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A Crítica Da Religião Em Marx _ 1840-1846
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PS-GRADUAO INTERINSTITUCIONAL
EM FILOSOFIA DOUTORADO
A CRTICA DA RELIGIO EM MARX: 1840-1846
ROMERO JNIOR VENNCIO SILVA
Recife/PE 2010
A CRTICA DA RELIGIO EM MARX: 1840-1846
Romero Jnior Venncio Silva
Tese apresentada ao Programa de ps-graduao interinstitucional em Filosofia das Universidades Federais de Pernambuco, Paraba e Rio Grande do Norte, em cumprimento s exigncias para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Fernando Jader Magalhes
Recife/PE 2010
ROMERO JNIOR VENNCIO SILVA
TESE DEFENDIDA EM_______/_______/_______
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Fernando Jader Magalhes (UFPE) Orientador
____________________________________________________________
Prof. Dr. Odlio Alves Aguiar (UFC)
Prof. Dr. Castor Martin Bartolom Rus (UNISINOS)
Prof. Dr. Incio Strieder (UFPE)
Prof. Dr. Antonio Rufino Vieira (UFPB)
SUMRIO
Pg. RESUMO.........................................................................................................................vi ABSTRACT....................................................................................................................vii INTRODUO..............................................................................................................01 CAPTULO I: OS FUNDAMENTOS DA CRTICA MARXIANA DA RLIGIO.................................................................................................................04 1.1 - O Atomismo Antigo: Demcrito e Epicuro.............................................................04 1.2 - A stira como crtica da religio: Luciano e Voltaire .............................................18 1.3 - Hegel e Feuerbach: o lugar da crtica alem da religio..........................................35 CAPTULO II: A CRTICA DA RELIGIO EM MARX: 1840-1846................................................................................................................ .....106 2.1 - A religio como fenmeno scio-histrico: algumas notas metodolgicas..........108 2.2 - A religio como poltica. Marx em 1840...............................................................115 2.3 - Um primeiro materialismo como crtica da religio. Marx em 1841....................122 CAPTULO III: FETICHISMO, RELIGIO E O SIMBLICO: NOTAS BREVES SOBRE MARX E A RELIGIO PS-1846. UMA LEITURA SOMBRA DA PSICANLISE DE SLAVOJ ZIZEK...............................................139 CONCLUSO....................................................................................................... ......150 BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ .154
PGINA AVULSA memria de Gregrio Bezerra (comunista impenitente), Helder Cmara (cristo decente) e Daniel Bensad (um comunista intempestivo) Lideres, o povo No paisagem Nem geografia Para a voragem Do vosso olho Hilda Hilst Aos camaradas de marxismo: Alder Jlio, Arturo Gouveia, Srgio Lessa, Enoque Feitosa, Lorena Freitas, Jonas Duarte, Gonzalo Rojas, Cida Ramos, Jaldes Reis, Jos Neto, Sara Granemamm, Juarez Duayer, Roberto Leher, Regina Behar, Giovanni Queiroz, Manoel Fernandes, Luiz Vicente Vieira e Antonio Rufino Vieira... Todos so (cada um do seu jeito) vnculo da letra com o socialismo Aos amigos no Departamento de filosofia da UFS, Ccero Cunha e Marcio Gimenes... Aos amigos da Paraba, Hugo e Amandinha; Solange Norjosa e Gorete ... Amigo coisa para se guardar A Rafaele e Cludia Camatti... Percursos do gozo e da alegria Aos socialistas no MST, ngelo e Selma Aos lutadores da Consulta Popular da Paraba e Sergipe, por entenderem que... O povo no um rio de mnimas guas sempre iguais Hilda Hilst A Edna Lopes, ... ter um dia amado, amavisse
RESUMO A tese tem por objetivo apresentar e discutir a crtica de Marx religio nas obras escritas entre 1840 a 1846. Est dividida em duas partes. Na primeira trabalhamos os fundamentos tericos presentes na construo da crtica marxiana religio. Partimos do materialismo/atomismo de Demcrito e Epicuro, passamos pela crtica satrica da religio de Luciano e Voltaire at chegarmos concepo de religio do Idealismo alemo de Hegel e Feuerbach. Na segunda parte analisamos os textos de Marx, tendo em vista demonstrar como a crtica marxiana desloca a tradicional leitura da religio elaborada pelo pensamento ocidental teolgico-metafsico para o campo scio-poltico. O filsofo alemo inaugura uma crtica moderna da religio e abre um novo horizonte para a teoria social nos estudos do fenmeno religioso. Palavras-chave: Marx, Religio, Crtica, teoria social
ABSTRACT This thesis has the aim to present and discuss Marxs criticism to religion in his writings between 1840 and 1846. It divided into two parts. In the first part we worked on the theoretical base which are present in the construction to the marxist criticism to religion. We started from materialism/atomicism by Demcrito and Epicuro, though the satiric criticismo of religion by Luciano and Voltaire up to the religion conception of german idealism by Hegel and Feuerbach. In the second part we analysed Marxs texts, religion done by the western theological-metaphysical thought to socio-political realm. The german philosopher begins a modern criticism of religion and opens a new horizon for social theory in the religious phenomena studies.
Key words: Marx, Religion, Criticism, Social theory
INTRODUO
A ideia de apresentar e comentar a crtica de Marx religio (mais precisamente ao
Cristianismo e Judasmo) parte de uma constatao bsica: a posio de Marx no
panfletria ou meramente jornalstica (como imagina uma certa crtica contempornea)
no que diz respeito ao papel da religio no mundo ocidental moderno. H na obra
marxiana, que vai de 1840 a 1846, uma base histrico-filosfica, muitas vezes implcita,
que merece ser pesquisada e explicitada. Em tese, a crtica marxiana desse perodo ao
fenmeno religioso tem base numa certa tradio ocidental que vai do pensamento grego
atomista, passando pela stira (latina e francesa moderna) chegando a Hegel e esquerda
hegeliana(Feuerbach, em particular). O que autoriza tal leitura o acompanhamento mais
detido das obras do pensador alemo da dcada de 40 do sculo XIX, sua rica fonte de
citaes e seu vasto conhecimento que ultrapassa o mbito da filosofia alem, francesa e
inglesa de sua poca. A nossa tentativa terica situar Marx como um clssico nos
estudos e na crtica moderna da religio, ao lado de Weber e Durkheim, por exemplo1, hoje
saudados por uma certa crtica como referncias fundamentais nos estudos do fenmeno
religioso, e ainda mais como aqueles que tornaram a posio de Marx e dos marxistas em
geral como superada e desnecessria no que diz respeito compreenso da religio nos
dias de hoje (SANCHIS, 2003). Para ns, tal posio terica duvidosa, pois a situao
atual de fundamentalismo religioso (Cristo, Mulumano e Judeu) e de alienao fantica
diante do mundo confirma, em muito, a necessria crtica histrico-filosfica da religio.
Cito um pensador insuspeito de marxismo, Jrgen Habermas: Desde a virada de 1989/90,
tradies religiosas e comunidades de f adquiriram, inesperadamente, importncia
poltica (HABERMAS, 2007, p.129). Afora o inesperado, o texto do pensador alemo
s confirma o que no sculo XIX Marx era um dos primeiros a analisar no carter da
religio, a saber, o seu papel inescapavelmente poltico. Como pode estar superada uma
anlise e uma crtica scio-poltica e filosfica da religio no momento em que a religio
torna-se ela mesma escancaradamente poltica?
Acreditamos ser possvel e necessrio aprofundar alguns pontos implcitos na obra
juvenil de Marx, indo s suas fontes para depois chegar anlise de suas obras. Isto no
significa que faremos um corte dicotmico entre as fontes e as obras. No vivel tal
1 Tomamos a concepo de clssico dada por talo Calvino em um ensaio, intitulado: Para ler os clssicos. No ensaio inicial o autor destaca 14 razes que definiriam uma obra como clssica. Marx estaria situado na ideia do clssico como fonte permanente de dilogo entre seu tempo e o tempo presente, assim entendemos.
2
coisa. A relao ser sempre que possvel trabalhar as fontes ligadas maneira como
aparecem nas obras.
O trabalho est divido em duas grandes partes. Na primeira, trabalhamos com os
fundamentos da crtica marxiana da religio. A ideia central demonstrar que antes de
iniciarmos nos textos marxianos entre 1840-1846, ser de importncia fundamental ir s
fontes marxianas, e trabalhar como Marx constri a sua crtica moderna da religio. Nesta
primeira parte, trs so as fontes mais significativas para o nosso trabalho, s quais,
reiteradas vezes, Marx faz referncias. Um primeiro materialismo (mais precisamente,
atomismo) antigo presente em Demcrito e Epicuro. Passamos, em seguida, para uma
espcie de crtica satrica da religio que tem como antecedentes o grego Luciano de
Samsata e o francs iluminista Voltaire, e terminamos essa parte com a presena de Hegel
e Feuerbach como principais nomes das dcadas de 30 e 40 do sculo XIX numa
formulao de uma filosofia da religio na Alemanha, e que a crtica marxiana tem ponto
de partida obrigatria na sua construo terica. Na segunda parte, entramos
definitivamente nas obras marxianas do perodo recortado para o estudo. Iniciamos com
algumas notas metodolgicas sobre os estudos marxianos do fenmeno religioso. Partimos
do pressuposto de que a reflexo de Marx sobre a religio scio-histrica e poltica, e no
metafsica (aqui Marx difere de uma longa tradio filosfica nos estudos da religio na
cultura ocidental). Trabalhamos inicialmente com um artigo de Marx sobre um editorial
179 da Gazeta de Colnia, assinado por Karl Heinrich Hermes, onde um explcito
catolicismo do redator chefe defendido em detrimento de um Estado laico (posio
marxiana desse perodo) e republicano. Em seguida, passamos tese de doutoramento
sobre Demcrito e Epicuro. Aqui o ponto destacado o primeiro materialismo
formulado por Marx, e que serve perfeitamente como uma crtica da religio. Seguindo
uma certa cronologia dos escritos de Marx, chegamos nos textos de 1843 e, em particular,
Para a questo judaica. Ensaio importantssimo para definir os rumos da crtica poltica da
religio. Numa leitura precisa de Jos Paulo Neto ao prefaciar a edio brasileira: Nesse
texto primoroso, o que se registra um pensamento que ultrapassa o espao da crtica
religiosa e atravessa o mbito da crtica poltica no rumo da crtica da economia poltica
(NETTO, 2009 p. 27). Afirmao que serve de rumo para o prximo conjunto de textos de
Marx que destacamos, a saber, Os manuscritos de 1844. Nesses textos percebemos e
comentamos o conceito de alienao como chave para uma crtica poltica e conceitual
da religio moderna. Na nossa leitura, aqui temos um dos textos mais atuais de Marx numa
crtica radical da religio, e que mantm uma imensa atualidade quando procuramos
3
compreender mais atentamente o fenmeno religioso contemporneo. Ainda nesse perodo
aparece o primeiro trabalho de Marx e Engels juntos. Trata-se de A Sagrada famlia, texto
marcadamente satrico, notrio desde o ttulo e que demarca o distanciamento cada vez
maior da posio marxiana em relao chamada esquerda hegeliana. O ensaio uma
crtica contundente aos irmos Bauer e a permanncia dos citados irmos no mbito da
crtica metafsica. Para Marx e Engels, um telogo crtico ainda continua sendo um
telogo, logo, uma crtica teolgica da realidade ainda permanece metafsica. O
problema central no est na religio, mas na sociedade que gera esta religio. Conclumos
a nossa pesquisa destacando a Ideologia alem. Obra tambm escrita em parceria com
Engels e que segundo os principais comentadores, nessa obra que est inicialmente
fundamentada uma concepo materialista da histria explicitamente. A crtica da
religio aqui est acentada numa crtica da ideologia. Religio ideologia e assim sendo,
no se explica a si mesma, mas explicada histrica e socialmente.
