A Construção Da Sexologia Como Profissão Em Portugal

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    F  R E E T HE ME  S 

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    1 Instituto de MedicinaPreventiva e Saúde Pública,Faculdade de Medicina,Universidade de Lisboa.Av. Professor Egas Moniz,s/n. 1649-028 LisboaEstremadura [email protected] Centro de Investigaçãoe Estudos de Sociologia,Instituto Universitário deLisboa. Lisboa Portugal.3 Institut de la Santé et de laRecherche Médicale. ParisFrança.

    A construção da sexologia como profissão em Portugal:composição de um grupo profissional e tipos de sexólogos

    The construction of sexology as a profession in Portugal:

    composition professional group and types of sexologists

    Resumo  Este estudo visa discutir a emergênciada profissão de sexólogo em Portugal, comparandoa sua evolução com as tendências internacionais.Procura igualmente compreender as autoidentifi-cações profissionais dos sexólogos e os sentidos queeles lhes atribuem. A informação empírica apre-

    sentada resulta de um inquérito por questionárioa 91 sexólogos identificados através das principaisassociações profissionais e de 44 entrevistas apro-

     fundadas junto de peritos selecionados através deuma amostragem intencional para assegurar a di-versidade dos sexólogos portugueses. Os resultadosdo inquérito indicam que em média o sexólogo

     português tem 43 anos, é maioritariamente dosexo feminino, não médico, e tem formação em se-

     xologia. Considerando as habilitações, os percur-sos profissionais e as atividades desenvolvidas nocampo, e os discursos dos entrevistados relativosaos seus ideais de profissão, obtivemos uma tipolo-

     gia com cinco categorias: sexólogos por vocação,sexólogos pela prática clínica, sexólogos por cer-tificação, sexólogos-cientistas sociais e sexólogospor mediatização. A pesquisa identificou uma in-teressante diversidade de práticas e conceções pro-

     fissionais no campo da sexologia portuguesa. Sersexólogo parece estar mais ligado aos ideais sobrea profissão do que ao tempo dedicado à mesma.Palavras-chave   Sexologia, Sexólogo, Profissões,Portugal 

    Abstract This study sets out to discuss the emer- gence of the profession of sexologist in Portugal,comparing its development with internationaltrends. This research also seeks to understand theself-identification of sexologists and the signif-icances they attribute to it. The empirical infor-

    mation presented derives from a survey conductedwith 91 Portuguese sexologists identified throughthe leading professional associations and from 44in-depth interviews with experts selected by in-tentional sampling to ensure the diversity of Por-tuguese sexologists. The results of the survey indi-cate that the Portuguese sexologist is on average43 years old, mainly female, non-physician, andhas training in sexology. Considering the quali-

     fications of the interviewees, their professionaltrajectories and the activities they develop in the

     field, and the discourses related to their ideals ofthe profession, a typology was found with fivetypes: sexologists by vocation, sexologist by clinical

     practice, sexologists by certification, social scien-tist-sexologists and sexologists by media coverage.The survey identified an interesting diversity of

     practices and professional conceptions in the fieldof sexology in Portugal. Being a sexologist appearsto be more associated with the ideals of the profes-sion than the time devoted to same.Key words Sexology, Sexologist, Professions, Por-tugal 

    Violeta Alarcão1

    Fernando Luís Machado 2

    Alain Giami 3

    DOI: 10.1590/1413-81232015212.11112015

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    Introdução

    A sexologia emergiu na segunda metade do sécu-lo XIX e constituiu-se como uma scientia sexualis pluridisciplinar, englobando várias áreas do sa-

    ber, médicas e não médicas, bem como um lequevariado de práticas terapêuticas, de formação,e de intervenção1. A constituição da sexologiaenquanto área do saber tem sido estudada comum enfoque histórico e sociológico desde a obrapioneira de Foucault2, passando pelos trabalhosde Béjin3,4, Irvine5  e Weeks6, aos balanços maisatuais de Giami1  e Russo7. Também a sexologiaenquanto profissão tem sido objeto de pesqui-sas, nomeadamente, na Europa8,9, no Canada10 ena América Latina11. Nalguns países, alguns dosmais influentes sexólogos têm igualmente procu-rado reconstituir a história da sexologia12-15.

    Este artigo pioneiro quanto ao estudo de umgrupo profissional visa a elaborar uma sociogra-fia dos sexólogos em Portugal e compreender asautoidentificações destes com a sexologia a par-tir de uma estratégia metodológica mista, quearticula dados resultantes de um inquérito comesses profissionais em Portugal e material reco-lhido através de entrevistas aprofundadas. Adi-cionalmente, procura discutir a emergência daprofissão de sexólogo em Portugal, comparandoa sua evolução com as tendências internacio-nais. Primeiramente é feita uma introdução ao

    surgimento da sexologia portuguesa, com umenfoque nos fatores de natureza social, cultu-ral e institucional que têm impulsionado a suaprofissionalização. De seguida, são detalhados osprocedimentos metodológicos que orientarama realização de uma sociografia da sexologia emPortugal e possibilitaram a análise dos diferentesmodos de identificação desta no país, produzin-do conhecimento sobre a diversidade dos senti-dos atribuídos à identidade de sexólogo. Numaterceira parte, é apresentada a informação empí-rica resultante do inquérito por questionário a 91sexólogos portugueses e das 44 entrevistas semi-

    diretivas junto de atores-chave da sexologia. Porfim, discute-se a pertinência social, real e simbó-lica da emergência da profissão de sexólogo emPortugal e algumas implicações que decorremdesta evolução profissional para o papel da sexo-logia enquanto ciência e profissão.

