A Crítica Da Religião Em Marx _ 1840-1846

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A Crítica Da Religião Em Marx _ 1840-1846

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PS-GRADUAO INTERINSTITUCIONAL

    EM FILOSOFIA DOUTORADO

    A CRTICA DA RELIGIO EM MARX: 1840-1846

    ROMERO JNIOR VENNCIO SILVA

    Recife/PE 2010

  • A CRTICA DA RELIGIO EM MARX: 1840-1846

    Romero Jnior Venncio Silva

    Tese apresentada ao Programa de ps-graduao interinstitucional em Filosofia das Universidades Federais de Pernambuco, Paraba e Rio Grande do Norte, em cumprimento s exigncias para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.

    ORIENTADOR: Prof. Dr. Fernando Jader Magalhes

    Recife/PE 2010

  • ROMERO JNIOR VENNCIO SILVA

    TESE DEFENDIDA EM_______/_______/_______

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Fernando Jader Magalhes (UFPE) Orientador

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Odlio Alves Aguiar (UFC)

    Prof. Dr. Castor Martin Bartolom Rus (UNISINOS)

    Prof. Dr. Incio Strieder (UFPE)

    Prof. Dr. Antonio Rufino Vieira (UFPB)

  • SUMRIO

    Pg. RESUMO.........................................................................................................................vi ABSTRACT....................................................................................................................vii INTRODUO..............................................................................................................01 CAPTULO I: OS FUNDAMENTOS DA CRTICA MARXIANA DA RLIGIO.................................................................................................................04 1.1 - O Atomismo Antigo: Demcrito e Epicuro.............................................................04 1.2 - A stira como crtica da religio: Luciano e Voltaire .............................................18 1.3 - Hegel e Feuerbach: o lugar da crtica alem da religio..........................................35 CAPTULO II: A CRTICA DA RELIGIO EM MARX: 1840-1846................................................................................................................ .....106 2.1 - A religio como fenmeno scio-histrico: algumas notas metodolgicas..........108 2.2 - A religio como poltica. Marx em 1840...............................................................115 2.3 - Um primeiro materialismo como crtica da religio. Marx em 1841....................122 CAPTULO III: FETICHISMO, RELIGIO E O SIMBLICO: NOTAS BREVES SOBRE MARX E A RELIGIO PS-1846. UMA LEITURA SOMBRA DA PSICANLISE DE SLAVOJ ZIZEK...............................................139 CONCLUSO....................................................................................................... ......150 BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ .154

  • PGINA AVULSA memria de Gregrio Bezerra (comunista impenitente), Helder Cmara (cristo decente) e Daniel Bensad (um comunista intempestivo) Lideres, o povo No paisagem Nem geografia Para a voragem Do vosso olho Hilda Hilst Aos camaradas de marxismo: Alder Jlio, Arturo Gouveia, Srgio Lessa, Enoque Feitosa, Lorena Freitas, Jonas Duarte, Gonzalo Rojas, Cida Ramos, Jaldes Reis, Jos Neto, Sara Granemamm, Juarez Duayer, Roberto Leher, Regina Behar, Giovanni Queiroz, Manoel Fernandes, Luiz Vicente Vieira e Antonio Rufino Vieira... Todos so (cada um do seu jeito) vnculo da letra com o socialismo Aos amigos no Departamento de filosofia da UFS, Ccero Cunha e Marcio Gimenes... Aos amigos da Paraba, Hugo e Amandinha; Solange Norjosa e Gorete ... Amigo coisa para se guardar A Rafaele e Cludia Camatti... Percursos do gozo e da alegria Aos socialistas no MST, ngelo e Selma Aos lutadores da Consulta Popular da Paraba e Sergipe, por entenderem que... O povo no um rio de mnimas guas sempre iguais Hilda Hilst A Edna Lopes, ... ter um dia amado, amavisse

  • RESUMO A tese tem por objetivo apresentar e discutir a crtica de Marx religio nas obras escritas entre 1840 a 1846. Est dividida em duas partes. Na primeira trabalhamos os fundamentos tericos presentes na construo da crtica marxiana religio. Partimos do materialismo/atomismo de Demcrito e Epicuro, passamos pela crtica satrica da religio de Luciano e Voltaire at chegarmos concepo de religio do Idealismo alemo de Hegel e Feuerbach. Na segunda parte analisamos os textos de Marx, tendo em vista demonstrar como a crtica marxiana desloca a tradicional leitura da religio elaborada pelo pensamento ocidental teolgico-metafsico para o campo scio-poltico. O filsofo alemo inaugura uma crtica moderna da religio e abre um novo horizonte para a teoria social nos estudos do fenmeno religioso. Palavras-chave: Marx, Religio, Crtica, teoria social

  • ABSTRACT This thesis has the aim to present and discuss Marxs criticism to religion in his writings between 1840 and 1846. It divided into two parts. In the first part we worked on the theoretical base which are present in the construction to the marxist criticism to religion. We started from materialism/atomicism by Demcrito and Epicuro, though the satiric criticismo of religion by Luciano and Voltaire up to the religion conception of german idealism by Hegel and Feuerbach. In the second part we analysed Marxs texts, religion done by the western theological-metaphysical thought to socio-political realm. The german philosopher begins a modern criticism of religion and opens a new horizon for social theory in the religious phenomena studies.

    Key words: Marx, Religion, Criticism, Social theory

  • INTRODUO

    A ideia de apresentar e comentar a crtica de Marx religio (mais precisamente ao

    Cristianismo e Judasmo) parte de uma constatao bsica: a posio de Marx no

    panfletria ou meramente jornalstica (como imagina uma certa crtica contempornea)

    no que diz respeito ao papel da religio no mundo ocidental moderno. H na obra

    marxiana, que vai de 1840 a 1846, uma base histrico-filosfica, muitas vezes implcita,

    que merece ser pesquisada e explicitada. Em tese, a crtica marxiana desse perodo ao

    fenmeno religioso tem base numa certa tradio ocidental que vai do pensamento grego

    atomista, passando pela stira (latina e francesa moderna) chegando a Hegel e esquerda

    hegeliana(Feuerbach, em particular). O que autoriza tal leitura o acompanhamento mais

    detido das obras do pensador alemo da dcada de 40 do sculo XIX, sua rica fonte de

    citaes e seu vasto conhecimento que ultrapassa o mbito da filosofia alem, francesa e

    inglesa de sua poca. A nossa tentativa terica situar Marx como um clssico nos

    estudos e na crtica moderna da religio, ao lado de Weber e Durkheim, por exemplo1, hoje

    saudados por uma certa crtica como referncias fundamentais nos estudos do fenmeno

    religioso, e ainda mais como aqueles que tornaram a posio de Marx e dos marxistas em

    geral como superada e desnecessria no que diz respeito compreenso da religio nos

    dias de hoje (SANCHIS, 2003). Para ns, tal posio terica duvidosa, pois a situao

    atual de fundamentalismo religioso (Cristo, Mulumano e Judeu) e de alienao fantica

    diante do mundo confirma, em muito, a necessria crtica histrico-filosfica da religio.

    Cito um pensador insuspeito de marxismo, Jrgen Habermas: Desde a virada de 1989/90,

    tradies religiosas e comunidades de f adquiriram, inesperadamente, importncia

    poltica (HABERMAS, 2007, p.129). Afora o inesperado, o texto do pensador alemo

    s confirma o que no sculo XIX Marx era um dos primeiros a analisar no carter da

    religio, a saber, o seu papel inescapavelmente poltico. Como pode estar superada uma

    anlise e uma crtica scio-poltica e filosfica da religio no momento em que a religio

    torna-se ela mesma escancaradamente poltica?

    Acreditamos ser possvel e necessrio aprofundar alguns pontos implcitos na obra

    juvenil de Marx, indo s suas fontes para depois chegar anlise de suas obras. Isto no

    significa que faremos um corte dicotmico entre as fontes e as obras. No vivel tal

    1 Tomamos a concepo de clssico dada por talo Calvino em um ensaio, intitulado: Para ler os clssicos. No ensaio inicial o autor destaca 14 razes que definiriam uma obra como clssica. Marx estaria situado na ideia do clssico como fonte permanente de dilogo entre seu tempo e o tempo presente, assim entendemos.

  • 2

    coisa. A relao ser sempre que possvel trabalhar as fontes ligadas maneira como

    aparecem nas obras.

    O trabalho est divido em duas grandes partes. Na primeira, trabalhamos com os

    fundamentos da crtica marxiana da religio. A ideia central demonstrar que antes de

    iniciarmos nos textos marxianos entre 1840-1846, ser de importncia fundamental ir s

    fontes marxianas, e trabalhar como Marx constri a sua crtica moderna da religio. Nesta

    primeira parte, trs so as fontes mais significativas para o nosso trabalho, s quais,

    reiteradas vezes, Marx faz referncias. Um primeiro materialismo (mais precisamente,

    atomismo) antigo presente em Demcrito e Epicuro. Passamos, em seguida, para uma

    espcie de crtica satrica da religio que tem como antecedentes o grego Luciano de

    Samsata e o francs iluminista Voltaire, e terminamos essa parte com a presena de Hegel

    e Feuerbach como principais nomes das dcadas de 30 e 40 do sculo XIX numa

    formulao de uma filosofia da religio na Alemanha, e que a crtica marxiana tem ponto

    de partida obrigatria na sua construo terica. Na segunda parte, entramos

    definitivamente nas obras marxianas do perodo recortado para o estudo. Iniciamos com

    algumas notas metodolgicas sobre os estudos marxianos do fenmeno religioso. Partimos

    do pressuposto de que a reflexo de Marx sobre a religio scio-histrica e poltica, e no

    metafsica (aqui Marx difere de uma longa tradio filosfica nos estudos da religio na

    cultura ocidental). Trabalhamos inicialmente com um artigo de Marx sobre um editorial

    179 da Gazeta de Colnia, assinado por Karl Heinrich Hermes, onde um explcito

    catolicismo do redator chefe defendido em detrimento de um Estado laico (posio

    marxiana desse perodo) e republicano. Em seguida, passamos tese de doutoramento

    sobre Demcrito e Epicuro. Aqui o ponto destacado o primeiro materialismo

    formulado por Marx, e que serve perfeitamente como uma crtica da religio. Seguindo

    uma certa cronologia dos escritos de Marx, chegamos nos textos de 1843 e, em particular,

    Para a questo judaica. Ensaio importantssimo para definir os rumos da crtica poltica da

    religio. Numa leitura precisa de Jos Paulo Neto ao prefaciar a edio brasileira: Nesse

    texto primoroso, o que se registra um pensamento que ultrapassa o espao da crtica

    religiosa e atravessa o mbito da crtica poltica no rumo da crtica da economia poltica

    (NETTO, 2009 p. 27). Afirmao que serve de rumo para o prximo conjunto de textos de

    Marx que destacamos, a saber, Os manuscritos de 1844. Nesses textos percebemos e

    comentamos o conceito de alienao como chave para uma crtica poltica e conceitual

    da religio moderna. Na nossa leitura, aqui temos um dos textos mais atuais de Marx numa

    crtica radical da religio, e que mantm uma imensa atualidade quando procuramos

  • 3

    compreender mais atentamente o fenmeno religioso contemporneo. Ainda nesse perodo

    aparece o primeiro trabalho de Marx e Engels juntos. Trata-se de A Sagrada famlia, texto

    marcadamente satrico, notrio desde o ttulo e que demarca o distanciamento cada vez

    maior da posio marxiana em relao chamada esquerda hegeliana. O ensaio uma

    crtica contundente aos irmos Bauer e a permanncia dos citados irmos no mbito da

    crtica metafsica. Para Marx e Engels, um telogo crtico ainda continua sendo um

    telogo, logo, uma crtica teolgica da realidade ainda permanece metafsica. O

    problema central no est na religio, mas na sociedade que gera esta religio. Conclumos

    a nossa pesquisa destacando a Ideologia alem. Obra tambm escrita em parceria com

    Engels e que segundo os principais comentadores, nessa obra que est inicialmente

    fundamentada uma concepo materialista da histria explicitamente. A crtica da

    religio aqui est acentada numa crtica da ideologia. Religio ideologia e assim sendo,

    no se explica a si mesma, mas explicada histrica e socialmente.

