recorrem
todos os narradores” (BENJAMIN, 1992, p. 198). A experiência não é somente um
fato pessoal, como também o coletivo, sendo algo muito mais profundo por envolver
o ser-no-mundo e com-o-outro, envolvendo questões culturais, afetivas, espirituais,
relacionais, de aprendizagem, de vivências. Isto ocorre, porque sem a experiência é
impossível comunicá-la, expressá-la, transmiti-la.
Sendo assim, Freire assevera que:
A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que professor e os alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. O importante é que o professor e os alunos se assumam epistemologicamente curiosos. (FREIRE, 1997, p. 95).
Neste contexto, surge como forma de legitimar a docência no ensino superior,
a necessidade de atrelar conhecimento e pesquisa, como afirma Masseto:
No âmbito do conhecimento o ensino superior percebe a necessidade de se abrir para o diálogo com outras fontes de produção de conhecimento e de pesquisa, e os professores já se reconhecem como não mais os únicos detentores do saber a ser transmitidos, mas como um dos parceiros a quem
26
compete compartilhar seus conhecimentos com outros e mesmo aprender com outros, inclusive com seus próprios alunos. É um novo mundo, uma nova atitude, uma nova perspectiva na relação entre o professor e o aluno no ensino superior. (MASSETO, 2003, p.14).
Quando tocamos na questão do conhecimento, podemos contar com a
colaboração de Adorno (2000), que evidencia que existem dois problemas para
chegar a um resultado sobre o conhecimento: o Conhecimento da “Doxa” e da
“Episteme”. O problema social tem vinculação a um processo de formação do senso
comum (Doxa), já que a totalidade da formação do conhecimento é produto das
abordagens de jornais, da opinião pública que, geralmente, distorcem os fatos.
Nesse sentido, o processo de formação do conhecimento (episteme) só
aparece em grupos pequenos, aqueles que se libertam das amarras que o sistema
capitalista impõe. De acordo com a reflexão de Adorno, “a íntima vinculação entre a
questão educacional e formativa e a reflexão teórica, filosófica e política constitui a
manifestação mais direta do núcleo temático essencial ao conjunto da Escola de
Frankfurt.” (ADORNO, 2000. p. 14-15)
Deste modo, podemos compreender que o processo de experiência estética
traz a vivência da experiência formativa que é uma formação de base humanística.
Nela, o processo de desenvolvimento do sujeito se dá na aquisição de
conhecimentos científicos, humanos e artísticos. Esses conhecimentos decorrem da
estética e têm como direcionamento a epistemologia. No encaminhamento desse
processo, percebemos a viabilização do desenvolvimento da autonomia e da
emancipação.
1.3 Processos formativos: Uma compreensão voltada à presença da arte como
fenômeno da Educação Estética
A arte favorece o diálogo da sensibilidade com as coisas do mundo, é o fio
condutor da emancipação. Na perspectiva de Adorno, observamos duas
compreensões de arte: na primeira, arte é uma manifestação burguesa que
consequentemente reflete nas massas a dominação social; na segunda, é
considerada a ruptura com essa forma de dominação do sujeito por meio de um
processo emancipatório.
27
A arte contempla a possibilidade da recriação de uma realidade vivenciada,
projetada, assistida, notada. É acima de tudo, uma manifestação estética que surge
no e pelo particular até atingir o universal. A expressão artística, geralmente, reflete
a necessidade do ser humano de ampliar a visão sobre o mundo. O artista admite a
realidade como referência em um processo sensível e imaginativo e recorre ainda
aos meios e aos recursos técnicos que caracterizam a sua linguagem literária. Como
afirma Coutinho:
A Literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do artista e retransmitida através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor e da experiência de realidade de onde proveio. Os fatos que lhe deram às vezes origem perderam a realidade primitiva e adquiriram outra, graças à imaginação do artista. São agora fatos de outra natureza, diferentes dos fatos naturais objetivados pela ciência ou pela história ou pelo social. (COUTINHO, 2008, p.34).
Levando em consideração a reflexão acima, aponta-se arte do Teatro do
Oprimido de Boal, no qual é possível encontrar o espectador que torna-se ator e
coautor do texto. O texto não está pronto, possibilitando o processo de construção
dialética em um espaço estético. Há uma interação entre atores e espectadores, no
espaço estético, o cenário, proporcionando diante dos temas abordados a
elaboração do conhecimento histórico e cultural.
O espaço estético existe sempre e quando ocorre a separação entre os dois espaços: o do Ator e o do Espectador. Ou a dissociação de dois tempos: hoje, eu, aqui, e ontem, eu, aqui mesmo; ou, hoje e amanhã; ou, agora e antes; ou, agora e depois. Eu coincido sempre comigo mesmo no momento presente, pois o estou vivendo e o ato de vivê-lo é lembrar o passado ou imaginar o futuro. O Teatro (ou Tablado, na sua expressão mais simples; ou Espaço Estético, na sua expressão mais pura) serve para separar o Ator do Espectador, aquele que atua daquele que vê. Estes dois podem ser pessoas diferentes, ou podem coincidir na mesma pessoa. (BOAL, 2008, p. 33)
Ao escrever o ensaio A obra de Arte na era de sua reprodutibilidade,
Benjamin (1992) releva o deslocamento do status da obra de arte tradicional, com o
surgimento dos meios técnicos de reprodução. Encontramos nessa tecnologia: a
literatura, as fotografias, o cinema e o teatro que contribuem de maneira efetiva para
o afloramento do imaginário humano.
28
Gomes (2006) destaca, na leitura que faz obra de Benjamin, o entendimento
sobre a produção da obra de arte e a perda da aura da arte:
Benjamin define a característica de produção manual da obra de arte tradicional como um processo histórico único, inerente ao objecto original, que se manifesta nesse objecto como a sua “aura”. A proliferação subsequente de reproduções técnicas da obra de arte original só transporta uma similitude imaginária com o original, faltando-lhe a “aura” e consequentemente qualquer relação com a dimensão histórica real. (GOMES, 2006, p. 3)
A perda da aura, segundo Benjamin, diante da reprodutibilidade técnica, abre novas
possibilidades.
Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. [...] com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida. A chapa fotográfica, por exemplo, permite uma grande variedade de cópias; a questão da autenticidade das cópias não tem sentido. Mas, no momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à produção artística, toda função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política. (BENJAMIN, 1992, p. 172)
Com a nova era da tecnologia, identifica-se com nitidez que uma obra pode
se difundir e se modificar com facilidade e aptidão. Para Benjamin (1992), a arte está
cada vez mais disponível no meio social, por outro lado, essa facilidade de
reprodução ocasiona a falta de identidade, de peculiaridade e consequentemente a
aura da obra artística.
Conforme Schiller (2002), baseado em três princípios que dialogam com a
arte, o sensível, o formal e o lúdico, a Educação Estética exprime um cuidado com o
que passa emoção e com a razão. O autor dá ênfase ao que é lúdico, que dá
estabilidade, considerado o mais atuante, responsável pela reestruturação do
indivíduo, na sua forma pensante.
Na obra Teoria estética (1970), Adorno coloca como possibilidade aproveitar
uma parte da autonomia da arte, que, geralmente, é utilizada pela dominação
burguesa. A arte se apresentaria, meramente, como uma representação da
banalidade, transitória e massificada. Afirma ainda que:
A arte é o refúgio do comportamento mimético. Nela, o sujeito expõe-se, em graus mutáveis de sua autonomia, ao seu outro, dele separado e, no entanto, não inteiramente separado. A sua recusa das práticas mágicas,
29
dos seus antepassados, implica participação na racionalidade. Que ela, algo de mimético, seja possível no seio da racionalidade e se sirva dos seus meios, é uma reação à má irracionalidade do mundo racional enquanto administrado. Pois o objetivo de toda a racionalidade, da totalidade dos meios que dominam a natureza, seria o que já não é meio, por conseguinte, algo de não-racional. Precisamente, esta irracionalidade oculta e nega a sociedade capitalista e, em contrapartida, a arte representa a verdade numa dupla acepção: conserva a imagem do seu objetivo obstruída pela racionalidade e convence o estado de coisas existente de sua irracionalidade, da sua absurdidade. (ADORNO, 1970, p. 68).
Na abordagem de Gadamer (2007), a interpretação da obra tem como base
três esferas tradicionais: o acontecer na obra de arte, o acontecer na história e o
acontecer na linguagem. Como afirma:
a linguagem da arte é uma linguagem exigente e interpeladora. A arte não se oferece livre e indeterminada à interpretação que vem da disposição de ânimo, mas nos interpela com significados bem determinados. E o que há de maravilhoso e misterioso na arte é que essa interpretação determinada não representa um grilhão para nosso ânimo, mas justamente abre o espaço de jogo da liberdade lúdica de nossa capacidade de conhecimento (GADAMER, 2007, p. 94).
A visão de Nietzsche (2003) a respeito desta questão é que o fato de viver, de
existir tem relação direta com a estética, nesse caso, para ele, o que se extrai da
teoria científica não faz conexão com a existência. Para o autor, criação é tudo
aquilo ligado à arte e tem seus aspectos ligados à natureza humana. Esses
aspectos são denominados de apolíneo, que provém do deus Apolo e dionisíaco de
Dionísio.
A arte vem pura e transparente, tem o dom de transformar, individualmente e
coletivamente a sociedade, atuando no meio em que vivemos com as questões
sociais, sem estabelecer regra, modelo, que seria um “espaço aberto ao sensível e a
sensibilidade que nutre da força do arrebatamento da fascinação.” (MEDEIROS,
2005, p. 78)
Educar esteticamente é criar, representar, deixar a imaginação impulsionar
tudo aquilo que vem da afetividade, pensamentos, ideias, reflexões, que constituem
em valores éticos na formação de um caráter individual e coletivo. “que saiba
conjugar paixão (ideais arraigados na afetividade), pensamento (raciocínio,
argumentação) e imaginação (metáforas, histórias), somando-lhes convicções
éticas” (PERISSÉ, 2009, p 80).
30
Dessa forma, nota-se que o valor estético imprime uma corrente de
significados ao indivíduo, a forma de criar, de se relacionar, de reflexão são
caminhos para uma análise de consciência ética e política, pois é no confronto das
ideias que se compreende sobre o Eu e o Outro.
A escola, que tenha como inspiração a estética da sensibilidade, terá como
planejamento o espaço e tempo para o acolhimento, favorecerá a diversidade e
oportunizará a socialização de significados. Nesse ambiente de aprendizagem, a
desmotivação cederá lugar ao que é contínuo, estimulante, expressivo, superando o
que é fragmentado. Assim, “a Literatura como Arte, encarna por excelência
qualidades de sentimentos”. (CUNHA, 2009, p. 53).
O processo formativo que considera as dimensões do lúdico e da imaginação
como referência a propagação da criatividade, tende a se consolidar no ato de
formar e de formar-se. A arte, objeto da Educação Estética, apresenta um diálogo
que forma e transforma, à medida que traz a consciência dos aspectos que
constituem a identidade e subjetividade pessoal e coletiva.
31
2 A DIMENSÃO ESTÉTICA NA EXPERIÊNCIA DOCENTE: UMA COMPREENSÃO
DO PAPEL DA OBRA LITERÁRIA
Neste capítulo, o objetivo é compreender a experiência docente na
instauração de procedimentos pedagógicos em sua tridimensionalidade: ensinar,
aprender e formar, e promover uma reflexão acerca da experiência pedagógica
aliada a ideia da obra literária como possibilidade de compreensão da prática
pedagógica, ampliando a dimensão crítico-reflexiva e a percepção da maneira como
é materializada no cotidiano de cada docente.
2.1 A dimensão estética da Linguagem, da Literatura: o reconhecimento da
própria identidade
A Língua, segundo a definição de Èmile Benveniste (2008, p.21) é um caso
particular de um fenômeno geral, a linguagem. Nesta perspectiva, compreende-se
como a manifestação psíquica da linguagem, lugar onde imagens acústicas se
associam a conceitos existentes na consciência de todos os membros de um grupo
linguístico. Desta forma, não há razão para se falar em hereditariedade, no que
concerne a mesma, ela é, tão somente, adquirida pelo processo cultural de
aprendizagem, acumulada e transmitida socialmente. Para esclarecer bem esta
questão, convém destacar o que diz Saussure, considerado o “pai” da Linguística
Moderna:
Langue é o próprio sistema de signos, isto é, o conjunto de todas as regras: fonológicas, morfológicas, sintáticas e semânticas, que determinam o emprego dos sons, das formas e relações sintáticas, necessárias para a produção dos significados.(SAUSSURE,1972,p.56).