    A sexologia enquanto profissão em Portugal

    Em Portugal, foi a partir dos anos 70 que aqueda do regime da ditadura e a construção deum regime democrático com novas condições

    económicas, políticas e sociais possibilitaram ocrescimento das profissões16. Mas foi só a partirda década de noventa que vários grupos profis-sionais passaram a ser alvo de estudos socioló-gicos17,18.

    Os membros das diferentes profissões apre-sentam características e especificidades múltiplas,histórica e geograficamente variáveis, ocupamposições hierárquicas diversas, e obtêm níveisdiferenciados de prestígio, poder, competênciae autoridade19. Essa heterogeneidade tem estadopresente desde a origem da sexologia portugue-sa. Não existe um caminho claro e definido parase tornar um sexólogo em Portugal. Não existetampouco um consenso quanto à definição deum sexólogo, ou uma enunciação das suas com-petências e uma descrição exata das suas tarefas.Esta situação é semelhante a de outros países eu-

    ropeus8.Os trabalhos do médico neurologista Egas

    Moniz, com uma tese de doutoramento, em 1901,intitulada “A Vida Sexual – Fisiologia”, seguida em1902 de “A Vida Sexual – Patologia”, fazem comque possa ser considerado o precursor portuguêsda sexologia20. Neste seu trabalho antecipador,e no enquadramento da racionalidade biológi-co/científica da época, designada por Béjin3  de“protossexologia”, em que o discurso médico secontrapunha ao legal ou religioso, a sexualidadepassou do domínio das perversões morais para

    o das disfunções sexuais. Porém, somente no fi-nal dos anos sessenta, e especialmente após a re-volução de abril de 1974, com a restauração dademocracia, é que se pode falar da emergênciada sexologia em Portugal, com o surgimento dasconsultas nos hospitais públicos de Coimbra, Lis-boa e Porto. Este aspeto é comparável à realidadeda América Latina, onde o processo de constitui-ção da sexologia na Argentina, Brasil e Chile foitambém marcado pela ascensão e queda dos res-petivos regimes militares ditatoriais11.

    Em Portugal, a terapia sexual foi desenvolvi-da por um grupo pioneiro de psiquiatras, Afonso

    de Albuquerque, Allen Gomes, Pacheco Palha eSilveira Nunes, com percursos pessoais e pro-fissionais semelhantes, e interessados em imple-mentar no país o trabalho desenvolvido nos Esta-dos Unidos da América por Masters e Johnson21.A Sociedade Portuguesa de Andrologia (SPA) foifundada em 1979, com um enfoque exclusiva-mente na saúde sexual masculina e na infertili-dade, mas constituída com 29 médicos de váriasespecialidades22. O incremento e o interesse pelaandrologia nos últimos anos conduziram pro-gressivamente à admissão de novos membros, es-

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    pecialmente da área da urologia. A criação da So-ciedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC)foi oficializada em 1985, com 116 profissionais.Apesar da colaboração entre os profissionais deambas as sociedades científicas, o campo da se-

    xologia e terapia sexual foi sendo mais associadoà SPSC. A medicalização das questões de sexu-alidade e o surgimento de tratamentos médicoseficazes mudaram em parte esta situação, e onúmero de profissionais de saúde no campo desexologia aumentou23. A formação em sexolo-gia foi implementada por ambas as sociedades,

     juntamente com a Universidade Lusófona (desde1998) e outras instituições. A SPSC fornece umtítulo de terapeuta sexual para aqueles que reali-zem os seus dois anos do programa de formação,que inclui sessões de supervisões, pesquisa e prá-tica clínica24. Outras instituições emitem títulos

    de mestrado e cursos pós-graduados.A Associação para o Planeamento da Família

    (APF) foi criada em 1967, ainda durante o regi-me ditatorial. Além de pioneira na promoção doplaneamento familiar em Portugal, a APF teveum papel chave na criação de serviços para jo-vens, na formação de profissionais e na educaçãosexual nas escolas25.

    No cruzamento dos campos político e da se-xualidade, deve destacar-se o efeito que teve oaparecimento do Vírus de Imunodeficiência Hu-mana (HIV) e da Síndrome de Imunodeficiência

    Adquirida (AIDS). Em Portugal, o primeiro casoclínico de infeção pelo HIV foi diagnosticadoem Outubro de 1983. Se, numa primeira fase, aemergência do HIV/AIDS abalou o equilíbrio deforças conseguido em duas décadas de liberali-zação dos costumes, atitudes e comportamentossexuais, o pânico moral face a uma nova e desco-nhecida doença deu lugar a uma prioritização nagestão pública do problema26. Neste contexto, oMinistério da Saúde criou, em 1985, o Grupo deTrabalho da AIDS, e inicia-se em Portugal umavasta pesquisa às atitudes e aos comportamentossexuais das populações27-31, seguindo o exemplo

    de outros países32-34. Emergem também nestequadro alguns movimentos sociais de combateà estigmatização da doença e discriminação daspessoas seropositivas, como resposta a um dis-curso do risco associado à sexualidade, uma ar-gumentação também moralista e moralizadora,em torno da associação entre comportamentosdesviantes e o HIV/AIDS.

    Métodos

    Para dar resposta aos objetivos de elaboração deuma sociografia dos sexólogos em Portugal e decompreensão das autoidentificações destes com a

    sexologia foi delineada uma estratégia metodo-lógica mista. A informação apresentada resultade material recolhido através de entrevistas se-midiretivas com atores-chave da sexologia emPortugal e dos dados resultantes de um inquéritopor questionário enviado por correio a todos osprofissionais da sexologia identificados.