    Merecem destaque dois excursos presentes na tese. O primeiro vem logo aps os

    comentrios crtica materialista de religio, intitulado O Epicuro de Marx. Como o ttulo

    indica, trata-se de chamar a ateno para uma leitura muito particular que Marx faz de

    Epicuro e que na nossa leitura tem consequncias para a crtica marxiana da religio. J o

    segundo excurso nasceu de algumas leituras feitas por ns da obra do filsofo esloveno,

    Slavoj Zizek. Trata-se de uma polmica tese de aproximao entre Marx, Freud e Lacan no

    que diz respeito religio como sintoma do sistema. Zizek parte do princpio de que

    Marx inventou o sintoma do Capital ao tratar do fetichismo da mercadoria. O que nos

    interessou diretamente foi a ideia de religio como fetiche. Uma tese pertinente hoje: a

    ltima crtica de Marx religio passaria pelo fetichismo da mercadoria. Aqui teramos o

    incio de uma outra tese e, por isso, ficamos apenas num modesto excurso.

  • 4

    CAPTULO I - OS FUNDAMENTOS DA CRTICA MARXIANA DA

    RELIGIO

    Posto que no h leituras inocentes, comecemos por confessar de que leituras somos culpados.

    Louis Althusser

    1.1 - O Atomismo Antigo: Demcrito e Epicuro

    Entendemos que o incio mais sistemtico da crtica de Marx religio tem origem

    na sua tese de doutoramento sobre as filosofias da natureza de Demcrito e Epicuro. Como

    afirma o pensador brasileiro Jos Amrico Pessanha no prefcio da edio brasileira do

    trabalho de Marx: No momento em que escreve a tese, Marx est inteiramente voltado

    para o problema da religio (PESSANHA, 1991, p.12). Na nossa compreenso, a leitura

    de Pessanha correta. No incio da dcada de 1840, Marx trabalhava nas leituras do

    tratado teolgico-poltico de Espinoza e numa srie de crticas teologia alem (FOSTER,

    2005). A crtica da religio, numa Alemanha ainda com marcas feudais em pleno sculo

    XIX, ponto fundamental na filosofia marxiana no seu comeo de elaborao intelectual.

    Para o fim que nos propomos, no vamos fazer uma anlise exaustiva e exegtica das obras

    de Demcrito e Epicuro. Antes, tentaremos uma leitura a partir dos passos de Marx, e na

    sua compreenso de como esses primeiros materialistas gregos foram fundamentais

    numa primeira crtica religio na cultura Ocidental.

    Demcrito entra na vida de Marx a partir dos poucos fragmentos que restaram do

    filsofo, e que j circulavam na academia alem no sculo XIX, e dos comentrios de

    Aristteles (muito admirado por Marx e citado em diversos textos), e de Hegel nas suas

    Lies de histria da filosofia. O interesse de Marx na obra de Demcrito muito restrito,

    isto , interessa-lhe o atomista grego que estaria na base de um materialismo e que,

    possivelmente, poderia se opor a uma longa tradio idealista e metafsica que definiu os

    rumos do pensamento Ocidental. Para seguirmos os passos de Marx, na sua leitura de

    Demcrito num confronto com a fsica epicurista, faz-se necessrio um pequeno

    comentrio obra do atomista grego a partir de alguns comentadores do sculo XX. 2 O

    2 Trabalharemos com os comentrios a Demcrito elaborados por: Digenes Larcio em Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres; Jos Gabriel Trindade num texto intitulado Hegel gli atomisti; Frederico Alberto Lange no livro Historia del materialismo Tomo I; J. M. Gabaude no livro Le jeune Marx et le matrialisme antique; Robert Lenoble no ensaio Histria da idia de natureza ; o pequeno ensaio de Paul Nizan intitulado Os

  • 5

    mais conhecido terico do atomismo grego viveu bem provavelmente no sculo V a. C. No

    entanto, apesar de sua fama claramente justificada na Antiguidade tanto Aristteles,

    quanto seus discpulos, como Lucrcio e Epicuro, dedicaram tratados sua obra -, a vida

    de Demcrito , para ns contemporneos, um livro praticamente fechado (BARNES,

    1997; LENOBLE, 1990). Digenes Larcio, que elaborou um compndio muito conhecido

    entre os estudiosos do pensamento greco-romano intitulado: Vidas e doutrinas dos

    filsofos ilustres, pertencente ao sculo III de nossa era, estabelece um perfil (nem sempre

    confivel) do pensador atomista e com resultados muito limitados diante do material

    disponvel (NIZAN, 1972). Demcrito parece ter tido, para os padres antigos, uma vida

    longa, de cerca de 460 a 385 a. C. Isto foi muito antes que os gregos desenvolvessem o

    interesse por biografias, que atingiu o pice por volta de 100 a. C., com a obra de Plutarco

    sobre grandes figuras entre os gregos e romanos. Demcrito, alm disso, viveu em Abdera,

    e no em Atenas, ento o centro do universo intelectual dos gregos e do mundo, e que foi

    descrita, com patriotismo, pelo seu contemporneo mais jovem, Plato, como a sede da

    sabedoria. J Abdera era uma espcie de assentamento na costa setentrional do mar

    Egeu, fundada na sia menor por volta de 540 a. C. por gregos da Jnia, oriundos de Teos,

    e que, na poca de Demstenes, tinha adquirido uma reputao de estupidez e tolice.

    Demcrito tinha a fama de realizar muitas viagens dentro e fora da Grcia. Segundo

    Digenes Larcio, uma viagem marcante na vida do pensador grego, as suas andanas

    pelo Egito e sua busca de conhecimento da geometria desenvolvida naquela regio. O

    pensador do tomo pertence a uma longa tradio da filosofia antiga grega, que viveu o

    florescimento das relaes cientficas entre os Ocidentais e Orientais. Influncias que

    chegaram Grcia de pases como: Babilnia, Prsia e, sobretudo, do Egito. As

    investigaes no-religiosas da natureza foram uma marca da tradio grega e Demcrito

    um expoente desse tipo de conhecimento laico. Essa investigao consistia em tentar

    descobrir, em primeiro lugar, do que era feito o Cosmos no-humano, antes de procurar

    saber como ou por que ele era do jeito que era (LENOBLE, 1990). Havia uma preocupao

    entre os primeiros pensadores gregos em especular sobre o constituinte mais elementar da

    matria. Entre outras coisas, predisseram eclipses, descobriram e interpretaram fsseis,

    desenharam mapas do mundo, e negaram que o Cosmos tivesse sido criado, nem mesmo

    materialistas da antiguidade e por ltimo, o trabalho de Jonathan Barnes Filsofos pr-socrticos. O interesse imediato do nosso comentrio no fazer uma discusso pormenorizada da obra e da doxografia do atomista grego, longe disso. O nosso intento apenas clarear a presena de Demcrito na obra de Marx e de como o pensador grego foi de grande importncia para uma primeira crtica materialista da religio feita pelo pensador alemo em questo.

  • 6

    por deuses. Aqui entra o Demcrito que interessava a Marx, aquele em que a suspenso da

    crena no divino, ou, pelo menos, a remoo do divino, como concebido

    convencionalmente (segundo os mitos), das hipteses explanatrias, foi movimento

    fundamental do seu pensamento. Para Marx, era preciso enfatizar o quanto essa posio

    filosfica do atomista foi extraordinria (MARX, s.d., p.20). Com Demcrito, segundo a

    leitura entusiasmada de Marx, a distino e separao do que chamaramos de religio e

    cincia foi vital para o projeto intelectual da investigao da natureza. O pensador alemo

    toma isto como o cerne essencial do que denominou de iluminismo grego. Leitura

    claramente anacrnica e bastante criticada hoje por estudiosos da filosofia grega clssica

    (BARNES, 1997; SANTOS, 2000). Porm, para nosso estudo das influncias sofridas por

    Marx na sua leitura da teoria atmica de Demcrito, se h ou no anacronismo no que

    afirma o pensador alemo, no importa tanto. Marx, ao entender a teoria de Demcrito

    como aquela que no precisa de nenhuma hiptese divina, deriva seu primeiro

    materialismo e sua crtica da religio desse ponto. Nada deriva do acaso, mas tudo de

    uma razo e sob a necessidade, eis uma frase tipicamente materialista atribuda a Leucipo

    e adotada integralmente por seu discpulo Demcrito, que muito inspirava o pensador

    alemo no momento de redao da sua tese em 1839-1840 (GABAUDE, 1970).

    Cabe aqui uma pequena ressalva, na tentativa de situar melhor a obra de Demcrito.

    Hoje em dia, o pensador grego inelutavelmente identificado com o atomismo, tido

    mesmo como um atomista puro sangue, sendo por isso referido ao domnio da cincia (e,

    nesse sentido, Marx um grande divulgador dessa leitura de Demcrito). Mas na Grcia

    antiga, assim como na renascena e at o sculo XVIII, o conhecimento era considerado

    um saber unificado, e no a soma de conhecimentos distintos e especializados. E

    Demcrito era protagonista em todas as formas de conhecimento e sabedoria reconhecidas

    na poca; um terico abstrato de primeira grandeza (e nisto Marx no errou no elogio a

    Demcrito), mas tambm um pensador com inclinao eminentemente prtica. possvel

    afirmar, a partir do texto de Jos Gabriel Trindade, que ele foi no somente um fsico, mas

    tambm um escritor cosmlogo, gelogo e mdico, um filsofo da tica e da poltica, um

    pensador original e importante para a cultura ocidental. De qualquer forma o ponto

    principal a ser registrado no nosso trabalho o da esfera da cincia fsica, por ser essa

    parte que mais influenciou e definiu os rumos de uma concepo de natureza na tese de

    Marx e no confronto estabelecido com Epicuro. na fsica e epistemologia (palavras

    marcadamente da cincia moderna) de Demcrito que iremos nos concentrar e arrancar

  • 7

    dela uma primeira crtica da religio na cultura ocidental, na esteira dos comentrios de

    Marx.