Merecem destaque dois excursos presentes na tese. O primeiro vem logo aps os
comentrios crtica materialista de religio, intitulado O Epicuro de Marx. Como o ttulo
indica, trata-se de chamar a ateno para uma leitura muito particular que Marx faz de
Epicuro e que na nossa leitura tem consequncias para a crtica marxiana da religio. J o
segundo excurso nasceu de algumas leituras feitas por ns da obra do filsofo esloveno,
Slavoj Zizek. Trata-se de uma polmica tese de aproximao entre Marx, Freud e Lacan no
que diz respeito religio como sintoma do sistema. Zizek parte do princpio de que
Marx inventou o sintoma do Capital ao tratar do fetichismo da mercadoria. O que nos
interessou diretamente foi a ideia de religio como fetiche. Uma tese pertinente hoje: a
ltima crtica de Marx religio passaria pelo fetichismo da mercadoria. Aqui teramos o
incio de uma outra tese e, por isso, ficamos apenas num modesto excurso.
4
CAPTULO I - OS FUNDAMENTOS DA CRTICA MARXIANA DA
RELIGIO
Posto que no h leituras inocentes, comecemos por confessar de que leituras somos culpados.
Louis Althusser
1.1 - O Atomismo Antigo: Demcrito e Epicuro
Entendemos que o incio mais sistemtico da crtica de Marx religio tem origem
na sua tese de doutoramento sobre as filosofias da natureza de Demcrito e Epicuro. Como
afirma o pensador brasileiro Jos Amrico Pessanha no prefcio da edio brasileira do
trabalho de Marx: No momento em que escreve a tese, Marx est inteiramente voltado
para o problema da religio (PESSANHA, 1991, p.12). Na nossa compreenso, a leitura
de Pessanha correta. No incio da dcada de 1840, Marx trabalhava nas leituras do
tratado teolgico-poltico de Espinoza e numa srie de crticas teologia alem (FOSTER,
2005). A crtica da religio, numa Alemanha ainda com marcas feudais em pleno sculo
XIX, ponto fundamental na filosofia marxiana no seu comeo de elaborao intelectual.
Para o fim que nos propomos, no vamos fazer uma anlise exaustiva e exegtica das obras
de Demcrito e Epicuro. Antes, tentaremos uma leitura a partir dos passos de Marx, e na
sua compreenso de como esses primeiros materialistas gregos foram fundamentais
numa primeira crtica religio na cultura Ocidental.
Demcrito entra na vida de Marx a partir dos poucos fragmentos que restaram do
filsofo, e que j circulavam na academia alem no sculo XIX, e dos comentrios de
Aristteles (muito admirado por Marx e citado em diversos textos), e de Hegel nas suas
Lies de histria da filosofia. O interesse de Marx na obra de Demcrito muito restrito,
isto , interessa-lhe o atomista grego que estaria na base de um materialismo e que,
possivelmente, poderia se opor a uma longa tradio idealista e metafsica que definiu os
rumos do pensamento Ocidental. Para seguirmos os passos de Marx, na sua leitura de
Demcrito num confronto com a fsica epicurista, faz-se necessrio um pequeno
comentrio obra do atomista grego a partir de alguns comentadores do sculo XX. 2 O
2 Trabalharemos com os comentrios a Demcrito elaborados por: Digenes Larcio em Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres; Jos Gabriel Trindade num texto intitulado Hegel gli atomisti; Frederico Alberto Lange no livro Historia del materialismo Tomo I; J. M. Gabaude no livro Le jeune Marx et le matrialisme antique; Robert Lenoble no ensaio Histria da idia de natureza ; o pequeno ensaio de Paul Nizan intitulado Os
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mais conhecido terico do atomismo grego viveu bem provavelmente no sculo V a. C. No
entanto, apesar de sua fama claramente justificada na Antiguidade tanto Aristteles,
quanto seus discpulos, como Lucrcio e Epicuro, dedicaram tratados sua obra -, a vida
de Demcrito , para ns contemporneos, um livro praticamente fechado (BARNES,
1997; LENOBLE, 1990). Digenes Larcio, que elaborou um compndio muito conhecido
entre os estudiosos do pensamento greco-romano intitulado: Vidas e doutrinas dos
filsofos ilustres, pertencente ao sculo III de nossa era, estabelece um perfil (nem sempre
confivel) do pensador atomista e com resultados muito limitados diante do material
disponvel (NIZAN, 1972). Demcrito parece ter tido, para os padres antigos, uma vida
longa, de cerca de 460 a 385 a. C. Isto foi muito antes que os gregos desenvolvessem o
interesse por biografias, que atingiu o pice por volta de 100 a. C., com a obra de Plutarco
sobre grandes figuras entre os gregos e romanos. Demcrito, alm disso, viveu em Abdera,
e no em Atenas, ento o centro do universo intelectual dos gregos e do mundo, e que foi
descrita, com patriotismo, pelo seu contemporneo mais jovem, Plato, como a sede da
sabedoria. J Abdera era uma espcie de assentamento na costa setentrional do mar
Egeu, fundada na sia menor por volta de 540 a. C. por gregos da Jnia, oriundos de Teos,
e que, na poca de Demstenes, tinha adquirido uma reputao de estupidez e tolice.
Demcrito tinha a fama de realizar muitas viagens dentro e fora da Grcia. Segundo
Digenes Larcio, uma viagem marcante na vida do pensador grego, as suas andanas
pelo Egito e sua busca de conhecimento da geometria desenvolvida naquela regio. O
pensador do tomo pertence a uma longa tradio da filosofia antiga grega, que viveu o
florescimento das relaes cientficas entre os Ocidentais e Orientais. Influncias que
chegaram Grcia de pases como: Babilnia, Prsia e, sobretudo, do Egito. As
investigaes no-religiosas da natureza foram uma marca da tradio grega e Demcrito
um expoente desse tipo de conhecimento laico. Essa investigao consistia em tentar
descobrir, em primeiro lugar, do que era feito o Cosmos no-humano, antes de procurar
saber como ou por que ele era do jeito que era (LENOBLE, 1990). Havia uma preocupao
entre os primeiros pensadores gregos em especular sobre o constituinte mais elementar da
matria. Entre outras coisas, predisseram eclipses, descobriram e interpretaram fsseis,
desenharam mapas do mundo, e negaram que o Cosmos tivesse sido criado, nem mesmo
materialistas da antiguidade e por ltimo, o trabalho de Jonathan Barnes Filsofos pr-socrticos. O interesse imediato do nosso comentrio no fazer uma discusso pormenorizada da obra e da doxografia do atomista grego, longe disso. O nosso intento apenas clarear a presena de Demcrito na obra de Marx e de como o pensador grego foi de grande importncia para uma primeira crtica materialista da religio feita pelo pensador alemo em questo.
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por deuses. Aqui entra o Demcrito que interessava a Marx, aquele em que a suspenso da
crena no divino, ou, pelo menos, a remoo do divino, como concebido
convencionalmente (segundo os mitos), das hipteses explanatrias, foi movimento
fundamental do seu pensamento. Para Marx, era preciso enfatizar o quanto essa posio
filosfica do atomista foi extraordinria (MARX, s.d., p.20). Com Demcrito, segundo a
leitura entusiasmada de Marx, a distino e separao do que chamaramos de religio e
cincia foi vital para o projeto intelectual da investigao da natureza. O pensador alemo
toma isto como o cerne essencial do que denominou de iluminismo grego. Leitura
claramente anacrnica e bastante criticada hoje por estudiosos da filosofia grega clssica
(BARNES, 1997; SANTOS, 2000). Porm, para nosso estudo das influncias sofridas por
Marx na sua leitura da teoria atmica de Demcrito, se h ou no anacronismo no que
afirma o pensador alemo, no importa tanto. Marx, ao entender a teoria de Demcrito
como aquela que no precisa de nenhuma hiptese divina, deriva seu primeiro
materialismo e sua crtica da religio desse ponto. Nada deriva do acaso, mas tudo de
uma razo e sob a necessidade, eis uma frase tipicamente materialista atribuda a Leucipo
e adotada integralmente por seu discpulo Demcrito, que muito inspirava o pensador
alemo no momento de redao da sua tese em 1839-1840 (GABAUDE, 1970).
Cabe aqui uma pequena ressalva, na tentativa de situar melhor a obra de Demcrito.
Hoje em dia, o pensador grego inelutavelmente identificado com o atomismo, tido
mesmo como um atomista puro sangue, sendo por isso referido ao domnio da cincia (e,
nesse sentido, Marx um grande divulgador dessa leitura de Demcrito). Mas na Grcia
antiga, assim como na renascena e at o sculo XVIII, o conhecimento era considerado
um saber unificado, e no a soma de conhecimentos distintos e especializados. E
Demcrito era protagonista em todas as formas de conhecimento e sabedoria reconhecidas
na poca; um terico abstrato de primeira grandeza (e nisto Marx no errou no elogio a
Demcrito), mas tambm um pensador com inclinao eminentemente prtica. possvel
afirmar, a partir do texto de Jos Gabriel Trindade, que ele foi no somente um fsico, mas
tambm um escritor cosmlogo, gelogo e mdico, um filsofo da tica e da poltica, um
pensador original e importante para a cultura ocidental. De qualquer forma o ponto
principal a ser registrado no nosso trabalho o da esfera da cincia fsica, por ser essa
parte que mais influenciou e definiu os rumos de uma concepo de natureza na tese de
Marx e no confronto estabelecido com Epicuro. na fsica e epistemologia (palavras
marcadamente da cincia moderna) de Demcrito que iremos nos concentrar e arrancar
7
dela uma primeira crtica da religio na cultura ocidental, na esteira dos comentrios de
Marx.