    A pesquisa seguiu a metodologia do estudoEuro-Sexo, o primeiro mapeamento dos profis-sionais de sexologia realizado em França9, e du-plicado posteriormente em seis países europeus.A versão original em francês do questionáriocontemplava 85 perguntas organizadas nas se-guintes seções: 1) Formação profissional inicial;2) Formação em sexologia; 3) Prática profissio-nal; 4) Prática clínica em sexologia; 5) Relaçãocom os clientes; 6) Opiniões sobre sexologia; 7)Outras atividades no campo da sexologia; e 8)Informações sociodemográficas. Foi traduzidopara o português, comparado com a versão bra-sileira traduzida pelo Centro Latino-Americanoem Sexualidade e Direitos Humanos11 e adaptadoao contexto português.

    O presente artigo tem como foco a realizaçãode uma sociografia da sexologia em Portugal,

    resultante da necessidade de saber quem são osprotagonistas deste campo em termos de perfilsocial e profissional. Representa também umaprimeira tentativa de mapear as diferenças emtermos de género e categoria profissional (cate-gorias médicas vs. não médicas) e de as relacionarcom as posições ocupadas no campo. A “base dedados de sexólogos” foi obtida a partir de listaspúblicas e das fornecidas pelas principais asso-ciações profissionais: a SPSC forneceu as listas detodos os membros associados, dos detentores dotítulo de Terapeuta Sexual, e dos antigos alunosdo Curso de Pós-Graduação em Sexologia Clí-

    nica; a SPA forneceu a lista dos seus associados;e a APF disponibilizou a lista dos profissionaisdos seus projetos a nível nacional. A juntar a essainformação foi obtida a lista de atuais e antigosalunos do Mestrado Transdisciplinar de Sexo-logia da Universidade Lusófona e realizada pes-quisa no anuário telefónico das páginas amarelascom as entidades “sexólogo” e “terapeuta sexual”.A “base de dados de sexólogos” engloba, por isso,tanto as pessoas que fazem parte de associaçõese se beneficiam de um reconhecimento da suaatividade profissional, como os indivíduos que

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    se apresentam publicamente como “sexólogos”,independentemente das suas qualificações aca-démicas ou reconhecimento profissional.

    Um total de 490 indivíduos foi identificadocomo potenciais sexólogos. Após o primeiro con-

    tato, 28 foram excluídos: 23 por estarem inconta-táveis, 4 por se terem considerado não elegíveis e1 por ter falecido.

    O inquérito por questionário realizou-se en-tre agosto de 2012 a janeiro de 2013. O númerototal de indivíduos que devolveram o questio-nário preenchido foi 91 (20% de todos os par-ticipantes elegíveis). As taxas de participação va-riaram por afiliação: de 12% da SPA (20 de 164)para 90% da APF (19 de 21) e 30% da SPSC (25de 84); e género: as mulheres (58 de 221, 26%)foram mais participativas do que os homens (33de 241, 14%).

    Para compreender e interpretar os diferentesmodos de identificação da sexologia em Portugal,produzindo conhecimento sobre a diversidadedos sentidos atribuídos à identidade de sexólogo,realizou-se um estudo qualitativo baseado na co-leta de dados através de entrevistas semidiretivasa atores-chave da sexologia. A seleção dos partici-pantes seguiu uma estratégia de amostragem in-tencional para garantir a constituição de um gru-po socialmente significativo e heterogéneo quan-to às variáveis-chave na estruturação do campo eàs tensões que atravessam a rede de profissionais,

    nomeadamente as relações de género e as de po-der entre médicos e não médicos.Primeiramente, foi feito um levantamento de

    sítios institucionais ou pessoais na Internet usan-do o motor de busca Google, que resultou numconjunto heterogéneo de atores, formado por so-ciedades científicas, Organizações Não Governa-mentais (ONG), clínicas, núcleos em universida-des, e profissionais ligados à sexologia, através doqual foi possível identificar os atores principaisdo campo.

    Os critérios de seleção incluíram: (a) sermembro-fundador, ex-presidente, ou partici-

    pante ativo de uma instituição relacionada coma sexologia; (b) ser um especialista da sexuali-dade com um papel no campo da sexologia; (c)ser considerado pelos atores-chave um ator rele-vante no campo da sexologia; e (d) aceitar e es-tar disponível para ser entrevistado. Os cientistassociais foram incluídos para ampliar nossa visãosobre o papel profissional da sexologia e selecio-nados a partir de investigadores da sexualidadecom interações com reconhecidos sexólogos.

    A partir de uma lista final de 55 profissio-nais, obtiveram-se 44 entrevistas: 22 médicos,

    13 psicólogos e 9 cientistas sociais. As entrevis-tas realizaram-se entre novembro de 2011 e abrilde 2012, tiveram entre 45 minutos e 2 horas deduração, e foram gravadas com o consentimentodos participantes. A análise das entrevistas seguiu

    a perspetiva da sociologia das profissões, procu-rando identificar e interpretar a diversidade deníveis de prestígio, poder, competência e autori-dade na profissão de sexólogo19. Considerando asdiferentes habilitações de base e as competênciasadquiridas pelos entrevistados, a sua antiguidadeno campo e os seus múltiplos percursos profis-sionais e atividades desenvolvidas no campo, etambém os discursos relativos aos seus ideais deprofissão, foi construída uma tipologia de sexó-logos portugueses. Os ideais-tipos devem ser en-carados enquanto construções teóricas e meto-dológicas que acentuam determinados traços tí-

    picos para efeitos de interpretação, e constituemuma aproximação à diversidade dos sexólogos apartir dos casos analisados. Apesar dos sexólogosentrevistados poderem partilhar característicasde mais de um tipo, manteve-se, para fins heurís-ticos, a alocação num único ideal-tipo.