Nessa visão, a língua é compreendida como sistema de signos (Saussure,
1972, p. 56) e conceitos, transmitidos desde o ingresso do indivíduo no meio
cultural, fazendo com que todas as vozes, presentes neste mesmo grupo linguístico,
sejam ouvidas e compreendidas, numa interação social, que atende aos propósitos
da comunicação.
Neste viés, a linguagem ocorre sempre no âmbito de uma língua, isto é,
dentro de uma estrutura linguística definida e particular, inseparável de um contexto
cultural específico, particular, de uma comunidade linguística.
32
Sendo assim, Saussure (1972, p. 58) afirma que a “linguagem é a capacidade
que o homem tem de comunicar-se com seus semelhantes através de signos
verbais, abrangendo fatores físicos, fisiológicos e psíquicos”. É possível então
compreender que a linguagem é qualquer sistema organizado de signos-verbais e
não-verbais utilizados pelos indivíduos para a expressão de pensamentos,
sentimentos, emoções, experiências ou para a transmissão de informações, cuja
principal característica são os sinais que se relacionam de maneira organizada.
A literatura como linguagem se manifesta de duas formas: a poesia e a prosa.
Impor limites na contemporaneidade fica cada vez mais difícil, já que, com certa
frequência, encontramos na prosa características que por muito tempo foram
exclusivas da poesia. Mesmo assim, é admissível particularizar cada uma das
manifestações.
Almeida diz:
A literatura, como experiência estética, portanto no âmbito da sensibilidade e das sensações, fornece-nos a possibilidade de dialogar com os modos de existência projetados no mundo do texto. A literatura propicia, dessa forma, mais que uma experiência acabada, já que está permanentemente aberta a um processo de (re) criação constante, sempre que alguém se põe a ler. E é nesse processo que reside o seu aspecto formativo: preenche de vida nossa própria vida, dialoga com essa trajetória existencial, é o centro referencial ao qual nos reportamos para sairmos do nada e penetrarmos no reino dos sentidos. (ALMEIDA, 2011, p. 127).
A palavra poesia é proveniente do grego poíesis, “ação de fazer, de criar
algo”, na elaboração de um poema, utiliza-se, predominantemente, as palavras no
sentido conotativo, assim como, a sonoridade desses vocábulos. A poesia
originalmente era cantada ou declamada. Desse modo, compreende-se a sua
construção rítmica.
A palavra prosa é oriunda da expressão latina oratione prosa, que significa
“discurso livre, em linha reta”. A prosa apresenta uma forma de elaboração em que o
uso da palavra em sentido conotativo é limitado, predomina a denotação.
Essencialmente é elaborada com uma uniformidade lógica decorrente da
organização do discurso.
A literatura é acompanhada historicamente pela teoria dos gêneros literários
que é vista como um instrumento que facilita o estudo e a análise dos textos
literários e conceitualmente como auxiliar no julgamento estético de uma obra.
Aragão afirma:
33
O que se entende por gêneros literários pode ser resumido, se levarmos em conta a própria etimologia do vocábulo “gênero”, oriundo do latim genus-eris, que significa tempo de nascimento, classe, espécie, geração. Deste modo, toda obra literária se origina de uma determinada época e de uma determinada cultura, isto é, é gerada num certo tempo e num certo espaço, filiando-se a uma determinada classe ou espécie ou inaugurando um novo horizonte através de um conjunto próprio de regras. (ARAGÃO, 2002, p.64).
A tradição literária considera a existência de três gêneros literários: o lírico, o
épico e o dramático. Na contemporaneidade, observa-se a incorporação das
manifestações épicas ao gênero narrativo. Como abordagem adotaremos os
gêneros lírico, narrativo e dramático.
No gênero lírico, observa-se a expressão dos sentimentos, por meio de um
eu-lírico que aparece no texto e não deve ser confundido com o poeta. Incorpora
temas amorosos, filosóficos e sociais. Apresenta-se da seguinte forma:
• Soneto ˗ É um poema de forma fixa constituído de 14 versos, na poesia de língua
portuguesa esses versos são distribuídos em dois quartetos (estrofes de 4 versos) e
dois tercetos (estrofes de 3 versos);
• Canção ˗ Evidencia a relação entre a poesia e a música, ou seja, toda composição
poética destinada ao canto;
• Elegia ˗ Geralmente expõe o luto e a tristeza. Apresenta um texto moralizante
destinado a minimizar momentos difíceis (morte da pessoa amada ou de um amigo);
• Ode ˗ Significa “canto”. Composição lírica de exaltação sobre temas variados;
• Écloga ˗ Poema pastoril geralmente dialogado.
Já o gênero narrativo se apresenta fundamentalmente nas manifestações
literárias que mostram o desenvolvimento de uma ação no transcorrer do tempo e
um determinado espaço através do deslocamento de personagens. Esses
elementos aparecem por meio de um narrador, que elege um ponto de vista.
Nesse gênero, encontram-se a epopeia e as manifestações da prosa de
ficção. Destacamos o romance, a novela, o conto e a crônica.
O romance é uma narrativa em que é observado um detalhado
desenvolvimento da ação e dos personagens. Os elementos da narrativa se
apresentam analisados de maneira minuciosa. O gênero tem na sua estrutura uma
quantidade significativa de detalhes e pormenores que tem por finalidade a
construção de um texto coerente e organizado.
34
O conto é uma narrativa predominantemente mais breve, tem como
característica a concentração no essencial: o desenvolvimento da ação e dos
personagens, ficando assim, esses elementos limitados no tempo e no espaço.
A crônica é um gênero que se apropria de fatos do cotidiano. Está
intimamente ligada, na contemporaneidade, ao jornalismo literário e se utiliza dos
mais variados recursos da narrativa, como o narrador em primeira ou terceira
pessoa, em um tom bastante intimista, além de expressões do cotidiano.
O gênero dramático concentra-se na sua principal característica, a ação, que
se desenvolve diante do público. Escrito essencialmente para ser dramatizado e
apresenta-se sem um narrador ou um eu lírico. As principais manifestações são: a
tragédia, a comédia e o drama.
A tragédia é uma manifestação dramática que tem origem no século V a.c .no
mundo grego e apresenta uma linguagem, geralmente, com um certo
rebuscamento.Tende a provocar uma reflexão sobre a existência humana.
Na comédia é comum a sátira do cotidiano de grupos sociais com uma
finalidade moralizante, apresentando-os em momentos que divergem do
convencional, motivo do riso.
O drama é o resultado da fusão de elementos da tragédia e da comédia,
unindo ações de heroísmo e atitudes elevadas com ações que provocam o riso.
2.1.1 Gênero literário novela: em busca do sentido estético
Na novela o que realmente importa é o encadeamento dos episódios rumo a
um final, que chamamos de clímax. Segundo Soares:
É a forma narrativa intermediária, em extensão, entre o conto e o romance. Sendo mais reduzida que o romance, tem todos os elementos estruturadores deste, em número menor. Por esse sentido de economia constrói-se um enredo unilinear, faz-se predominar a ação sobre análises e as descrições e são selecionados os momentos de crise, aqueles que impulsionam rapidamente a diegese para o final. Note-se que clímax e desfecho coincidem na novela autenticamente estruturada. (SOARES, 2007, p. 55).
Nessa perspectiva, Moisés (2005) destaca que a novela apresenta em sua
estrutura as seguintes características: pluralidade dramática, já que a novela expõe
vários enredos que ao longo da narrativa estabelecem conexões entre si. A
35
sucessividade, pois o enredo é desenvolvido sequencialmente, contudo em
determinados momentos da narrativa alguns recursos que quebrem essa
sucessividade de acontecimentos podem ser empregados, como o flashback, por
exemplo. Sendo assim, o tempo do gênero literário novela pode ser considerado
histórico, por considerar a cronologia dos fatos.
Vale ainda ressaltar que na novela espaço e tempo são indissociáveis, pois a
pluralidade dramática definirá a pluralidade espacial, porque, de acordo com as
ações, os personagens são consecutivamente deslocados para diferentes ambientes
na narrativa. Com relação aos personagens é interessante notar que na novela, não
há limites de personagens e o autor pode incluir ou retirar personagens ao longo da
trama, considerando este um importante recurso para o fio da narrativa.
A linguagem da novela apresenta a tendência à clareza e objetividade,
podendo alterar-se de acordo com o contexto histórico em que se passa a narrativa.
Observando o enredo da novela, pode-se afirmar que a narração segue um ritmo
mais acelerado do que o utilizado em um conto ou romance, até porque são as
ações que norteiam a narrativa. Por essa razão, a novela é um gênero tão
conveniente à teledramatização ou radiodramatização. Ainda é necessário
considerar o foco narrativo, pois a linearidade da novela depende de um narrador
onisciente, que tenha acesso a todos os aspectos da narrativa, inclusive questões
psicológicas de suas personagens.
Contando com a colaboração de Gancho (1991) é importante salientar que:
A novela é um romance mais curto, isto é, tem um número menor de personagens, conflitos e espaços, ou os tem em igual número ao romance, com a diferença de que a ação no tempo é mais veloz na novela. Difere em muito da novela de TV, a qual tem uma série de casos (intrigas) paralelos e uma infinidade de momentos de clímax. Um exemplo de novela seria Max e os felinos, de Moacyr Scliar, na qual o personagem central, Max, vive muitas aventuras. A passagem do tempo é muito rápida, tornando a leitura agradável. (GANCHO, 1991, p. 3).
A dimensão estética concretiza-se na leitura mais efetiva do texto, momento
que leva a refletir diante do seu conhecimento de mundo e seu espaço de interação
com tema abordado. Almeida diz que:
Não há espaço ou tempo na escola para que o educando abra um livro, ouça a voz do autor, dialogue com a narrativa. A experiência estética, quando resgatado o sentido etimológico do termo – aisthesis: percepção, sensação -, nos ensina que a literatura não é um exercício do intelecto mas de sensibilidade.(ALMEIDA, 2011, p. 129).
36
A abordagem da dimensão estética da recepção de Jauss (1979) tem como
fundamentação teórica o relativismo histórico e cultural, estabelecendo uma
discussão em que a experiência estética emancipa ao contemplar algumas
atividades essências. Segundo Jauss, são elas: a poíesis, a aisthesis e a katharsis.
• A poíesis (momento da produção): compreende o prazer do leitor ao sentir-se
coautor da obra literária;
• A aisthesis (momento de recepção): o prazer estético advindo de uma nova
percepção da realidade, proporcionada pelo conhecimento adquirido por meio da
criação literária;
• A katharsis (comunicação): o prazer proveniente da recepção e que ocasiona, tanto
a liberação, quanto a transformação das convicções do leitor, mobilizando-o para
novas maneiras de pensar e agir sobre o mundo.
As sete teses desenvolvidas por Jauss (1979) em sua teoria a respeito da
Estética da Recepção. A primeira tese é a relação dialógica entre texto e leitor: um
texto nunca é monológico ou atemporal, pois sempre ocorrerá a atualização no ato
da leitura.
Na segunda tese, o autor comenta sobre “o saber prévio”. A obra literária não
se apresenta exatamente o que está como novidade absoluta, ela se reporta ao já
conhecido. Uma obra constitui eco de outras e isso despertará no leitor expectativas
determinando uma postura emocional.
Há a referência, na terceira tese, à reconstituição do horizonte de expectativa:
o que determina como a obra foi recebida pelo público leitor. As expectativas podem
ser: satisfeitas, frustradas, ou rompidas. Jauss (1979) ainda elucida que a reação do
público estabelecerá o valor da obra literária.
A quarta tese aborda a relação dialógica do texto, relacionado a diferença de
compreensão que a obra promoveu na época em que surgiu, e no momento
presente de sua leitura. A reconstituição do horizonte de expectativa dá-se a partir
da lógica de pergunta e resposta que é o mecanismo da hermenêutica,
demonstrando como se dá as analises vistas em épocas distintas.
