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Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro A Constitucionalidade da Prova Psicografada no Processo Penal Ellen Balassiano Rio de Janeiro 2011

A Constitucionalidade da Prova Psicografada no Processo Penal

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A Constitucionalidade da Prova Psicografada no Processo Penal

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    Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

    A Constitucionalidade da Prova Psicografada no Processo Penal

    Ellen Balassiano

    Rio de Janeiro

    2011

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    ELLEN BALASSIANO

    A Constitucionalidade da Prova Psicografada no Processo Penal

    Artigo Cientfico apresentado Escola de

    Magistratura do Estado do Rio de Janeiro,

    como exigncia para obteno do ttulo de

    Ps-Graduao.

    Orientadores: Prof. Guilherme Sandoval

    Prof. Ktia Silva

    Prof. Mnica Areal

    Prof. Nli Fetzner

    Prof. Nelson Tavares

    Rio de Janeiro

    2011

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    A CONSTITUCIONALIDADE DA PROVA PSICOGRAFADA NO PROCESSO

    PENAL

    Ellen Balassiano

    Graduada pela Universidade Candido

    Mendes. Advogada.

    Resumo: A Repblica Federativa do Brasil um Estado laico, onde admissvel toda e

    qualquer forma de manifestao religiosa e de culto. Sendo assim, um dos direitos

    fundamentais previstos na Constituio da Repblica a inviolabilidade da liberdade de

    conscincia e de crena. O Brasil um pas extremamente diversificado, onde predomina uma

    grande diversidade de religies, o que, muitas vezes, influencia na cincia do Direito,

    principalmente, nos julgamentos nos tribunais. Um exemplo desse fato o atual

    questionamento sobre a possibilidade do uso de cartas psicografadas como meio de prova no

    Direito Processual Penal. O objetivo deste trabalho abordar esse assunto afastando-se de

    crenas e convices pessoais, levando em conta aspectos estritamente jurdicos.

    Palavras-chave: Constituio Federal. Prova Psicografada. Processo Penal.

    Constitucionalidade.

    Sumrio: Introduo. 1. Princpios Constitucionais. 1.1. Princpio da Liberdade de

    Conscincia e de Crena e Princpio da Igualdade. 1.2. Princpios Processuais Penais. 2. Das

    Provas. 2.1. Da Classificao e Dos Meios de Provas. 2.2. Das Provas Ilcitas. 3. A

    Psicografia e a Constituio da Repblica. 4. Anlise Jurisprudencial. Concluso. Referncias.

    INTRODUO

    O trabalho visa a abordar a constitucionalidade do uso de cartas psicografadas

    como meio de prova no Direito Processual Penal, tendo em vista que o Brasil um Estado

    laico, onde convive uma diversidade de religies, embora o catolicismo notoriamente

    predomine.

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    Desde os primrdios, as religies, principalmente a religio catlica, dotada de

    grande poder, sempre influenciaram na cincia do Direito como, por exemplo, na criao das

    leis e nos julgamentos. Ocorre que, nos dias atuais, a grande diversidade de religies, crenas

    e atos de f, somada ao princpio da isonomia e da liberdade de conscincia e de crena

    garantidos constitucionalmente, reafirmam a independncia entre o Direito e a religio.

    No caso das cartas psicografadas, h, ainda, outros obstculos sua utilizao

    como meio de prova, especialmente no direito processual penal, em que os conflitos

    envolvem o direito fundamental liberdade, integridade fsica do indivduo e o direito

    vida, esse ltimo, o bem maior dos seres humanos, inviolvel.

    Como sabido, o devido processo penal uma garantia fundamental, resguardada

    em sede constitucional, que tem como uma de suas vertentes o direito prova. No processo

    penal, o recolhimento dos elementos probatrios permite que o juiz alcance a verdade real em

    prol da justia cristalina. Para tanto, os meios de prova utilizados devem ser condizentes com

    os princpios constitucionais e com as normas infraconstitucionais, caso contrrio, no

    alcanaremos a verdade real mencionada, que nos leva ao que justo.

    , inclusive, por esse motivo que vigora no processo penal o princpio da

    presuno de inocncia, pelo qual, na existncia de qualquer margem de dvidas que

    impossibilite o julgador de encontrar a verdade real, deve o ru ser absolvido.