    O Cogito ergo sum de Descartes est na raiz de toda especulao filosfica

    racional do Ocidente. A tentativa de dar alguma certeza s formas de conhecimento era, na

    poca de Demcrito, um problema muito relevante, mesmo existindo posies

    relativistas, como a encarnada pelo movimento sofista. Num outro lado do conhecimento

    estava a tradio monista, estava Parmnides de Eleia. Plato, compreensivelmente,

    considerou este ltimo o progenitor de sua prpria doutrina, de que o conhecimento e a

    verdade eram ambos possveis e quase tautologicamente necessrios, uma vez que o

    conhecimento tem de ser aquilo que realmente , e aquilo que realmente , , ao mesmo

    tempo, absolutamente verdadeiro e impermevel ao fluxo e mudana3. Entre os Sofistas

    de um lado, e Parmnides, do outro lado, Demcrito ocupava, caracteristicamente, uma

    posio intermediria e moderada. No entanto, percebemos em alguns fragmentos

    atribudos a Demcrito que o conhecimento da verdade absoluta no era, a seu ver,

    acessvel simplesmente: O homem precisa aprender a partir do princpio de que ele est

    longe da verdade; No entanto, ficar claro que conhecer como cada coisa na realidade,

    um quebra-cabea; No sabemos nada verdadeiramente, pois a verdade se encontra

    escondida nas profundezas 4

    Neste ponto, Demcrito concordaria com os Sofistas, principalmente com Grgias.

    Por outro lado, percebemos em outros fragmentos que a evidncia emprica dos sentidos,

    conforme interpretada dentro do esquema atomista, d alguma margem de interpretao

    para avanarmos alm do convencionalismo meramente relativista:

    No sabemos nada de verdadeiro sobre coisa nenhuma, mas para cada um

    de ns opinar rearranjo de tomos na alma. Na verdade, ns no sabemos

    nada infalivelmente, mas somente na medida em que as coisas mudam de

    acordo com a disposio do nosso corpo, e das coisas que entram nele e se

    impingem nele (CARTLEDGE, 2001, p. 22).

    3 Utilizamos como comentrios obra de Plato a tese de doutoramento de Luiz Carlos Zubaran intitulada: A gnese do conceito de verdade na filosofia grega, principalmente os captulos referentes a Herclito, Parmnides e Plato. Um outro comentrio ao pai da academia Ocidental so os ensaios de Henrique Cludio de Lima Vaz que esto no livro Ontologia e Histria. 4 Utilizamos a traduo dos fragmentos de Demcrito feita por Gerd Bornheim no livro Os filsofos Pr-socrticos. Fragmentos. Consultamos e comparamos com a traduo de Jos Cavalcante de Souza para a coleo OS PENSADORES dos mesmos fragmentos Pr-socrticos.

  • 8

    Podemos afirmar que, para Demcrito, a razo pura, sem o benefcio da

    percepo dos sentidos, no avana no conhecimento das coisas. Por outro lado, as

    impresses dos sentidos, e as imagens pelas quais elas so impingidas na mente, podem

    enganar. O caminho para o entendimento pode ser encontrado numa mistura ponderada da

    razo intelectual e da experincia sensorial (LANGE, 1974). Agora, surge um

    problema e que na obra de Marx no aparece claramente: de que modo, ento, a doutrina

    fundamental do tomo e do vazio de Demcrito se encaixa nessa epistemologia?

    Como entender a viso de Marx de que Demcrito era um determinista (MARX, s.d.,

    p.26) diante dessa posio moderada?

    Aquilo que Demcrito, bem como seus devotos companheiros de investigao

    desejavam conhecer, ou ao menos entender, era a Physis, o mundo da natureza

    (BORNHEIM, 1995). A afirmao do intelecto de que na verdade no existe nada alm

    dos tomos e do vazio era uma viso refletida do prprio Demcrito. Mas se esta viso

    deve ser chamada de materialista, ou mesmo ser considerada por Marx como a me dos

    materialistas, uma questo de interpretao que ainda hoje discutida. Para Marx esta

    era uma leitura preciosa para criticar as interpretaes espiritualistas da natureza. Na

    histria do pensamento ocidental existiu um pensador que fugiu regra de fundamentar

    tudo o que existe num conceito metafsico e que imps a observao da natureza e a sua

    composio material a partir da prpria matria, este foi Demcrito para Marx. Eis uma

    tese estratgica para uma crtica radical da religio e das suas pretenses de explicar a

    existncia dentro de esquemas metafsicos. Marx acreditava ter encontrado uma primeira

    chave de leitura materialista para desmistificar o discurso religioso em bases

    epistemolgicas e no apenas de uma opinio contra outra. Estamos tratando de fenmenos

    e no idias abstratas, pensa Marx. Aqui j se inicia um tipo de explicao moderna da

    religio, a saber, entend-la como fenmeno, aquilo que aparece e no mais como

    disputa de conceitos metafsicos (O que ser aprofundado na segunda parte da tese ao

    comentarmos especificamente as obras de Marx na sua crtica ao fenmeno religioso).

    Voltando leitura de Demcrito, podemos situ-la dentro de uma tradio de pensamento

    grego que no via o mundo de modo to claramente cindido. A palavra grega que ns

    entendemos por alma ou mente, psyqu, era frequentemente concebida tendo um forte

    componente material, se no bsico. De fato, aqui Marx tem razo. A alma tomada de

    maneira inteiramente material por Demcrito e nisto se inaugura uma leitura

    absolutamente nova dos fenmenos psquicos. Por outro lado, Demcrito no utilizou o

  • 9

    que ns consideraramos propriamente meios empricos para entender, analisar ou ter

    acesso physis. Por trs da definio pretensamente materialista de tomo e vazio est

    algo que no pode ser definido empiricamente, algo que tem um fundo especulativo,

    significando que no podemos extrair das ideias de Demcrito um materialismo aos

    moldes daquele inaugurado pelos pensadores modernos.

    Em carter de concluso a leitura de Demcrito, podemos afirmar que o cosmos

    tem de consistir de tomo (a-toma) e de no-corpos, ou do vazio, que um espao sem

    nada realmente existente. Aristteles, na sua obra Metafsica e na Fsica, no estava

    convencido disso; para ele, os corpos eram, potencialmente, infinitivamente divisveis

    (ARISTTELES, 1990). Mas, nem mesmo o peso da autoridade de Aristteles foi

    considerado universalmente determinante. Mais significativamente, o seu contemporneo

    mais novo, Epicuro, reafirmou o atomismo, no fim do sculo IV e comeo do III a.C., com

    grande originalidade. Antiteolgico, o pensador do Jardim considerava o atomismo

    como uma espcie de materialismo, e nisso guiou a interpretao de Marx em relao ao

    atomismo de Demcrito. Ento, por que era to importante para Demcrito que o

    atomismo fosse correto e cumprisse as suas funes de explicao? Por um lado,

    negativamente, em razo daquilo ou daqueles contra os quais ele estava argumentando, ou

    seja, principalmente a escola dos eleatas, que defendiam um universo de estado imutvel

    (Parmnides e seus seguidores). Estes pensadores conservadores eliminaram a gerao e

    a destruio de sua viso de mundo, uma vez que tais processos envolviam,

    inadmissivelmente, em sua opinio, estados anteriores e posteriores do nada, e eles

    afirmavam que aquilo que era, era assim eternamente imutvel. As implicaes estticas de

    sua filosofia material, para teoria social e para poltica, agradaram enormemente a Plato,

    que aplicou os critrios eleticos aos conceitos morais, produzindo, assim, as suas formas

    perfeitas, imutveis, que, por sua vez, constituam base de verdades ticas objetivamente

    fundamentadas. Demcrito aceitou o postulado da eternidade dos eleatas nada pode vir

    do nada -, mas, decisivamente, ele rejeitava o seu postulado esttico: assim como

    Herclito, um predecessor jnico de feso, ele acreditava que tudo estava em fluxo. Aqui

    fica explicado o entusiasmo do jovem Marx com o pensamento de Demcrito: um

    pensamento materialista e dialtico (ambos os termos no sentido moderno que era

    dado pelo prprio Marx, na esteira de Hegel). Os tomos de Demcrito ajudam-no,

    positivamente, a explicar, de modo satisfatrio, ao menos muitos outros quebra-cabeas,

    sem falar na natureza do prprio universo... Sem recorrer s muletas de alguma

    divindade e s com o uso investigativo-especulativo da razo e da experincia. Mas, para a

  • 10

    construo da crtica marxiana da religio, Demcrito e sua teoria materialista do tomo

    e do vazio foram apenas um primeiro passo e que ser completado inicialmente com a

    leitura de Epicuro na sua concepo de natureza, liberdade e do seu pensamento

    antiteolgico. Com o pensador do Jardim, fecha-se um primeiro crculo de influncias do

    jovem Marx no que diz respeito a uma sistemtica crtica do fenmeno religioso.

    notria a simpatia de Marx por Epicuro muito mais do que por Demcrito,

    mesmo respeitando e admirando em muito o pensador do tomo. perfeitamente

    explicvel dentro do contexto em que o filsofo alemo escreve a sua tese, como afirma

    Jos Amrico Motta Pessanha no prefcio edio brasileira da tese de Marx: Trata-se de

    um Marx que exalta Prometeu, o rebelde que concede aos homens o fogo da libertao.

    Um Marx que, por isso mesmo, s pode identificar-se com Epicuro, em quem encontra um

    tipo de materialismo capaz de levar liberdade que sempre principia pela rejeio dos

    absolutos transcendentes e aterrorizadores (PESSANHA, s.d., p.13). Eis o projeto de Marx

    e a razo fundamental pela prioridade de estar de acordo com Epicuro e discordando de

    Demcrito: o tema da liberdade e de sua fundamentao moderna no-metafsica.

    Iniciaremos com um comentrio geral filosofia de Epicuro e o seu significado no

    pensamento ocidental e depois relacionaremos diretamente com o Epicuro de Marx.