Na quinta tese, Jauss (1979) discute a leitura de um texto literário sob o
enfoque diacrônico, conhecido como a linha do tempo.
A sexta tese compreende a obra literária sob o enfoque sincrônico que
engloba o momento de cada época, tendo um entendimento de leitura. Para este
37
autor é do encontro entre o corte diacrônico e sincrônico que se verificará a
historicidade da literatura. A importância da obra pode ser definida por meio das
diversas compreensões por leituras em fases diferentes, podendo em determinado
período, ser mais valorizado que em outros.
O caráter emancipatório da obra literária é o assunto da sétima tese de Jauss
(1979), que apresenta uma nova realidade, rompendo os horizontes de expectativa
do leitor, tendo a possibilidade de formar um leitor crítico e, desta forma, desenvolver
novos caminhos para diversas ações futuras.
Temos ainda, as impressões sobre a Teoria do Efeito de Iser, como próprio
nome diz, tem como finalidade analisar os efeitos da obra literária no leitor, através
da leitura. Tende a privilegiar a experiência da leitura de textos literários como forma
de colocar em elevação a consciência de maneira ativa, dando realce ao papel da
leitura na investigação. Segundo Iser (1996) o leitor não é capaz de apreender um
texto num só momento, mas em fases sucessivas da leitura.
Jauss e Iser observam a ideia de que o texto só existe a partir da atuação do
leitor. Para Jauss, o texto está ligado ao momento histórico – a história literária. Para
Iser, o texto se apresenta numa estrutura de apelo que colabora para o efeito e
consequente reação do leitor em relação à obra literária.
2.2 A estética da diversidade: em busca do sentido da experiência docente
Como Adorno sugere uma educação crítica dos fatos que a indústria cultural
manipula, levando a uma crise de informações, pois, muitos dos fatos passados são
transmitidos de maneira superficial ou retomados, de acordo com sua aparência. Por
isso, produzir conhecimento é de suma importância para que o sujeito tenha uma
apropriação concreta da própria realidade.
Na perspectiva de Freire, a compreensão da situação do sujeito, se dá na
percepção existencial da pessoa humana, na realidade concreta com a qual o sujeito
se depara para o confronto com o seu cotidiano, o do oprimido.
No rompimento com alguns elementos de sua prática, o professor, passa a
assumir um estágio de formação, assume-se como sujeito também da produção do
saber. Nesse sentido, Freire segue o raciocínio, “ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção”.
38
(1997, p. 25). Na observação das ações de produzir e construir é que temos o início
da experiência formativa, através da curiosidade do docente e do discente.
Freire (1997, p. 25) ainda esclarece que o verbo ensinar “é um verbo
transitivo relativo. Verbo que pede um objeto direto – alguma coisa – e um objeto
indireto – a alguém”. Sendo assim, evidencia-se que a questão da formação se
concentra no sujeito e no objeto, portanto temos a dialética da experiência.
Nessa relação, Freire e Adorno têm como convergência a ideia da formação
(Kurt) no sentido ético e estético. Pensando em educação contemporânea, é
importante fazer relação entre as dimensões ética e estética, como possibilidade de
construção do saber, por meio da experiência que forma sujeitos críticos.
Freire (1997) ressalta estes saberes deixando como legado algo significativo
para a práxis escolar. O sujeito-professor só tem a formação consolidada, quando se
apropriar de novos saberes na condição de aprendiz. O professor ao ensinar o
saber, deve processar, interpretar, reinventar, recriar e transformar em novos
conhecimentos, favorecendo a um olhar e horizonte críticos.
Na leitura de Freire (1997, 2001), observa-se que para que haja construção
desses saberes, temos que viabilizar propostas educacionais efetivas que
evidenciem uma educação ampla, substanciada, crítica, que tragam dinâmica às
potencialidades e favoreçam a aceitação dos professores.
Dessa forma, a pedagogia libertadora, que é precursora de uma nova visão
de mundo, supera as questões fragmentadas e tecnicistas do ensino, aspectos
constituintes da educação bancária. Na visão de Freire é fazer com que as relações
entre o corpo docente e discente possam ser discutidas, levando assim, por meio da
discussão, a levantar questões para dar respostas aos problemas que atingem os
valores, aspectos da práxis pedagógica na educação básica.
A compreensão da relação professor e aluno no sentido da educação
libertadora é fundamentada em Cunha (1992) da seguinte maneira, “o
relacionamento entre educador e educando não se fixa pelas intenções ou palavras,
mas pelas estruturas de exercício do diálogo, da comunicação, da tomada e
execução de decisões. (CUNHA, 1992, p. 22).
Freire e Adorno convergem quando apontam o distanciamento da educação
do seu objetivo essencial: a promoção do domínio pleno do conhecimento e da
capacidade de refletir. Nesse sentido, o objetivo seria o de proporcionar ao educador
e ao educando experiências, na sua formação (Bildung), novos saberes, dando a
39
possibilidade de recriar e reinventar os conhecimentos partindo da necessidade de
interpretação do mundo.
Na perspectiva de Josso (2004), apresenta uma proposta de abordagem de
formação na perspectiva do paradigma experiencial ao evidenciar a visão de que a
experiência é única e pessoal:
Falar das próprias experiências formadoras é, pois, de certa maneira, contar sobre si mesmo a própria história, as suas qualidades pessoais e socioculturais, o valor que se atribui ao que é "vivido" na continuidade temporal do nosso ser psicossomático. [...] é também um modo de dizermos que, neste continum temporal, algumas vivências têm uma intensidade particular que se impõe à nossa consciência e delas extrairemos as informações úteis às nossas transações conosco próprios e/ou com o nosso ambiente humano e natural. (JOSSO, 2004, p. 47)
Para Josso (2004), é importante frisar que toda experiência se dá por meio de
uma vivência, isso quer dizer que o sujeito escolhe uma vivência na qual ele perceba
que haja algum sentido, que traga um aprendizado, isto é, escolhe-se uma fonte de
aprendizagem que ofereça instrumentos para a formação para a vida.
A autora ainda considera que existe uma distinção entre vivência e
experiência. Todos apresentam uma vivência, a experiência só é consolidada
quando da reflexão sobre a vivência, transformada, assim, em experiência. Há uma
sistematização do que é vivenciado que se desdobra em critérios para nomear o que
se aprendeu com a experiência.
a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da acção, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2004, p. 57)
O processo de construção da educação pode ser evidenciado como algo que
proporcione uma visão humanizante. Considerando-se que a força ideológica exerce
um poder de massificação do sujeito, que o impede de compreender a vivência e a
experiência, como ações de recriação e ressignificação, por meio da narrativa
literária. Neste sentido, vale destacar que a adequação estética representa se
libertar dessa ideologia.
40
2.3 Experiência docente: a literatura como um elemento transformador do
olhar docente
O texto literário contribui para o avanço do conhecimento sobre os processos
pedagógicos, na formação do professor, por trazer à discussão aspectos da
realidade de uma maneira ressignificada, no universo literário. Torna-se um meio
importante para autoformação, o contexto da sala de aula poderá ser suscitado
através de um texto que revele a realidade específica. Consoante, Vigotsky (2004)
assevera que através da literatura temos acesso a novos modos de significação.
Nesta mesma linha, Almeida (2011), reportando-se à Freire, defende que “o
ato de ler se dá em continuidade à leitura de mundo” (ALMEIDA, 2011, p. 132).
Deste modo, a leitura deve ser vista como um ato, uma prática, uma ação que
suscita um diálogo entre o leitor, a palavra escrita e o mundo que o rodeia. Vale
então ressaltar a importância das obras literárias por conseguirem causar
sensações, propor diálogos que possam contribuir para uma maior compreensão do
mundo.
Considerando o exposto, a formação de docentes suscita a necessidade da
inserção da leitura da obra literária. Nesse sentido, Barthes (2000), afirma que
Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. (BARTHES, 2000, p. 38).
Sendo assim, Costa (2000) defende que:
Ler textos – ser leitor – também é apropriar-se de um conjunto de capacidades linguísticas e psicológicas (cognitivas e metacognitivas) que, além de relacionar símbolos escritos a unidades de som, é, principalmente, um processo de construir sentidos e relações ({inter}textualidade) e de interpretar textos diversos, dialogicamente, no sentido bakhtiniano, adentrando o dizer do outro. (COSTA, 2000, p: 68)
Na ponta da discussão está a experiência docente, o cotidiano da sala de
aula favorece a algumas reflexões sobre a atuação do professor e sua formação.
Oportunizar e discutir uma concepção de professor como prático reflexivo, pois
segundo Abreu (2006):
41
Atualmente, a literatura sobre formação de professores, ao realçar a necessidade da formação de um profissional reflexivo capaz de refletir na ação e sobre a ação, termina, também, por dar destaque aos processos de formação que partam da análise de situações da prática profissional do docente. Assim, a forma interativo-reflexivo, ou seja, as propostas de formação centradas na solução de problemas da prática, é destacada, na literatura, como aquela capaz de melhor preparar o docente para o enfrentamento de situações futuras, por torná-lo mais consciente a respeito do seu trabalho, dos princípios, pressupostos e valores subjacentes às suas rotinas e seus hábitos. (ABREU, 2006, p. 49)
Este contexto leva-nos a rejeitar uma abordagem que venha de cima para
baixo das reformas educacionais, na qual o professor se resume a aplicar,
passivamente, planos articulados por outros atores sociais. Desta forma, possibilita-
se também que o professor não seja um mero reprodutor de conhecimentos, e sim,
um sujeito capaz de buscar soluções para as dificuldades do cotidiano, da sala de
aula, no processo de construção de conhecimento.
Nesse sentido, “um grande passo é ao tratar os professores como sujeitos,
reconhecer que estes não estão buscando respostas fáceis ou receitas prontas, mas
estão desejando ser desafiados intelectualmente e reconhecidos pelo que sabem e
fazem”. (ZEICHNER, apud VALADARES, 2002, p. 198).
A experiência formativa, na perspectiva de Adorno, como foco para se pensar
a formação de professores, por meio da obra literária, aponta para a possibilidade de
compreensão da dimensão estética na experiência formativa, para Adorno,
relaciona-se com a razão e a verdade. Neste movimento, nega-se a razão para
afirmá-la, dando assim um novo olhar para a realidade.
42
3 A ESTÉTICA DE EULÁLIA: UMA REFLEXÃO DA EXPERIÊNCIA DOCENTE A
PARTIR DA OBRA
Lê-se para entender o mundo, para viver melhor.
Marisa Lajolo
Neste capítulo o objetivo é explicitar o encontro com A Língua de Eulália:
uma novela sociolinguística e as indagações pertinentes ao tema: o mito da língua
única e o reflexo na sala de aula. Será abordado ainda, o que justifica o estudo do
tema, por meio dos elementos da narrativa e a relação com a possibilidade de
compreensão do desenvolvimento e autonomia dos sujeitos via enfoque
hermenêutico de Gadamer e da identidade narrativa de Ricoeur. Além de
compreender o desenvolvimento da autonomia e da emancipação, pelo viés da
estética e a apropriação da obra literária, na construção de um olhar estético à
formação de professores, com a possibilidade de intervenção dos sujeitos.
3.1 A estética da literatura: compreensão através de um enfoque hermenêutico
Apresentados os gêneros em poesia e prosa, retomaremos a abordagem da
prosa, especificamente dos elementos da narrativa que servirão como base na
construção teórica do objeto material da pesquisa, a obra A Língua de Eulália:
novela sociolinguística, de Marcos Bagno.
São elementos da narrativa na chamada prosa de ficção: o enredo, as
personagens, o espaço, o tempo, o narrador e o ponto de vista. A função de cada
elemento estrutura a narrativa e proporciona a construção do conhecimento sobre
variação linguística na obra de Bagno.
O contato do graduando com a obra literária de Bagno oportuniza a reflexão
sobre a língua, ao mesmo tempo que estrutura e fundamenta a formação nos cursos
de Letras e Pedagogia. O texto literário “cria uma realidade extra, uma prótese do
real que nos serve para melhor enxergar o real”. (SANTOS, 2008, p. 16).