O Cogito ergo sum de Descartes est na raiz de toda especulao filosfica
racional do Ocidente. A tentativa de dar alguma certeza s formas de conhecimento era, na
poca de Demcrito, um problema muito relevante, mesmo existindo posies
relativistas, como a encarnada pelo movimento sofista. Num outro lado do conhecimento
estava a tradio monista, estava Parmnides de Eleia. Plato, compreensivelmente,
considerou este ltimo o progenitor de sua prpria doutrina, de que o conhecimento e a
verdade eram ambos possveis e quase tautologicamente necessrios, uma vez que o
conhecimento tem de ser aquilo que realmente , e aquilo que realmente , , ao mesmo
tempo, absolutamente verdadeiro e impermevel ao fluxo e mudana3. Entre os Sofistas
de um lado, e Parmnides, do outro lado, Demcrito ocupava, caracteristicamente, uma
posio intermediria e moderada. No entanto, percebemos em alguns fragmentos
atribudos a Demcrito que o conhecimento da verdade absoluta no era, a seu ver,
acessvel simplesmente: O homem precisa aprender a partir do princpio de que ele est
longe da verdade; No entanto, ficar claro que conhecer como cada coisa na realidade,
um quebra-cabea; No sabemos nada verdadeiramente, pois a verdade se encontra
escondida nas profundezas 4
Neste ponto, Demcrito concordaria com os Sofistas, principalmente com Grgias.
Por outro lado, percebemos em outros fragmentos que a evidncia emprica dos sentidos,
conforme interpretada dentro do esquema atomista, d alguma margem de interpretao
para avanarmos alm do convencionalismo meramente relativista:
No sabemos nada de verdadeiro sobre coisa nenhuma, mas para cada um
de ns opinar rearranjo de tomos na alma. Na verdade, ns no sabemos
nada infalivelmente, mas somente na medida em que as coisas mudam de
acordo com a disposio do nosso corpo, e das coisas que entram nele e se
impingem nele (CARTLEDGE, 2001, p. 22).
3 Utilizamos como comentrios obra de Plato a tese de doutoramento de Luiz Carlos Zubaran intitulada: A gnese do conceito de verdade na filosofia grega, principalmente os captulos referentes a Herclito, Parmnides e Plato. Um outro comentrio ao pai da academia Ocidental so os ensaios de Henrique Cludio de Lima Vaz que esto no livro Ontologia e Histria. 4 Utilizamos a traduo dos fragmentos de Demcrito feita por Gerd Bornheim no livro Os filsofos Pr-socrticos. Fragmentos. Consultamos e comparamos com a traduo de Jos Cavalcante de Souza para a coleo OS PENSADORES dos mesmos fragmentos Pr-socrticos.
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Podemos afirmar que, para Demcrito, a razo pura, sem o benefcio da
percepo dos sentidos, no avana no conhecimento das coisas. Por outro lado, as
impresses dos sentidos, e as imagens pelas quais elas so impingidas na mente, podem
enganar. O caminho para o entendimento pode ser encontrado numa mistura ponderada da
razo intelectual e da experincia sensorial (LANGE, 1974). Agora, surge um
problema e que na obra de Marx no aparece claramente: de que modo, ento, a doutrina
fundamental do tomo e do vazio de Demcrito se encaixa nessa epistemologia?
Como entender a viso de Marx de que Demcrito era um determinista (MARX, s.d.,
p.26) diante dessa posio moderada?
Aquilo que Demcrito, bem como seus devotos companheiros de investigao
desejavam conhecer, ou ao menos entender, era a Physis, o mundo da natureza
(BORNHEIM, 1995). A afirmao do intelecto de que na verdade no existe nada alm
dos tomos e do vazio era uma viso refletida do prprio Demcrito. Mas se esta viso
deve ser chamada de materialista, ou mesmo ser considerada por Marx como a me dos
materialistas, uma questo de interpretao que ainda hoje discutida. Para Marx esta
era uma leitura preciosa para criticar as interpretaes espiritualistas da natureza. Na
histria do pensamento ocidental existiu um pensador que fugiu regra de fundamentar
tudo o que existe num conceito metafsico e que imps a observao da natureza e a sua
composio material a partir da prpria matria, este foi Demcrito para Marx. Eis uma
tese estratgica para uma crtica radical da religio e das suas pretenses de explicar a
existncia dentro de esquemas metafsicos. Marx acreditava ter encontrado uma primeira
chave de leitura materialista para desmistificar o discurso religioso em bases
epistemolgicas e no apenas de uma opinio contra outra. Estamos tratando de fenmenos
e no idias abstratas, pensa Marx. Aqui j se inicia um tipo de explicao moderna da
religio, a saber, entend-la como fenmeno, aquilo que aparece e no mais como
disputa de conceitos metafsicos (O que ser aprofundado na segunda parte da tese ao
comentarmos especificamente as obras de Marx na sua crtica ao fenmeno religioso).
Voltando leitura de Demcrito, podemos situ-la dentro de uma tradio de pensamento
grego que no via o mundo de modo to claramente cindido. A palavra grega que ns
entendemos por alma ou mente, psyqu, era frequentemente concebida tendo um forte
componente material, se no bsico. De fato, aqui Marx tem razo. A alma tomada de
maneira inteiramente material por Demcrito e nisto se inaugura uma leitura
absolutamente nova dos fenmenos psquicos. Por outro lado, Demcrito no utilizou o
9
que ns consideraramos propriamente meios empricos para entender, analisar ou ter
acesso physis. Por trs da definio pretensamente materialista de tomo e vazio est
algo que no pode ser definido empiricamente, algo que tem um fundo especulativo,
significando que no podemos extrair das ideias de Demcrito um materialismo aos
moldes daquele inaugurado pelos pensadores modernos.
Em carter de concluso a leitura de Demcrito, podemos afirmar que o cosmos
tem de consistir de tomo (a-toma) e de no-corpos, ou do vazio, que um espao sem
nada realmente existente. Aristteles, na sua obra Metafsica e na Fsica, no estava
convencido disso; para ele, os corpos eram, potencialmente, infinitivamente divisveis
(ARISTTELES, 1990). Mas, nem mesmo o peso da autoridade de Aristteles foi
considerado universalmente determinante. Mais significativamente, o seu contemporneo
mais novo, Epicuro, reafirmou o atomismo, no fim do sculo IV e comeo do III a.C., com
grande originalidade. Antiteolgico, o pensador do Jardim considerava o atomismo
como uma espcie de materialismo, e nisso guiou a interpretao de Marx em relao ao
atomismo de Demcrito. Ento, por que era to importante para Demcrito que o
atomismo fosse correto e cumprisse as suas funes de explicao? Por um lado,
negativamente, em razo daquilo ou daqueles contra os quais ele estava argumentando, ou
seja, principalmente a escola dos eleatas, que defendiam um universo de estado imutvel
(Parmnides e seus seguidores). Estes pensadores conservadores eliminaram a gerao e
a destruio de sua viso de mundo, uma vez que tais processos envolviam,
inadmissivelmente, em sua opinio, estados anteriores e posteriores do nada, e eles
afirmavam que aquilo que era, era assim eternamente imutvel. As implicaes estticas de
sua filosofia material, para teoria social e para poltica, agradaram enormemente a Plato,
que aplicou os critrios eleticos aos conceitos morais, produzindo, assim, as suas formas
perfeitas, imutveis, que, por sua vez, constituam base de verdades ticas objetivamente
fundamentadas. Demcrito aceitou o postulado da eternidade dos eleatas nada pode vir
do nada -, mas, decisivamente, ele rejeitava o seu postulado esttico: assim como
Herclito, um predecessor jnico de feso, ele acreditava que tudo estava em fluxo. Aqui
fica explicado o entusiasmo do jovem Marx com o pensamento de Demcrito: um
pensamento materialista e dialtico (ambos os termos no sentido moderno que era
dado pelo prprio Marx, na esteira de Hegel). Os tomos de Demcrito ajudam-no,
positivamente, a explicar, de modo satisfatrio, ao menos muitos outros quebra-cabeas,
sem falar na natureza do prprio universo... Sem recorrer s muletas de alguma
divindade e s com o uso investigativo-especulativo da razo e da experincia. Mas, para a
10
construo da crtica marxiana da religio, Demcrito e sua teoria materialista do tomo
e do vazio foram apenas um primeiro passo e que ser completado inicialmente com a
leitura de Epicuro na sua concepo de natureza, liberdade e do seu pensamento
antiteolgico. Com o pensador do Jardim, fecha-se um primeiro crculo de influncias do
jovem Marx no que diz respeito a uma sistemtica crtica do fenmeno religioso.
notria a simpatia de Marx por Epicuro muito mais do que por Demcrito,
mesmo respeitando e admirando em muito o pensador do tomo. perfeitamente
explicvel dentro do contexto em que o filsofo alemo escreve a sua tese, como afirma
Jos Amrico Motta Pessanha no prefcio edio brasileira da tese de Marx: Trata-se de
um Marx que exalta Prometeu, o rebelde que concede aos homens o fogo da libertao.
Um Marx que, por isso mesmo, s pode identificar-se com Epicuro, em quem encontra um
tipo de materialismo capaz de levar liberdade que sempre principia pela rejeio dos
absolutos transcendentes e aterrorizadores (PESSANHA, s.d., p.13). Eis o projeto de Marx
e a razo fundamental pela prioridade de estar de acordo com Epicuro e discordando de
Demcrito: o tema da liberdade e de sua fundamentao moderna no-metafsica.
Iniciaremos com um comentrio geral filosofia de Epicuro e o seu significado no
pensamento ocidental e depois relacionaremos diretamente com o Epicuro de Marx.
