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Comportamento Quatro mulheres lindas e bem- sucedidas confirmam a tese que alguns estudos já abordaram: as negras têm mais dificuldade em engatar romances sérios CORREIO B RAZILIENSE Brasília, domingo, 1º de setembro de 2013 8 e 9 A cor da relação parceiro é menor para ela”, afirma. Intrigada pelo fato de as mulheres negras serem mais solitárias do que as brancas, a pedagoga e mestre em ciências sociais Claudete Alves resol- veu, durante um ano e meio, mapear 1.127 casais em São Paulo. Desses, apenas 418 eram formados por ho- mem e mulher negros. Uma das ex- plicações para o número tão reduzi- do de casais de mesma raça estaria no fato de que os negros que ascendem socialmente querem se relacionar com as brancas. Eles buscam na união com outra raça uma forma de reforçar sua situação de suposto sta- tus. “O negro quer ter o que o branco tem e isso inclui a mulher branca. Muitos querem filhos com a pele mais clara do que a deles para não so- frerem o preconceito que eles tam- bém sofreram”, resume Claudete. A rejeição também parte dos ho- mens brancos. No Brasil, a negra é a minoria nos espaços culturalmente reservados para quem tem pele clara. Isso automaticamente as deixaria em desvantagem em relação às brancas. Dos 18 casamentos civis que Clau- dete presenciou ao longo da pesquisa, apenas três uniram pares de negros. Uma dificuldade de encontrar um companheiro de mesma cor foi con- firmada por todas as 11 mulheres ne- gras que a pesquisadora ouviu na épo- ca. Entre os relatos, muitas contavam que, quando mais jovens, eram pro- curadas pelos negros apenas para ini- ciação sexual. Quando engravidavam, eles dificilmente assumiam o filho. Era uma relação de fim anunciado. Confirmação do estereótipo da negra sexual, que carrega até hoje, em mui- tos casos, uma pesada herança da es- cravidão, quando elas eram escolhi- das para saciar o desejo dos brancos. Para o romance dar certo, eles exigiam moeda de troca. “Elas ainda diziam que, quando conseguiam ficar com negros, tinham que sustentá-los. Em geral, eles eram de escolaridade infe- rior e mantinham práticas sociais di- ferenciadas das delas.” Um preterimento que é observado em todas as classes sociais. Quem confirma são mulheres lindas, bem- sucedidas, da classe média, que cres- ceram no Plano Piloto. Daniela Lucia- na, Jaqueline, Denise e Marília são ne- gras.Também sentem o peso histórico que carregam com a cor. Confirmam o preconceito, a dificuldade de encon- trarem um par em pé de igualdade com as mulheres brancas. Um proble- ma que não é delas. Vem do outro. “Es- sas mulheres precisam entender que essa dificuldade é fruto de um proble- ma social e não pessoal. Elas se infe- riorizam como se não fossem bonitas ou interessantes”, lamenta Paula Pe- reira, pesquisadora-colaboradora do Nepem. Daniela Luciana, Jaqueline, Denise e Marília reconhecem que a di- ficuldade de romper as amarras do ra- cismo não são delas, mas nem por isso enfrentaram sempre com tranquilida- de os olhares de preconceitos. O assunto é tão delicado que poucas têm coragem de tocar nele. Falar de des- prezo, de se sentir preterida e de solidão abre feridas, joga na cara o preconceito que acompanha as mulheres negras ao longo de sua história. Ademais toda a discriminação que as tornam uma das personagens mais vulneráveis da socie- dade — são elas que ganham menos, têm a menor escolaridade e ocupam os postos menos nobres do mercado de trabalho —, a cor da pele as obrigam a traçar um caminho mais longo e dolori- do em busca do amor. Mais tortuoso ainda quando o destino almejado é o altar.“As mulheres pretas se casam mais tarde, apresentam maior índice de celibato e demoram mais para te- rem um relacionamento”, afirma a so- cióloga Bruna Pereira, pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem), da Universidade de Brasília. As estatísticas no Brasil que confir- mam a tese do abandono como conse- quência da raça são raras, mas a discus- são é antiga. Professora no Departa- mento de Ciências Sociais da Universi- dade Estadual de Londrina e doutoran- da na PUC/SP, Maria Nilza da Silva diz que, na década de 1950, alguns teóricos tentavam entender o fenômeno de des- valorização da mulher negra, pouco vista como uma opção para ser esposa e parceira. “Já naquela época, para ser escolhida nesse contexto da conjugabi- lidade, a mulher negra acaba se relacio- nando com um homem de classe social mais baixa. Para ser escolhida, ela deve- ria ter alguma vantagem.” Motivada pelo tema, Maria Nilza também pesquisou a menor oferta de parceiros disponível. Isso foi nos anos 1990, mas a professora defende que pouca coisa mudou de lá para cá. “A mulher negra continua discrimi- nada em vários segmentos, inclusive no matrimônio. A possibilidade de encontrar um companheiro ou um POR FLÁVIA DUARTE Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.” Bell Hooks é ativista negra e feminista norte-americana