    Epicuro5 um pensador extraordinrio na filosofia ocidental. Cidado ateniense, nasceu na

    ilha de Samos em 341 a.C., seis anos depois da morte de Plato, em 347, e seis anos antes

    de Aristteles abrir sua escola no Liceu. Em 306 Epicuro abriu o Jardim (FIGUEIRA,

    2003), sede da sua escola de filosofia, que na sua morte em 271 a. C. havia se tornado

    influente em todo o mundo grego. Epicuro viveu o trgico perodo que se seguiu

    hegemonia macednia no qual o imprio de Alexandre foi disputado pelos seus sucessores;

    uma poca em que a atividade poltica parecia particularmente ineficiente. Da ele pregar

    aos seus seguidores uma espcie de materialismo contemplativo, no qual poderiam-se

    perceber implicaes prticas mais radicais (MORAES, 1998; DUVERNOY, 1993). A

    filosofia de Epicuro teve grande impacto no pensamento da antiguidade at a era romana,

    5 Trabalhamos com a edio das obras de Epicuro organizada pelo catedrtico espanhol Jos Vara Epicuro: obras completas, edio espanhola. Utilizamos ainda a edio organizada, traduzida e comentada por Joo Quartim de Moraes Epicuro: mximas principais. Os comentrios do professor da UNICAMP foram fundamentais na leitura do pensador do jardim e na sua relao com Marx. Quanto aos comentadores, utilizamos vastamente os trabalhos de Markus Figueira Epicuro: sabedoria e jardim; o livro de Jean-Francois Duvernoy O epicurismo e sua tradio antiga, texto precioso por sua anlise profunda da obra de Epicuro e de seu significado na cultura Ocidental; o ensaio de Luciano Cnfora Epicuro e Lucrcio: o sentido dos tomos; o trabalho de Reinholdo Aloysio Ullmann Epicuro: o filsofo da alegria; e por fim, um belssimo ensaio de Jos Amrico Motta Pessanha As delcias do jardim, palestra que tem como tema central a questo da tica em Epicuro.

  • 11

    mas a sua obra havia quase se perdido durante a Idade Mdia, quando ele e seus seguidores

    foram includos entre os principais adversrios herticos do cristianismo. Assim, na era

    moderna, sua obra era conhecida principalmente atravs de fontes secundrias6, sendo a

    mais importante a grande obra do poeta romano Lucrcio De rerum natura, que

    basicamente repete a fraseologia do mestre.

    Para um melhor entendimento do surgimento do epicurismo e da atrao que essa

    filosofia exerceu no jovem Marx, torna-se necessrio entender as circunstncias poltico-

    sociais e tico-religiosas da poca do mestre do Jardim. Epicuro no olhava com muita

    simpatia o estgio em que vivia a Cidade-Estado ateniense e a prtica poltica

    consequente da mesma. A polis se lhe afigurava sinnimo de vida leviana e de injustia

    social (DUVERNOY, 1993, p.16). Informam-nos alguns pensadores que, nos sculos IV e

    III a.C., a moralidade pblica decrescera em todo o mundo grego (DUVERNOY, 1993;

    MORAES, 1998; NIZAN, 1972). As conseqncias eram imediatas diante de tal quadro: a

    avidez pelo poder, a avareza e a ambio tinham levado os homens prtica de crimes

    horrendos. Estava ausente aquilo a que se destina a vida humana na tica epicurista, ou

    seja, a felicidade. Est ausente aquilo que Jos Amrico Motta Pessanha chama de

    sustentculo da philia: A aquisio e a difuso da sabedoria epicurista sustentam-se, com

    efeito, na philia que liga os discpulos numa sociedade de amigos, que os vincula

    fortemente ao mestre e une todos mesma doutrina (PESSANHA, 1992, p.63). Na

    discusso sobre a plis entre os gregos, Epicuro opta pela vida simples, justa, virtuosa.

    Tanto a opo do pensador do Jardim pela vida simples como pela sociedade de

    amigos tornam-se fascinantes para um hegeliano de esquerda da primeira metade do

    sculo XIX e Marx no foi uma exceo. Numa Alemanha atrasada em relao aos pases

    europeus que viviam uma modernidade poltica, a volta aos gregos do perodo da crise

    helnica era uma espcie de farol que iluminava os tempos de obscuridade ideolgica em

    que estava imerso um significativo grupo de intelectuais alems do citado perodo. No caso

    de Marx, fica ainda mais claro quando explicitamos a posio tico-religiosa epicurista.

    Segundo algumas cartas de Epicuro aos seus discpulos, podemos perceber uma atmosfera

    marcada pela superstio. A prtica religiosa estava plena de temores. Ora, o medo

    6 Em um texto introdutrio a uma traduo das Mximas principais de Epicuro, Joo Quartin de Moraes nos chama a ateno para o uso das fontes epicureia. Durante um bom tempo (mais precisamente, em toda a Idade Mdia), foram utilizadas fontes secundrias para comentar a obra do pensador grego e isto levou a leituras distorcidas ou reducionistas (o que no foi o caso do poema de Lucrcio, fiel discpulo de Epicuro. As distores se deram principalmente por tericos cristos). Por isso, optamos pelas tradues de Jose Vara (edio espanhola das obras de Epicuro) e a de Joo Quartin de Moraes (edio brasileira das Mximas).

  • 12

    escrupuloso das divindades no boa para a prtica religiosa no entendimento de Epicuro.

    A sociedade grega estava marcada por prescries de evitar contato com sepulturas ou

    cadveres; temor de maus pressgios; necessidades de fazer explicar os sonhos, atravs dos

    quais os deuses fazem revelaes aos homens; crena na virtude purificadora de certos

    ramos de rvores e da gua do mar; pnico provocado pelo encontro com um louco ou

    epilptico; venerao do lugar em que uma serpente penetrou para dentro da casa, etc. Um

    trao tpico da superstio que seu ritual se repete indefinidamente, como temor de o

    primeiro no ter garantido eficcia. O que podemos concluir desse contexto religioso? Que,

    para muitssimas pessoas, a religio tornara-se uma horrvel servido, pesando,

    tremendamente, sobre as almas, presas de um formalismo estril. A religio grega eivada

    de mitos os mais variados, minada pelo ceticismo, destruda de qualquer seiva fecunda,

    reduzira-se a um sistema de utilitarismo e pragmatismo ridos, a um conjunto de ritos,

    sem significao nenhuma7. Numa frase lapidar de Paul Nizan: Nunca um povo de cultura

    to avanada teve uma religio to infantil (NIZAN, 1972, p.27). Referindo-se

    superstio ansiosa e angustiante dos tempos de Epicuro, com mil novos cultos,

    misticismo, promessas soteriolgicas no alm-tumba, Lange denomina esse caldo de

    cultura marcado por um clima de irracionalidade senil (LANGE, 1974, p.85), em

    contraste com a sbria espiritualidade epicureia. No grupo da superstio, a adivinhao

    ganha destaque, onde a observao de entranhas das vtimas e os fatos prodigiosos onde

    tudo se constitua em matria de pressgios, era modalidade marcante na poca de Epicuro.

    Aos augures e adivinhaes se obedecia cegamente, tanto na Grcia, como

    posteriormente em Roma. A arte divinatria de um e de outro se valia de meios

    diferentes, conquanto a predio do futuro constitua-se meta comum. Aqui um

    depoimento sobre a posio do filsofo do Jardim vem a calhar: Nada Epicuro detestava

    tanto como a predio das coisas futuras (DUVERNOY, 1993, p.58). E Marx radicaliza:

    o maior filsofo das luzes, dentre os gregos (MARX, s.d., p. 09). Descontando um certo

    anacronismo justificvel na frase de Marx, temos que reconhecer que o pensador alemo

    definiu muito bem a posio iluminista de Epicuro e o situa na contramo do tipo de

    religiosidade praticada poca do perodo chamado de helenismo. Consequentemente, de

    acordo com a predio, os magistrados convocavam ou no assembleias para eleies; os

    generais empreendiam ou no campanhas blicas. Para Epicuro a Atenas de sua poca

    7 Muito diferente era o perodo de ouro do mito grego: os tempos homricos e hesodicos. Podemos ver essa leitura no trabalho de Jos Gabriel Trindade Santos no livro intitulado: Antes de Scrates: introduo ao estudo da filosofia grega, mais precisamente no capitulo: Aspectos do mito na cultura grega.

  • 13

    estava infestada de medos supersticiosos, razo pela qual sua filosofia far um combate

    sem trguas a tais crenas. Mas Epicuro vai mais longe na crtica s prticas mgicas.

    Percebe-o que essas artes divinatrias esto espalhadas na estrutura do estado. Nobres e

    polticos em geral controlam a religio, a exposio da lei e a interpretao da vontade dos

    deuses, no sem colher os benefcios para si prprios. Era como se a religio colaborasse

    para manter o controle pelo medo e como se fizessem parte da ao poltica artifcios

    religiosos enganadores para agradar a sditos ou eleitores8. Para Epicuro a grande

    multido permanecia ligada a seus deuses, num misto de temor e esperana. Temor de,

    em virtude de qualquer omisso, embora involuntria, no ritual religioso, ter ofendido a

    divindade. Esperana, porque sacrifcios, oferendas e purificaes poderiam aplacar a fria

    dos deuses. E, para piorar, o temor dos deuses no era apenas um suplcio para a vida

    presente. Estendia-se vida aps a morte, eternamente infeliz, no Hades, conforme lemos

    no principal discpulo de Epicuro: J no h motivos nem possibilidade de descanso,

    porque devem ser temidas penas eternas na morte (LUCRCIO, 1988, p.90). Epicuro

    tornara-se um crtico implacvel da idia de que a clera dos deuses e sua punio dada aos

    mortos exerciam um papel de terror, na religio dos gregos. Temos aqui mais um ponto de

    atrao dos estudos do jovem Marx com relao obra do filsofo do Jardim: ambos

    foram crticos radicais de qualquer forma de superstio.

    Contra a superstio, a ansiedade e o medo da morte, Epicuro postulou o que foi

    chamado de tetraphrmakos, ou seja, o remdio qudruplo, traduzido por alguns

    estudiosos como quadrifrmaco (FIGUEIRA, 2003; MORAES, 2006; DUVERNOY,

    1993). Nele encontramos os seguintes postulados:

    Nenhum temor dos deuses: Antes do mais, cr que a divindade um ente eterno e

    feliz... e no lhe atribuas nada que seja contrrio sua eternidade ou incompatvel com a

    sua felicidade (EPICURO, 1995, p.88). Aqui se percebe claramente que os deuses so

    perfeitos e no devemos, portanto, tem-los, nem deles esperar nada, pela simples razo de

    que, vivendo em eterna satisfao, eles conosco no se preocupam. A imagem de um

    Epicuro iluminista, to fortemente presente na leitura de Lucrcio e Marx, vinculou-se

    ao efeito libertador da desmistificao dos deuses. A ruptura com a religio astral associa

    hedonismo e iluminismo, busca do prazer propcio e eliminao dos sofrimentos

    8 Percebe-se aqui uma semelhana na crtica de Marx religio. O pensador alemo saber tirar algumas consequncias da posio epicurista para entender e criticar a religio crist na Alemanha do sculo XIX e suas vinculaes polticas. Dir Marx uma frase que poderia ter sido tirada da boca de Epicuro: a crtica do cu transforma-se em crtica da terra. Afirmao extraordinria que ser analisada mais na frente, mais precisamente na segunda parte do trabalho.

  • 14

    provocados pela ignorncia. Se os astros fossem deuses, os temores supersticiosos

    engendrados por pestes, eclipses e turbulncias metereolgicas justificariam os sacrifcios,

    at humanos, para aplacar a ira de deuses colricos ou adivinhar o futuro examinando as

    entranhas das vitimas imoladas. , pois, compreendendo que os deuses so indiferentes ao

    nosso destino e que a morte a dissoluo do composto que somos, que nos livramos do

    terror e do temor.