    Resultados

    Uma sociografia dos sexólogos 

    Os 91 sexólogos que responderam ao inqué-rito por questionário tinham uma idade médiade 43,07 anos (± 12.82): 44,4% (40) tinham 25-39 anos de idade, 33,0% (30) estavam na faixaetária dos 40-54 anos, e 19,0% (21) tinham 55e mais anos. Enquanto a grande maioria dosmembros do grupo mais velho é constituída pormédicos (16, 84,2%), a do grupo mais jovem éformada por não médicos (36, 90%). O númerode homens é maior nos grupos etários mais ve-lhos e menor nos mais jovens. Do ponto de vistageográfico, as zonas de maior índice de urbaniza-

    ção (Lisboa, Região Norte) concentram a maioriados sexólogos.

    Embora sejam maioritários no grupo maisvelho, os indivíduos com a profissão de médi-co são minoritários no conjunto da amostra(38,5%), sendo que a maioria destes médicos sãohomens (24, 26,4%; p < 0,001). Pelo contrário,as mulheres são maioritárias entre os sexólogoscom outras profissões (47, 51,6%), constituindoas psicólogas o maior grupo (37, 40,7%). A dis-tribuição dos sexólogos de acordo com o géneroe profissão encontra-se resumida na Tabela 1.

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    Em termos de formação académica, cerca de14% (13) dos participantes eram doutorados;17% (15) tinham um mestrado; 6% (5) umapós-graduação; 63% (57) uma licenciatura; e 1%(1) um bacharelato. Se a maioria dos inquiridosreferiram ter alguma formação específica emsexologia ou sexualidade humana (68, 74,7%),quase todos dizem também que se beneficiariamem aprofundar os conhecimentos em sexologia

    (88, 96,7%). Mais de metade dos sexólogos in-quiridos tinha uma pós-graduação em sexologia(54, 59,3%), sendo as mulheres (39, 67.2%) e ogrupo de não médicos (36, 64,3%) os que maisreportaram essa formação.

    A larga maioria dos inquiridos exerce algumtipo de prática clínica (66, 72,5%), bem como ati-vidades ligadas ao ensino/formação (51, 56,0%);vários são os que desenvolvem atividades dirigi-das à comunidade (41, 45,1%), e menos os queafirmaram fazer investigação (36, 39,6%).

    Os sexólogos não médicos dedicam signifi-cativamente mais tempo profissional à sexologia

    (p = 0,006). As mulheres também dedicam maistempo à sexologia do que os homens, mas semdiferenças estatisticamente significativas.

    Perante a pergunta sobre a sua identidadeprofissional, apresentada na Tabela 2, os partici-pantes não médicos referiram significativamen-te mais considerar-se como educadores sexuais,enquanto os médicos, para além de indicarem ascategorias de sexólogo e terapeuta sexual, indica-ram outra categoria (andrologista, por exemplo).Os homens também se consideram significativa-mente mais do que as mulheres como pertencen-

    do a outra categoria e menos como educadoressexuais.

    Uma tipologia da profissão de sexólogo

    Dos 44 entrevistados no estudo qualitativo,26 eram homens e 22 médicos. Dos 22 médicos,6 eram psiquiatras, 6 endocrinologistas, 4 urolo-gistas, 4 ginecologistas e 2 generalistas. No que

    diz respeito às atividades desenvolvidas no cam-po da sexologia, 33 faziam clínica, a maior parteem articulação com a investigação e o ensino oucom atividades ligadas à mídia. Em termos da re-gião principal para o exercício da atividade, 33 ofaziam em Lisboa, 5 no Porto, 3 em Coimbra, 2em Aveiro e 1 no Algarve.

    Uma tipologia explicativa foi desenvolvidapara capturar a diversidade dos sexólogos por-tugueses, compreender as suas autoidentificaçõesprofissionais e os sentidos que atribuem a estas.A tipologia foi construída semi-indutivamente apartir das entrevistas, e permitiu identificar cinco

    categorias de sexólogos: por vocação, pela práticaclínica,  por certificação, como cientistas sociais  e 

     por mediatização (Tabela 3).Enquanto os discursos baseados na ideologia

    da vocação centram-se na dimensão moral e nalegitimação pelas características e percursos pes-soais, os discursos da ideologia profissional dossexólogos pela prática clínica  centram-se na di-mensão clínica e na legitimação pela capacidadede intervenção nesse nível. Os discursos dos se-

     xólogos por certificação são discursos da ideologiada scientia sexualis pluridisciplinar e baseiam-se

    Total (n = 91)(n, %)

    35 (38,5)15 (16,5)

    7 (7,7)5 (5,5)4 (4,4)4 (4,4)

    56 (61,5)40 (44,0)

    7 (7,7)9 (9,9)

    91 (100)

    MédicosUrologistasGinecologistasPsiquiatrasEndocrinologistasOutros

    Outras profissõesPsicólogoEnfermeiroOutrasTotal

    25-39(n, %)

    4 (4,5)4 (4,5)

    0000

    36 (40,4)29 (32,6)

    4 (4,5)3 (3,4)

    40 (44,9)

    40-55(n, %)

    14 (15,7)5 (5,6)4 (4,5)1 (1,1)1 (1,1)3 (3,4)

    16 (18,0)10 (11,2)

    2 (2,2)5 (5,6)

    30 (33,7)

    Tabela 1. Distribuição dos sexólogos segundo a idade e o género, por profissão.

    55+(n, %)

    16 (18,0)6 (6,7)2 (2,2)4 (4,5)3 (3,4)1 (1,1)3 (3,4)2 (2,2)

    01 (1,1)

    19 (21,3)

    Valores p < 0,05 a negrito.

    Homens(n, %)

    24 (26,4)14 (15,4)

    2 (2,2)2 (2,2)4 (4,4)2 (2,2)9 (9,9)3 (3,3)3 (3,3)3 (3,3)

    33 (36,3)

    Mulheres(n, %)

    11 (12,1)1 (1,1)5 (5,5)3 (3,3)0 (0,0)2 (2,2)

    47 (51,6)37 (40,7)

    4 (4,4)6 (6,5)

    58 (63,7)

    Idade (n = 89) Género (n = 91)

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    na legitimação pela aquisição de saberes e com-petências formalmente certificadas. Os discursosdas ciências sociais são teórico-empíricos sobrea sexualidade, cruzando outras áreas fronteiriçasde saber, nomeadamente a família e o género e,por fim, os discursos dos sexólogos por mediati-zação são discursos para o grande público e cen-tram-se na componente de gestão de recursossociais e da imagem pessoal.