A tradição no ensino da Língua Portuguesa privilegia o domínio da norma
padrão e de seus aspectos gramaticais. Entende-se como tradicional, o estudo da
língua baseado no domínio da metalinguagem técnica que supera o seu uso,
dedicando-se, estritamente, ao estudo das nomenclaturas, da análise sintática, da
43
análise morfológica e abordagem significativa de categorias gramaticais. No entanto,
a escola se apresenta como um lugar propício para o encontro das pluralidades do
discurso. Parte dessa pluralidade encontramos na novela de Bagno e chamamos de
variedades linguísticas. “A literatura assume muitos saberes”. (BARTHES, 2000,
p.18)
Há a investigação dos sentidos e dos significados, contidos no texto. Tal
processo envolve o pesquisador, faz com que haja a superação dos pré-conceitos,
conduzindo-o à compreensão do contexto pedagógico em que vive, possibilitando-
lhe o alcance de novos horizontes. Aliado a esse processo temos o sentido
hermenêutico de Gadamer que perpassa o universo da arte, da história e da
linguagem. Tendo como referência a discussão de que o método científico não é a
única maneira de se chegar a uma descoberta. Como afirma:
O sentido de um texto ultrapassa o seu autor não apenas ocasionalmente, mas sempre. Por isso, a compreensão não é apenas um comportamento reprodutivo, mas sempre também um comportamento produtivo. Compreende-se de modo diferente, quando se compreende efetivamente (GADAMER, 2007, p. 301).
O universo da Educação Estética e da Hermenêutica na construção do
sentido temático consubstancia a amplitude da discussão e aprofunda a
investigação sobre a dimensão estética na prática docente.
A compreensão da obra literária - o texto - tem, como propósito, analisar, em
que medida, as questões da massificação imposta pela indústria cultural interferem
na formação e influenciam a referência de prática docente que os discentes têm.
A hermenêutica na perspectiva de Gadamer fundamenta a compreensão por
meio do conceito de círculo de compreensão, que tem com base o pensamento de
Heidegger. Observa-se a interpretação levando em conta o rompimento com os
preconceitos e pré-compreensões, que o pesquisador (intérprete), apresenta ao
encontrar o seu objeto de estudo. O texto narrativo tem os seus sentidos e
significados desvelados, é evidenciado um novo olhar, para que no momento
seguinte seja estabelecida uma nova compreensão.
O círculo de Gadamer proporciona uma reprojeção constante, já que tem
início com conceitos já elaborados, que com o transcorrer do processo são
ressignificados por outras formas de compreensão. Significa que o círculo não é
hermético, mas sim dinâmico de constante interação com o sujeito.
44
Em outras palavras, a existência de diversos horizontes possibilita a variação
dos métodos, na busca de alcançar a experiência da verdade. O pesquisador que
tem horizontes múltiplos pode ter uma ascensão universal, o que possibilita alcançar
novos horizontes.
A primeira interpretação do pesquisador apresenta uma tendência natural de
seguir os conceitos preexistentes do sujeito. É a partir dessa realidade que o
intérprete se atenta para a compreensão por meio do contexto, faz daquilo que
interpretou uma possibilidade de um novo conhecimento, por via da linguagem e da
natureza. É necessário que esteja atento e respeite a alteridade do texto e do
contexto produzido, já que “compreender e interpretar textos não é um expediente
reservado apenas à ciência, mas pertence claramente ao todo da experiência do
homem no mundo” (GADAMER, 2007, p. 29).
Temos, ainda, o olhar de Ricouer sobre a identidade narrativa, aquela
identidade que é desenvolvida pelo ser humano a partir da narrativa, que também
pode ser colocada na perspectiva da Educação Estética. O autor defende uma nova
forma de observar a hermenêutica: o texto como caminho para o interior humano,
por meio da interpretação. Como diz:
Aquilo de que finalmente me aproprio é uma proposição de mundo. Esta proposição não se encontra atrás do texto, como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é compreender- se diante do texto. (RICOEUR, 2008, p. 68).
No ato da leitura e da interpretação de um texto, coloca-se em evidência a
nossa experiência de mundo em diálogo com a experiência de mundo oportunizada
pela obra. Com isso, amplia-se a vivência proporcionando o aprimoramento da
nossa visão da realidade. Para Ricoeur (2008), a obra literária só tem sentido
quando lida e colocada em confronto com o mundo do leitor. Desta forma, não é
uma simples leitura, pois nos encontramos nela.
O pensamento de Ricouer tem como proposta de fundamentação daquilo que
todo ser humano apresenta em si, dois tipos de identidade: idem e ipse, que
segundo o autor apresentam significado semelhante: o mesmo. No entanto,
a primeira representa tudo aquilo que permanece na vida das pessoas, que as identifica e faz com que sejam elas mesmas a vida toda. A segunda representa aquilo que muda, as características que são essenciais, mas que
45
são variáveis, e nisso inclui o crescimento pessoal e o desenvolvimento da identidade. (BERKENBROCK-ROSITO; TREZZI, 2010, p. 40)
Nesse sentido, a leitura é apresentada como círculo hermenêutico,
estabelecendo a seguinte divisão: a compreensão do texto, a interpretação do texto
a apropriação do texto pelo leitor. Por conseguinte, na leitura temos três fases: no
primeiro momento, compreendemos o que lemos, na sequência, fazemos a
interpretação do que lemos e, por fim, temos a apropriação do que lemos. Essas
fases ocorrem de forma simultânea, possibilitando a nossa própria leitura, a
condução da identidade e da realidade cotidiana. Ricouer (2000) nos esclarece que:
O conhecimento de si próprio é uma interpretação, - a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada, esta última serve-se tanto da história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes homens em que se mistura a história e a ficção. (RICOEUR, 2000, p. 2)
No primeiro momento, compreender é inicialmente uma suposição. De posse
da obra literária, temos a formulação de uma ideia sobre ela, o título e a capa
sugerem o tema. Quando efetivamente lermos o texto, consolidaremos ou não a
suposição. Em A língua de Eulália: novela sociolinguística, provavelmente, o
aluno de Letras ou Pedagogia, no primeiro contato com o texto, terá como primeira
impressão sobre a obra que ela pertence ao gênero novela, logo literário, e tem
como tema a linguística, mais especificamente, o mito da língua única.
No segundo momento, a interpretação, para isso,a obra tem que dialogar com
leitor para que ele possa além de compreender,também, interpretar o que foi lido. É
necessário um entrecruzar de discursos entre narrador e leitor. Na interpretação de
uma obra, logo após a sua compreensão, faz-se relação com a nossa vivência e
com as apresentadas pelo texto. Estabelece-se relação com o universo do texto,
evidenciado pela sua composição, e o nosso mundo, amplia-se a nossa visão e
enriquece a nossa identidade. De acordo com Almeida (2011), “Nessa perspectiva,
interpretar não é entender o que o texto diz, mas dizer com o texto, extrair dele
sentidos que não são, e nem podem ser, cristalizados, paralisados, estabilizados”
(ALMEIDA, 2011, p. 132),
O possível autoconhecimento e conhecimento de mundo propiciado pela
literatura ocorre, de acordo com o pensamento ricoeuriano, no terceiro momento da
46
leitura, o da apropriação. Nele há uma recontextualização da obra,nesse momento,
o leitor passa a si expor para dela receber novos conhecimentos e por conseguinte,
ampliar a percepção da realidade que o cerca. Segundo Cristófano:
Ler e interpretar uma obra literária dá oportunidade, a abertura de um mundo único, singular pronto para interagir com o mundo do leitor. Para Ricouer, o confronto dos vários mundos com o mundo do leitor, a obra literária ganha a verdadeira significação da realidade da vida do leitor. Através do real e da ficção, o leitor projeta-se na narrativa que, segundo Ricoeur, é a resposta de uma transcendência imanente ao texto, que só se concretiza mediante o ato da leitura. Dessa forma, o leitor se lê no texto e não apenas o lê. (CRISTÓFANO, 2009, p. 9)
Compreender, interpretar e se apropriar da obra literária são ações que
cumprem o círculo hermenêutico ricoeuriano ao mesmo tempo em que temos a
identidade ampliada e efetivamente em diálogo com o contexto em que estamos
inseridos.
3.2 A estética da linguagem: uma compreensão do objeto de estudo
A obra literária de Marcos Bagno, uma novela sociolinguística deflagra a
reflexão nas aulas nos cursos de Letras e Pedagogia. Na obra de Marcos Bagno,
está bastante presente a crítica sobre o mito da língua única, que está baseado no
preconceito social. Promover a reflexão acerca desta obra pode possibilitar uma
significativa modificação no conceito de ensino do português padrão (PP).
O próprio autor assevera que o “português não é um bloco compacto, sólido e
firme, mas sim um conjunto de ‘coisas’ aparentadas entre si, mas com algumas
diferenças. Essas ‘coisas’ são chamadas variedades”. (BAGNO, 2013, p. 19). Neste
sentido, o Português Padrão é uma variante, praticado predominantemente na
escrita, já o português não-padrão (PNP), por sua vez, contempla o conjunto de
todas as variantes, principalmente as orais. Neste sentido, Bagno afirma que:
Faz algum tempo que venho me dedicando ao estudo do preconceito linguístico na sociedade brasileira. A principal conclusão que tirei dessa investigação é que, simplesmente, o preconceito linguístico não existe. O que existe, de fato, é um profundo e entranhado preconceito social. Se discriminar alguém por ser negro, índio, pobre, nordestino, mulher, deficiente físico, homossexual, etc. Já começa a ser considerado “publicamente inaceitável” (o que não significa que essas discrim inações tenham deixado de existir) e “politicamente incorreto” (lembrando que o discurso do “politicamente correto” é quase sempre pura hipocrisia), fazer
47
essa mesma discriminação no modo de falar da pessoa é algo que passa com muita “naturalidade”, e a acusação de “falar tudo errado”, “atropelar a gramática” ou “não saber português” pode ser proferida por gente de todos os espectros ideológicos, desde o conservador mais empedernido até o revolucionário mais radical. Por que será que é assim? (BAGNO, 2003, p.15).
Na sala de aula dos cursos de Letras e Pedagogia, o ponto de partida teve
como provocação a seguinte pergunta: O brasileiro sabe falar português? As
respostas em sua maioria diziam que: “o brasileiro não sabe falar português, já que
não domina a gramática normativa”.
A partir dessa afirmação surge outra pergunta: Quer dizer que o falante,
aquele que nunca esteve em uma sala de aula, não consegue se comunicar? As
respostas confirmam que o falante consegue se comunicar, embora a comunicação
se faz entre erros de concordância e de pronúncia.
A pergunta seguinte: “A língua escrita deve ser usada como “camisa de força”
para impor e aprisionar a língua falada?” As respostas, entre outras, foram
predominantemente: “Se a língua padrão é encontrada na gramática, devemos sim
impor, pois seria a única forma de padronizar”. A resposta contrária a esse
posicionamento: “Não, a língua falada nasceu bem antes da língua escrita, e que
essa, é uma tentativa de representação da língua falada”. A partir dessas respostas
iniciamos a discussão sobre o preconceito linguístico, intimamente ligado ao mito da
língua única presente na obra de Bagno.
Com base nesta novela sociolinguística, inicia-se uma desconstrução do mito
da língua única, provocando nos alunos uma percepção da beleza das variedades
linguísticas presentes na língua portuguesa no Brasil, o que pode nos remeter a
outra obra de Marcos Bagno, Preconceito linguístico: o que é e como se faz, em
que ele desconstrói alguns mitos sobre a Língua Portuguesa, tão repetidos e
disseminados pela sociedade e pela escola. Apresentaremos aqui os que mais
estabelecem um diálogo com a obra analisada.
O primeiro mito abordado na obra é o de que “a língua portuguesa falada no
Brasil apresenta uma unidade surpreendente”, já que o português falado no Brasil
apresenta muita diversidade e variabilidade, não só devido à extensão territorial
como também pelas diferenças de status social, que gera um abismo linguístico
entre os falantes, já que poucos teriam acesso à norma culta. Este mito pode ser
bastante perigoso, segundo Bagno (1999), pois desconsidera uma realidade e não
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reconhece os problema de comunicação existente entre os falantes, o que
impossibilita o planejamento de políticas de ação junto à população marginalizada.