A cor da relação

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Matéria de Flávia Duarte

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Quatromulheres

lindas e bem-sucedidas

confirmam atese quealguns

estudos jáabordaram:

as negrastêm mais

dificuldadeem engatarromances

sérios

CORREIOBRAZILIENSE

Brasília, domingo,1º de setembro de 2013

8 e9

A cor da relação

parceiro é menor para ela”, afirma.Intrigada pelo fato de as mulheres

negras serem mais solitárias do queas brancas, a pedagoga e mestre emciências sociais Claudete Alves resol-veu, durante um ano e meio, mapear1.127 casais em São Paulo. Desses,apenas 418 eram formados por ho-mem e mulher negros. Uma das ex-plicações para o número tão reduzi-do de casais de mesma raça estaria nofato de que os negros que ascendemsocialmente querem se relacionarcom as brancas. Eles buscam naunião com outra raça uma forma dereforçar sua situação de suposto sta-tus. “O negro quer ter o que o brancotem e isso inclui a mulher branca.Muitos querem filhos com a pelemais clara do que a deles para não so-frerem o preconceito que eles tam-bém sofreram”, resume Claudete.

A rejeição também parte dos ho-mens brancos. No Brasil, a negra é aminoria nos espaços culturalmentereservados para quem tem pele clara.Isso automaticamente as deixaria emdesvantagem em relação às brancas.

Dos 18 casamentos civis que Clau-dete presenciou ao longo da pesquisa,apenas três uniram pares de negros.Uma dificuldade de encontrar umcompanheiro de mesma cor foi con-firmada por todas as 11 mulheres ne-gras que a pesquisadora ouviu na épo-ca. Entre os relatos, muitas contavamque, quando mais jovens, eram pro-curadas pelos negros apenas para ini-ciação sexual. Quando engravidavam,eles dificilmente assumiam o filho.Era uma relação de fim anunciado.Confirmação do estereótipo da negrasexual, que carrega até hoje, em mui-tos casos, uma pesada herança da es-cravidão, quando elas eram escolhi-das para saciar o desejo dos brancos.Para o romance dar certo, eles exigiammoeda de troca. “Elas ainda diziamque, quando conseguiam ficar comnegros, tinham que sustentá-los. Emgeral, eles eram de escolaridade infe-rior e mantinham práticas sociais di-ferenciadas das delas.”