    A psicografia decorre da religio esprita, que para muitas pessoas, uma cincia

    em evoluo. A natureza do espiritismo irrelevante aqui, visto que, independentemente do

    argumento sustentado, todos afirmam unissonamente a existncia de espritos superiores,

    puros, mas tambm de espritos imperfeitos, que ainda no evoluram plenamente. Seria,

    ento, invivel ao julgador afirmar com clareza qual o grau de evoluo do esprito que

    transmite a mensagem no caso a ser julgado, alm de ser preciso verificar a idoneidade do

    mdium. Assim como consideramos haver pessoas no muito confiveis, deve haver

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    igualmente espritos traioeiros, e nesse ltimo caso, seria extremamente difcil tal

    constatao pelo julgador, levando-o a um julgamento duvidoso.

    Alm disso, outra vertente do processo penal serve de obstculo ao uso das cartas

    psicografadas como meio de prova: o contraditrio e a ampla defesa. Isso, pois seria

    impossvel possibilitar ao ru que acusado com respaldo em uma prova psicografada, a

    contradita da referida prova e, consequentemente, o exerccio do contraditrio e da ampla

    defesa, que so garantidos constitucionalmente.

    A Constituio da Repblica expressamente probe em seu artigo 5, inciso LVI a

    utilizao de qualquer prova ilcita, ou seja, que viole alguma regra de direito material ou a

    prpria Lei Maior, no momento da sua produo em juzo. Isso engloba, tambm, as

    chamadas provas ilegtimas, isto , aquelas que ofendem regras de direito processual penal.

    Sendo assim, possvel afirmar categoricamente que a prova psicografada no se

    enquadra no rol de provas legtimas ou lcitas, sendo, portanto, ilcita e inconstitucional, por

    violar no s normas processuais penais como tambm princpios constitucionais

    fundamentais.

    1. PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS

    A Constituio da Repblica de 1988, tambm chamada de Constituio Cidad,

    trouxe um extenso rol de direitos humanos fundamentais, como por exemplo, o direito a

    liberdade religiosa, alm de prever inmeras garantias que buscam implementar tais direitos.

    Essa constituio, promulgada logo aps o Regime Militar, representou um grande

    avano em prol da democracia e dos direitos sociais.

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    1.1. PRINCPIO DA LIBERDADE DE CONSCINCIA E DE CRENA E PRINCPIO

    DA IGUALDADE

    O primeiro artigo da Constituio Federal dispe que a Repblica Federativa do

    Brasil um Estado Democrtico de Direito, ou seja, um Estado que se compromete a garantir

    as liberdades civis e fundamentais, e o respeito aos direitos humanos, por meio de uma

    proteo jurdica. Somando-se a isso, o Brasil um Estado laico, que no possui uma religio

    oficial e que admite toda e qualquer prtica religiosa, sendo, portanto, neutro e imparcial no

    que tange a temas religiosos.

    Por tais motivos, o art. 19, caput e inciso I da Constituio da Repblica prev a

    separao total entre o Estado e a igreja, alm de ter sido consagrada a liberdade religiosa no

    rol dos direitos humanos fundamentais, mais especificamente no artigo 5, incisos VI e VIII.

    Nesse sentido, o poder constituinte originrio garantiu expressamente o princpio da

    inviolabilidade da liberdade de conscincia e de crena, assegurando o livre exerccio dos

    cultos religiosos no Brasil e a proteo aos locais de culto e suas liturgias.

    O ilustre professor Pinto Ferreira1 conceitua liberdade religiosa como o direito

    que tem o homem de adorar seu deus, de acordo com a sua crena e o seu culto. Esse

    conceito deve abranger no s a crena, como tambm o dogma, a moral, a liturgia e o culto,

    sendo, portanto, um verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e de

    manifestao, conforme ensina o doutrinador Themistocles Brando Cavalcanti2.

    1FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 2002, p. 102. 2CAVALCANTI apud MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 8. ed. So Paulo: Atlas,

    2007, p. 119.

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    Conforme se depreende do texto constitucional, tal liberdade divide-se em trs

    formas de expresso: liberdade de crena, liberdade de culto e liberdade de organizao

    religiosa. Diz-se que a liberdade de crena de foro individual, isto , a liberdade que todos

    tm de aderir ou no a uma seita religiosa, conferindo proteo at mesmo ao atesmo. J a

    liberdade de culto a exteriorizao da liberdade de crena mediante a prtica de atos

    prprios da religio escolhida, em residncias particulares ou em locais pblicos, na forma da

    lei. Por fim, a liberdade de organizao religiosa compreende a possibilidade de serem

    mantidos estabelecimentos religiosos e a organizao de igrejas e congneres, bem como as

    suas relaes com o Estado.