    Os sexólogos por vocação

    Este tipo é composto na sua maioria por psi-

    quiatras (4), mas conta também com urologistas(2) e endocrinologistas (2), todos eles homens ecom idades compreendidas entre os 60-80 anos.Encontram-se neste tipo os pioneiros da sexolo-gia, como se percebe pelo excerto de um dos psi-quiatras fundadores deste campo em Portugal:

     A partir de 1970 começam-se a gerar algunsmovimentos de sexologia na Europa… e as pessoasque têm agora a minha idade organizaram excur-sões, em França e na Suíça etc., para ir aos EstadosUnidos visitar os institutos de sexologia, nomea-damente a São Luís e São Francisco, que era ondeestava a ser feita a investigação sexológica.

    Os entrevistados deste tipo, embora não con-testem a referenciação enquanto peritos da sexo-logia, não se apresentam como sexólogos, umavez que consideram essa categorização redutorada atividade que desenvolvem no campo.

    O chamamento para a sexologia do subgru-po dos médicos psiquiatras, em particular, surgiudas suas leituras das obras de Masters e Johnson,e posteriormente de Helen Kaplan: Em 1969 vejouma livraria e vejo ‘Les réactions sexuelles de Mas-ters e Johnson’. Comecei a ler o livro e o impacto foiterrível. Conceitos fundamentais da sexualidade.

    A eles coube o papel de criar as consultas desexologia, as associações profissionais, as revistase os manuais da especialidade, e fizeram escola,despertando e formando as gerações seguintes.

    Este grupo de fundadores ainda mantém, namaioria dos casos, uma atividade clínica e umavisibilidade pública em congressos, atividades deformação e também na mídia, desempenhandoum papel chave na construção da identidade pro-fissional, e sendo referidos de forma consensualpor todos os outros especialistas como figurascentrais do campo.

    Neste grupo de sexólogos por vocação, inse-

    rem-se igualmente dois endocrinologistas e doisurologistas que tiveram um papel decisivo no de-senvolvimento científico e associativo da andro-logia em Portugal. No seu discurso é percetívelum conceito e uma vontade de fazer da sexologiauma ciência e prática multidisciplinar.

    Os sexólogos pela prática clínica

    Os indivíduos deste grupo têm elevadas com-petências clínicas associadas à formação altamen-te qualificada e são maioritariamente médicos(12 em 15), mais alguns psicólogos clínicos. São

    na sua maioria homens com idades compreendi-das entre os 40-60 anos. Um dos médicos urolo-gistas entrevistados associa mesmo a prática dasexologia à vertente clínica, não podendo haver,na sua opinião, uma sem a outra: Um sexólogoé alguém que dedica a sua atividade profissionalà clínica. Há muito poucos em Portugal e mesmonoutros países. A duração das consultas de sexolo-

     gia e andrologia demora muito tempo, o que demo-ve muitos profissionais para a prática nesta área.

    Estes sexólogos são conhecidos e procuradospor essas competências específicas que desenvol-

    Total(n, %)

    15 (16,5)

    11 (12,1)16 (17,6)49 (53,8)31 (34,1)34 (37,4)

    2 (2,2)

    Sexólogo/Sexologista

    Terapeuta sexualAmbosNenhum dos doisEducador sexualOutro (Andrologista, Psicólogo, Investigador, etc.)Nenhum

    Médicos(n, %)

    6 (17,1)

    2 (5,7)7 (20,0)

    20 (57,1)3 (8,6)

    18 (51,4)2 (5,7)

    Não-médicos(n, %)

    9 (16,1)

    9 (16,1)9 (16,1)

    29 (51,8)28 (50,0)16 (28,6)

    0 (0,0)

    Tabela 2. Atualmente, considera-se… (escolha múltipla).

    Homens(n, %)

    4 (12,1)

    0 (0,0)6 (18,2)

    23 (69,7)8 (24,2)

    18 (54,5)2 (6,1)

    Valores p < 0,05 a negrito.

    Mulheres(n, %)

    11 (19,0%)

    11 (19,0)10 (17,2)26 (44,8)23 (39,7)16 (27,6)

    0 (0,0)

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    vem associando a clínica à investigação. Além daformação, a experiência e a prática clínica sãocomponentes fundamentais, como refere ummédico ginecologista:

    Fazia-me impressão as doentes, as clientes faze-rem-me perguntas e eu não saber responder. Havia

    uma série de expressões sociais que eu desconhecia– ‘oh soutor, eu faço arroz fingido’ – ninguém nosensina. Primeiro era autodidata, os relatórios Kin-sey, Masters e Johnson, Kaplan e depois frequenteialguns cursos, umas semanas, um mês, em Gene-bra, Bruxelas, México.