Um preterimento que é observadoem todas as classes sociais. Quemconfirma são mulheres lindas, bem-sucedidas, da classe média, que cres-ceram no Plano Piloto. Daniela Lucia-na, Jaqueline, Denise e Marília são ne-gras.Também sentem o peso históricoque carregam com a cor. Confirmam opreconceito, a dificuldade de encon-trarem um par em pé de igualdadecom as mulheres brancas. Um proble-ma que não é delas.Vem do outro.“Es-sas mulheres precisam entender queessa dificuldade é fruto de um proble-ma social e não pessoal. Elas se infe-riorizam como se não fossem bonitasou interessantes”, lamenta Paula Pe-reira, pesquisadora-colaboradora doNepem. Daniela Luciana, Jaqueline,Denise e Marília reconhecem que a di-ficuldade de romper as amarras do ra-cismo não são delas, mas nem por issoenfrentaram sempre com tranquilida-de os olhares de preconceitos.

O assunto é tão delicado que poucastêmcoragemdetocarnele.Falardedes-prezo, de se sentir preterida e de solidãoabre feridas, joga na cara o preconceitoque acompanha as mulheres negras aolongo de sua história. Ademais toda adiscriminação que as tornam uma daspersonagens mais vulneráveis da socie-dade — são elas que ganham menos,têm a menor escolaridade e ocupam ospostos menos nobres do mercado detrabalho —, a cor da pele as obrigam atraçar um caminho mais longo e dolori-do em busca do amor. Mais tortuosoainda quando o destino almejado é oaltar. “As mulheres pretas se casammais tarde, apresentam maior índicede celibato e demoram mais para te-rem um relacionamento”, afirma a so-cióloga Bruna Pereira, pesquisadoracolaboradora do Núcleo de Estudos ePesquisa sobre a Mulher (Nepem), daUniversidade de Brasília.

As estatísticas no Brasil que confir-mam a tese do abandono como conse-quência da raça são raras, mas a discus-são é antiga. Professora no Departa-mento de Ciências Sociais da Universi-dade Estadual de Londrina e doutoran-da na PUC/SP, Maria Nilza da Silva dizque, na década de 1950, alguns teóricostentavam entender o fenômeno de des-valorização da mulher negra, poucovista como uma opção para ser esposae parceira. “Já naquela época, para serescolhida nesse contexto da conjugabi-lidade, a mulher negra acaba se relacio-nando com um homem de classe socialmais baixa. Para ser escolhida, ela deve-ria ter alguma vantagem.”

Motivada pelo tema, Maria Nilzatambém pesquisou a menor ofertade parceiros disponível. Isso foi nosanos 1990, mas a professora defendeque pouca coisa mudou de lá para cá.“A mulher negra continua discrimi-nada em vários segmentos, inclusiveno matrimônio. A possibilidade deencontrar um companheiro ou um

POR FLÁVIA DUARTE

Muitasmulheresnegrassentemqueemsuasvidasexistepoucoounenhum

amor.Essaéumadenossasverdadesprivadasque

raramenteédiscutidaempúblico. Essa realidadeé tãodolorosaqueasmulheresnegras raramente falamabertamente sobre isso.”

Bell Hooks é ativista negrae feminista norte-americana

Page 2: A cor da relação

Janine Moraes/CB/D.A Press

Janaína Bittencourt tem 24 anos.Foi criada no Plano Piloto. Ela e oirmão eram os únicos negros daescola particular em que estuda-va. Seu último relacionamentodurou mais de dois anos, com umhomem de mesma cor. Solteira,tomou uma decisão: quer um ma-rido negro.

“Demorei muito para me enxer-gar como uma pessoa potencialmen-te bonita. Na fase escolar, não melembro de ter sofrido aquele racismoduro. Passei a enxergar isso por voltade 13, 14 anos, quando a gente se in-teressa pelos meninos. Todo mundotinha um parzinho, menos eu. Atri-buía isso ao fato de não ser bonita.Identificava que tinha uma estéticadiferente daquela que na escola eraimportante, como o cabelo liso, porexemplo. Enfim, essas coisas que, de-poisdeadulto,agenteaprendearele-var.O meu papel,naquela época,erao da amiga que faz a ponte para asoutras ficarem na festinha.