    Essa proteo no foi uma inovao da Constituio de 1988. Apesar de a

    Constituio Brasileira de 1824 ter previsto a Religio Catlica Apostlica Romana como a

    religio oficial do Imprio, sendo as demais simplesmente toleradas, em 1891, a Constituio

    da Repblica dos Estados Unidos do Brasil estabeleceu a separao entre a Igreja e o Estado,

    conferindo liberdade de crena e de culto populao, atravs do Decreto 119-A, de 07 de

    janeiro de 1890, expedido no Governo Provisrio. Por conseguinte, o constituinte de 1988

    apenas reafirmou essa liberdade, reconhecendo o carter laico, no confessional do Estado

    Brasileiro.

    Dessa forma, o conceito de religio no Brasil no pode ser confundido com os

    interesses do Estado ou da Administrao Pblica.

    Outrossim, o princpio da igualdade, previsto no artigo 5, caput da Constituio

    da Repblica complementa essa ideia, uma vez que garante o tratamento isonmico a todos os

    brasileiros natos e naturalizados. Logo, cada brasileiro pode assumir a religio com a qual se

    identificar, pode praticar qualquer crena e pode seguir os ditames de quaisquer formas de

    manifestao de cultos e de atos de f. possvel, ainda, que uma pessoa no tenha uma

    religio definida, ou que assuma vrias delas ao mesmo tempo, o que comum entre os

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    cidados brasileiros. Independente da opo religiosa feita por cada cidado, todos so iguais

    perante a lei e assim devem ser tratados.

    Nessa linha, o princpio da igualdade passou a modelar o tratamento a ser

    dispensado a todos os seres humanos, sendo o principal responsvel por garantir a isonomia

    entre os cidados, na medida das suas diferenas, em todos os aspectos, o que se aplica,

    inclusive, a temas religiosos. J a liberdade religiosa no Brasil tornou-se pressuposto

    elementar no s para a liberdade lato sensu, como tambm para a dignidade da pessoa

    humana, princpio esse basilar do ordenamento jurdico, considerado como seu verdadeiro

    epicentro axiolgico, e ainda, como o ncleo essencial de toda e qualquer norma fundamental

    constitucionalmente assegurada.

    1.2. PRINCPIOS POCESSUAIS PENAIS

    No Direito Penal, viveu-se um grande marco histrico no final do sculo XVIII,

    inspirado no movimento Iluminista, em que se ps fim chamada fase da vingana privada

    pela qual a vtima que sofrera transgresses fazia justia com as prprias mos e foi

    inaugurado um momento em que o Estado passou a ter o monoplio da administrao da

    justia. Nesse contexto, o Cdigo Penal tipificou como crime em seu artigo 345 o exerccio

    arbitrrio das prprias razes.

    Em virtude da referida mudana, o delito passou a atingir no s a vtima de

    eventual dano, como tambm o Estado, uma vez que a infrao penal representava a violao

    de uma norma jurdica, de criao estatal, e, ainda, o surgimento do direito de punir do

    Estado, consistente no jus puniendi. Por isso, tornou-se necessria a previso, no mbito do

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    direito processual penal, de normas e princpios que assegurassem de um lado, esse direito de

    punir do Estado, e de outro, a garantia da justia nos julgamentos.

    Nesse contexto, surge o princpio do devido processo legal ou due processo of law,

    atualmente previsto no artigo 5, inciso LIV da Constituio da Repblica, propiciando aos

    acusados um prvio processo judicial, desenvolvido nas formas estabelecidas em lei e sob o

    manto da Lei Maior. Esse princpio tem como corolrio os princpios do contraditrio e da

    ampla defesa, que resguardam a garantia da plenitude de defesa, conferindo aos acusados o

    direito de contraditar todos os atos processuais, bem como a utilizao de todos os meios de

    defesa admitidos no ordenamento jurdico, e necessrios ao esclarecimento da verdade.

    Tambm decorre da ideia de devido processo legal a necessidade de produo de

    provas nos processos judiciais. Conforme leciona o mestre Luiz Flavio Gomes3, da

    imprescindibilidade do processo decorre a relevncia da prova. O ato de provar visa a

    estabelecer um estado de convico e certeza no processo, possibilitando ao juiz declarar a

    existncia da responsabilidade penal sem qualquer margem de dvidas, e impor as sanes

    previstas restritivamente em lei. Desse modo, comprovada a procedncia da acusao e a

    inequvoca certeza do fato e de sua autoria, no s poder como dever ser aplicada a sano

    cabvel.

    Sabe-se que o juiz no fica adstrito s provas produzidas durante a fase instrutria,

    pois o magistrado tem o dever de investigar como os fatos ocorreram na realidade, sem se

    contentar com a verdade formal. Porm, a produo de provas tem o relevante escopo de

    auxiliar o juiz na busca da verdade real dos fatos. Logo, o princpio da verdade real de suma

    importncia no processo penal, pois garante que a sano prevista em lei recaia apenas contra

    aquele que realmente praticou a infrao penal, o que ajuda a alcanar a paz social.