    Nenhum temor da morte: Ademais, acostuma-te com a ideia de que a morte, para

    ns, no nada. Todo o bem e todo o mal repousam somente na sensibilidade; ora, a morte

    a privao da sensibilidade... Destarte, a morte, o mal mais terrvel, no nada para ns...

    por isso louco quem diz temer a morte (EPICURO, 1995, p.88). A morte nada para

    ns, pois o que se dissolveu no tem sensao e no ter sensaes o nada para ns.

    Epicuro refere-se perspectiva de nossa prpria morte. Claro que a morte dos entes

    queridos nos faz sofrer, mas, justamente sofre quem, permanecendo vivo, sente a falta de

    quem morreu. Quando nosso corpo se tiver convertido em p e cinzas, no haver

    sentimento nem pensamento, j que no mais seremos. Na carta a Meneceu,

    desenvolvendo este argumento, acrescenta: Enquanto estamos presentes, a morte est

    ausente; quando ela se apresenta, j no mais estamos (EPICURO, 1995, p.88). Fica claro

    que, para o mestre do Jardim, a vida se desenrola entre dois plos: nascimento e morte.

    Antes de comentar os dois ltimos postulados do tetraphrmakos, podemos afirmar que a

    terapia do qudruplo remdio pode ser dividida em duas partes. Uma contendo os dois

    primeiros remdios e as outras os dois ltimos remdios. Os dois primeiros, dirigindo-se

    unicamente ao intelecto, exercem efeito teraputico imediato. Basta compreender a

    natureza das coisas: no so deuses, mas sim os tomos em movimento que regem o

    Universo; a morte apenas separao dos tomos componentes do organismo. J o terceiro

    e o quarto remdios so propriamente ticos, ensinam a lidar com o prazer e com a dor.

    A felicidade est no prazer: uma tese extraordinria de Epicuro a de que

    precisamos aprender a buscar a felicidade, isto , ela no nos natural. Tal aprendizagem

    apia-se no apenas, como nos dois primeiros remdios, numa descoberta intelectual, mas

    principalmente em constantes exerccios. A amplitude dos prazeres se delimita pela

    presena de tudo que o organismo carece, e pela ausncia de tudo que faz sofrer. Assim

    como a morte o limite da vida, a supresso de dor e de sofrimento, fazendo emergir

    plenamente o prazer de viver, abre espao para uma vida prazerosa, que o bem supremo.

    O mais refinado alimento de nada nos serviria se no saciasse nossa fome. O prazer que

    seu refinamento nos proporciona ser sempre menor do que a supresso do sofrimento que

  • 15

    nos causava o estmago vazio. Ultrapassar este limite na insensata busca de prazeres

    maiores enveredar pelos excessos e preparar frustraes. Busca sem rumo, que nos levar

    a sofrer mais do que desfrutar. Da a afirmao de Epicuro: Onde estiver o prazer, e

    durante o tempo em que ele ali permanecer, no haver lugar para a dor corporal ou o

    sofrimento mental, juntos ou separados (EPICURO, 1995, p.89). Podemos entender que a

    mesma sensao no pode ser simultaneamente prazerosa e dolorosa. Mas tambm

    possvel entender, levando em conta a mxima seguinte, que examina o limite no tempo da

    durao da dor, que a incompatibilidade a que a afirmao epicureia se refere diz respeito

    sensibilidade em seu todo. Se as sensaes prazerosas predominam, as sensaes dolorosas

    e as angstias permanecem latentes, quando no so suprimidas. As leituras mais recentes

    desse postulado tico epicurista assumem a posio de que a supresso da dor no , ela

    prpria, prazer, mas a condio para que esse possa emergir; o prazer no , pois, mero

    reverso da dor, uma dor negativa (FIGUEIRA, 2003; MORAES, 1998).

    A dor contnua no dura longamente na carne: Essa mxima suscitou as mais

    diversas interpretaes e no podemos aqui fazer um balano dos diversos comentrios

    feitos ao longo da histria do pensamento ocidental, por razo bvia: no o tema do

    nosso trabalho de pesquisa. Ficaremos com os comentrios j consagrados pela tradio

    recente de observao sobre a obra de Epicuro. Para mostrar que podemos suportar a dor, a

    presente mxima considera a durao da dor contnua relativamente sua intensidade e

    sua compatibilidade com o prazer. A dor extrema, no limite do insuportvel, dura pouco

    tempo. Dela logo nos livramos, ainda que seja pela morte. Sobre esses quatro

    princpios/postulados repousa a filosofia materialista/atomista de Epicuro. Acreditamos

    que no fica muito difcil de entender por que Marx se sentiu atrado pelo pensamento

    epicurista. Afirma Marx: Epicuro constitui um personagem totalmente diferente. Ele

    encontra a satisfao e a felicidade na filosofia (MARX, s.d., p. 24). O pensador alemo

    via no filsofo do Jardim o grande desmistificador das supersties de toda ordem, que

    marcava o pensamento helenstico imerso numa crise de sentido do prprio ato de filosofar

    e viver de acordo com uma filosofia racional. A crtica s diversas formas de superstio

    no um privilgio nico de Epicuro. Alguns pensadores anteriores ao mestre do Jardim

    j haviam feito tal crtica. Por exemplo: Xenfanes de Colofon (poeta e filsofo do final do

    sculo V a.C.) o primeiro de uma corrente terica que se insurge contra todo

    antropomorfismo de representao do divino. Xenfanes defende que s existe um deus,

    dessemelhante dos mortais, tanto na forma como no contedo: Um deus, o maior entre

    deuses e homens, em nada igual aos mortais: em corpo ou em pensamento.

  • 16

    O fragmento de Xenfanes ecoou em boa parte das filosofias que se posicionaram

    criticamente em relao religio na cultura ocidental. Basta citar a principal tese de

    Feuerbach9 sobre a reduo da teologia antropologia, para entendermos a importncia da

    teologia do pr-socrtico de Colofon. Segundo Jos Gabriel Trindade dos Santos, em um

    trabalho sobre a teologia iluminista de Xenfanes: A lucidez da crtica impressiona,

    mesmo num grego. No se nota o mais leve trao de f, nesta relao com a divindade, em

    que s a razo aparece a explorar a distncia que separa o divino do humano

    (SANTOS,1992, p.153). De Xenfanes, passando por Demcrito e Leucipo, se estabelece

    uma tradio crtica da religio que ter em Epicuro e Lucrcio seu ponto mais alto na

    antiguidade.

    Uma escola que tambm mereceu a crtica do pensador do Jardim foi a escola

    platnica, no que diz respeito sua teologia. A academia platnica tornou-se uma

    espcie de pano de fundo da crtica epicurista no que se refere aos deuses. Os deuses

    astrais de Plato constituem mira de crtica do atomismo epicureu. O pensador de Samos

    parte da seguinte constatao: se do movimento dos astros se cria uma imagem de

    necessidade, de destino implacvel, e se essa necessidade atribuda vontade dos deuses,

    a concluso que os acontecimentos, no mundo, principalmente os que afetam o homem,

    so ordenados por decretos das divindades. No h como fugir ou subtrair-se a eles. Visto,

    muitas vezes, o homem atingido pela dor, deve inferir-se que os deuses, com seu dio,

    perseguem a humanidade. Essa ideia gera angstia e temor permanentes. Epicuro percebeu

    nisso um erro pernicioso. A filosofia de Epicuro uma filosofia da liberdade, j havia

    percebido com muita clareza Marx no sculo XIX e, consequentemente, uma filosofia da

    liberdade jamais poderia aceitar os pressupostos da teologia platnica. Aqui j podemos

    adiantar um elemento da importncia do trabalho de Marx sobre Demcrito e Epicuro: a

    crtica materialista da religio do pensador alemo tem razes na tradio grega antiga e

    isto refora nossa hiptese fundamental, a saber, que a leitura de Marx no meramente

    panfletria, mas est vinculada a uma tradio filosfica grega de origem materialista.

    Sempre com Plato em vista, o pensador do Jardim repudiava a ideia de um

    legislador, na polis ideada pelo mentor da academia. A justia, codificada na cidade

    faustosa, antinatural, afirmava Epicuro. Para ele, existia, na polis primitiva, um

    contrato social primeiro, resultante de uma experincia comum dos homens, como est

    9 Apesar de no fazer uma citao literal do fragmento de Xenfanes, notria a inspirao feuerbachiana do pensador pr-socrtico na sua tese de que se Deus fosse objeto para o pssaro, seria objeto para ele apenas como um ser alado (FEUERBACH, 1988, p. 60-61).

  • 17

    registrado nas Mximas principais: A justia que brota da natureza um contrato

    reciprocamente vantajoso, para que no se cometam nem sofram injustias (EPICURO,

    1995, p.103). As longas especulaes metafsicas no so o ponto mais alto da filosofia

    epicurista. Sua inteno era resolver problemas na ordem prtica, como as demais

    filosofias do perodo helenista. Como discordava, de todo em todo, de Plato, bastava-lhe

    opor-se, item por item. cidade faustosa ops a cidade primignia, simples; aos

    deuses estelares combateu-os com a noo comum de divindade, existente em todos os

    homens; legislao positiva, para manter a justia, contraps a amizade, fundamento e

    origem da sociedade. Epicuro tambm discordava de Aristteles, quando este idealizava o

    Estado plenamente desenvolvido com leis positivas e sanes externas. Porm, o filsofo

    do Jardim acolhe a ideia do estagirita proposta na tica a Nicmaco, no qual analisa,

    minuciosamente, a amizade (ARISTTELES: 1992). Nessa obra, o fundador do Liceu

    chegou a afirmar que o homem amigo de todo homem; que, por ser assim, no h

    necessidade de justia; que esta, em sentido mais amplo, nada mais nada menos do que a

    amizade; que ter amigos algo nobre e divino (ARISTTELES, 1992, p.153-172). A par

    disso, Epicuro encontra, em Aristteles, mais precisamente na tica a Nicmaco, um

    paralelo quanto ao tratamento por ele dispensado aos escravos. Sabemos que o estagirita

    defendia a posio de que h escravos por natureza e, enquanto tais, no podem ser

    objeto de amizade10. Mas, de outra parte, considerando que tambm so seres humanos,

    pode haver manifestao de amizade para com eles. Ambiguidade que marca a

    antropologia aristotlica. Apesar dos pontos de convergncia com Aristteles, no

    devemos obliterar que, para Epicuro, a amizade era um fim, enquanto que o estagirita via

    nela um meio para a ascenso poltica. Em vez de voltar-se para a poltica tradicional

    grega, Epicuro recolheu-se ao jardim, objetivando uma perfeio de verdadeiro sbio. E

    no cansava de proclamar que o homem devia levar uma vida oculta. Ele mesmo se

    pautava pelo axioma que criara: Vive ocultamente (EPICURO, 1995, p.112). A

    existncia assim conduzida traz felicidade e serenidade, semelhante superfcie calma do

    mar que nenhuma brisa perturba (EPICURO, 1995, p. 91).