Os homens mais velhos me nota-vam mais. Acredito que sempre des-pertei o apetite sexual deles. A abor-dagem comigo era sempre muito di-reta, não tinham o cuidado que ti-nham com as meninas brancas. Éisso que pega na autoestima. Se euficasse com alguém, nunca tinhabrecha para virar uma coisa a mais.

A família do branco tem sempreuma resistência maior. Era sempreum momento de tensão. Ficava nadúvida em dizer: ‘Avisa a seus paisque sou negra’.O primeiro rapaz peloqual me apaixonei, aos 18 anos, eramuito tranquilo em relação à ques-tão racial. Quando fui conhecer a fa-mília dele, porém, a mãe dele ficoumeio chocada,não conseguiu disfar-çar. Pensei que era coisa da minhacabeça. Mas, depois disso, ele termi-nou. Dois meses depois, estava na-morando uma menina branca.

O que muita gente não enxerga éque a preterição das mulheres ne-gras é algo que a sociedade nos ensi-na. A mulher negra supostamente éboa para o sexo e para as relações

superficiais, mas não para o casa-mento.Nesse jogo,as mulheres ficamrelegadas até para os negros. É umapequena morte você não ser viávelpara ninguém, nem para quem de-veria ser seu par natural.

Eu me relacionei com homensbrancos,mas o custo era muito pesa-do. Não tinha liberdade de sair comas minhas tranças, se elas não tives-sem com a manutenção certinha naraiz. A sociedade não está preparadapara a estética negra. O homem ne-gro, talvez por ter uma mãe negraem casa,entende que o cabelo crespoamassa quando você dorme. Com ohomem branco,é sempre um proces-so. Tinha que acordar mais cedo,passar uma água para o cabelo ficarmais ou menos. Namorar um ho-mem branco é ter que passar por es-sas questões que não sei se quero.De-morei muito para me enxergar comouma pessoa bonita, passível de rela-cionamento, e agora não tenho quepassar por tudo isso de novo.

O casamento implica, inclusive,ter filhos, e filhos negros. E, para al-gumas pessoas, isso é um terror. Tal-vez nem associando à cor da pele,mas ao cabelo duro. Por isso, muitasmulheres negras começam a ameni-zar os traços para entrar em uma es-tética tida como mais bonita. Euquero que meus filhos sejam negros,que tragam na pele o simbolismoque minha família tem. Sou critica-da quando falo isso. Uma tia falavaque a gente tinha que ter essa preo-cupação de amenizar os nossos tra-ços.Acho isso uma violência.

As mulheres brancas, via de regra,se casam mais, consolidam família,permanecem mais tempo casadas.Antigamente,para a mulher branca,o futuro almejado era ser esposa edona de casa. Já as mulheres negrastinham que trabalhar para se sus-tentar. Para as negras, que durantemuito tempo nem poderiam se casar,a família acontecia sem a presençade um homem. Por isso, entendo queexista essa fixação de se casar no pa-pel. É a afirmação de uma afetivida-de que sempre lhes foi negada.” ➧

Um par da mesma raça

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CORREIOBRAZILIENSE

Brasília, domingo,1º de setembro de 2013

10 e 11

Zuleika de Souza/CB/D.A Press

Militantedo afeto

A baiana e servidora pública Da-niela Luciana Silva tem 42 anos. Ne-gra, viveu um casamento intrarraciale conta que já foi confundida com ababá da filha, Maria, 7 anos. Ela dizque as mulheres negras precisam tri-lhar um longo caminho na busca pe-la autoestima.

“Nasci contrariando as estatísticas,nasci classe média. Sou moradora doPlano Piloto, onde estão poucas negras.Os homens não abordam as negras coma mesma frequência que abordam asbrancas.A cor é uma marca de pobreza,de alguém menos casável.Estudei em es-cola particular, na Bahia, onde eu era aúnica negra. Com 15 anos, tinha váriaspaqueras, mas os meninos nunca mechamavam para dançar, por exemplo.Meuprimeironamoradoeranegro.Cha-mo de namoro por licença poética. Fo-ramalgunsbeijosduranteasférias.Leveium tempão para namorar de novo.