Em seguida, Bagno (1999) apresenta o segundo mito de que o “brasileiro não
sabe português / só em Portugal se fala bem português”, deixando claro que a razão
deste pode estar até presente na questão da raça “pura” europeia, como se no
Brasil, fossem todos misturados, componentes de uma raça inferior, conceito há
muito destruído pela ciência. O autor ainda destaca que o português falado no Brasil
a cada dia se distancia mais do falado em Portugal, constituindo até mesmo uma
gramática própria, o que o faz preferir o termo “português brasileiro”. Várias
diferenças do sistema pronominal são apresentadas para demonstrar que as duas
línguas encontram sua intersecção apenas na língua escrita formal. Por fim, ele
aponta os considerados “pecados” contra a gramática normativa também cometidos
pelos portugueses, destacando que a língua é algo vivo, em constante
transformação.
“Português é muito difícil” é o terceiro mito questionado, principalmente com o
argumento de que a língua que se ensina na escola não corresponde, em boa parte,
à língua que realmente se usa. O autor aponta várias regras que conseguem ser
utilizadas e compreendidas sem estudo, através da interação com o outro falante.
Em contrapartida, apresenta vários exemplos que demonstram certa inconsistência,
como na regência verbal do verbo assistir. Conforme o autor, este mito auxiliaria
ainda mais para afastar a população da língua.
O quarto mito relaciona-se com este, pois afirma que “as pessoas sem
instrução falam tudo errado”, pois qualquer manifestação linguística que fuja àquele
padrão imposto passa a ser vista como feia e errada, principalmente quando
proferida pela população, deixando de compreender os fenômenos de evolução da
língua, observados e expostos em vários momentos. Um exemplo apresentado é o
fenômeno fonético da palatalização:
Para mostrar que a fala nordestina nada tem de “engraçada” ou “ridícula”, vamos fazer uma pequena comparação. Na pronúncia normal do Sudeste, a consoante que escrevemos T é pronunciada [tš] (como em tcheco) toda vez que é seguida de um [i]. Esse fenômeno fonético se chama palatalização. Por causa dele, nós, sudestinos, pronunciamos [tšitšia] a palavra escrita TITIA. E todo mundo acha isso perfeitamente normal, ninguém tem vontade de rir quando um carioca, mineiro ou capixaba fala assim. Quando, porém, um falante do Sudeste ouve um falante da zona rural nordestina pronunciar a palavra escrita OITO como [oytšu], ele acha isso “muito engraçado”, “ridículo” ou “errado”. Ora, do ponto de vista meramente linguístico, o
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fenômeno é o mesmo — palatalização —, só que o elemento provocador dessa palatalização, o [y], está antes do [t] e não depois dele. Então, se o fenômeno é o mesmo, por que na boca de um ele é “normal” e na boca de outro ele é “engraçado”, “feio” ou “errado”? Porque o que está em jogo aqui não é a língua, mas a pessoa que fala essa língua e a região geográfica onde essa pessoa vive. Se o Nordeste é “atrasado”, “pobre”, “subdesenvolvido” ou (na melhor das hipóteses) “pitoresco”, então, “naturalmente”, as pessoas que lá nasceram e a língua que elas falam também devem ser consideradas assim... (BAGNO, 1999, 45)
A fim de demonstrar a preocupação de não continuar disseminando este
preconceito, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) sugerem que a linguagem
seja vista como um elemento de comunicação e não uma manifestação de
preconceito ou discriminação. Dessa forma, não se deve impor ao aluno a
aprendizagem apenas da língua padrão ou culta como instrumento de produção oral
e escrita, pois o meio linguístico do falante deve ser respeitado, já que seu
conhecimento e expressão antecedem o contato com a escola.
Retomando a obra em análise, A Língua de Eulália: uma novela
sociolinguística, o enredo pode ser visto como produto da ação dos personagens
“o enredo, também chamado trama ou intriga, só adquire existência através do
discurso narrativo, isto é, do modo especial com que se organizam os
acontecimentos”. (SOARES, 2007, p. 43).
Na obra, as personagens Vera, Sílvia e Emília chegam à casa de Irene, uma
linguista renomada e professora universitária aposentada. As três visitantes, assim
como Irene, são professoras das séries iniciais de um mesmo colégio em São Paulo,
porém, estudantes de cursos diferentes, Vera – Letras, Sílvia – Psicologia e Emília –
Pedagogia. As estudantes reunidas com Irene, após o almoço, criticam o modo de
falar de Eulália, analfabeta, que trabalha com Irene. Observa-se um questionamento
da professora com relação ao preconceito no uso da língua que varia conforme as
diferenças de gênero, classe social e etnia.
A personagem Irene faz uma exposição sobre o mito da língua única que
percorre todo o Brasil, como algo que não corresponde a uma realidade, já que no
Brasil são falados mais de duzentos tipos de dialetos, a língua varia. A professora
faz uma comparação entre os usos do português no Brasil e em Portugal, no
nordeste e no sul do país, da variação do gênero feminino e masculino, que cada
falante constitui uma língua própria, personalizada. Observa ainda que além de uma
variação geográfica, a língua sofre mutação no transcorrer do tempo e que seu uso
se dá de maneira variada no espaço.
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A norma padrão, ou seja, o “modelo idealizado de língua” seria utilizada por
jornalistas, escritores, professores e pessoas cultas, reafirmando a importância de
ser aprendida na escola. Neste contexto, a norma padrão acaba sendo detentora de
prestígio social, contudo, a professora defende que não deve ser utilizada como
instrumento de discriminação e que se o mesmo investimento fosse aplicado às
outras variedades, decerto se tornariam igualmente importantes à norma padrão.
A linguista, prosseguindo com suas convicções, afirma que ao estabelecer
uma norma em uma língua, as outras variedades passam a ser consideradas
impróprias. Nesse sentido, volta-se ao Brasil, quando cita o processo de colonização
que teve início do norte para o sul, refletindo assim o preconceito que há com as
variedades e do falar caipira. Irene aponta as diferenças entre o português padrão
(PP) que é a variedade falada pelas classes sociais privilegiadas, seguimento
restrito da nossa sociedade, e o português não-padrão (PNP), maioria dos falantes,
marginalizados socialmente.
Vera, Sílvia e Emília focalizam a discussão sobre a fala de Eulália, dentro do
português não-padrão. Irene revela que Eulália foi alfabetizada quando tinha,
aproximadamente, quarenta anos, resguardando que mesmo que tenha sido
alfabetizada no português padrão, ela continua empregando o não-padrão, que se
constitui como sua língua materna. A professora explicita que, a partir do
conhecimento do português não-padrão (PNP), temos a identificação da dificuldade
que o aluno tem em aprender a norma padrão.
Algumas intervenções ainda são feitas pela linguista sobre as variedades do
português. Essas variações são fonéticas (em relação ao som), lexicais (sobre o
vocabulário), semânticas (sobre o sentido das palavras) e ao uso da língua, que
varia de acordo com a situação e a condição sociocultural do falante. Observa ainda
que existem diferenças geográficas, já que a língua portuguesa abrange uma
quantidade significativa de falantes pelo mundo. Irene informa ainda que existe uma
chamada norma-padrão, um conjunto de regras que regem a língua, utilizada por
uma camada da sociedade dotada de prestígio social. As formas diferentes são
consideradas erradas. A linguista ressalta ainda que o português padrão (PP) e o
português não-padrão (PNP) nunca entrarão em consenso, sempre haverá um
distanciamento entre a tendência conservadora do PP e a inovadora do PNP.
Na obra temos como personagens: Vera e Sílvia com 21 anos e Emília de 19
anos, estudantes de Letras, Psicologia e Pedagogia, respectivamente; Irene,
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professora aposentada, linguista e tem paixão sobre as variedades do português;
Eulália, empregada de Irene, que tem seu modo próprio e regional de falar e Ângelo
filho de Eulália. Infante nos diz que:
Os personagens de uma narrativa são seres fictícios, criaturas de papel e tinta moldadas pelo escritor por meio da organização de traços recolhidos da realidade e trabalhados pela imaginação. Inseridos num mundo construído que segue uma coerência interna, os personagens subordinam-se a ela, agindo e reagindo de acordo com regras de funcionamento desse universo possível. Sua movimentação é que determina o andamento da ação: o enredo existe por meio dos personagens, que nele ganham vida. (INFANTE, 2001, p. 61).
Temos como espaço da narrativa, o sítio de Irene, na cidade de Atibaia, em
São Paulo. É também o local de origem da personagem Eulália, numa tentativa clara
de observação da variação geográfica que é discutida no enredo da obra. Moisés
afirma
O espaço constitui outro ingrediente em que deve atentar o analista da ficção. Como se sabe, uma narrativa pode passar-se na cidade ou no campo, mas depende de seu caráter linear ou vertical a maior ou menor importância assumida pelo cenário. Na verdade, a frequência e a intensidade e densidade com o que lugar geográfico se impõe no conjunto de uma obra ficcional está em função de suas outras características. E a tarefa do analista consistirá especialmente em lhes conhecer a interação e a razão de ser. (MOISÉS, 2005, p. 107).
O tempo é apresentado de forma cronológica, os fatos ocorrem de acordo
com a ordem dos acontecimentos. Como no trecho: “Depois do almoço, que foi
mesmo uma grande festa, Ângelo voltou ao trabalho e Eulália foi dormir sua sesta
habitual da tarde”. (BAGNO, 2013, p. 13). Em outro trecho: “No serão seguinte, para
surpresa de suas três hóspedes, Irene traz para a ‘escolinha’ um aparelho de som
portátil e uma fita-cassete.” (BAGNO, 2013, p. 48). Temos ainda outra demonstração
desta ordem cronológica assumida na narrativa: “No dia seguinte, de manhã cedo,
Eulália transmite um convite de Ângelo para que todas vão jantar na casa dele hoje.”
(BAGNO, 2013, p. 94). Neste sentido, cronológico, segundo Gancho:
É o nome que se dá ao tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, isto é, do começo para o final. Está, portanto, ligado ao enredo linear (que não altera a ordem que os fatos ocorreram); chama-se cronológico porque é mensurável em horas, dias, meses, anos, séculos. (GANCHO, 1991, p. 12).
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Com relação ao ponto de vista, ou foco narrativo, na novela é o da terceira
pessoa do discurso com um narrador observador, o que pode ser demonstrado em
vários trechos, contudo, podemos observar bem no trecho a seguir
À noite, como ficou combinado, reúnem-se todas na sala grande da lareira, devidamente acesa. Diante do fogo há um largo tapete felpudo sobre o qual foram espalhadas algumas almofadas grandes e macias. No centro, uma mesinha baixa com um bule de chá, outro de chocolate, canecas de louça branca, um prato com biscoitinhos, outro com um apetitoso bolo inglês. Irene remexe algumas folhas de papel que trouxe de seu quarto de estudos. Vera serve-se de chá, enquanto Sílvia molha um biscoitinho no chocolate quente. Emília está ocupada em proteger seus pés com as meias grossas de lã que Irene lhe emprestou. Faz muito frio, mas a sala está bem aquecida e aconchegante. — Não vi mais a Eulália hoje — comenta Vera. — Ela foi para a casa do Ângelo — explica Irene. — Os netos estão de férias. Ela foi babar em cima deles e estragá-los como cabe e convém a uma boa avó. Deve dormir por lá. (BAGNO, 2013, p. 17).
A importância do narrador é apresentada por Gancho (1991), pois o autor
esclarece que:
Não existe narrativa sem narrador, pois ele é o elemento estruturador da história. Dois são os termos mais usados pelos manuais de análise literária, para designar a função do narrador na história: foco narrativo e ponto de vista (do narrador ou da narração). Tanto um quanto outro referem-se à posição ou perspectiva do narrador frente aos fatos narra dos. Assim, teríamos dois tipos de narrador, identificados à primeira vista pelo pronome pessoal usado na narração: primeira ou terceira pessoa (do singular).(GANCHO, 1991, p. 15).
A abordagem dos elementos da narrativa é necessária para encaminhar o
olhar para a função de cada personagem no contexto da novela sociolinguística. A
criação de personagens que discutem entre si as questões teóricas foi uma
alternativa significativa para que o texto perdesse o aspecto de leitura cansativa,
eventualmente encontrado em obras teóricas.