    Para Marx, a filosofia de Epicuro no surgiu por acaso e nem era apenas um

    prolongamento das filosofias ps-aristotlicas (sentido dado por Hegel s filosofias da

    poca do helenismo). Outros autores, alm de Marx, reconhecem na filosofia epicurista um

    10 Para alguns poucos esclarecimentos a mais sobre a questo da escravido na obra do pensador do Liceu, remetemos ao nosso breve artigo intitulado: A escravido em Aristteles: algumas notas publicado na Revista dos departamentos de Filosofia da UFPB e UFPE Perspectiva Filosfica, Volume II N. 26, 2006.

  • 18

    mrito inegvel: o combate s supersties religiosas a partir de um materialismo no-

    mecanicista e que se pautava pela liberdade. Sendo a filosofia de Epicuro uma filosofia

    materialista da liberdade (WOLFF, 2002), e a questo sendo o tema da liberdade um tema

    central na filosofia dos jovens hegelianos nas suas leituras da situao do Estado

    prussiano na primeira metade do sculo XIX, fica fcil perceber a importncia da filosofia

    do mestre do Jardim na obra inicial de Marx. A concepo materialista/atomista do

    universo e a crtica poltica da religio nas suas mais ignorantes supersties, marcam a

    posio crtica de Marx sobre a situao da religio crist na Alemanha e do restante da

    Europa de sua poca. Voltaremos crtica epicurista da religio na segunda parte da tese,

    quando comentaremos a obra Diferena entre as filosofias da natureza em Demcrito e

    Epicuro, no intuito de analisarmos como Marx retira dos dois pensadores e, em particular

    de Epicuro, sua primeira concepo materialista da religio e, consequentemente, a sua

    primeira construo crtica do fenmeno religioso.

    1.2 A stira como crtica da religio: Luciano e Voltaire

    Partimos de uma constatao fundamental: no h em nenhuma obra de Marx uma

    teoria da stira e muito menos uma teoria da stira como crtica da religio. A nossa leitura

    de sua presena na obra de Marx a partir do estilo e das citaes feitas pelo pensador

    alemo. A verve satrica de Marx era bastante conhecida pelos seus admiradores e

    detratores, e notrio um estilo satrico na escrita de Marx. A nossa inteno, nesta parte

    do trabalho, empreender uma hermenutica especial (ELIADE, 1989, p.10) no que diz

    respeito presena em forma de citao ou inspirao dos textos e estilos de Luciano de

    Samsata e Voltaire. Est claro, para ns, que no pretendemos esgotar a temtica da

    stira, mas fazer um recorte a partir de dois escritores satricos e suas presenas na obra de

    Marx, no que diz respeito crtica da religio, elaborada pelo pensador alemo. Feitas tais

    consideraes, passamos a destacar algumas bases tericas nas quais nos fundamentamos

    para ler o estilo satrico de Marx.

    Como somem os deuses? Chegou um dia a se perguntar o jovem Marx. Responde

    ele, seguindo de longe o esquema hegeliano nas Lies de Esttica: eles (os deuses)

    falecem na primeira vez de modo trgico, na segunda so fulminados pela

    stira/comdia/riso. Afirma o pensador alemo:

  • 19

    A ltima fase de uma formao histrico-mundial a comdia. Os deuses

    gregos, j mortalmente feridos na tragdia de squilo, Prometeu

    acorrentado, tiveram de suportar uma segunda morte, uma morte cmica,

    nos dilogos de Luciano. Por que a histria assume tal curso? A fim de que

    a humanidade se afaste alegremente do seu passado. Exigimos esse

    rejubilante destino histrico para os poderes polticos da Alemanha

    (MARX, 2005, p.148-149).

    notrio o tom satrico de Marx: o Estado alemo do sculo XIX uma anacrnica

    permanncia do Ancien Rgime, apenas uma espcie de comediante de uma ordem do

    mundo cujos heris reais esto mortos (Marx, 2005, p.48). Esta ideia da histria como

    sequncia ininterrupta de momentos, na qual toda repetio um tanto ridcula, j estava

    espalhada em duas obras atribudas a Hegel (leitura importante nesse momento da escrita

    de Marx), em particular nos Cursos de Esttica e na Filosofia da Histria11. Nessa ltima,

    ao comentar o declnio da Repblica romana, Hegel indica a passagem do poder de muitos

    para o de um s. Csar atenuou o conflito interno no Estado, produzindo o conflito no

    exterior. At ele, a soberania universal no atingira os Alpes: Csar abriu um novo teatro;

    ele criou a cena que deveria, doravante, tornar-se o centro da histria universal (HEGEL,

    1995, p.266). O novo dono do mundo se opunha Repblica, mas na realidade, como

    reconhece Hegel: apenas sombra desta ltima, pois tudo o que restava da Repblica era

    desprovido de fora (HEGEL, 1995, p. 265). Acreditando que o novo regime sob o

    domnio de um s seria passageiro, Brutus e Cassius mataram Csar. Destruindo o

    governante, eles imaginavam, voltaria a Repblica. Presa desta espantosa iluso, eles

    quiseram deter a histria. Mas esta os desmentiu. Deste modo, Napoleo caiu duas vezes e

    os Bourbons foram expulsos duas vezes. A repetio realiza e confirma o que, no incio, s

    parecia contingente.12

    Nesse esquema do teatro da histria, Hegel no fala em tragdia ou comdia

    (como o far o jovem Marx). Ele s indica a cena e as sombras. Evidentemente o filsofo

    11 Esses dois textos de Hegel tm traduo para o portugus e foram consultados em nossa lngua. Cursos de Esttica tem traduo direta do original alemo pela editora EDUSP em quatro volumes. J a Filosofia da histria tem uma traduo pela editora da Universidade de Braslia. De modo que seguimos as referncias de Marx aos textos de Hegel com os textos que dispnhamos de traduo do original alemo. 12 Ironicamente, Marx tambm utilizar em uma obra da dcada de 50 do sculo XIX a metfora da repetio da histria inaugurada na filosofia de Hegel. Com um adendo importantssimo: afirmando que Hegel esqueceu de uma coisa, na vez primeira a histria acontece como tragdia, a segunda como farsa. A obra de Marx citada O 18 Brumrio e cartas a Kugelmann de 1852. Obra esta que no objeto da nossa pesquisa, lembrada apenas pela semelhana com a citao hegeliana.

  • 20

    tem na cabea a pea de Shakespeare Julio Csar (pea tambm marcante na viso poltica

    de Marx). Esta tambm uma tragdia e das mais importantes do dramaturgo ingls. A

    repetio do que mudou na histria a inelutvel pedagogia que disciplina os homens para

    o novo estado de coisas do mundo. Neste ponto pode-se ler, nas entrelinhas, uma

    condenao hegeliana dos movimentos restauradores da antiga ordem, destruda pela

    revoluo francesa. Ou seja: Marx aprendeu as lies do mestre, e as aplicou na sua

    leitura do governo alemo de seu tempo. Marx julgou com esta comdia de erros,

    apontando-os no Estado alemo que teimava em vestir as roupas do Ancien Rgime. Este

    governo s poderia mesmo ser um palhao na cena mundial, ao contrrio dos heris,

    como Brutus, cone francs da liberdade republicana. Mas onde Marx buscou inspirao

    para a sua pardia do escrito hegeliano, onde mantm a crena na passagem inelutvel dos

    momentos, o que garantiria o fim definitivo do palhao anacrnico? Nos Cursos de

    Esttica, exatamente no captulo sobre o mundo Romano, intitulado A dissoluo da

    forma de arte clssica. Debatendo a dissoluo da arte e dos deuses, atravs de seu

    antropomorfismo, Hegel pergunta se a passagem dos deuses pagos ao Deus do

    Cristianismo teria sido feita como uma outra das teomaquias, concebidas pela arte. No,

    responde rpido o filsofo. A nova divindade no aparece no terreno artstico, mas fora

    dele, de modo prosaico. No princpio era o Verbo, este um contedo no inventado

    pela arte, mas que existia fora dela. Acreditava e defendia Hegel que aos deuses

    antropomrficos gregos faltava o elemento humano e s o Cristianismo introduziu esta

    realidade na carne e no esprito (HEGEL, 2000, p.237). Tal passagem no poderia ter

    vindo da prpria arte, porque a oposio entre o velho e o novo seria dspar. Caso o

    caminho dos deuses para o Deus cristo fosse obra de arte, a representao de uma luta

    entre os deuses no teria tido imediatamente nenhuma verdadeira seriedade.

    Hegel pertence gerao de pensadores que enxerga, na dissoluo da Polis grega,

    o fim da arte clssica e da tragdia. Destrudo o vnculo entre indivduos e o coletivo,

    lamentado por Plato e Xenofonte, o Esprito torna-se abstrato, surgindo o prosasmo. O

    choque entre ideal abstrato e existncia miservel ocorre, no primeiro instante, no plano

    cmico. Neste, ainda na Grcia, guarda-se a serena jovialidade, caracterstica da cultura

    anterior. A stira vem depois, acredita o filsofo alemo. Numa afirmao extraordinria,

    diz Hegel como foi o surgimento da stira:

    Um esprito nobre, num nimo virtuoso a quem est negada a efetivao de

    sua conscincia num mundo vicioso e tolo, volta-se com indignada paixo

  • 21

    ou sutil argcia e glido amargor contra a existncia que est diante de si,

    ridiculariza ou atira-se contra este mundo que contradiz diretamente as sua

    ideias de virtude e verdade (HEGEL, 2000, p.245).

    Onde colocar a stira na escala dos gneros? Ela no pertence pica nem lrica.

    Nela se mantm o desacordo entre a subjetividade individual, com seus princpios

    abstratos, e a efetividade emprica, no se produzindo, em seu mbito, poesia verdadeira

    nem verdadeira obra de arte (HEGEL, 2000, p.246). A stira acontece como o sumio do

    ideal clssico. Na terra da beleza, a Grcia, pensa o filsofo alemo, no pode existir stira.

    Esta ltima prpria do mundo romano, onde reina a abstrao da lei, sacrificando-se a

    individualidade ao Estado. Inexiste arte bela, livre, grande em Roma. Lrica, pica, drama,

    escultura, pintura, tudo isto veio da Grcia. Prpria Pennsula Itlica, s a farsa grosseira.

    As comdias mais finas, como as de Plauto e Terncio, foram importadas dos gregos. Os

    romanos so particularmente prosaicos e sua stira contenta-se em tornar ridculo o que j

    ruim e feio. Aps a grosseria da vida romana, prosaica e tola, surge Luciano voltando-se

    com leveza contra tudo: heris, filsofos, deuses, passando no crivo os deuses pelo lado da

    humanidade e individualidade. Entretanto, ele se alonga, perdendo-se no palavrrio, no

    simples exterior das figuras divinas e nas suas aes, tornando-se assim particularmente

    entediante. O srio Hegel acha Luciano enfadonho, o que o jovem Marx achar exatamente

    o oposto. Mas por que Hegel tem essa leitura da stira de Luciano? A resposta pode ser

    colhida nas palavras do prprio: No temos mais f naquilo que ele (Luciano) desejou

    destruir e sabemos que os traos dos deuses, se vistos sob o ponto de vista da beleza,

    conservam, apesar de suas caoadas e motejos, a sua validez eterna (HEGEL: 2000, p.