Epicuro5 um pensador extraordinrio na filosofia ocidental. Cidado ateniense, nasceu na
ilha de Samos em 341 a.C., seis anos depois da morte de Plato, em 347, e seis anos antes
de Aristteles abrir sua escola no Liceu. Em 306 Epicuro abriu o Jardim (FIGUEIRA,
2003), sede da sua escola de filosofia, que na sua morte em 271 a. C. havia se tornado
influente em todo o mundo grego. Epicuro viveu o trgico perodo que se seguiu
hegemonia macednia no qual o imprio de Alexandre foi disputado pelos seus sucessores;
uma poca em que a atividade poltica parecia particularmente ineficiente. Da ele pregar
aos seus seguidores uma espcie de materialismo contemplativo, no qual poderiam-se
perceber implicaes prticas mais radicais (MORAES, 1998; DUVERNOY, 1993). A
filosofia de Epicuro teve grande impacto no pensamento da antiguidade at a era romana,
5 Trabalhamos com a edio das obras de Epicuro organizada pelo catedrtico espanhol Jos Vara Epicuro: obras completas, edio espanhola. Utilizamos ainda a edio organizada, traduzida e comentada por Joo Quartim de Moraes Epicuro: mximas principais. Os comentrios do professor da UNICAMP foram fundamentais na leitura do pensador do jardim e na sua relao com Marx. Quanto aos comentadores, utilizamos vastamente os trabalhos de Markus Figueira Epicuro: sabedoria e jardim; o livro de Jean-Francois Duvernoy O epicurismo e sua tradio antiga, texto precioso por sua anlise profunda da obra de Epicuro e de seu significado na cultura Ocidental; o ensaio de Luciano Cnfora Epicuro e Lucrcio: o sentido dos tomos; o trabalho de Reinholdo Aloysio Ullmann Epicuro: o filsofo da alegria; e por fim, um belssimo ensaio de Jos Amrico Motta Pessanha As delcias do jardim, palestra que tem como tema central a questo da tica em Epicuro.
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mas a sua obra havia quase se perdido durante a Idade Mdia, quando ele e seus seguidores
foram includos entre os principais adversrios herticos do cristianismo. Assim, na era
moderna, sua obra era conhecida principalmente atravs de fontes secundrias6, sendo a
mais importante a grande obra do poeta romano Lucrcio De rerum natura, que
basicamente repete a fraseologia do mestre.
Para um melhor entendimento do surgimento do epicurismo e da atrao que essa
filosofia exerceu no jovem Marx, torna-se necessrio entender as circunstncias poltico-
sociais e tico-religiosas da poca do mestre do Jardim. Epicuro no olhava com muita
simpatia o estgio em que vivia a Cidade-Estado ateniense e a prtica poltica
consequente da mesma. A polis se lhe afigurava sinnimo de vida leviana e de injustia
social (DUVERNOY, 1993, p.16). Informam-nos alguns pensadores que, nos sculos IV e
III a.C., a moralidade pblica decrescera em todo o mundo grego (DUVERNOY, 1993;
MORAES, 1998; NIZAN, 1972). As conseqncias eram imediatas diante de tal quadro: a
avidez pelo poder, a avareza e a ambio tinham levado os homens prtica de crimes
horrendos. Estava ausente aquilo a que se destina a vida humana na tica epicurista, ou
seja, a felicidade. Est ausente aquilo que Jos Amrico Motta Pessanha chama de
sustentculo da philia: A aquisio e a difuso da sabedoria epicurista sustentam-se, com
efeito, na philia que liga os discpulos numa sociedade de amigos, que os vincula
fortemente ao mestre e une todos mesma doutrina (PESSANHA, 1992, p.63). Na
discusso sobre a plis entre os gregos, Epicuro opta pela vida simples, justa, virtuosa.
Tanto a opo do pensador do Jardim pela vida simples como pela sociedade de
amigos tornam-se fascinantes para um hegeliano de esquerda da primeira metade do
sculo XIX e Marx no foi uma exceo. Numa Alemanha atrasada em relao aos pases
europeus que viviam uma modernidade poltica, a volta aos gregos do perodo da crise
helnica era uma espcie de farol que iluminava os tempos de obscuridade ideolgica em
que estava imerso um significativo grupo de intelectuais alems do citado perodo. No caso
de Marx, fica ainda mais claro quando explicitamos a posio tico-religiosa epicurista.
Segundo algumas cartas de Epicuro aos seus discpulos, podemos perceber uma atmosfera
marcada pela superstio. A prtica religiosa estava plena de temores. Ora, o medo
6 Em um texto introdutrio a uma traduo das Mximas principais de Epicuro, Joo Quartin de Moraes nos chama a ateno para o uso das fontes epicureia. Durante um bom tempo (mais precisamente, em toda a Idade Mdia), foram utilizadas fontes secundrias para comentar a obra do pensador grego e isto levou a leituras distorcidas ou reducionistas (o que no foi o caso do poema de Lucrcio, fiel discpulo de Epicuro. As distores se deram principalmente por tericos cristos). Por isso, optamos pelas tradues de Jose Vara (edio espanhola das obras de Epicuro) e a de Joo Quartin de Moraes (edio brasileira das Mximas).
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escrupuloso das divindades no boa para a prtica religiosa no entendimento de Epicuro.
A sociedade grega estava marcada por prescries de evitar contato com sepulturas ou
cadveres; temor de maus pressgios; necessidades de fazer explicar os sonhos, atravs dos
quais os deuses fazem revelaes aos homens; crena na virtude purificadora de certos
ramos de rvores e da gua do mar; pnico provocado pelo encontro com um louco ou
epilptico; venerao do lugar em que uma serpente penetrou para dentro da casa, etc. Um
trao tpico da superstio que seu ritual se repete indefinidamente, como temor de o
primeiro no ter garantido eficcia. O que podemos concluir desse contexto religioso? Que,
para muitssimas pessoas, a religio tornara-se uma horrvel servido, pesando,
tremendamente, sobre as almas, presas de um formalismo estril. A religio grega eivada
de mitos os mais variados, minada pelo ceticismo, destruda de qualquer seiva fecunda,
reduzira-se a um sistema de utilitarismo e pragmatismo ridos, a um conjunto de ritos,
sem significao nenhuma7. Numa frase lapidar de Paul Nizan: Nunca um povo de cultura
to avanada teve uma religio to infantil (NIZAN, 1972, p.27). Referindo-se
superstio ansiosa e angustiante dos tempos de Epicuro, com mil novos cultos,
misticismo, promessas soteriolgicas no alm-tumba, Lange denomina esse caldo de
cultura marcado por um clima de irracionalidade senil (LANGE, 1974, p.85), em
contraste com a sbria espiritualidade epicureia. No grupo da superstio, a adivinhao
ganha destaque, onde a observao de entranhas das vtimas e os fatos prodigiosos onde
tudo se constitua em matria de pressgios, era modalidade marcante na poca de Epicuro.
Aos augures e adivinhaes se obedecia cegamente, tanto na Grcia, como
posteriormente em Roma. A arte divinatria de um e de outro se valia de meios
diferentes, conquanto a predio do futuro constitua-se meta comum. Aqui um
depoimento sobre a posio do filsofo do Jardim vem a calhar: Nada Epicuro detestava
tanto como a predio das coisas futuras (DUVERNOY, 1993, p.58). E Marx radicaliza:
o maior filsofo das luzes, dentre os gregos (MARX, s.d., p. 09). Descontando um certo
anacronismo justificvel na frase de Marx, temos que reconhecer que o pensador alemo
definiu muito bem a posio iluminista de Epicuro e o situa na contramo do tipo de
religiosidade praticada poca do perodo chamado de helenismo. Consequentemente, de
acordo com a predio, os magistrados convocavam ou no assembleias para eleies; os
generais empreendiam ou no campanhas blicas. Para Epicuro a Atenas de sua poca
7 Muito diferente era o perodo de ouro do mito grego: os tempos homricos e hesodicos. Podemos ver essa leitura no trabalho de Jos Gabriel Trindade Santos no livro intitulado: Antes de Scrates: introduo ao estudo da filosofia grega, mais precisamente no capitulo: Aspectos do mito na cultura grega.
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estava infestada de medos supersticiosos, razo pela qual sua filosofia far um combate
sem trguas a tais crenas. Mas Epicuro vai mais longe na crtica s prticas mgicas.
Percebe-o que essas artes divinatrias esto espalhadas na estrutura do estado. Nobres e
polticos em geral controlam a religio, a exposio da lei e a interpretao da vontade dos
deuses, no sem colher os benefcios para si prprios. Era como se a religio colaborasse
para manter o controle pelo medo e como se fizessem parte da ao poltica artifcios
religiosos enganadores para agradar a sditos ou eleitores8. Para Epicuro a grande
multido permanecia ligada a seus deuses, num misto de temor e esperana. Temor de,
em virtude de qualquer omisso, embora involuntria, no ritual religioso, ter ofendido a
divindade. Esperana, porque sacrifcios, oferendas e purificaes poderiam aplacar a fria
dos deuses. E, para piorar, o temor dos deuses no era apenas um suplcio para a vida
presente. Estendia-se vida aps a morte, eternamente infeliz, no Hades, conforme lemos
no principal discpulo de Epicuro: J no h motivos nem possibilidade de descanso,
porque devem ser temidas penas eternas na morte (LUCRCIO, 1988, p.90). Epicuro
tornara-se um crtico implacvel da idia de que a clera dos deuses e sua punio dada aos
mortos exerciam um papel de terror, na religio dos gregos. Temos aqui mais um ponto de
atrao dos estudos do jovem Marx com relao obra do filsofo do Jardim: ambos
foram crticos radicais de qualquer forma de superstio.
Contra a superstio, a ansiedade e o medo da morte, Epicuro postulou o que foi
chamado de tetraphrmakos, ou seja, o remdio qudruplo, traduzido por alguns
estudiosos como quadrifrmaco (FIGUEIRA, 2003; MORAES, 2006; DUVERNOY,
1993). Nele encontramos os seguintes postulados:
Nenhum temor dos deuses: Antes do mais, cr que a divindade um ente eterno e
feliz... e no lhe atribuas nada que seja contrrio sua eternidade ou incompatvel com a
sua felicidade (EPICURO, 1995, p.88). Aqui se percebe claramente que os deuses so
perfeitos e no devemos, portanto, tem-los, nem deles esperar nada, pela simples razo de
que, vivendo em eterna satisfao, eles conosco no se preocupam. A imagem de um
Epicuro iluminista, to fortemente presente na leitura de Lucrcio e Marx, vinculou-se
ao efeito libertador da desmistificao dos deuses. A ruptura com a religio astral associa
hedonismo e iluminismo, busca do prazer propcio e eliminao dos sofrimentos
8 Percebe-se aqui uma semelhana na crtica de Marx religio. O pensador alemo saber tirar algumas consequncias da posio epicurista para entender e criticar a religio crist na Alemanha do sculo XIX e suas vinculaes polticas. Dir Marx uma frase que poderia ter sido tirada da boca de Epicuro: a crtica do cu transforma-se em crtica da terra. Afirmao extraordinria que ser analisada mais na frente, mais precisamente na segunda parte do trabalho.
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provocados pela ignorncia. Se os astros fossem deuses, os temores supersticiosos
engendrados por pestes, eclipses e turbulncias metereolgicas justificariam os sacrifcios,
at humanos, para aplacar a ira de deuses colricos ou adivinhar o futuro examinando as
entranhas das vitimas imoladas. , pois, compreendendo que os deuses so indiferentes ao
nosso destino e que a morte a dissoluo do composto que somos, que nos livramos do
terror e do temor.