    Tipo

    Por vocação

    Por vocaçãoPor vocaçãoPor vocaçãoPor vocaçãoPor vocaçãoPor vocaçãoPor vocaçãoPela clínicaPela clínicaPela clínicaPela clínicaPela clínicaPela clínicaPela clínica

    Pela clínicaPela clínicaPela clínicaPela clínicaPela clínicaPela clínicaPela clínicaPela clínicaPor creditaçãoPor creditaçãoPor creditaçãoPor creditaçãoPor creditaçãoPor creditaçãoPelas Ciências SociaisPelas Ciências SociaisPelas Ciências SociaisPelas Ciências SociaisPelas Ciências SociaisPelas Ciências SociaisPelas Ciências SociaisPelas Ciências SociaisPelas Ciências SociaisPor mediatizaçãoPor mediatizaçãoPor mediatizaçãoPor mediatização

    Por mediatização

    Género

    M

    MMMMMMMMMFFMMM

    FFFMMMMFFFFFMFMMMFFFMMFFFMF

    M

    Região deatividade

    Porto

    LisboaLisboaPortoLisboaCoimbraLisboaPortoLisboaLisboaCoimbraLisboaLisboaLisboaLisboa

    LisboaLisboaLisboaLisboaLisboaPortoLisboaLisboaLisboaLisboaPortoLisboaAveiroAveiroLisboaLisboaLisboaCoimbraLisboaLisboaLisboaLisboaLisboaLisboaLisboaLisboaAlgarve

    Lisboa

    Tabela 3. Tipologia da profissão de sexólogo em Portugal a partir das entrevistas.

    Profissão deorigem

    Urologista

    PsiquiatraEndocrinologistaPsiquiatraEndocrinologistaPsiquiatraUrologistaPsiquiatraGinecologistaEndocrinologistaPsiquiatraPsicólogoEndocrinologistaPsicólogoEndocrinologista

    GinecologistaPsicólogoGinecologistaUrologistaMédicoUrologistaPsiquiatraEndocrinologistaPsicólogoPsicólogoPsicólogoPsicólogoPsicólogoPsicólogoCientista SocialCientista SocialCientista SocialCientista SocialCientista SocialCientista SocialCientista SocialCientista SocialCientista SocialGinecologistaPsicólogoPsicólogoPsicólogo

    Psicólogo

    Áreas de atuaçãoem sexologia

    Clínica

    ClínicaClínica, ensino e investigaçãoClínicaClínica e ensinoClínica e ensinoClínicaClínica e ensinoClínica, ensino e investigaçãoClínica e ensinoClínicaClínica e ensinoClínica e ensinoClínica e ensinoClínica e ensino

    Clínica e promoção da saúdeClínica e ensinoClínica e promoção da saúdeClínica, ensino e investigaçãoClínica e ensinoClínica, ensino e investigaçãoClínica, ensino e investigaçãoClínica e ensinoClínica, promoção da saúde e investigaçãoClínica, ensino e investigaçãoClínica e ensinoClínica, ensino e investigaçãoClínica, ensino e investigaçãoClínica, ensino e investigaçãoEnsino, investigação e promoção da saúdeEnsino e investigaçãoEnsino e investigaçãoEnsino, investigação e promoção da saúdeInvestigação e mídiaInvestigação e promoção da saúdeEnsino, investigação e promoção da saúdeEnsino e investigaçãoEnsino e investigaçãoClínica e mídiaClínica e mídiaClínica e mídiaClínica e mídia

    Ensino e mídia

    Idade

    60-70*

    70-80*

    70-80*

    70-80*

    60-7070-80*

    70-80*

    60-70*

    50-6040-5050-6030-4050-6040-5040-50

    40-5040-5040-5050-6050-6040-5060-7030-4030-4030-4040-5030-4040-5030-4050-6050-6060-7030-4030-4030-4050-6040-5030-4050-6040-5040-5030-40

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    Apesar da componente clínica ser a que ocu-pa maior destaque na sua prática, a visão queestes especialistas têm da sexologia é abrangen-te, como nos diz um dos endocrinologistas destegrupo:

     A sexologia envolve muitas mais coisas do queàs vezes é um sexólogo. É obrigatória uma abor-dagem multidisciplinar e eu, embora não seja se-

     xólogo, faço sexologia, como é evidente. E depoiseu faço uma sexologia especial que é do homem,e temos as pessoas que tratam da mulher. Depoisaqui temos psicólogos, psiquiatras, endocrinologis-tas, urologistas, ginecologistas... portanto, o campoé muito aberto e penso que não se deve reduzir sóà sexologia .

    Os sexólogos por certificação 

    A maior parte dos sexólogos deste tipo de-dica-se a atividades de investigação, que acumu-lam muitas vezes com atividades de coordenação(nomeadamente de associações) e gestão de pro-

     jetos e atividades de formação.Este tipo corresponde aos indivíduos que es-

    tão na linha da frente das associações e do debateem torno da identidade profissional. São os se-xólogos que representam atualmente a sexologia,tanto a nível nacional como internacional, queassumem as atividades de terapia sexual, forma-ção, investigação e difusão científica. Esta nova

    sexologia, mais reflexiva, é representada por umgrupo de psicólogos clínicos6, altamente qua-lificados, críticos e desafiadores dos limites docampo, inovadores em termos das atividades quedesenvolvem dentro da clínica, da investigação ena formação. Sobre a sexologia e este grupo espe-cífico de sexólogos, diz um dos cientistas sociais:

     A maioria gosta disso como uma flor... Ler umahistória da sexualidade ou estudar um inquéritosociológico sobre os próprios sexólogos, uma certacuriosidade mais ou menos voyeurística, até para

     perceber quem é que lá está. E outros por interesse genuíno, pensamento crítico e por terem uma refle-

     xividade grande sobre aquilo que fazem. Como a gente tem a sorte em Portugal de ter algumas pes-soas deste segundo tipo, são elas que estão interes-sadas em que haja participação das ciências sociaise humanas.

    A definição de um sexólogo não é simples

    nem isenta de ambiguidade, como refere um dos

    psicólogos representantes deste tipo: É difícil de- finir um sexólogo: não se deve fechar numa caixa.Em relação ao terapeuta sexual já é possível estabe-lecer regras: ter formação em sexologia e na área dasdificuldades sexuais, ter uma prática clínica [...]