    3GOMES, Luiz Flavio et al. Comentrios s Reformas do Cdigo de Processo Penal e da Lei de Trnsito. So

    Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 265.

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    Para isso, obviamente, as provas produzidas no processo no podero ser

    contrrias ao ordenamento jurdico brasileiro, o que traria grande insegurana jurdica. Por tal

    motivo, o artigo 5, inciso LVI da Constituio Federal inadmite o uso de provas obtidas por

    meios ilcitos.

    Ademais, de acordo com o princpio da igualdade, garantido o tratamento

    isonmico a todos as pessoas, inclusive em mbito processual, ou seja, garante-se a paridade

    entre os sujeitos processuais, salvo as distines que decorrem das situaes concretas e que

    so previstas em lei.

    Portanto, com a observncia dos referidos princpios processuais penais, que esto

    expressamente previstos tanto no texto constitucional quanto em leis infraconstitucionais,

    estar resguardado o devido processo legal e as garantias fundamentais a todos os acusados

    em processos judiciais. Dessa maneira, ser assegurado ao Poder Judicirio proferir

    julgamentos justos e decises motivadas legalmente, prolatadas por meio de processos

    efetivos; e, s assim, ser possvel alcanar a to desejada paz social.

    2. DAS PROVAS

    de suma importncia a anlise do instituto da prova em todos os seus contornos para

    o desenvolvimento do tema proposto.

    A palavra prova decorre do latim probatio, que advm do verbo probare, que

    significa examinar, persuadir, demonstrar4. Como j explicitado, o direito prova situa-se no

    4LIMA, Marcellus Polastri. A Prova Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 21.

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    mbito das garantias que decorrem do devido processo legal, e possui a finalidade de

    demonstrar a verdade dos fatos, estando fortemente ligado construo da justia.

    Conforme leciona Ronaldo Tanus Madeira5, provar produzir fatos, concretizar o

    alegado, transformar numa verdade jurdica tudo o que foi proposto pelas partes e admitido

    pelo julgador. Isto , provar significa conferir certeza a uma alegao ou fato juridicamente

    relevante.

    Assim sendo, considerando a relevncia da prova para o processo penal, o criminalista

    Ronaldo Tanus Madeira6 apresenta um conceito mais completo da prova como o conjunto de

    fatos produzidos pelas partes, acusao e defesa, e, de ofcio, pelo prprio juiz, em um

    procedimento processual, cuja finalidade a de estabelecer uma verdade jurdica, atravs da

    descoberta da verdade real, e que possa, com segurana, levar o magistrado a prolatar uma

    deciso final da causa.

    Percebe-se que a fase de instruo probatria, em que realizada a produo de

    provas, possui grande relevncia para o deslinde do processo, sendo, inclusive, a principal das

    fases processuais, tendo em vista que a prova o elemento pelo qual se atinge a verdade real,

    o que garante um julgado justo para as partes e para a sociedade, e a torna imprescindvel para

    o Direito.

    O Cdigo de Processo Penal nos traz, a partir do seu artigo 155, um rol de meios de

    prova de natureza meramente exemplificativa, o que significa que podero ser produzidos

    pelas partes outros meios de prova que no constem na referida lei, ou at mesmo em outras

    normas, desde que condizentes com o ordenamento jurdico brasileiro.

    Ou seja, como qualquer direito existente, o direito prova no absoluto, visto que

    coexiste com outros direitos tambm tutelados pelo ordenamento vigente, e principalmente,

    5MADEIRA, Ronaldo Tanus. Da Prova e Do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 2. 6 Ibidem, p. 1.

  • 11

    com direitos fundamentais. O magistrado dever apreciar a prova caso a caso, analisando a

    sua admissibilidade e utilizando-se, quando necessrio, a ponderao de interesses.

    Logo, as provas atpicas, no previstas em lei, podero ser admitidas, desde que

    produzidas por meios moralmente legtimos.

    2.1. DA CLASSIFICAO E DOS MEIOS DE PROVAS

    No que concerne ao tema provas, dentre as diversas classificaes existentes no

    Direito Processual Penal, a principal delas, para o presente trabalho, a classificao quanto

    aos meios de prova. A expresso meios de prova engloba tudo aquilo que possa ser til,

    direta ou indiretamente, comprovao da verdade dos fatos no processo. No que tange

    forma ou aos meios de prova, a prova poder ser testemunhal, documental e material.