Nenhum temor da morte: Ademais, acostuma-te com a ideia de que a morte, para
ns, no nada. Todo o bem e todo o mal repousam somente na sensibilidade; ora, a morte
a privao da sensibilidade... Destarte, a morte, o mal mais terrvel, no nada para ns...
por isso louco quem diz temer a morte (EPICURO, 1995, p.88). A morte nada para
ns, pois o que se dissolveu no tem sensao e no ter sensaes o nada para ns.
Epicuro refere-se perspectiva de nossa prpria morte. Claro que a morte dos entes
queridos nos faz sofrer, mas, justamente sofre quem, permanecendo vivo, sente a falta de
quem morreu. Quando nosso corpo se tiver convertido em p e cinzas, no haver
sentimento nem pensamento, j que no mais seremos. Na carta a Meneceu,
desenvolvendo este argumento, acrescenta: Enquanto estamos presentes, a morte est
ausente; quando ela se apresenta, j no mais estamos (EPICURO, 1995, p.88). Fica claro
que, para o mestre do Jardim, a vida se desenrola entre dois plos: nascimento e morte.
Antes de comentar os dois ltimos postulados do tetraphrmakos, podemos afirmar que a
terapia do qudruplo remdio pode ser dividida em duas partes. Uma contendo os dois
primeiros remdios e as outras os dois ltimos remdios. Os dois primeiros, dirigindo-se
unicamente ao intelecto, exercem efeito teraputico imediato. Basta compreender a
natureza das coisas: no so deuses, mas sim os tomos em movimento que regem o
Universo; a morte apenas separao dos tomos componentes do organismo. J o terceiro
e o quarto remdios so propriamente ticos, ensinam a lidar com o prazer e com a dor.
A felicidade est no prazer: uma tese extraordinria de Epicuro a de que
precisamos aprender a buscar a felicidade, isto , ela no nos natural. Tal aprendizagem
apia-se no apenas, como nos dois primeiros remdios, numa descoberta intelectual, mas
principalmente em constantes exerccios. A amplitude dos prazeres se delimita pela
presena de tudo que o organismo carece, e pela ausncia de tudo que faz sofrer. Assim
como a morte o limite da vida, a supresso de dor e de sofrimento, fazendo emergir
plenamente o prazer de viver, abre espao para uma vida prazerosa, que o bem supremo.
O mais refinado alimento de nada nos serviria se no saciasse nossa fome. O prazer que
seu refinamento nos proporciona ser sempre menor do que a supresso do sofrimento que
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nos causava o estmago vazio. Ultrapassar este limite na insensata busca de prazeres
maiores enveredar pelos excessos e preparar frustraes. Busca sem rumo, que nos levar
a sofrer mais do que desfrutar. Da a afirmao de Epicuro: Onde estiver o prazer, e
durante o tempo em que ele ali permanecer, no haver lugar para a dor corporal ou o
sofrimento mental, juntos ou separados (EPICURO, 1995, p.89). Podemos entender que a
mesma sensao no pode ser simultaneamente prazerosa e dolorosa. Mas tambm
possvel entender, levando em conta a mxima seguinte, que examina o limite no tempo da
durao da dor, que a incompatibilidade a que a afirmao epicureia se refere diz respeito
sensibilidade em seu todo. Se as sensaes prazerosas predominam, as sensaes dolorosas
e as angstias permanecem latentes, quando no so suprimidas. As leituras mais recentes
desse postulado tico epicurista assumem a posio de que a supresso da dor no , ela
prpria, prazer, mas a condio para que esse possa emergir; o prazer no , pois, mero
reverso da dor, uma dor negativa (FIGUEIRA, 2003; MORAES, 1998).
A dor contnua no dura longamente na carne: Essa mxima suscitou as mais
diversas interpretaes e no podemos aqui fazer um balano dos diversos comentrios
feitos ao longo da histria do pensamento ocidental, por razo bvia: no o tema do
nosso trabalho de pesquisa. Ficaremos com os comentrios j consagrados pela tradio
recente de observao sobre a obra de Epicuro. Para mostrar que podemos suportar a dor, a
presente mxima considera a durao da dor contnua relativamente sua intensidade e
sua compatibilidade com o prazer. A dor extrema, no limite do insuportvel, dura pouco
tempo. Dela logo nos livramos, ainda que seja pela morte. Sobre esses quatro
princpios/postulados repousa a filosofia materialista/atomista de Epicuro. Acreditamos
que no fica muito difcil de entender por que Marx se sentiu atrado pelo pensamento
epicurista. Afirma Marx: Epicuro constitui um personagem totalmente diferente. Ele
encontra a satisfao e a felicidade na filosofia (MARX, s.d., p. 24). O pensador alemo
via no filsofo do Jardim o grande desmistificador das supersties de toda ordem, que
marcava o pensamento helenstico imerso numa crise de sentido do prprio ato de filosofar
e viver de acordo com uma filosofia racional. A crtica s diversas formas de superstio
no um privilgio nico de Epicuro. Alguns pensadores anteriores ao mestre do Jardim
j haviam feito tal crtica. Por exemplo: Xenfanes de Colofon (poeta e filsofo do final do
sculo V a.C.) o primeiro de uma corrente terica que se insurge contra todo
antropomorfismo de representao do divino. Xenfanes defende que s existe um deus,
dessemelhante dos mortais, tanto na forma como no contedo: Um deus, o maior entre
deuses e homens, em nada igual aos mortais: em corpo ou em pensamento.
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O fragmento de Xenfanes ecoou em boa parte das filosofias que se posicionaram
criticamente em relao religio na cultura ocidental. Basta citar a principal tese de
Feuerbach9 sobre a reduo da teologia antropologia, para entendermos a importncia da
teologia do pr-socrtico de Colofon. Segundo Jos Gabriel Trindade dos Santos, em um
trabalho sobre a teologia iluminista de Xenfanes: A lucidez da crtica impressiona,
mesmo num grego. No se nota o mais leve trao de f, nesta relao com a divindade, em
que s a razo aparece a explorar a distncia que separa o divino do humano
(SANTOS,1992, p.153). De Xenfanes, passando por Demcrito e Leucipo, se estabelece
uma tradio crtica da religio que ter em Epicuro e Lucrcio seu ponto mais alto na
antiguidade.
Uma escola que tambm mereceu a crtica do pensador do Jardim foi a escola
platnica, no que diz respeito sua teologia. A academia platnica tornou-se uma
espcie de pano de fundo da crtica epicurista no que se refere aos deuses. Os deuses
astrais de Plato constituem mira de crtica do atomismo epicureu. O pensador de Samos
parte da seguinte constatao: se do movimento dos astros se cria uma imagem de
necessidade, de destino implacvel, e se essa necessidade atribuda vontade dos deuses,
a concluso que os acontecimentos, no mundo, principalmente os que afetam o homem,
so ordenados por decretos das divindades. No h como fugir ou subtrair-se a eles. Visto,
muitas vezes, o homem atingido pela dor, deve inferir-se que os deuses, com seu dio,
perseguem a humanidade. Essa ideia gera angstia e temor permanentes. Epicuro percebeu
nisso um erro pernicioso. A filosofia de Epicuro uma filosofia da liberdade, j havia
percebido com muita clareza Marx no sculo XIX e, consequentemente, uma filosofia da
liberdade jamais poderia aceitar os pressupostos da teologia platnica. Aqui j podemos
adiantar um elemento da importncia do trabalho de Marx sobre Demcrito e Epicuro: a
crtica materialista da religio do pensador alemo tem razes na tradio grega antiga e
isto refora nossa hiptese fundamental, a saber, que a leitura de Marx no meramente
panfletria, mas est vinculada a uma tradio filosfica grega de origem materialista.
Sempre com Plato em vista, o pensador do Jardim repudiava a ideia de um
legislador, na polis ideada pelo mentor da academia. A justia, codificada na cidade
faustosa, antinatural, afirmava Epicuro. Para ele, existia, na polis primitiva, um
contrato social primeiro, resultante de uma experincia comum dos homens, como est
9 Apesar de no fazer uma citao literal do fragmento de Xenfanes, notria a inspirao feuerbachiana do pensador pr-socrtico na sua tese de que se Deus fosse objeto para o pssaro, seria objeto para ele apenas como um ser alado (FEUERBACH, 1988, p. 60-61).
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registrado nas Mximas principais: A justia que brota da natureza um contrato
reciprocamente vantajoso, para que no se cometam nem sofram injustias (EPICURO,
1995, p.103). As longas especulaes metafsicas no so o ponto mais alto da filosofia
epicurista. Sua inteno era resolver problemas na ordem prtica, como as demais
filosofias do perodo helenista. Como discordava, de todo em todo, de Plato, bastava-lhe
opor-se, item por item. cidade faustosa ops a cidade primignia, simples; aos
deuses estelares combateu-os com a noo comum de divindade, existente em todos os
homens; legislao positiva, para manter a justia, contraps a amizade, fundamento e
origem da sociedade. Epicuro tambm discordava de Aristteles, quando este idealizava o
Estado plenamente desenvolvido com leis positivas e sanes externas. Porm, o filsofo
do Jardim acolhe a ideia do estagirita proposta na tica a Nicmaco, no qual analisa,
minuciosamente, a amizade (ARISTTELES: 1992). Nessa obra, o fundador do Liceu
chegou a afirmar que o homem amigo de todo homem; que, por ser assim, no h
necessidade de justia; que esta, em sentido mais amplo, nada mais nada menos do que a
amizade; que ter amigos algo nobre e divino (ARISTTELES, 1992, p.153-172). A par
disso, Epicuro encontra, em Aristteles, mais precisamente na tica a Nicmaco, um
paralelo quanto ao tratamento por ele dispensado aos escravos. Sabemos que o estagirita
defendia a posio de que h escravos por natureza e, enquanto tais, no podem ser
objeto de amizade10. Mas, de outra parte, considerando que tambm so seres humanos,
pode haver manifestao de amizade para com eles. Ambiguidade que marca a
antropologia aristotlica. Apesar dos pontos de convergncia com Aristteles, no
devemos obliterar que, para Epicuro, a amizade era um fim, enquanto que o estagirita via
nela um meio para a ascenso poltica. Em vez de voltar-se para a poltica tradicional
grega, Epicuro recolheu-se ao jardim, objetivando uma perfeio de verdadeiro sbio. E
no cansava de proclamar que o homem devia levar uma vida oculta. Ele mesmo se
pautava pelo axioma que criara: Vive ocultamente (EPICURO, 1995, p.112). A
existncia assim conduzida traz felicidade e serenidade, semelhante superfcie calma do
mar que nenhuma brisa perturba (EPICURO, 1995, p. 91).