    O processo e os critérios para o reconheci-mento profissional dentro do campo devem serexigentes e rigorosos, como indica uma das psi-cólogas entrevistadas:

    Sexologista é alguém que tem formação clíni-

    ca e que fez uma especialização na área da sexu-alidade humana, uma formação teórica e práticacom supervisão. Um sexologista teria idealmente

     formação em áreas do conhecimento como a medi-cina, a psicologia, a antropologia e a sociologia. Istoé um percurso de uma vida, adquire-se ao longo do

     percurso académico e clínico.Estes sexólogos não negam o trabalho ante-

    rior realizado pelos seus precursores, antes ba-seiam-se nos pilares erguidos, e atuam muitasvezes em articulação com aqueles mais clínicosna construção das novas pontes da sexologia. 

    Os sexólogos-cientistas sociais

    Este tipo integra um grupo de cientistas so-ciais  (9) com trabalho desenvolvido na área dasexualidade, ou seja, os investigadores e teóricosda sexualidade em Portugal, que, apesar de nãopertencerem diretamente ao campo da sexologiaclínica, têm, ou tiveram, um papel ativo na suaconstrução. Uma parte destes cientistas sociaistem redes profissionais estabelecidas com algunsdos sexólogos mais reconhecidos; outros foramresponsáveis pelo desenvolvimento de grandes

    investigações na área da sexualidade e são, so-bretudo, uma referência no meio académico. Ve-rifica-se certo equilíbrio de género (5 homens e4 mulheres), mas uma diferenciação em termosetários: os cientistas sociais do sexo masculinosão em média mais velhos (50-60 anos) compa-rativamente aos do sexo feminino (30-40 anos).

    Nas palavras de uma destas cientistas sociais:[A sexualidade] é um tecido cheio de linhas e cru-zamentos tremendos. Porque isso vai desde a an-tropologia à psicologia, passando pela história e asociologia, a enfermagem, a medicina … De facto,as abordagens sociais à sexualidade tendem a pri-

    vilegiar a interdisciplinaridade e as pontes entrevárias áreas do saber. A sexualidade foi surgindo

     juntamente com outras áreas já consolidadas dosaber e foi-se constituindo enquanto emergente. O papel das ciências sociais no campo da sexolo-gia fica bem presente no relato de um dos entre-vistados:

    Criar um campo de discussão em que as pesso-as se tornam mais reflexivas sobre o que fazem àsvezes é o suficiente para que algumas coisas melho-rem na sua prática. Coisas como grandes processosde estigmatização, como com a orientação sexual, é

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     fundamental que mude a perspetiva. Agora quemvai ter de mudar a perspetiva técnica, não é o cien-tista social, são os próprios sexólogos. [...] Acho quealguns têm-no feito.

     

    Os sexólogos por mediatização

    Neste grupo encontram-se médicos (1), massobretudo psicólogos (4). Os entrevistados destetipo dedicam a maior parte do seu tempo profis-sional enquanto sexólogos a atividades na televi-são, rádio, internet (blogues sobre sexualidade eintimidade), e publicações de livros, inclusive deautoajuda, e de artigos de opinião na imprensageneralista sobre sexualidade. Obtêm sobretudoum reconhecimento social, mais do que pelospares, o que em alguns casos é inexistente, comotransparece no discurso de uma sexóloga por cer-tificação: 

     Nós temos por um lado, e isso é inegável, umarepresentação de alta qualidade, porque dignificamnão só a sexologia como a área de onde eles vêm,

     porque são pessoas que de facto são emblemáticas,e por outro lado temos uma série de exemplos quenão são de tanta qualidade e que são sempre retra-tados como vindos do mesmo... e não são! 

    Apesar de os sexólogos por mediatização  te-rem também formação em sexologia, não é esseo critério de entrada no campo. São figuras me-diáticas e têm geralmente uma imagem de marca

    que ajuda no desenvolvimento do seu trabalho ena abertura da sexologia ao grande público. Naspalavras de uma médica ginecologista:  No prin-cípio não me acontecia, não sei se foi por causa dadivulgação que faço nos meus livros e na televisão,mas agora marcam consulta unicamente por teremdisfunções ou pequenos problemas sexuais. Che-

     gam a ir homens sozinhos e vão perguntar sobreas mulheres.

    Discussão

    Este artigo visou traçar uma sociografia dos se-xólogos em Portugal e, muito em particular,compreender, através de uma tipologia, as suasautoidentificações profissionais e os sentidos queatribuem a estas. Os dados do inquérito e dasentrevistas mostram que o campo da sexologiaem Portugal, tal como nos outros países11, nãose limita à prática da terapia, e inclui os discur-sos médicos e também sociais da sexualidade, aorganização social da profissão de sexólogo, pe-las associações e pela variedade de formações, aorganização de seminários e congressos a nível

    nacional e internacional, as diferentes práticase ideologias. Outra dimensão do campo, desdea sua origem, prende-se com a intervenção so-cial e o ativismo político, a educação sexual e apromoção da saúde, nomeadamente ao nível da

    prevenção do HIV/AIDS e da defesa dos direitosde saúde sexual e reprodutiva.

    A dificuldade de fixar o número de sexólogosem Portugal, associada à não regulamentação daprofissão e à fluidez dos contornos da ativida-de, parece indicar que a sexologia constitui umaatividade profissional complementar a outras.Todavia, se atendermos à formação específica, àcriação de uma clientela, e à existência de asso-ciações profissionais, somos levados a dizer que asexologia é uma profissão em processo de emer-gência, à semelhança do que acontece noutrospaíses35.