    246). A operao hegeliana sutil: o cristianismo no brota da arte. Logo, ele est a salvo

    da caduquice imposta pelo tempo. Nenhum Luciano moderno poderia passar pelo crivo o

    lado humano, muito humano, das crenas crists. Hegel categrico na sua Esttica:

    Atualmente as stiras no vingam mais. Cotta e Goethe ofereceram prmios para as

    stiras; no foi apresentada nenhuma poesia deste gnero. (HEGEL: 2000, p.247). A

    razo para tal situao da stira, na viso hegeliana, que, chegando-se forma superior de

    cultura crist, no h mais necessidade de stira, nem de comdia. Luciano e sua linhagem

    estariam superados por nosso tempo. Essa posio conservadora de Hegel no que diz

    respeito stira como desmerecimento das coisas srias (entre elas a religio), nos remete

    a uma questo que leva posio de Marx e da esquerda hegeliana, a saber, se no mais

    existe stira, ou se ela perdeu o sentido e Luciano tedioso, o que diria Hegel das obras de

  • 22

    Diderot, Voltaire e outros satricos e de seus textos corrosivos, que ajudaram a explodir a

    conscincia crist, justamente quando o primeiro momento da Revoluo francesa havia

    passado? Para os satricos citados, tediosa era a seriedade imposta vida francesa e

    europeia pela Igreja catlica. Procedimentos estes que s pioraram na contra-revoluo

    piedosa, que desejou manter a f ortodoxa auxiliada pelos saberes e atravs das delaes. A

    posio de Hegel lembra em muito a posio dos metafsicos ironizados por Voltaire, que

    consideravam desagradvel qualquer assunto que rumasse para a crtica dos costumes e dos

    saberes estabelecidos (HOBSBAWM, 1996)13. Parecia difcil, para a chamada esquerda

    hegeliana, entender como era possvel enfrentar o riso lucianesco ou as tiradas satricas

    geniais de Voltaire, usando a obra de Hegel, que mais se aproximava da posio

    reacionria dos cristos ortodoxos, e virulentos defensores da moral e dos bons costumes.

    Um caminho seria entender os escritos de Hegel como trazendo uma dissimulada tese

    antropocntrica que poderia conduzir a um processo de secularizao. Ler Hegel contra

    Hegel, assim far boa parte da esquerda hegeliana. Feuerbach, Bruno Bauer e outros, em

    crticas srias ou satricas, procuraram apontar o Hegel bufo, que representava sob

    mscara piedosa a comdia do fim dos deuses, sobretudo da divindade crist (aqui j

    podemos vislumbrar os precursores da crtica de Marx). Bauer, orientador acadmico de

    Marx, foi o mais frtil e engraado de todos os hegeliannos de esquerda. Na sua obra

    Trombeta do juzo final contra Hegel, ateu e anticristo, um ultimato, publicada em 1841,

    ele faz uma srie de brincadeiras com o vnculo entre Autoconscincia e Absoluto,

    indicando que Hegel trabalhava com imanncia, abolindo a religio em definitivo

    (BAUER, 1972, p.82). Em outra passagem da citada obra faz uma referncia importante a

    Voltaire no que diz respeito afirmao famosa em que o pensador satrico francs manda

    esmagar a infame; bater na infame e esconder a mo. Mas o que pode nos chamar mais

    a ateno para o nosso tema em Marx, a tese de Bauer de que a comdia dissolve a arte e

    a religio e a sabedoria deste mundo torna-se loucura, abrindo caminho para que a

    comdia divina se complete com a nossa prpria loucura (BAUER, 1972). O riso da

    religio quebra sua seriedade e a seriedade da religio no preo o suficiente para o riso

    cmico da stira. Estava aberta a via da secularizao pela stira. possvel perceber por

    que o juzo esttico de Marx diferente do hegeliano, embora mantendo a perspectiva de

    13 O trabalho do historiador Eric Hobsbawm sobre as comemoraes da Revoluo Francesa no seu bicentenrio em 1989 recuperou um pouco este debate sobre o papel da stira e a posio dos bem pensantes metafsicos no perodo da Revoluo Francesa e de sua consequncia para a religio crist e o processo de secularizao desencadeado pela Revoluo. As nossas informaes histricas sobre o perodo da Revoluo Francesa tm como base os trabalhos de Hobsbawm: Ecos da marselhesa e Era do capital.

  • 23

    processo histrico irreversvel. Entre ambos, temos a nova irrupo da atitude

    secularizante, que procurou reduzir a filosofia teolgica alem s dimenses humanas

    (tema do nosso prximo captulo). O reaparecimento de Luciano e a presena de Voltaire

    na crtica satrica da religio marxiana no so gratuitos, e vm logo aps as posies

    feuerbachianas (temtica que ser tratada mais na frente) e das estocadas ferinas de Bauer

    na religio, fazendo tudo terminar em comdia risonha do lado transcendente (lembrando

    em muito o Dilogo dos mortos de Luciano). Sentimos a necessidade nesse ponto do

    trabalho, de fazer uma pequena digresso para situar a obra do Luciano e o seu tipo de

    stira para depois entrarmos em Voltaire e sua crtica satrica da religio, tendo sempre no

    horizonte a perspectiva de situar estes autores em relao obra de Marx e ao seu estilo

    satrico de crtica s formas religiosas (estilo este que chega ao seu ponto mais alto na obra

    escrita junto com Engels A Sagrada famlia). Como notrio, na obra de Marx no

    existem muitas citaes da obra de Luciano de Samsata. Um tema ainda pouco estudado

    na obra do pensador alemo so as fontes literrias em geral, abundantemente utilizadas

    em forma de citaes, epgrafes, parfrases e comentrios vrios. Sabe-se que Marx

    conhecia a literatura greco-romana pelas suas corretas citaes, ou por adotar estilo

    prximo a comediantes/satricos como Plauto e Terncio14 (Marx tinha como mxima de

    vida uma referncia atribuda a Terncio, Nada que humano me estranho), de modo

    que no nenhum absurdo acadmico trabalhar com algumas fontes da stira greco-latina

    na obra do filsofo alemo e de como tais fontes nos informam sobre a sua crtica da

    religio.

    Sabe-se muito pouco sobre a vida de Luciano. Algumas informaes, ainda que

    indiretas, o prprio nos d em obras como O sonho, A dupla acusao, O pescador e

    Apologia (SCHWARTZ, 1965; BRANDO, 2001)15. Sabe-se ao certo que foi um leitor

    de Homero, Simnides, dos trgicos, de Aristfanes, e dos autores de comdias vrias.

    Conhecia muito bem os historiadores, fonte de algumas de suas stiras com os 14 Num ensaio intitulado A propos de la satire o pensador hngaro G. Lukcs faz referncia s fontes satricas de Marx e problematiza as razes hegelianas da diminuio do papel esttico da stira no ambiente intelectual da Alemanha moderna. Numa afirmao brilhante, diz Lukcs: Em Allemagne, la satire est l`enfant-martyr de la thorie bourgeoise de la littrature (LUKCS, 1975:15). Este texto do marxista hngaro foi uma das mais importantes referncias da nossa leitura da stira na obra de Marx e na percepo dos reducionismos de Hegel na sua leitura da comdia no mundo moderno. Para Lukcs, a stira desempenha um papel fundamental na literatura moderna ao trazer para um lugar central a questo da contingncia. 15 O trabalho de pesquisa de Jacynto Lins Brando considerado o melhor e mais aprofundado texto em portugus sobre a obra de Luciano. Trata-se de uma pesquisa de doutorado sobre a obra e o legado do comediante latino na Cultura Ocidental. O livro intitula-se: A potica do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samsata publicado pela editora da UFMG. Este trabalho foi o mais importante texto no auxilio do nosso resumido comentrio da obra de Luciano e da sua presena no estilo satrico de Marx.

  • 24

    antepassados. O que nos interessa nesse momento destacar os escritos satricos de

    Luciano sobre a religio e, nisto, ele quase imbatvel (s sendo alcanado em estilo no

    sculo XVIII por Voltaire). Segundo Jacynto Brando, Luciano escreveu onze dilogos

    satricos16 que tm como tema principal a crtica da religio praticada pela tradio

    greco-romana, em todos eles uma caracterstica comum: desconstruir a seriedade das

    crenas nos deuses e naquilo que eles pretensamente podem fazer aos humanos. Numa

    certa linhagem que comea com Epicuro, o satrico grego quer demonstrar ficcionalmente

    a inutilidade do medo dos deuses e das suas humanas cleras. Enquanto o filsofo Epicuro

    constri argumentos na crtica aos deuses, o artista Luciano elabora fico satrica para

    deslegitimar pelo riso as pretenses dos deuses (estaria aqui uma extraordinria perspectiva

    de crtica da religio: pelo argumento e pelo riso, dois caminhos dos quais, na nossa

    opinio, quem melhor tirou consequncias foi Marx). Dos onze dilogos crticos da

    religio e das prticas dos deuses de Luciano, dois nos chamam ateno e nos conduzem ao

    estilo de crtica de Marx e de Voltaire: Assemblia dos deuses e Dilogos dos mortos. No

    primeiro, temos uma stira religiosa divertidssima e de sria reflexo. J o ttulo nos

    chama a ateno: os deuses em assemblia de carter deliberativo. No dilogo os deuses

    esto reunidos para discutir uma srie de irregularidades, uma delas o consumo excessivo

    de ambrosia e de nctar. H tambm o aumento da populao divina: qualquer um agora se

    torna um deus. Momos faz um discurso violento, criticando a deificao de muitos

    homens, que nem gregos eram e, ainda por cima, trazem seus cortejos, querendo estender

    seus privilgios a todos. Haver uma reviso geral do registro de todos os que entraram no

    Olimpo, principal deliberao democrtica entre os deuses depois de muita discusso.

    Toda documentao ser revista e examinada com muito cuidado, daqui para frente

    nenhum deus interferir nas atividades e especialidades de outro deus. A questo

    filosfico-satrica a de avaliar melhor a atividade dos deuses: da sua alimentao

    exagerada a seus atos prodigiosos. Luciano quer o tempo todo nos mostrar comicamente

    como os deuses so humanos, demasiado humanos e dependem de certos vcios dos

    mortais. Xenfanes j tinha nos lembrado de tal situao dos deuses, e na Alemanha

    moderna ser Feuerbach que far de tal tese o seu principal argumento antropolgico. A

    grande originalidade de Luciano foi argumentar sobre essas coisas de maneira satrica.

    16 Luciano inovou em muito a escrita latina, segundo Jacynto Brando, ao juntar o dilogo e a stira numa mesma estrutura. Deve seu estilo a sua formao retrica e o exerccio da arte, juntamente com a opo pela filosofia (ele chegou a ser reconhecido na sua escrita a um tipo de sofista). A sua stira tem carter argumentativo, sendo isto o que mais chamava a ateno de Marx. Luciano no queria apenas fazer rir, mas fazer brotar a reflexo atravs do riso.