Para Marx, a filosofia de Epicuro no surgiu por acaso e nem era apenas um
prolongamento das filosofias ps-aristotlicas (sentido dado por Hegel s filosofias da
poca do helenismo). Outros autores, alm de Marx, reconhecem na filosofia epicurista um
10 Para alguns poucos esclarecimentos a mais sobre a questo da escravido na obra do pensador do Liceu, remetemos ao nosso breve artigo intitulado: A escravido em Aristteles: algumas notas publicado na Revista dos departamentos de Filosofia da UFPB e UFPE Perspectiva Filosfica, Volume II N. 26, 2006.
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mrito inegvel: o combate s supersties religiosas a partir de um materialismo no-
mecanicista e que se pautava pela liberdade. Sendo a filosofia de Epicuro uma filosofia
materialista da liberdade (WOLFF, 2002), e a questo sendo o tema da liberdade um tema
central na filosofia dos jovens hegelianos nas suas leituras da situao do Estado
prussiano na primeira metade do sculo XIX, fica fcil perceber a importncia da filosofia
do mestre do Jardim na obra inicial de Marx. A concepo materialista/atomista do
universo e a crtica poltica da religio nas suas mais ignorantes supersties, marcam a
posio crtica de Marx sobre a situao da religio crist na Alemanha e do restante da
Europa de sua poca. Voltaremos crtica epicurista da religio na segunda parte da tese,
quando comentaremos a obra Diferena entre as filosofias da natureza em Demcrito e
Epicuro, no intuito de analisarmos como Marx retira dos dois pensadores e, em particular
de Epicuro, sua primeira concepo materialista da religio e, consequentemente, a sua
primeira construo crtica do fenmeno religioso.
1.2 A stira como crtica da religio: Luciano e Voltaire
Partimos de uma constatao fundamental: no h em nenhuma obra de Marx uma
teoria da stira e muito menos uma teoria da stira como crtica da religio. A nossa leitura
de sua presena na obra de Marx a partir do estilo e das citaes feitas pelo pensador
alemo. A verve satrica de Marx era bastante conhecida pelos seus admiradores e
detratores, e notrio um estilo satrico na escrita de Marx. A nossa inteno, nesta parte
do trabalho, empreender uma hermenutica especial (ELIADE, 1989, p.10) no que diz
respeito presena em forma de citao ou inspirao dos textos e estilos de Luciano de
Samsata e Voltaire. Est claro, para ns, que no pretendemos esgotar a temtica da
stira, mas fazer um recorte a partir de dois escritores satricos e suas presenas na obra de
Marx, no que diz respeito crtica da religio, elaborada pelo pensador alemo. Feitas tais
consideraes, passamos a destacar algumas bases tericas nas quais nos fundamentamos
para ler o estilo satrico de Marx.
Como somem os deuses? Chegou um dia a se perguntar o jovem Marx. Responde
ele, seguindo de longe o esquema hegeliano nas Lies de Esttica: eles (os deuses)
falecem na primeira vez de modo trgico, na segunda so fulminados pela
stira/comdia/riso. Afirma o pensador alemo:
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A ltima fase de uma formao histrico-mundial a comdia. Os deuses
gregos, j mortalmente feridos na tragdia de squilo, Prometeu
acorrentado, tiveram de suportar uma segunda morte, uma morte cmica,
nos dilogos de Luciano. Por que a histria assume tal curso? A fim de que
a humanidade se afaste alegremente do seu passado. Exigimos esse
rejubilante destino histrico para os poderes polticos da Alemanha
(MARX, 2005, p.148-149).
notrio o tom satrico de Marx: o Estado alemo do sculo XIX uma anacrnica
permanncia do Ancien Rgime, apenas uma espcie de comediante de uma ordem do
mundo cujos heris reais esto mortos (Marx, 2005, p.48). Esta ideia da histria como
sequncia ininterrupta de momentos, na qual toda repetio um tanto ridcula, j estava
espalhada em duas obras atribudas a Hegel (leitura importante nesse momento da escrita
de Marx), em particular nos Cursos de Esttica e na Filosofia da Histria11. Nessa ltima,
ao comentar o declnio da Repblica romana, Hegel indica a passagem do poder de muitos
para o de um s. Csar atenuou o conflito interno no Estado, produzindo o conflito no
exterior. At ele, a soberania universal no atingira os Alpes: Csar abriu um novo teatro;
ele criou a cena que deveria, doravante, tornar-se o centro da histria universal (HEGEL,
1995, p.266). O novo dono do mundo se opunha Repblica, mas na realidade, como
reconhece Hegel: apenas sombra desta ltima, pois tudo o que restava da Repblica era
desprovido de fora (HEGEL, 1995, p. 265). Acreditando que o novo regime sob o
domnio de um s seria passageiro, Brutus e Cassius mataram Csar. Destruindo o
governante, eles imaginavam, voltaria a Repblica. Presa desta espantosa iluso, eles
quiseram deter a histria. Mas esta os desmentiu. Deste modo, Napoleo caiu duas vezes e
os Bourbons foram expulsos duas vezes. A repetio realiza e confirma o que, no incio, s
parecia contingente.12
Nesse esquema do teatro da histria, Hegel no fala em tragdia ou comdia
(como o far o jovem Marx). Ele s indica a cena e as sombras. Evidentemente o filsofo
11 Esses dois textos de Hegel tm traduo para o portugus e foram consultados em nossa lngua. Cursos de Esttica tem traduo direta do original alemo pela editora EDUSP em quatro volumes. J a Filosofia da histria tem uma traduo pela editora da Universidade de Braslia. De modo que seguimos as referncias de Marx aos textos de Hegel com os textos que dispnhamos de traduo do original alemo. 12 Ironicamente, Marx tambm utilizar em uma obra da dcada de 50 do sculo XIX a metfora da repetio da histria inaugurada na filosofia de Hegel. Com um adendo importantssimo: afirmando que Hegel esqueceu de uma coisa, na vez primeira a histria acontece como tragdia, a segunda como farsa. A obra de Marx citada O 18 Brumrio e cartas a Kugelmann de 1852. Obra esta que no objeto da nossa pesquisa, lembrada apenas pela semelhana com a citao hegeliana.
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tem na cabea a pea de Shakespeare Julio Csar (pea tambm marcante na viso poltica
de Marx). Esta tambm uma tragdia e das mais importantes do dramaturgo ingls. A
repetio do que mudou na histria a inelutvel pedagogia que disciplina os homens para
o novo estado de coisas do mundo. Neste ponto pode-se ler, nas entrelinhas, uma
condenao hegeliana dos movimentos restauradores da antiga ordem, destruda pela
revoluo francesa. Ou seja: Marx aprendeu as lies do mestre, e as aplicou na sua
leitura do governo alemo de seu tempo. Marx julgou com esta comdia de erros,
apontando-os no Estado alemo que teimava em vestir as roupas do Ancien Rgime. Este
governo s poderia mesmo ser um palhao na cena mundial, ao contrrio dos heris,
como Brutus, cone francs da liberdade republicana. Mas onde Marx buscou inspirao
para a sua pardia do escrito hegeliano, onde mantm a crena na passagem inelutvel dos
momentos, o que garantiria o fim definitivo do palhao anacrnico? Nos Cursos de
Esttica, exatamente no captulo sobre o mundo Romano, intitulado A dissoluo da
forma de arte clssica. Debatendo a dissoluo da arte e dos deuses, atravs de seu
antropomorfismo, Hegel pergunta se a passagem dos deuses pagos ao Deus do
Cristianismo teria sido feita como uma outra das teomaquias, concebidas pela arte. No,
responde rpido o filsofo. A nova divindade no aparece no terreno artstico, mas fora
dele, de modo prosaico. No princpio era o Verbo, este um contedo no inventado
pela arte, mas que existia fora dela. Acreditava e defendia Hegel que aos deuses
antropomrficos gregos faltava o elemento humano e s o Cristianismo introduziu esta
realidade na carne e no esprito (HEGEL, 2000, p.237). Tal passagem no poderia ter
vindo da prpria arte, porque a oposio entre o velho e o novo seria dspar. Caso o
caminho dos deuses para o Deus cristo fosse obra de arte, a representao de uma luta
entre os deuses no teria tido imediatamente nenhuma verdadeira seriedade.
Hegel pertence gerao de pensadores que enxerga, na dissoluo da Polis grega,
o fim da arte clssica e da tragdia. Destrudo o vnculo entre indivduos e o coletivo,
lamentado por Plato e Xenofonte, o Esprito torna-se abstrato, surgindo o prosasmo. O
choque entre ideal abstrato e existncia miservel ocorre, no primeiro instante, no plano
cmico. Neste, ainda na Grcia, guarda-se a serena jovialidade, caracterstica da cultura
anterior. A stira vem depois, acredita o filsofo alemo. Numa afirmao extraordinria,
diz Hegel como foi o surgimento da stira:
Um esprito nobre, num nimo virtuoso a quem est negada a efetivao de
sua conscincia num mundo vicioso e tolo, volta-se com indignada paixo
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ou sutil argcia e glido amargor contra a existncia que est diante de si,
ridiculariza ou atira-se contra este mundo que contradiz diretamente as sua
ideias de virtude e verdade (HEGEL, 2000, p.245).
Onde colocar a stira na escala dos gneros? Ela no pertence pica nem lrica.
Nela se mantm o desacordo entre a subjetividade individual, com seus princpios
abstratos, e a efetividade emprica, no se produzindo, em seu mbito, poesia verdadeira
nem verdadeira obra de arte (HEGEL, 2000, p.246). A stira acontece como o sumio do
ideal clssico. Na terra da beleza, a Grcia, pensa o filsofo alemo, no pode existir stira.
Esta ltima prpria do mundo romano, onde reina a abstrao da lei, sacrificando-se a
individualidade ao Estado. Inexiste arte bela, livre, grande em Roma. Lrica, pica, drama,
escultura, pintura, tudo isto veio da Grcia. Prpria Pennsula Itlica, s a farsa grosseira.
As comdias mais finas, como as de Plauto e Terncio, foram importadas dos gregos. Os
romanos so particularmente prosaicos e sua stira contenta-se em tornar ridculo o que j
ruim e feio. Aps a grosseria da vida romana, prosaica e tola, surge Luciano voltando-se
com leveza contra tudo: heris, filsofos, deuses, passando no crivo os deuses pelo lado da
humanidade e individualidade. Entretanto, ele se alonga, perdendo-se no palavrrio, no
simples exterior das figuras divinas e nas suas aes, tornando-se assim particularmente
entediante. O srio Hegel acha Luciano enfadonho, o que o jovem Marx achar exatamente
o oposto. Mas por que Hegel tem essa leitura da stira de Luciano? A resposta pode ser
colhida nas palavras do prprio: No temos mais f naquilo que ele (Luciano) desejou
destruir e sabemos que os traos dos deuses, se vistos sob o ponto de vista da beleza,
conservam, apesar de suas caoadas e motejos, a sua validez eterna (HEGEL: 2000, p.