Levaremos em consideração os mitos abordados na obra: O preconceito
linguístico: o que é, como se faz, de Bagno, citada anteriormente que evidencia os
questionamentos feitos em sala de aula pelos alunos dos cursos de Letras e
Pedagogia. Em A língua de Eulália: novela sociolinguística, temos os
desvelamentos dos mitos por meio das personagens presentes na obra, além da
presença do aspecto de folhetim ao final de cada episódio, quando o autor prenuncia
o que vai ocorrer no próximo capítulo. A missão da sociolinguística, ramo da
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Linguística, tem atuado em ações teóricas e práticas e na busca incessante em
desmobilizar as barreiras do preconceito linguístico nos processos destinados à
alfabetização.
Começamos por Irene que orienta toda a reflexão da obra com conhecimento
científico fundamentado na Linguística. Durante a narrativa, observamos que a
pedagogia utilizada pela professora tem com base a processada na obra de Platão:
o diálogo, que ao contrário da educação tradicional, pressupõe troca de saberes
entre os sujeitos. Irene surge como a mais experiente, professora universitária
aposentada, tem um discurso que procura minimizar o emprego de termos
científicos, que geralmente complica o entendimento do texto do leitor não
familiarizado com as expressões linguísticas.
Aliado a isso, no discurso da narrativa, Irene reforça sua fundamentação
sempre por contrastes, que evidenciam duas ou mais maneiras de refletir a questão
enfocada, como quando Irene consegue demonstrar que a língua falada por Eulália
““os probrema”, “os fósfro”, “môio ingrês”...” precisa ser encarada como outra língua,
como no exemplo dado de italiano “Or tu chi se’, che vuoi sedere a scranna / Per
giudicar da lungi mille miglia, / Con la veduta corta d’una spanna?” ou como o
português da Idade Média “No mundo non me sei parelha, mentre me for’ como me
vay, ca já moiro por vos — e ay!” (p. 13-15). Ela exemplifica para poder explicar que
— A fala da Eulália não é errada: é diferente. É o português de uma classe social diferente da nossa, só isso — explica Irene. — Para mim é errado — diz Emília. — É errado dentro das regras da gramática que se aplicam ao português que você fala — diz Irene. — Mas na variedade não-padrão falada pela Eulália essas regras não funcionam. (BAGNO, 2013, p.13-15)
A reflexão de Irene com as estudantes sobre o preconceito linguístico que
demonstraram no primeiro contato com Eulália, na verdade, constrói um
questionamento que perpassa toda a obra: a legitimidade do modelo atual de ensino
de língua portuguesa oral e escrito nas escolas brasileiras. Seguindo com as
comparações, a personagem Irene abordará o mito da unidade linguística do Brasil,
já apresentado anteriormente.
— Mesmo deixando de lado os índios e os imigrantes, nem por isso a gente pode dizer que no Brasil só se fala uma única língua. Talvez vocês se surpreendam com o que vou dizer agora, mas não existe nenhuma língua que seja uma só. [...]
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— Isso quer dizer que aquilo que a gente chama, por comodidade, de português não é um bloco compacto, sólido e firme, mas sim um conjunto de “coisas” aparentadas entre si, mas com algumas diferenças. Essas “coisas” são chamadas variedades. (BAGNO, 2013, p. 17-19).
Ainda no mesmo capítulo, uma discussão acerca do sistema educacional é
bastante desenvolvida, apresentado o contraponto entre classe social e utilização do
PNP e como isto é visto na escola e as consequências destas concepções:
— Alguns estudos têm revelado uma triste realidade no nosso sistema educacional — continua Irene. — Os professores, administradores escolares e psicólogos educacionais tratam o aluno pobre como um “deficiente” linguístico, como se ele não falasse língua nenhuma, como se sua bagagem linguística fosse “rudimentar”, refletindo consequentemente uma “inferioridade” mental. Isso cria, no espírito do aluno pobre, um sentimento de rejeição muito grande, levando-o a considerar-se incapaz de aprender qualquer coisa. Por outro lado, cria no professor a sensação de estar tentando ensinar alguma coisa a alguém que nunca terá condições de aprender. Daí resulta que o aluno fica desestimulado a aprender, e o professor, desestimulado a ensinar. (BAGNO, 2013, p. 28-29).
No capítulo seguinte, a linguista ressalta a necessidade do educador refletir
acerca de seu papel para buscar demonstrar para o educando como a língua é viva,
transformando este aprendizado em algo significativo e não enrijecido em regras
gramaticais que não tem uso no cotidiano. :
— Nós temos o hábito de “ensinar a gramática” como se ela fosse uma coisa complicada, misteriosa, cabalística, acessível somente a uns poucos “iluminados”, os grandes escritores clássicos — retoma Irene. — Tudo o que conseguimos é criar nos alunos uma enorme antipatia por estes grandes artistas do idioma, o que é uma pena. [...] — Quer dizer então — é a vez de Emília — que além de precisarmos modificar nossa maneira de encarar o português não-padrão, libertando-nos de todos os preconceitos que atrapalham a nossa visão dos fenômenos da língua, também precisamos transformar nossa maneira de trabalhar com a própria norma-padrão? — Exatamente — confirma Irene. — Vamos pensar naquela diferença entre ensinar e educar, que vimos ontem, e tentar descobrir novas trilhas para a nossa prática pedagógica. (BAGNO, 2013, p. 72-73).
Outro aspecto abordado por Irene é de como as mudanças vão sendo
construídas e como regras que antes eram invioláveis passam a ser utilizadas de
outra forma, até mesmo pelos considerados falantes cultos, como no exemplo do
pronome mim antecedendo verbo, como exposto abaixo:
— Na minha opinião — continua Emília, lançando um olhar faiscante na direção da amiga —, essa construção já deixou de ser [-culta] há bastante
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tempo. [...] Porque eu estou cansada de ouvir gente que se diz muito culta usar esse tipo de construção. Advogados, médicos, jornalistas, professores, inclusive professores de português... [...] — Eu também tenho escutado cada vez mais esse tipo de construção — diz Sílvia. — Mas também sinto que os próprios falantes cultos que se servem dela não aprovam muito esse uso. [...] — Talvez queira dizer — aponta Irene — que estamos presenciando uma mudança na língua que ainda não se completou inteiramente. A construção PARA + MIM + INFINITIVO foi passando das variedades [-cultas] em direção às [+cultas]. Já se insinua na fala de muitos falantes cultos, mas ainda encontra resistências para se incorporar definitivamente às variedades [+cultas]. Estamos assistindo, neste caso, uma briga entre as pressões que a norma-padrão exerce sobre as variedades [+cultas] e as pressões que as variedades [-cultas] exercem sobre as [+cultas]. — E quem você acha que vai ganhar, Irene? — pergunta Sílvia. — Tudo vai depender, como vimos hoje de manhã, da força da norma-padrão em impor suas formas de uso da língua. Por enquanto fica difícil prever de quem será a vitória final.( BAGNO, 2013, p.178-180).
Observa-se, nos trechos citados, que Irene tece uma discussão para
convencer Vera, Emília e Silvia e para construir o que seja português padrão (PP) e
português não-padrão (PNP). Há uma reflexão esclarecedora acerca do PP e do
mito da unidade linguística no Brasil.
Seguimos com Vera, estudante de Letras, que reflete o mito da língua única
na sua formação e diz que:
— Variedade não-padrão? Que coisa é essa, tia? — pergunta Vera. Irene dá um suspiro, sorri e diz: — Essa é uma história comprida, Vera, e não sei se dá para resumir aqui, no jardim, nesta tarde fria de julho, depois de ter comido tanto no almoço. — Mas agora eu fiquei curiosa — diz Vera. — Eu também — diz Sílvia. — E eu mais ainda — diz Emília. — Quero ver a senhora... você me convencer que a Eulália não fala errado. [...] Antes eu quero saber o que foi aquilo que você disse em italiano... Irene sorri: — São uns versos da Divina Comédia, de Dante. A tradução é difícil, mas significam alguma coisa como: “quem você, tão presunçoso, pensa que é para julgar de coisas tão elevadas com a curta visão de que dispõe”? (BAGNO, 2013, p.15-16).
Neste viés, Irene segue argumento com Vera, demonstrando as razões que
definem se uma ou outra variante como padrão, já que, nem sempre, estes motivos
têm a ver com as qualidades intrínsecas, internas, linguísticas destas variedades.
Ela cita exemplos variados como o italiano e o espanhol, como se observa no trecho
a seguir:
— Vamos ver alguns exemplos. Na Itália, a variedade que ganhou o título de padrão e que hoje chamamos de italiano é a língua originária de uma
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região chamada Toscana. Esta região teve uma importância muito grande durante vários séculos, tendo a cidade de Florença como capital política e cultural. Florença foi um dos polos do Renascimento, o grande movimento cultural europeu que revolucionou todos os gêneros artísticos e literários da época. [...] E na língua da Toscana foram escritas algumas das obras-primas da literatura mundial: a Divina Comédia de Dante Alighieri, as Poesias de Petrarca, o Decamerão de Bocácio. Além disso, a Toscana contava com uma moeda forte, o florim, que foi uma moeda importante de comércio internacional durante mais de duzentos anos e em torno do qual se havia organizado um sistema bancário muito evoluído para a época. Tamanho prestígio fez com que o toscano se tornasse, pouco a pouco, a língua de cultura de toda a Itália. E isso apesar de existirem naquele país dezenas e dezenas de línguas diferentes, chamadas dialetos, falados por milhões de pessoas e também veículos de importantes manifestações culturais. Na Espanha, a língua oficial é a que se originou numa região chamada Castela, e por isso até hoje o espanhol é chamado de castelhano. Foram os reis de Castela que, com muitas lutas e guerras, conseguiram expulsar os árabes, que dominaram a Península Ibérica por quase Oitocentos anos. Pouco a pouco, os nobres castelhanos foram alargando seus territórios, e quando terminou a Reconquista — isto é, quando não havia mais domínios árabes em solo hispânico —, os castelhanos já tinham conquistado o mais alto prestígio social, o que fez com que sua língua se impusesse a todos os demais habitantes do país. E tal como na Itália, existem na Espanha línguas faladas por muita gente, com grande tradição cultural — o catalão, o basco, o galego —, mas que não conquistaram a importância política do castelhano. (BAGNO, 2013, p.25-26)
Avançamos com Silvia, estudante de Psicologia, e que pela formação tem um
papel preponderante na análise do preconceito que antes de ser linguístico é social.
Como se observa:
— Cada pessoa tem a sua língua própria e exclusiva, mas também não pode deixar que ela a separe da comunidade em que está inserida. Houve até um pensador norte-americano, Gregory Bateson, que resumiu essa tensão numa pequena fábula... — Conte para nós — pede Vera. — Ele diz que, para se proteger do inverno, um grupo de porcos-espinhos se abrigam numa caverna. Como faz muito frio, eles procuram se encostar uns nos outros para se esquentar, mas, por causa dos espinhos, têm de se afastar uns dos outros. Mas logo ficam com frio e se aproximam novamente, e logo se separam e de novo se juntam... — Que interessante — diz Sílvia. — É uma história muito boa para alguém que, como eu, estuda a Psicologia do ser humano. (BAGNO, 2013, p. 20)
Sílvia então passa a ver a questão considerando que toda língua, além de
variar geograficamente, no espaço, que seria o conceito de mudança diatópica
também muda com o tempo, que seria a mudança diacrônica. Irene vai contribuindo
para esta reflexão com exemplos bastante importantes:
— Pegue, por exemplo, um texto de jornal escrito no começo do século XX. Você vai sentir diferenças no vocabulário e no modo de construção da frase. Recue mais um pouco no tempo e tente encontrar alguma coisa escrita no
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começo do século XIX, em 1808, por exemplo, quando a família real portuguesa se transferiu para o Brasil. Mais diferenças ainda. Dê um salto ainda maior e tente ler a famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I dando a notícia do descobrimento do Brasil. Um texto de 1500, último ano do século XV! Tem muita coisa ali que a gente nem consegue entender! E se quisermos ler uma cantiga d’amor, como a que citei hoje à tarde, que era um gênero de poesia praticado em Portugal nos séculos XII-XIII? Quase impossível: só mesmo com a ajuda e a orientação de um filólogo, especialista em textos antigos! O que todos esses textos têm em comum? — Foram todos escritos em português, não é? — arrisca Sílvia. [...] — A língua que falamos hoje no Brasil é diferente da que era falada aqui mesmo no início da colonização, e também é diferente da língua que será falada aqui mesmo dentro de trezentos ou quatrocentos anos! —explica Irene. — Parece lógico — comenta Sílvia. — Todas as coisas mudam, os costumes, as crenças, os meios de comunicação, as roupas... até os bichos evoluíram e continuam evoluindo... Por que a língua não haveria de mudar, não é? [...] — Existe um pequeno número de variedades do português — faladas numa determinada região, por determinado conjunto de pessoas, numa determinada época - que, por diversas razões, foram eleitas para servirem de base para a constituição, para a elaboração de uma norma-padrão. A norma-padrão é aquele modelo ideal de língua que deve ser usado pelas autoridades, pelos órgãos oficiais, pelas pessoas cultas, pelos escritores e jornalistas, aquele que deve ser ensinado e aprendido na escola. Vejam bem que eu disse aquele que deve ser, não aquele que necessariamente é empregado pelas pessoas cultas. Essa norma, ao longo do tempo, se torna objeto de um grande investimento. (BAGNO, 2013, p.21-23).