  • 25

    Marx no deixar passar em branco um achado dessa natureza. Articulando Luciano e

    Voltaire, o pensador alemo far uma das mais devastadoras crticas do fenmeno religioso

    de sua poca, bastando notar o estilo de crtica que far aos filsofos alemes ps-Hegel

    (esquerda hegeliana) no uso de termos religiosos de maneira extremamente satrica; e no

    ttulo de uma de suas obras dessa poca fica explcito o tom: A Sagrada Famlia (sem

    dvida, a obra mais satrica de Marx e Engels).

    Luciano no poupa a astrologia, os sacrifcios, os profetas, o destino, temas caros

    religio e ao homem religioso. Seus dilogos ferinos vo desconstruindo um a um os

    argumentos religiosos, comicamente. Um tema caro a Luciano, e importante na

    desmistificao do universo religioso, o tema da morte e a forma de representao dessa

    temtica nos dilogos satricos. As caractersticas do mundo dos mortos, representados

    pelo crtico grego, so uma espcie de variedade temtica, variam de um texto para o

    outro (BRANDO, 2001). Assim, em Das narrativas verdadeiras , Luciano e seus amigos

    visitam a Ilha dos Bem-aventurados e a Ilha dos Condenados, em que se encontram e se

    reconhecem personagens histricos e fictcios, que passam o tempo de modo variado, seja

    aprazivelmente, seja enfrentando terrveis castigos; na Descida ao Hades, a cena

    concentra-se no tribunal de Radamanto, em que os mortos recm-chegados so julgados,

    atribuindo-se a um homem comum, o sapateiro Mcilo, o papel de advogado de acusao

    contra o tirano; no Dilogos dos mortos, enfocam-se variados ngulos do mundo alm da

    vida, onde esto personagens ilustres dentre os gregos, em situao, muitas vezes

    constrangedora. Numa stira genial, situada no dilogo XI, Luciano coloca uma conversa

    entre Digenes e Hrcules no Hades e, como seria absurdo um deus filho de Zeus no

    Hades, ele inventa que a sombra de Hrcules que l est. Hrcules mesmo est no

    Cu. Tem tudo de Hrcules, mas a sua sombra. Desconstruir a seriedade dos deuses

    num lugar como o inferno grego, um objetivo importante perseguido por Luciano.

    bom destacar que a obra de Luciano citada por Marx duas vezes na juventude,

    exatamente o Dilogos dos mortos. No dilogo Menipo, apresenta-se o espetculo mais

    radical. Essa variedade de representaes no deve desconcertar o entendimento do satrico

    grego, uma vez que ele no pretende referendar nem erigir nenhum tipo de escatologia,

    mas, inspirando-se nas diversas concepes tradicionais e jogando comicamente com elas,

    usar o olhar, a fala e a experincia dos mortos e de suas crenas religiosas mesmo depois

    de mortos, para refletir sobre o mundo dos vivos e de suas supersties, muito semelhante

    ao que fez Epicuro nas suas cartas sobre temtica semelhante. Seu Hades ficcional pode

    assim transformar-se no grande desfile carnavalesco em que misturam-se personagens

  • 26

    literrios, histricos e mticos, cuja funo servir de contraponto para a denncia que se

    almeja, no caso, as crendices religiosas sem fundamento, ou com fundamento ideolgico

    de justificar alguma forma de dominao. Nesse item, torna-se impossvel no nos

    reportarmos ao sculo XIX de Marx e ao nosso sculo XXI, no que diz respeito s

    mutaes religiosas de carter conservador e supersticioso. Os fundamentalismos

    religiosos passaram a ser a marca de debates polticos no nosso iniciante sculo XXI,

    segundo um secularizado filsofo como Habermas, citado no incio do nosso trabalho. O

    riso de Luciano ainda uma boa medida de reflexo para o imbrglio religioso em que

    o mundo contemporneo est metido. Voltando a Luciano, percebemos que os mortos se

    tornam acusadores dos vivos na medida em que tanto o Hades quanto a fico se

    identificam como espaos da mais completa alteridade (BRANDO, 200, p.167). Num

    primeiro nvel, porque estes no tm ideia do que significa, na verdade, a vida (recurso

    extraordinrio utilizado por Luciano). A morte, assim, embora seja desgraa, no implica

    necessariamente perda com relao vida, como afirma um defunto personagem: No ter

    sede muito melhor do que beber, no ter fome melhor do que comer e no ter frio

    melhor do que comprar roupas (LUCIANO, 1996, p. 95). Esse argumento constitui uma

    amplificao do estilo satrico de Luciano ao compreender os males da riqueza, em que o

    gozo dos prazeres sempre se mescla com inmeras preocupaes. Mais vantajoso,

    portanto, que gozar dos prazeres da vida, o estado de absoluta falta de necessidades, que

    s se encontra na morte. Os funerais, as honras fnebres, as oferendas, os tmulos so

    assim o que de mais ridculo pode haver, uma vez que em nada fazem diferir a sorte dos

    mortos aos quais se destinam, pois estes j no tm necessidade de nada. A stira, com e no

    lugar dos mortos, uma forma radicalmente crtica de desmistificar as formas religiosas e

    as suas supersties, que conseguiam penetrar as camadas populares gregas com muita

    fora.

    Uma coisa curiosa na obra de Luciano, que trabalha a temtica dos mortos, a de

    que o mundo do Hades comporta castigos contra os que cometeram crimes em vida. Tais

    castigos, geralmente, so destinados a ricos e poderosos, sobre os quais pesam dois tipos

    de tormento aps a morte: de um lado, o prprio igualamento, a perda dos sinais de poder,

    honra e riqueza; de outro, sofrimentos propriamente ditos (e isto no passou despercebido

    por Marx). Como a morte, de certa forma, no deixa de ser a experincia de uma pobreza

    amplificada, ela vem a ser sofrimento principalmente para os ricos, os quais, no Hades,

    tero de mendigar e vender produtos para embalsamar mmias, por falta de recursos

    (LUCIANO, 1996, p.165). Podemos observar como o sofrimento dos ricos traduz-se como

  • 27

    a necessidade de trabalhar, o que decerto mostra a inteno de Luciano ao pintar tal

    quadro: um reino ficcional onde se pensa a igualdade material entre as pessoas s pode se

    realizar como espao em que todos so pobres, pois o que absurdo, em nosso mundo,

    que muitos trabalhem e sofram para que poucos consumam. Traduzir isso numa literatura

    satrica foi o grande mrito esttico-poltico de Luciano, e o que marcou toda uma gerao

    de tericos e revolucionrios da crtica poltica de esquerda. Pode-se concluir daqui que,

    mais terrvel do que estar morto, para um rico, ter de submeter-se a uma vida comum.

    Talvez desta forma, afinal, o reino dos mortos logre obter um nivelamento mais eficaz das

    diferenas sociais: condenando os ricos no morte, mas ao trabalho. Se aprofundarmos o

    tema do trabalho em Luciano e Marx, sairamos em muito da temtica principal, a saber, a

    crtica satrica da religio. O que nos basta ter demonstrado como uma crtica do nvel do

    corpus lucianeum religio grega pode ter uma longa durao na tradio, chegando ao

    Iluminismo francs (Voltaire e Diderot) e a Marx. Ao chamar a ateno para a idia de que

    a ltima fase de uma formao histrico-mundana a comdia (MARX, 2005, p.148) e

    definindo Luciano como aquele que leva os deuses morte cmica, o pensador alemo

    indicava no s uma crtica terica, mas em estilo satrico onde assume a forma do satrico

    grego como sua e chega concluso semelhante (fazendo as devidas propores de tempo

    e espao) no que diz respeito s fantasias e supersties religiosas. Podemos fazer uma

    brevssima sntese do at aqui visto: em Epicuro temos uma fundamentada crtica filosfica

    religio e s suas pretenses; em Luciano temos uma crtica risonha da pretenso dos

    deuses de guiar a vida humana e da no-seriedade das afirmaes religiosas. Assim temos

    duas maneiras de criticar a religio no mbito fenomnico, faltando apenas a moderna

    stira de Voltaire, tambm muito presente no estilo e no contedo da crtica marxiana.

    O tema da crtica da religio parece ser um tema que define a ideia de Iluminismo,

    como bem afirma o filsofo alemo Ernest Cassirer num estudo de altssima importncia

    intitulado A filosofia do Iluminismo publicado em 1932: a atitude ctica e crtica em

    face da religio, eis o que caracteriza a prpria essncia do Iluminismo (CASSIRER,

    1994, p.189) Para nosso trabalho no interessa apenas a crtica da religio, mas a forma

    como essa crtica feita. Quanto influncia das ideias iluministas na obra de Marx, no

    resta mais nenhuma dvida: a crtica marxiana da religio sofre uma forte influncia da

    perspectiva iluminista de passar a religio pelo crivo da razo (MADURO, 1981; LIMA

    VAZ, 2001).

    Segundo Luiz Roberto Salinas Fortes, ser a partir de 1759 que vamos encontrar

    frequentemente nas obras de Voltaire e, sobretudo, no lugar de sua assinatura nas cartas

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    que escreve aos seus inmeros correspondentes a curiosa expresso: crasez linfme

    (FORTES, 1981, p.41). Essa expresso indica uma crtica direta Igreja catlica e s

    formas de fanatismo religioso praticado historicamente por essa instituio, o que gera a

    intolerncia em relao a toda opinio divergente, e leva os homens a se perseguirem

    mutuamente e at a se trucidarem em guerras sangrentas. Mas pode ser tambm a

    superstio e a ignorncia que induzem os homens a prticas cruis e manuteno de

    preceitos do passado. Tanto James Thrower, em Breve histria do atesmo Ocidenal,

    quanto Paulo Jonas de Lima Piva em Atesmo e revolta, afirmam que o cristianismo vivia

    um processo de crise de legitimao e de fundamentao durante os sculos XVII e XVIII.

    Existe, de incio, um problema no domnio do conhecimento: trata-se do conflito entre a

    exigncia de autonomia na pesquisa cientfica e a autoridade dos dogmas cristos (LIMA

    PIVA, 2006). A cincia e a filosofia pretendem colocar em questo qualquer afirmao que

    no possa ser fundamentada racionalmente, enquanto os dogmas religiosos se apresentam

    como verdades eternas, impermeveis ao empreendimento crtico, e objetos de f, domnio

    no qual a razo frequentemente convidada a se calar (THROWER, 1982). Poderamos

    afirmar que, desde o processo do Renascimento e da Reforma protestante, esse fenmeno

    se fazia sentir na cultura ocidental. Da unidade primitiva do cristianismo passou-se

    diversidade de novos grupos religiosos cristos. O domnio cultural exercido pela teologia

    crist foi sucessivamente quebrado por polmicas e discusses pblicas. A perda de

    unidade resultou imediatamente na perda de poder. Segundo Ernest Cassirer na sua obra

    clssica sobre a Filosofia do Iluminismo, uma das primeiras consequncias da

    diminuio do