    Em Portugal, a sexologia foi fundada essen-cialmente por um grupo de médicos, psiquiatrasna sua maioria, e a sua influência nos serviçospúblicos de saúde levou a uma crescente pre-sença e proximidade de psicólogos. Este aspetotransparece nas diferenças de composição etá-ria encontradas, em que os não médicos têmmaioritariamente 25-39 anos e os médicos maisde 55 anos. O facto de os homens serem com-parativamente mais velhos do que as mulheresreflete possivelmente o facto de culturalmente asmulheres terem estado afastadas das questões de

    sexualidade, especialmente no período anteriorà restauração da democracia em Portugal, em1974. A feminização dos sexólogos em Portugal,bem como a presença entre as mulheres de umamaioria de não médicas, segue a tendência euro-peia (exceto a França em que a feminização nãose fez acompanhar de um processo de desmedi-calização)8,36. Os dados do inquérito mostramque, à semelhança do Reino Unido37, o sexólogo-tipo português é do sexo feminino e não médico.Porém, a baixa taxa de resposta, nomeadamentedos membros da SPA, pode ter tido influêncianestes resultados.

    Tal como verificado em estudos anteriores38,a identificação com a designação de educador se-xual é mais consensual do que o termo sexólogo,sendo este encarado como uma forma redutorade categorizar a atividade profissional desenvol-vida, tendo por base essencialmente uma especia-lização adquirida e não englobando a totalidadedos aspetos incluídos nessa atividade. Por outrolado, a dedicação limitada à prática da sexologiatambém pode ser um fator explicativo, já aponta-do noutras pesquisas37. Mas foram essencialmen-te os sexólogos não médicos a referir conside-

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    rar-se significativamente mais como educadoressexuais, enquanto os médicos foram quem maisindicou outra categoria (andrologista, por exem-plo), para além da de sexólogo e terapeuta sexual,o que pode deixar antever que a sexologia é (ain-

    da) uma atividade pouco prestigiante.A construção da identidade social resulta,

    por um lado, da atribuição de identidade pelasinstituições e atores em interação direta com oindivíduo que origina a identidade social “virtu-al”; e, por outro, da interiorização ativa pelo pró-prio indivíduo que dá origem à identidade social“real”. Ambas as dimensões parecem estar emconstrução na identidade dos sexólogos, perma-necendo em aberto a discussão dos critérios paraa integração na profissão e para a sua autonome-ação39. À semelhança de outros estudos, a proble-mática das relações de género parece sobrepor-se

    à questão da relação entre médicos e não médi-cos no campo e ao maior prestígio concedido aosprimeiros40, que são na sua maioria homens8.

    Os vários profissionais que se dedicam atu-almente à sexologia fazem-no com regularidadese especificidades distintas. Os diferentes tipos desexólogos identificados no nosso estudo, os  porvocação, pela prática clínica, por certificação, cien-tistas sociais e por mediatização, apresentam cara-terísticas-tipo próximas dos grupos identificadosnuma recente investigação qualitativa realizadana Suécia através de entrevistas a membros da

    Sociedade Sueca de Sexologia. Nessa pesquisa, ostipos identificados foram os pioneiros, os sexó-logos-competência, os empresários, os sexólogosde pesquisa e os não profissionais. A principal se-melhança é entre os sexólogos por vocação e osaqui chamados pioneiros, tanto em termos da suaformação de base (médicos) como nas atividadesdesenvolvidas (criação de associações, formações

    e consultas clínicas), e ainda na forte dedicação àsexologia. Outro aspeto comum prende-se coma valorização pela generalidade dos sexólogos darealização de investigação em sexologia35.

    Na nossa pesquisa verificou-se uma ligação

    importante entre o subgrupo pioneiro de psi-quiatras dos sexólogos por vocação e alguns psi-cólogos clínicos, nomeadamente dos sexólogos

     por certificação. Foi esse subgrupo de psiquiatrasquem lhes deu formação e os integrou nas suasconsultas, e passou a desenvolver atividades emconjunto com eles, nomeadamente de terapiasexual, investigação e formação em questões desexualidade. O elevado reconhecimento dos sexó-logos por vocação não se deve somente ao facto deterem lançado as bases da sexologia, mas tambémao de manterem um vasto trabalho de longosanos nas questões da sexualidade, quer em ter-

    mos da sua prática clínica, quer na formação e notreino profissional, tendo ainda um papel de des-taque na construção da sexologia em Portugal.

    Conclusão

    Este artigo analisou a pertinência social, real esimbólica da emergência da profissão de sexólo-go em Portugal. Os dados sugerem que não existeuma profissionalização efetiva da sexologia, nãohavendo um monopólio legalmente organizado

    do exercício da atividade nem uma produção co-letiva de normas, ainda que existam associaçõesprofissionais. Porém, vários praticantes se auto-definem como sexólogos, o que faz com que sejaimportante compreender as suas representaçõesacerca da profissão, e a interpretação que fazemdo seu trabalho e do trabalho desenvolvido poroutros.

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    Colaboradores

    V Alarcão trabalhou na concepção e delineamen-to do estudo; na coleta, análise e interpretaçãodos dados; na redação e revisão crítica relevan-

    te do conteúdo intelectual do manuscrito. FLMachado e A Giami trabalharam na discussão einterpretação dos dados e na revisão crítica re-levante do conteúdo intelectual do manuscrito.

    Agradecimentos

    Os autores gostariam de agradecer às três asso-ciações nacionais, Sociedade Portuguesa de Sexo-logia, Sociedade Portuguesa de Andrologia,  Asso-ciação para o Planeamento da Família, por todaa colaboração na implementação deste projeto,ao Professor Doutor Nuno Monteiro Pereira pelaligação aos estudantes do Mestrado Transdiscipli-nar de Sexologia  da Universidade Lusófona, e atodos os participantes deste estudo.Por fim, os autores estão gratos a toda a equipade investigação, nomeadamente ao ProfessorDoutor Alberto Galvão-Teles, e às entrevistado-ras Ana Beato, Vera Forjaz e em especial JoanaAlmeida, a quem agradecemos também uma pri-meira revisão do artigo.

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