246). A operao hegeliana sutil: o cristianismo no brota da arte. Logo, ele est a salvo
da caduquice imposta pelo tempo. Nenhum Luciano moderno poderia passar pelo crivo o
lado humano, muito humano, das crenas crists. Hegel categrico na sua Esttica:
Atualmente as stiras no vingam mais. Cotta e Goethe ofereceram prmios para as
stiras; no foi apresentada nenhuma poesia deste gnero. (HEGEL: 2000, p.247). A
razo para tal situao da stira, na viso hegeliana, que, chegando-se forma superior de
cultura crist, no h mais necessidade de stira, nem de comdia. Luciano e sua linhagem
estariam superados por nosso tempo. Essa posio conservadora de Hegel no que diz
respeito stira como desmerecimento das coisas srias (entre elas a religio), nos remete
a uma questo que leva posio de Marx e da esquerda hegeliana, a saber, se no mais
existe stira, ou se ela perdeu o sentido e Luciano tedioso, o que diria Hegel das obras de
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Diderot, Voltaire e outros satricos e de seus textos corrosivos, que ajudaram a explodir a
conscincia crist, justamente quando o primeiro momento da Revoluo francesa havia
passado? Para os satricos citados, tediosa era a seriedade imposta vida francesa e
europeia pela Igreja catlica. Procedimentos estes que s pioraram na contra-revoluo
piedosa, que desejou manter a f ortodoxa auxiliada pelos saberes e atravs das delaes. A
posio de Hegel lembra em muito a posio dos metafsicos ironizados por Voltaire, que
consideravam desagradvel qualquer assunto que rumasse para a crtica dos costumes e dos
saberes estabelecidos (HOBSBAWM, 1996)13. Parecia difcil, para a chamada esquerda
hegeliana, entender como era possvel enfrentar o riso lucianesco ou as tiradas satricas
geniais de Voltaire, usando a obra de Hegel, que mais se aproximava da posio
reacionria dos cristos ortodoxos, e virulentos defensores da moral e dos bons costumes.
Um caminho seria entender os escritos de Hegel como trazendo uma dissimulada tese
antropocntrica que poderia conduzir a um processo de secularizao. Ler Hegel contra
Hegel, assim far boa parte da esquerda hegeliana. Feuerbach, Bruno Bauer e outros, em
crticas srias ou satricas, procuraram apontar o Hegel bufo, que representava sob
mscara piedosa a comdia do fim dos deuses, sobretudo da divindade crist (aqui j
podemos vislumbrar os precursores da crtica de Marx). Bauer, orientador acadmico de
Marx, foi o mais frtil e engraado de todos os hegeliannos de esquerda. Na sua obra
Trombeta do juzo final contra Hegel, ateu e anticristo, um ultimato, publicada em 1841,
ele faz uma srie de brincadeiras com o vnculo entre Autoconscincia e Absoluto,
indicando que Hegel trabalhava com imanncia, abolindo a religio em definitivo
(BAUER, 1972, p.82). Em outra passagem da citada obra faz uma referncia importante a
Voltaire no que diz respeito afirmao famosa em que o pensador satrico francs manda
esmagar a infame; bater na infame e esconder a mo. Mas o que pode nos chamar mais
a ateno para o nosso tema em Marx, a tese de Bauer de que a comdia dissolve a arte e
a religio e a sabedoria deste mundo torna-se loucura, abrindo caminho para que a
comdia divina se complete com a nossa prpria loucura (BAUER, 1972). O riso da
religio quebra sua seriedade e a seriedade da religio no preo o suficiente para o riso
cmico da stira. Estava aberta a via da secularizao pela stira. possvel perceber por
que o juzo esttico de Marx diferente do hegeliano, embora mantendo a perspectiva de
13 O trabalho do historiador Eric Hobsbawm sobre as comemoraes da Revoluo Francesa no seu bicentenrio em 1989 recuperou um pouco este debate sobre o papel da stira e a posio dos bem pensantes metafsicos no perodo da Revoluo Francesa e de sua consequncia para a religio crist e o processo de secularizao desencadeado pela Revoluo. As nossas informaes histricas sobre o perodo da Revoluo Francesa tm como base os trabalhos de Hobsbawm: Ecos da marselhesa e Era do capital.
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processo histrico irreversvel. Entre ambos, temos a nova irrupo da atitude
secularizante, que procurou reduzir a filosofia teolgica alem s dimenses humanas
(tema do nosso prximo captulo). O reaparecimento de Luciano e a presena de Voltaire
na crtica satrica da religio marxiana no so gratuitos, e vm logo aps as posies
feuerbachianas (temtica que ser tratada mais na frente) e das estocadas ferinas de Bauer
na religio, fazendo tudo terminar em comdia risonha do lado transcendente (lembrando
em muito o Dilogo dos mortos de Luciano). Sentimos a necessidade nesse ponto do
trabalho, de fazer uma pequena digresso para situar a obra do Luciano e o seu tipo de
stira para depois entrarmos em Voltaire e sua crtica satrica da religio, tendo sempre no
horizonte a perspectiva de situar estes autores em relao obra de Marx e ao seu estilo
satrico de crtica s formas religiosas (estilo este que chega ao seu ponto mais alto na obra
escrita junto com Engels A Sagrada famlia). Como notrio, na obra de Marx no
existem muitas citaes da obra de Luciano de Samsata. Um tema ainda pouco estudado
na obra do pensador alemo so as fontes literrias em geral, abundantemente utilizadas
em forma de citaes, epgrafes, parfrases e comentrios vrios. Sabe-se que Marx
conhecia a literatura greco-romana pelas suas corretas citaes, ou por adotar estilo
prximo a comediantes/satricos como Plauto e Terncio14 (Marx tinha como mxima de
vida uma referncia atribuda a Terncio, Nada que humano me estranho), de modo
que no nenhum absurdo acadmico trabalhar com algumas fontes da stira greco-latina
na obra do filsofo alemo e de como tais fontes nos informam sobre a sua crtica da
religio.
Sabe-se muito pouco sobre a vida de Luciano. Algumas informaes, ainda que
indiretas, o prprio nos d em obras como O sonho, A dupla acusao, O pescador e
Apologia (SCHWARTZ, 1965; BRANDO, 2001)15. Sabe-se ao certo que foi um leitor
de Homero, Simnides, dos trgicos, de Aristfanes, e dos autores de comdias vrias.
Conhecia muito bem os historiadores, fonte de algumas de suas stiras com os 14 Num ensaio intitulado A propos de la satire o pensador hngaro G. Lukcs faz referncia s fontes satricas de Marx e problematiza as razes hegelianas da diminuio do papel esttico da stira no ambiente intelectual da Alemanha moderna. Numa afirmao brilhante, diz Lukcs: Em Allemagne, la satire est l`enfant-martyr de la thorie bourgeoise de la littrature (LUKCS, 1975:15). Este texto do marxista hngaro foi uma das mais importantes referncias da nossa leitura da stira na obra de Marx e na percepo dos reducionismos de Hegel na sua leitura da comdia no mundo moderno. Para Lukcs, a stira desempenha um papel fundamental na literatura moderna ao trazer para um lugar central a questo da contingncia. 15 O trabalho de pesquisa de Jacynto Lins Brando considerado o melhor e mais aprofundado texto em portugus sobre a obra de Luciano. Trata-se de uma pesquisa de doutorado sobre a obra e o legado do comediante latino na Cultura Ocidental. O livro intitula-se: A potica do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samsata publicado pela editora da UFMG. Este trabalho foi o mais importante texto no auxilio do nosso resumido comentrio da obra de Luciano e da sua presena no estilo satrico de Marx.
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antepassados. O que nos interessa nesse momento destacar os escritos satricos de
Luciano sobre a religio e, nisto, ele quase imbatvel (s sendo alcanado em estilo no
sculo XVIII por Voltaire). Segundo Jacynto Brando, Luciano escreveu onze dilogos
satricos16 que tm como tema principal a crtica da religio praticada pela tradio
greco-romana, em todos eles uma caracterstica comum: desconstruir a seriedade das
crenas nos deuses e naquilo que eles pretensamente podem fazer aos humanos. Numa
certa linhagem que comea com Epicuro, o satrico grego quer demonstrar ficcionalmente
a inutilidade do medo dos deuses e das suas humanas cleras. Enquanto o filsofo Epicuro
constri argumentos na crtica aos deuses, o artista Luciano elabora fico satrica para
deslegitimar pelo riso as pretenses dos deuses (estaria aqui uma extraordinria perspectiva
de crtica da religio: pelo argumento e pelo riso, dois caminhos dos quais, na nossa
opinio, quem melhor tirou consequncias foi Marx). Dos onze dilogos crticos da
religio e das prticas dos deuses de Luciano, dois nos chamam ateno e nos conduzem ao
estilo de crtica de Marx e de Voltaire: Assemblia dos deuses e Dilogos dos mortos. No
primeiro, temos uma stira religiosa divertidssima e de sria reflexo. J o ttulo nos
chama a ateno: os deuses em assemblia de carter deliberativo. No dilogo os deuses
esto reunidos para discutir uma srie de irregularidades, uma delas o consumo excessivo
de ambrosia e de nctar. H tambm o aumento da populao divina: qualquer um agora se
torna um deus. Momos faz um discurso violento, criticando a deificao de muitos
homens, que nem gregos eram e, ainda por cima, trazem seus cortejos, querendo estender
seus privilgios a todos. Haver uma reviso geral do registro de todos os que entraram no
Olimpo, principal deliberao democrtica entre os deuses depois de muita discusso.
Toda documentao ser revista e examinada com muito cuidado, daqui para frente
nenhum deus interferir nas atividades e especialidades de outro deus. A questo
filosfico-satrica a de avaliar melhor a atividade dos deuses: da sua alimentao
exagerada a seus atos prodigiosos. Luciano quer o tempo todo nos mostrar comicamente
como os deuses so humanos, demasiado humanos e dependem de certos vcios dos
mortais. Xenfanes j tinha nos lembrado de tal situao dos deuses, e na Alemanha
moderna ser Feuerbach que far de tal tese o seu principal argumento antropolgico. A
grande originalidade de Luciano foi argumentar sobre essas coisas de maneira satrica.
16 Luciano inovou em muito a escrita latina, segundo Jacynto Brando, ao juntar o dilogo e a stira numa mesma estrutura. Deve seu estilo a sua formao retrica e o exerccio da arte, juntamente com a opo pela filosofia (ele chegou a ser reconhecido na sua escrita a um tipo de sofista). A sua stira tem carter argumentativo, sendo isto o que mais chamava a ateno de Marx. Luciano no queria apenas fazer rir, mas fazer brotar a reflexo atravs do riso.