Além disso, Sílvia também é levada a refletir sobre como ocorre o
investimento na norma padrão, observando quais os envolvidos e suas ações,
conseguindo assim uma visão ampliada da questão.
— Investimento, Irene? — pergunta Sílvia. — Como assim? — No processo de constituição, de cristalização da norma-padrão como o que deve ser “a” língua, ela é analisada pelos gramáticos, que escrevem livros para descrever as regras de funcionamento dela, livros que servem ao mesmo tempo para prescrever essas regras, isto é, impor essas regras como as únicas aceitáveis para o uso “correto” da língua. Os dicionaristas também se debruçam sobre a norma-padrão e tentam definir os significados precisos para as palavras que compõem esse padrão. A Academia de Letras estabelece a ortografia oficial, a maneira única de escrever, que é imposta por decreto-lei governamental. Ela também cuida para que palavras de origem estrangeira não “contaminem” excessivamente a língua, e propõe novos termos para substituí-las, termos com uma forma mais próxima daquilo que os tradicionalistas chamam de “a índole da língua”. Os autores de livros didáticos preparam seus manuais escolares pensando em estratégias pedagógicas eficazes para que as crianças aprendam a norma-padrão... Todo esse trabalho de padronização, de criação e cultivo de um modelo de língua, é que compõe o tal investimento de que eu falei... Por isso a norma-padrão dá a impressão de ser mais rica, mais complexa, mais versátil que todas as demais variedades da língua faladas pelas pessoas do país. Na verdade, ela nada tem de melhor que essas variedades, ela só tem mais que as outras. — E o que é que ela tem mais que as outras? — pergunta Sílvia.
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— Por causa do tal investimento, a norma-padrão tem principalmente mais palavras eruditas, tem mais termos técnicos, tem um vocabulário maior e mais diversificado. Ela também tem mais construções sintáticas consideradas de bom-gosto, tem expressões de origem erudita que servem de modelos para serem imitados, metáforas clássicas que dão um ar “nobre” à linguagem... Mas se esse mesmo investimento fosse aplicado a qualquer uma das muitas variedades faladas no país, ela também se enriqueceria e se mostraria capaz de ser veículo para todo tipo de mensagem, de discurso, de texto científico e literário... (BAGNO, 2013, p. 23).
A última convidada é Emília, estudante do curso de Pedagogia, segmento
responsável pela formação de futuros falantes da nossa língua nas séries iniciais do
ensino fundamental, conforme segue:
— Quer dizer que a Eulália fala um português não-padrão? — pergunta Emília. — Exatamente — responde Irene. — A Eulália foi alfabetizada quando tinha mais de quarenta anos. Hoje ela sabe ler e escrever, foi alfabetizada no português-padrão, mas continua empregando no dia-adia a variedade não-padrão que é a “língua materna” dela, usada pelas pessoas de sua família e de sua classe social. Aliás, foi durante a alfabetização da Eulália que eu comecei a refletir sobre esses problemas todos. [...] A diferença na forma como uma palavra é pronunciada é o que logo nos chama a atenção e nos avisa que uma pessoa fala uma variedade diferente da nossa. Além disso, essas diferenças fonéticas são as mais estigmatizadas. — Estigmatizadas como? — pergunta Emília. — São elas as que recebem a maior carga de preconceito e rejeição por parte do conhecedor de português-padrão. — Dê só um exemplo — pede Vera. — Quando alguém diz “véio”, “trabáio”, “cuié”, por exemplo, ou “grobo”, “broco”, a maioria dos falantes escolarizados torcem o nariz ou, quando são mais delicados, mordem o lábio para não rir — diz Irene, lançando um olhar maroto para as amigas da sobrinha, que se encolhem, coradas. (BAGNO, 2013, p. 30-32).
Emília continua seus questionamentos, buscando compreender como o
português falado por Eulália não pode ser considerado errado. Irene propõe
reflexões acerca de como os mesmos “erros” são repetidos por milhares de pessoas
em lugares completamente diferentes. No trecho abaixo, ainda é possível observar o
conceito de “erro” defendido por Irene e também as argumentações que contribuem
para uma nova visão acerca dos “erros” de Eulália.
— Se milhões de pessoas por este Brasil afora dizem “os óio” onde você esperaria “os olhos”, será possível falar de “erro comum”, como gostam de dizer os gramáticos tradicionalistas? Não seria o caso de falar de “acerto comum”? O que eu pretendo mostrar, no livro, é que tudo aquilo que é considerado erro no PNP tem uma explicação científica, do ponto de vista linguístico ou outro, lógico, pragmático, psicológico... — E quando vamos poder falar de erro, então? — quer saber Emília.
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— A noção de erro tem que ser reservada para problemas individuais — responde Irene. — Se alguém ao invés de dizer cavalo diz cafalo, este sim estará cometendo um erro, devido talvez a problemas físicos na audição ou na fonação, pois essa forma não é registrada em nenhuma variedade do português do Brasil. Mas dizer pranta no lugar de planta não é um erro: é um fenômeno chamado rotacismo, que acontece nas mais diversas regiões do país e que participou da formação da língua portuguesa padrão ao longo dos séculos. Tenho um capítulo só sobre isso. — Tudo bem — diz Emília —, mas eu insisto: e as provas? — Para provar que as características do português não-padrão não são “erros”, eu vou recorrer a duas estratégias principais... [...] Primeiro, comparar o PNP com outras línguas vivas e mostrar que nelas também ocorrem fenômenos (e não “erros”) semelhantes. [...] Em seguida buscar na história da própria norma-padrão as explicações para determinadas características que aparentemente são exclusivas do PNP. — Por que você escolheu essas duas estratégias? — quer saber Vera. — Recorrer à história da língua é uma tentativa que faço de mostrar que a língua portuguesa, em todas as suas variedades, continua em transformação, continua mudando, caminhando para as formas que terá daqui a algum tempo. Da mesma maneira como o latim foi se transformando lentamente até resultar nas diversas línguas românicas hoje existentes — italiano, romeno, romanche, francês, provençal, sardo, catalão, espanhol, português —, também cada uma delas continua a se transformar. Daqui a alguns séculos, provavelmente, portugueses e brasileiros não se entenderão mais, pois cada povo poderá estar falando uma língua diferente. Não foi o que aconteceu com o português e o espanhol, tão parecidos, tão próximos, mas ao mesmo tempo tão diferentes que a compreensão mútua total já se tornou impossível? (BAGNO,2013, p. 34-35).
Num outro momento, Irene é perguntada por Vera a razão das pessoas
utilizarem as palavras sem o “m” no final, como no caso de Eulália, como na frase
“disse que ia à quitanda comprar vage para fazer no almoço” (BAGNO, 2013, p.
114). Irene não perde a oportunidade para demonstrar que este também não pode
ser considerado um “erro”, mas sim uma tendência à desnasalização das vogais
postônicas
Temos, por fim, a abordagem da personagem que determina a discussão da
obra pela sua forma de falar, Eulália. Há várias passagens que discutem a variedade
linguística da personagem, como por exemplo:
No dia seguinte, um domingo, enquanto todas ajudam a arrumar a cozinha depois do café da manhã, Eulália diz a Irene que vai à casa do filho Ângelo: — Prometi almoçar com as crianças hoje — diz ela, avó sorridente. — Almoçar com as crianças ou fazer o almoço para elas? — pergunta Irene, piscando um olho para Vera. Eulália só faz aumentar o sorriso que já trazia aceso no rosto. Nem se dá ao trabalho de responder, pois a resposta é mais que evidente. — Quando a gente terminar aqui, eu levo você de carro — oferece Irene. — Precisa disso não, Irene — reage Eulália. — Eu vou de a pé mesmo, é uma caminhada gostosa. E você não vai largar a Verinha mais as menina aqui sozinha, vai?
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— Claro que não — responde Irene —, a minha ideia era justamente levar todo mundo comigo para dar um passeio pela cidade. A gente deixa o carro lá no centro e sai andando. (BAGNO, 2013, p. 74).
A ideia da obra se materializa:
— Recebi hoje à tarde uma proposta de uma editora para publicar o meu livrinho sobre o português não-padrão... — Que maravilha, Irene! — comemora Sílvia. — Não se esqueça de que queremos ser as primeiríssimas a receber um exemplar — exige Emília —, com uma dedicatória quilométrica e bem melosa, por favor... — A dedicatória não vai ser problema — diz Irene —, porque ela vai estar impressa em todos os exemplares... — Como assim? — admira-se Sílvia. — Resolvi dedicar o livro a vocês três — explica Irene. — Afinal, é o mínimo que posso fazer por quem teve tanta paciência em servir de “cobaia” para os meus testes científicos... As três jovens, visivelmente emocionadas, abraçam Irene com carinho. — E já sabe como vai se chamar o livro? — pergunta Vera. [...] — Quero fazer uma surpresa para a Eulália... Estou pensando em dar ao livro o título de A Língua de Eulália... Afinal, foi observando a variedade linguística dela que me veio a ideia de estudar o assunto... O que acham? [...] E o título tem um detalhezinho linguístico interessante, ainda por cima — revela Irene. — O nome Eulália, em grego, quer dizer “a que fala bonito, a que fala bem, a que fala certo”. Não é uma delícia? (BAGNO, 2013, p. 207-208)
Após toda esta apresentação da obra e de como ela é composta, é possível
perceber um recurso didático-narrativo que revela o comportamento político da obra,
os segmentos citados, em conjunto, poderiam contribuir para superar as dificuldades
no ensino de Língua Portuguesa no Brasil. A Linguística, a literatura, a Psicologia e
a Pedagogia em suas áreas e dialogando podem contribuir na discussão e
democratização do processo linguístico corrente.
A obra contempla a necessidade de construção do conhecimento sobre o
tema abordado em cada diálogo entre os personagens, as indagações sugerem
sempre uma nova forma de percepção do olhar do falante sobre o domínio da norma
padrão e de seus aspectos gramaticais que historicamente têm como base a
metalinguagem técnica, que orienta seu estudo baseado nas nomenclaturas, na
análise sintática, na morfológica e abordagem significativa de categorias
gramaticais. O texto revela especificamente a concepção de linguagem como forma
ou processo de interação. Como afirma Travaglia:
Nessa concepção o que o indivíduo faz ao usar a língua não é tão-somente traduzir e exteriorizar um pensamento, ou transmitir informações a outrem,
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mas sim realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor (ouvinte/leitor). A linguagem é pois um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em um contexto sócio-histórico e ideológico. Os usuários da língua ou interlocutores interagem enquanto sujeitos que ocupam lugares sociais e “falam” e “ouvem” desses lugares de acordo com formações imaginárias(imagens) que a sociedade estabeleceu para tais lugares sociais. (TRAVAGLIA, 2005, p. 23)
Neste sentido, a experiência é dialética, por estar ligada às questões, aos
processos, à realidade, de verdade de experiências, que nada mais seria para
Adorno do que a própria razão. “Trata-se de advertir a razão contra si mesma em
nome de si mesma”. (ADORNO, 2000, p. 20).