As mães de mulheres negras nos edu-caram para entender que, quando vocêsaísse de casa, poderia ser alijada peloracismo. Elas diziam que os homensnão iam nos valorizar. Por isso, a mu-lher negra também é mais desconfiada.Você se torna menos ousada, menos es-pontânea.E,às vezes,acaba sendo arro-gante para compensar as origens.

Até que,com 18 anos, fui fazer facul-dade em Salvador. Lá, eu não era a mi-noria. Ao contrário, era modelo do queera bonito. Quando vim para Brasília,achava que não ia me casar, que nãotinha mais chance. Mas me casei com34 anos. Ele era branco e tinha 23. Elenunca permitiu que apontassem essasmarcas raciais entre a gente. Às vezes,notava que as pessoas nos olhavam co-mo se quisessem dizer: ‘Como essa mu-lher está com esse rapaz?’. Imagina! Euera mais velha e ainda era preta. Esta-mos separados desde 2010,mas nos ca-samos apaixonados, por amor.

Para a mulher negra, é muito difícilse relacionar. O que percebo, como mili-tante e como mulher,é que todo mundoquer aprovação. O homem negro tam-

bém.E ele faz escolhas.Em alguns casos,escolhe a mulher branca, porque tam-bém quer aceitação diante do grupo noqual é minoria, como acontece no Pla-no Piloto.Os que ascendem socialmenteacabam frequentando lugares em que amaioria é de gente branca,então ele po-de fazer suas escolhas afetivas com maisfacilidade do que a mulher negra.

No entanto, se você define que pretosó se relaciona com preto e branco sócom branco, fica muito difícil encon-trar parceiros. Tem homens que nuncavão ficar com uma mulher negra, por-que ela não faz parte do gosto deles.Ele não quer alguém que carregue ocomponente da herança genética e fa-miliar pobre. Ele quer uma coisa leve,sem a complexidade que é lidar com a

questão histórica da raça, do precon-ceito. O problema não é nosso. É quenós temos mais elementos negativosnesse jogo. Não somos a escolha pa-drão de nenhum homem menos cora-joso, menos seguro de si.

Eu não tenho essa restrição, mas hámeninas que querem se relacionar sócom negros porque decidiram marcaruma posição política também no cam-po afetivo. Não acho errado. Eu querome casar de novo. Sei o que quero e doque preciso. O que nos diferencia dasmulheres brancas é que temos um tra-balho muito maior para chegarmos porinteiro e seguras em um relacionamen-to. Sou militante do afeto. A sociedade éque nos leva a aceitar pouca coisa, maseu sei o que eu mereço e não aceito.”

Page 4: A cor da relação

A antropóloga Denise da Cos-ta, 29 anos, nunca pensou em serelacionar com um homem bran-co. Até esbarrar com aquele queseria seu marido. Casada há trêsanos, não nega que teve medo deser apresentada à família dele e,volta e meia, enfrentam juntos al-gumas situações de preconceito.

“Antes do meu marido,só tive na-morados negros. Não achava quefosse namorar um homem brancopor medo de não me aceitarem.Tanto que, assim que comecei a na-morar o Daniel, meu maior medoera de a família dele me rejeitar dealguma forma.Não aconteceu.Nós,mulheres negras, sabemos que nemsempre podemos ser aceitas nosambientes que frequentamos e queisso também acontece nos relacio-namentos afetivos.

Meu primeiro namorado, aos 15anos, era negro. Eu não era muitoabordada nessa época. Olhava paraas minhas amigas brancas e pensa-va:‘Acho que sou mais bonita do queelas, mas os meninos estão olhandomais para elas.’Hoje me sinto com aautoestima mais elevada.