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Marx no deixar passar em branco um achado dessa natureza. Articulando Luciano e
Voltaire, o pensador alemo far uma das mais devastadoras crticas do fenmeno religioso
de sua poca, bastando notar o estilo de crtica que far aos filsofos alemes ps-Hegel
(esquerda hegeliana) no uso de termos religiosos de maneira extremamente satrica; e no
ttulo de uma de suas obras dessa poca fica explcito o tom: A Sagrada Famlia (sem
dvida, a obra mais satrica de Marx e Engels).
Luciano no poupa a astrologia, os sacrifcios, os profetas, o destino, temas caros
religio e ao homem religioso. Seus dilogos ferinos vo desconstruindo um a um os
argumentos religiosos, comicamente. Um tema caro a Luciano, e importante na
desmistificao do universo religioso, o tema da morte e a forma de representao dessa
temtica nos dilogos satricos. As caractersticas do mundo dos mortos, representados
pelo crtico grego, so uma espcie de variedade temtica, variam de um texto para o
outro (BRANDO, 2001). Assim, em Das narrativas verdadeiras , Luciano e seus amigos
visitam a Ilha dos Bem-aventurados e a Ilha dos Condenados, em que se encontram e se
reconhecem personagens histricos e fictcios, que passam o tempo de modo variado, seja
aprazivelmente, seja enfrentando terrveis castigos; na Descida ao Hades, a cena
concentra-se no tribunal de Radamanto, em que os mortos recm-chegados so julgados,
atribuindo-se a um homem comum, o sapateiro Mcilo, o papel de advogado de acusao
contra o tirano; no Dilogos dos mortos, enfocam-se variados ngulos do mundo alm da
vida, onde esto personagens ilustres dentre os gregos, em situao, muitas vezes
constrangedora. Numa stira genial, situada no dilogo XI, Luciano coloca uma conversa
entre Digenes e Hrcules no Hades e, como seria absurdo um deus filho de Zeus no
Hades, ele inventa que a sombra de Hrcules que l est. Hrcules mesmo est no
Cu. Tem tudo de Hrcules, mas a sua sombra. Desconstruir a seriedade dos deuses
num lugar como o inferno grego, um objetivo importante perseguido por Luciano.
bom destacar que a obra de Luciano citada por Marx duas vezes na juventude,
exatamente o Dilogos dos mortos. No dilogo Menipo, apresenta-se o espetculo mais
radical. Essa variedade de representaes no deve desconcertar o entendimento do satrico
grego, uma vez que ele no pretende referendar nem erigir nenhum tipo de escatologia,
mas, inspirando-se nas diversas concepes tradicionais e jogando comicamente com elas,
usar o olhar, a fala e a experincia dos mortos e de suas crenas religiosas mesmo depois
de mortos, para refletir sobre o mundo dos vivos e de suas supersties, muito semelhante
ao que fez Epicuro nas suas cartas sobre temtica semelhante. Seu Hades ficcional pode
assim transformar-se no grande desfile carnavalesco em que misturam-se personagens
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literrios, histricos e mticos, cuja funo servir de contraponto para a denncia que se
almeja, no caso, as crendices religiosas sem fundamento, ou com fundamento ideolgico
de justificar alguma forma de dominao. Nesse item, torna-se impossvel no nos
reportarmos ao sculo XIX de Marx e ao nosso sculo XXI, no que diz respeito s
mutaes religiosas de carter conservador e supersticioso. Os fundamentalismos
religiosos passaram a ser a marca de debates polticos no nosso iniciante sculo XXI,
segundo um secularizado filsofo como Habermas, citado no incio do nosso trabalho. O
riso de Luciano ainda uma boa medida de reflexo para o imbrglio religioso em que
o mundo contemporneo est metido. Voltando a Luciano, percebemos que os mortos se
tornam acusadores dos vivos na medida em que tanto o Hades quanto a fico se
identificam como espaos da mais completa alteridade (BRANDO, 200, p.167). Num
primeiro nvel, porque estes no tm ideia do que significa, na verdade, a vida (recurso
extraordinrio utilizado por Luciano). A morte, assim, embora seja desgraa, no implica
necessariamente perda com relao vida, como afirma um defunto personagem: No ter
sede muito melhor do que beber, no ter fome melhor do que comer e no ter frio
melhor do que comprar roupas (LUCIANO, 1996, p. 95). Esse argumento constitui uma
amplificao do estilo satrico de Luciano ao compreender os males da riqueza, em que o
gozo dos prazeres sempre se mescla com inmeras preocupaes. Mais vantajoso,
portanto, que gozar dos prazeres da vida, o estado de absoluta falta de necessidades, que
s se encontra na morte. Os funerais, as honras fnebres, as oferendas, os tmulos so
assim o que de mais ridculo pode haver, uma vez que em nada fazem diferir a sorte dos
mortos aos quais se destinam, pois estes j no tm necessidade de nada. A stira, com e no
lugar dos mortos, uma forma radicalmente crtica de desmistificar as formas religiosas e
as suas supersties, que conseguiam penetrar as camadas populares gregas com muita
fora.
Uma coisa curiosa na obra de Luciano, que trabalha a temtica dos mortos, a de
que o mundo do Hades comporta castigos contra os que cometeram crimes em vida. Tais
castigos, geralmente, so destinados a ricos e poderosos, sobre os quais pesam dois tipos
de tormento aps a morte: de um lado, o prprio igualamento, a perda dos sinais de poder,
honra e riqueza; de outro, sofrimentos propriamente ditos (e isto no passou despercebido
por Marx). Como a morte, de certa forma, no deixa de ser a experincia de uma pobreza
amplificada, ela vem a ser sofrimento principalmente para os ricos, os quais, no Hades,
tero de mendigar e vender produtos para embalsamar mmias, por falta de recursos
(LUCIANO, 1996, p.165). Podemos observar como o sofrimento dos ricos traduz-se como
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a necessidade de trabalhar, o que decerto mostra a inteno de Luciano ao pintar tal
quadro: um reino ficcional onde se pensa a igualdade material entre as pessoas s pode se
realizar como espao em que todos so pobres, pois o que absurdo, em nosso mundo,
que muitos trabalhem e sofram para que poucos consumam. Traduzir isso numa literatura
satrica foi o grande mrito esttico-poltico de Luciano, e o que marcou toda uma gerao
de tericos e revolucionrios da crtica poltica de esquerda. Pode-se concluir daqui que,
mais terrvel do que estar morto, para um rico, ter de submeter-se a uma vida comum.
Talvez desta forma, afinal, o reino dos mortos logre obter um nivelamento mais eficaz das
diferenas sociais: condenando os ricos no morte, mas ao trabalho. Se aprofundarmos o
tema do trabalho em Luciano e Marx, sairamos em muito da temtica principal, a saber, a
crtica satrica da religio. O que nos basta ter demonstrado como uma crtica do nvel do
corpus lucianeum religio grega pode ter uma longa durao na tradio, chegando ao
Iluminismo francs (Voltaire e Diderot) e a Marx. Ao chamar a ateno para a idia de que
a ltima fase de uma formao histrico-mundana a comdia (MARX, 2005, p.148) e
definindo Luciano como aquele que leva os deuses morte cmica, o pensador alemo
indicava no s uma crtica terica, mas em estilo satrico onde assume a forma do satrico
grego como sua e chega concluso semelhante (fazendo as devidas propores de tempo
e espao) no que diz respeito s fantasias e supersties religiosas. Podemos fazer uma
brevssima sntese do at aqui visto: em Epicuro temos uma fundamentada crtica filosfica
religio e s suas pretenses; em Luciano temos uma crtica risonha da pretenso dos
deuses de guiar a vida humana e da no-seriedade das afirmaes religiosas. Assim temos
duas maneiras de criticar a religio no mbito fenomnico, faltando apenas a moderna
stira de Voltaire, tambm muito presente no estilo e no contedo da crtica marxiana.
O tema da crtica da religio parece ser um tema que define a ideia de Iluminismo,
como bem afirma o filsofo alemo Ernest Cassirer num estudo de altssima importncia
intitulado A filosofia do Iluminismo publicado em 1932: a atitude ctica e crtica em
face da religio, eis o que caracteriza a prpria essncia do Iluminismo (CASSIRER,
1994, p.189) Para nosso trabalho no interessa apenas a crtica da religio, mas a forma
como essa crtica feita. Quanto influncia das ideias iluministas na obra de Marx, no
resta mais nenhuma dvida: a crtica marxiana da religio sofre uma forte influncia da
perspectiva iluminista de passar a religio pelo crivo da razo (MADURO, 1981; LIMA
VAZ, 2001).
Segundo Luiz Roberto Salinas Fortes, ser a partir de 1759 que vamos encontrar
frequentemente nas obras de Voltaire e, sobretudo, no lugar de sua assinatura nas cartas
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que escreve aos seus inmeros correspondentes a curiosa expresso: crasez linfme
(FORTES, 1981, p.41). Essa expresso indica uma crtica direta Igreja catlica e s
formas de fanatismo religioso praticado historicamente por essa instituio, o que gera a
intolerncia em relao a toda opinio divergente, e leva os homens a se perseguirem
mutuamente e at a se trucidarem em guerras sangrentas. Mas pode ser tambm a
superstio e a ignorncia que induzem os homens a prticas cruis e manuteno de
preceitos do passado. Tanto James Thrower, em Breve histria do atesmo Ocidenal,
quanto Paulo Jonas de Lima Piva em Atesmo e revolta, afirmam que o cristianismo vivia
um processo de crise de legitimao e de fundamentao durante os sculos XVII e XVIII.
Existe, de incio, um problema no domnio do conhecimento: trata-se do conflito entre a
exigncia de autonomia na pesquisa cientfica e a autoridade dos dogmas cristos (LIMA
PIVA, 2006). A cincia e a filosofia pretendem colocar em questo qualquer afirmao que
no possa ser fundamentada racionalmente, enquanto os dogmas religiosos se apresentam
como verdades eternas, impermeveis ao empreendimento crtico, e objetos de f, domnio
no qual a razo frequentemente convidada a se calar (THROWER, 1982). Poderamos
afirmar que, desde o processo do Renascimento e da Reforma protestante, esse fenmeno
se fazia sentir na cultura ocidental. Da unidade primitiva do cristianismo passou-se
diversidade de novos grupos religiosos cristos. O domnio cultural exercido pela teologia
crist foi sucessivamente quebrado por polmicas e discusses pblicas. A perda de
unidade resultou imediatamente na perda de poder. Segundo Ernest Cassirer na sua obra
clssica sobre a Filosofia do Iluminismo, uma das primeiras consequncias da
diminuio do