Em consequência disso, se o homem não for capaz de enxergar o que está à
sua volta, quais fatores estão envolvidos nos acontecimentos, nas relações
conflitivas, sem observar o domínio das elites nos meios de comunicação, nas
propagandas, nos jornais, nas telenovelas, nos esportes e outros mecanismos,
quando são usadas imagens fortes, poderão ser induzidos a uma má compreensão
da realidade e, com isso, a capacidade de julgar e de condenar fica nula no homem,
levando-o a um julgamento precipitado, sem nenhuma reflexão crítica.
3.3 A estética da transparência: a possibilidade de ver-se através dos
personagens
É importante compreender que os processos formativos nos cursos de
graduação ainda se encontram impregnados com a concepção de educação como
mero transmissor de conhecimento, o que já não tem respaldo na nova realidade
social. Nesta perspectiva, podemos nos remeter a Freire, que critica este processo
através da metáfora da Educação Bancária, que caracteriza as formações
aligeiradas, sem profundidade e consistência, demonstrando que os alunos repetirão
ou devolverão o “depósito” realizado por seus professores, sem a preocupação com
a formação do pensamento e da reflexão. Sem atentar para o princípio da autonomia
e emancipação dos sujeitos envolvidos nos processos pedagógicos.
Desta forma, é necessário propor movimento que possibilite a reflexão dos
educandos acerca do mundo que os cerca para que possam ter uma visão mais
completa e crítica para que consigam transpor isso para sua prática docente,
considerando o ensino da Língua Portuguesa.
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Neste sentido, a obra auxilia, através da estética da literatura, uma reflexão
acerca da linguagem e de como esta pode ser um instrumento de poder, amparado
e divulgado pela indústria cultural, que desconsidera a pluralidade linguística que
possuímos no Brasil, tratando a questão de maneira unilateral, como se houvesse
apenas uma linguagem que pode ser considerada correta.
Quando se propõe a leitura e a discussão da obra de Bagno, procura-se
promover uma experiência estética, que envolva o aluno num processo de reflexão
sobre os mais variados usos da linguagem. Assim, o educando consegue ver-se na
personagem Eulália, percebendo como sua fala também é discriminada, como
comete cotidianamente os mesmos “erros” da empregada, ou que conhece e
convive com várias pessoas que também fazem parte desta gama de falantes.
Em outras ocasiões, nesta vivência estética, o aluno de Letras ou Pedagogia
consegue também perceber-se no papel do opressor, do indivíduo que perpetua
preconceitos, como no caso das estudantes do livro, que conseguiram passar por
uma transformação através dos conteúdos apresentados pela professora, que
buscava a todo o momento ampliar o olhar para que tivessem uma compreensão
mais apurada de todo o processo.
Nesse contexto, a mediação do professor poderá contribuir para estimular,
orientar, contudo não para preservar o aluno do não entender, pois, como esclarece
Perissé (2009), o convívio com a arte nos ensina a preciosa lição de não entender...
para depois entender ao menos um pouco. Assim, é possível pensar a respeito de
uma formação sustentada por experiências estéticas, com certo modo de olhar a
realidade, certo modo de aprender e de ensinar.
Sendo assim, o docente, esteticamente formado, consegue propor algumas
ações que vão além de leituras teóricas, o que é tão comumente encontrado nas
aulas de Língua Portuguesa dos cursos de graduação. Perissé (2009) propõe
frequentar exposições de pinturas, expondo o próprio observador àqueles quadros,
constituindo uma dupla exposição, em que a pessoa mergulha no quadro e o quadro
mergulha naquele que o contempla.
Perissé (2009) ainda explica que, ao estabelecer a empatia, o indivíduo se
aprofunda em si mesmo, sem se confundir com a obra, mas estando fundidas uma
dentro da outra. Assim, os limites não desaparecem, mas se flexibilizam, enquanto a
emoção mobiliza o sujeito. Assim, ao estabelecer essa relação, o professor permite
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ao futuro docente atuar em situações parecidas preservando a sua identidade e
respeitando a identidade do outro.
Este é o mesmo processo que ocorre quando o educando se depara com
personagens, que ocupam as mais diferentes posições e em diferentes contextos
culturais, assim ele é convidado a mergulhar na obra literária e em si mesmo para
que consiga refletir suas posições e através da vivência estética renovar concepções
e posturas.
Nesta perspectiva, quando tratamos aqui da função formativa da arte na
formação de docentes, não se pretende fazer alusões ao ensino da arte ou à
transmissão de um conteúdo sobre cinema, logo não se pode compreender a obra
literária como mero instrumento didático, de transmissão de determinado conteúdo.
Pelo contrário, trata-se da Educação Estética como conteúdo capaz de ativar outras
dimensões do ensinar, aprender e formar, outras formas de conhecimento que
possam contribuir para aquele em formação a “voltar-se para si mesmo - um
movimento que constitui o núcleo e a grandeza da experiência estética” (LARROSA,
2004, p. 51)
Vale aqui retomar os Parâmetros Curriculares para o ensino de Língua
Portuguesa (1997) que orientam que é necessário compreender que toda linguagem
traz em si uma visão de mundo, repleta de significações para além dos aspectos
formais. Focalizar apenas no aspecto formal desconsidera o caráter histórico e
contextual de determinada manifestação de linguagem, que pode permitir a
compreensão das razões de uso, da valoração, da representatividade e dos
interesses sociais envolvidos, ou seja, da consciência do poder constitutivo da
linguagem. Deste modo, pode se vislumbrar a complexidade das manifestações e
superar o preconceito e promover o respeito mútuo como meio de entender o
presente e construir o futuro.
Neste viés, o futuro docente é convidado a compreender a linguagem como
parte do conhecimento de si próprio e da cultura, além de perceber a
responsabilidade ética e estética do uso da língua materna. Apenas assim, pode se
buscar uma educação pautada em princípios éticos e estéticos, de autonomia e
emancipação, ampliando a consciência para uma atuação responsável e
compromissada com a promoção da cidadania e do desenvolvimento integral do ser
humano.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente estudo, observou-se uma reflexão sobre o objetivo proposto,
compreender o sentido da dimensão estética nos processos formativos presentes na
obra literária, considerando-se que a Educação Estética, neste caso, deve propiciar
contextos formativos adequados para que os sujeitos possam se fazer autônomos.
Nesse contexto, alinhava-se a relevância da compreensão, na obra literária, dos
processos educativos e formativos, de desenvolvimento da autonomia e da
emancipação dos sujeitos, uma vez que a leitura do texto literário nos permite uma
interação cotidiana com a sociedade em que vivemos e com o mundo pela via da
estética.
Neste trabalho, foram interpretados os componentes estéticos que contribuem
para refletir sobre a importância da obra literária na formação de professores dos
cursos de Letras e Pedagogia. Recorre-se à percepção de que a educação se afirma
como aprendizagem de uma vivência fundamentada na ética, estética, política, na
ideologia, na moral e no poder.
Evidencia-se os elementos de pertinência do estudo a dimensão estética da
obra literária, como contribuição para a reflexão da prática docente. Tendo como
objeto a obra A língua de Eulália: novela sociolinguística, de Marcos Bagno.
Observa-se que o mito da língua ainda muito presente na formação linguística dos
falantes, também se reflete na formação dos professores dos cursos de Letras e de
Pedagogia. O texto literário promoveu uma discussão sobre a atuação do professor
e seus processos formativos.
Estabelece-se que a obra literária é um ponto de partida para a construção da
identidade da prática docente, neste contexto de interação e construção, o
entrecruzar de discursos, a transfiguração do real, a relação dialética entre o fazer e
o pensar, aprimora a intervenção do sujeito na sociedade, que ocorre via dimensão
estética, levando-o à busca da identidade, nos processos formativos, como
possibilidade de libertação do professor bancário.
A reflexão foi elaborada a partir do referencial teórico adotado, a obra de
Adorno, por meio das categorias da emancipação da massificação cultural e
experiência formativa em que a arte produz a possibilidade de uma experiência que
tenha significação própria, livre das normas ou regras que são impostas pela
indústria cultural. A compreensão do sentido da prática docente e a abordagem da
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caracterização da arte fora dos parâmetros da indústria cultural, instaura uma
reflexão sobre a educação libertadora, cujo objetivo é a humanização do indivíduo.
Adotou-se, ainda, a obra de Freire, no que se refere à crítica à Educação
Bancária que tem como base a mera transmissão de conteúdos, e o processo de
conscientização, compreendido, neste estudo, como processo entre consciência
estética, crítica, ideológica e epistemológica, visando apontar que a ação educativa
e formativa deve ser sempre um ato de recriação, de construção e reconstrução de
significados e em certas situações, de intervenção do sujeito sobre a realidade da
sala de aula. Caminho nos processos formativos de desenvolvimento da autonomia
e emancipação dos sujeitos.
Recorreu-se a Schiller, naquilo que se refere à dimensão do sensível da arte
nos processos formativos. Focalizando a compreensão do jogo lúdico entre o
sensível e a razão. Foi necessário estabelecer uma distinção entre experiência
estética e Educação Estética. Do sensível, aquilo que emerge sem licença do
sujeito, é uma experiência estética. A razão é faculdade que possibilita interpretar,
compreender as sensações advindas do sensível, é a experiência epistemológica,
uma educação estética. A Educação Estética vai permitir que o homem passe dos
meros sentimentos vitais para os sentimentos de beleza. Schiller avalia que no
desenvolvimento do impulso lúdico, que gera a beleza, a possibilidade da
humanidade ser mais sublime, consequentemente, mais livre.
A partir do referencial teórico adotado, considera-se que coexiste a
experiência do sensível e da razão, nos processos pedagógicos. Assim, foi possível
estabelecer uma reflexão sobre a importância da Educação Estética na construção
de uma perspectiva sensível como contraponto ao esvaziamento do sentido do
humano nas práticas formativas.
O objeto material analisado foi a novela sociolinguística A língua de Eulália,
de Marcos Bagno. A análise foi documental e os dados foram interpretados por meio
da compreensão filosófica, fundamentada no enfoque hermenêutico, na perspectiva
de Gadamer e na abordagem da identidade narrativa de Ricoeur.
A obra de Bagno apresenta as características que diferenciam as variedades
não-padrão marginalizadas e vítimas de preconceitos, do português-padrão, norma
oficial e prestigiada. O autor aborda o preconceito linguístico que incide sobre o
PNP, ou seja, o preconceito criado contra as pessoas que falam o português-não-
padrão. Ele explica que as variações ocorrem devido a circunstâncias do próprio uso
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da língua que varia de acordo com as diferenças de gênero, classe social, etnia,
entre outros e que não deve existir jeito “certo” ou “errado” de falar, pois cada sujeito
possui sua própria individualidade linguística.
Para fundamentar suas ideias, Marcos Bagno utiliza propostas de ensino com
bases científicas e considerável teor crítico inseridos no enredo de sua novela pelas
personagens Irene, suas alunas e, principalmente, Eulália cujo nome significa “boa
maneira de falar”, de acordo com o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
O texto literário promove uma reflexão sobre o ensino de língua portuguesa
nas escolas brasileiras baseado na forma autoritária e sem reflexão, pelos docentes,
que afirmam que a norma padrão é a “correta” e que falar diferente é “errado”. Esse
aspecto no ensino da língua favorece à Educação Bancária. Por isso, deve ocorrer
uma mudança na perspectiva de ensino de gramática nas escolas, decorrente das
pesquisas na língua, da ciência linguística, que indica transformações constantes.
O princípio da autonomia do sujeito se revela numa possibilidade significativa,
quando a narrativa proporciona uma reflexão sobre o porquê de certos usos e da
existência das variedades em nossa língua. Liberta-se da gramática tradicional,
observando uma nova perspectiva de ensino, com mais criticidade e menos
autoritarismo, sem rejeitar ou discriminar as variedades linguísticas. Nesse sentido, a
obra literária tem um papel significativo como alternativa no processo formativo do
professor na possibilidade de uma educação dentro dos pressupostos de
humanização e emancipação.
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