De maneira inconsciente, eviteime relacionar com homens brancos.Eu circulava por espaços onde a pre-sença do negro era maior. Acho queera uma proteção mesmo, de acharque não era o meu lugar.Mas estava

solteira e queria conhecer pessoasinteressantes. Foi quando comecei anamorar o Daniel, despretensiosa-mente. Nós nos conhecemos na fa-culdade. Para ele, foi uma experiên-cia nova também. Ele nunca tinhanamorado uma mulher negra.

A questão racial acabou sendoimposta na vida dele. Por eu usarmeu cabelo natural, já aconteceude as pessoas gritarem comigo narua para eu cortá-lo. Meu maridofica indignado. Teve também umoutro episódio, que aconteceu nocondomínio de luxo que a irmãdele mora, em Minas Gerais. Nahora da identificação, o porteirofalou: ‘Seu irmão está aqui comuma morenona’, de um jeito mui-to agressivo. Por que ele não pen-sou que eu era mulher dele e res-peitou? Existe um0 racismo muitosutil no Brasil, que é tão subjetivoque você não consegue desmasca-rar e dar nome àquilo que estáacontecendo. E existe esse racismoescancarado. Daniel fica nervosonessas situações, xinga, mas eu di-go: ‘Não mexe com isso não.’

Fico pensando como vai ser meufilho com o Daniel.Sei que terão ex-pectativas sobre como ele vai nascer,se será branco, mestiço, com cabeloscrespos ou não. Mas o importante éque eu quero ensinar a ele as coisasque aprendi sobre racismo. Tarefanem um pouco simples.”

A auditora Marília Santos, 26 anos, sempre circulou emmeios em que era a minoria.Está solteira há sete meses,de-pois de um relacionamento de quase um ano com um ho-mem de mesma raça. Estilosa e linda, explora seu diferen-cial para chamar a atenção. Sempre atraiu olhares e reco-nhece que nem todas as negras têm as mesmas boas expe-riências para contar.

“O que sempre achei diferente é a abordagem do negro edo branco. O negro parece que se sente no direito de chegarem você porque você também é negra. Ele já fala assim: ‘Nósque somos dessa raça bonita…’ A raça não pode ser um que-sito para ficar junto. Sempre convivi com homens brancos.Em qualquer reunião que vá, provavelmente, sou a única ne-gra.Até por isso acho que a maioria dos meus relacionamentosfoi com homens brancos. Namorei cinco vezes: dois negros etrês brancos.Comecei a me sentir atraída por negros quando jáera mais velha,porque não tinha contato com os negros.

Nos meus relacionamentos, nunca passei por situações depreconceito,mas já tive medo.Quando a gente toma consciên-cia da nossa raça, temos medo. Quando era pequena, não mepreocupava se era negra ou era branca, mas, quando estamosem um relacionamento, tememos não pelo rapaz com quemestamos saindo, mas pela família dele. Se ele quis namorarcom você,é porque ele te aceita da cor que é,mas a família de-le não é obrigada a pensar da mesma forma.

A primeira imagem que o homem tem é de que a negra émuito sexualizada. Acha que nós gostamos de uma aborda-gem mais ríspida, e não é assim. Também existe uma aborda-gem maior por parte dos estrangeiros.Ser negra está na moda.

Não acontece comigo,mas acontece com outras negras,dese sentirem excluídas em certos ambientes. Normalmente,não sinto essa coisa, porque já chego querendo ser diferente.Nem mais nem menos, mas chamando a atenção. Muitasnegras querem ser iguais a todas as pessoas da festa e aí elasse sentem excluídas. Já fui muito questionada e até excluídado meio.Me acusam de não entender o movimento.Eu não vi-vi essa realidade.Posso respeitar,apoiar a causa,mas não lutarcom a mesma força de alguém que sofreu.”■

Janine Moraes/CB/D.A Press

Amor entre raças

A beleza da minoria

JanineMoraes/CB/D.A

Press