    A prova testemunhal diz respeito coleta, em juzo, do depoimento de uma pessoa,

    sobre ato ou fato de que ela tenha conhecimento, desde que essa pessoa preencha os requisitos

    previstos em lei. pertinente o esclarecimento do doutrinador Marcellus Polastri Lima7,

    segundo o qual poderemos ter a prova testemunhal em sentido amplo, consideradas as oitivas

    das testemunhas, informantes e vtimas, alm da acareao.

    No ordenamento jurdico brasileiro, a testemunha dever sempre prestar compromisso

    de dizer a verdade, e no caso de desrespeito, ela responder criminalmente pelo delito de falso

    testemunho, previsto no artigo 342 do Cdigo Penal, cuja pena varia de um a trs anos de

    recluso.

    7LIMA, Marcellus Polastri. Op. Cit. p. 26-27.

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    Outra classificao diz respeito a prova documental, aquela que apresentada por

    meio de documentos, tanto por vontade das partes, como por requerimento judicial. Explica o

    mestre Guilherme de Souza Nucci8 que a prova documental toda base materialmente

    disposta a concentrar e expressar um pensamento, uma ideia ou qualquer manifestao de

    vontade do ser humano, que sirva para demonstrar e provar um fato ou acontecimento

    juridicamente relevante.

    Portanto, a prova documental fornece ao magistrado subsdios que o torne apto para

    julgar de maneira inequvoca, atravs de quaisquer documentos, tais como papel, fotografia,

    memria de computador, fita magntica de gravao, etc. A origem desses documentos ser

    determinante para conferir o seu valor probatrio. Por exemplo, um documento pblico

    gozar de maior credibilidade do que um documento particular; uma prova documental

    produzida em juzo, por se submeter ao crivo do contraditrio e da ampla defesa, conferir

    maior grau de confiabilidade ao julgador.

    No entanto, em todos os casos, podero ser produzidas provas em sentido contrrio,

    tanto testemunhais como documentais, desde que tempestivas. Esse fato ir gerar o chamado

    incidente de falsidade, cujo objetivo contestar a prova produzida, concluindo pela sua

    legitimidade ou no, ou atestando a existncia de algum um vcio de origem no meio

    probatrio.

    Finalmente, temos como ltimo meio de prova a chamada prova pericial, que consiste

    em um parecer tcnico formulado por pessoa necessariamente habilitada, que trabalha como

    um auxiliar do juiz, atravs de pesquisas e exames. O perito analisa e formula concluses

    sobre temas quando o magistrado no possui conhecimento especfico a respeito, e opina no

    julgamento da causa a partir da concluso tcnico-cientfica que alcanar.

    8NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execuo. 4. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,

    2008, p. 480.

  • 13

    Em que pese o juiz no estar vinculado ao laudo pericial apresentado pelo expert,

    conforme o disposto no art. 182 do Cdigo de Processo Penal, a doutrina processualista

    entende que o referido laudo s poder ser rejeitado pelo julgador quando o perito agir com

    erro ou dolo, pois se for possvel ao julgador decidir por conta prpria, a percia ser

    desnecessria, evidentemente. Isso muito bem explicado pelo mestre Adalberto Jos Q. T.

    de Camargo Aranha9:

    Se a percia tem como pressuposto a chamada de algum com conhecimento tcnico

    altamente especializado, desconhecido do juiz e das partes, seria um evidente contra-

    senso a sua rejeio quanto concluso, salvo nas hipteses de erro ou dolo. Vale

    dizer, embora no vinculado aos peritos, o julgador somente poder afastar as

    concluses periciais ocorrendo erro ou dolo, pois se lhe fosse possvel chegar s suas

    prprias concluses a percia seria evidentemente desnecessria. A concluso da percia fundamenta a deciso.

    Cumpre, ainda, aduzir que o chamado Exame Grafotcnico, utilizado para que seja

    feito o reconhecimento de escritos, uma importante espcie de prova pericial, onde sero

    confrontados documentos padres com coletas de exemplares ou amostras grficas do autor

    da prova, em observncia as regras previstas no artigo 174 da Legislao Processual Penal.

    2.2. DAS PROVAS ILCITAS

    Conforme dispe o artigo 5, inciso LVI da Constituio da Repblica, vedada a

    utilizao de provas obtidas por meios ilcitos no processo. Sendo assim, no contexto das

    provas, devemos fazer a diviso das provas em lcitas, que so aquelas com plena

    possibilidade de utilizao no processo, e ilcitas, que so inadmissveis como meio de prova.

    9ARANHA, Adalberto Jos Q. T. de Camargo. Da prova no Processo Penal. 7. ed. So Paulo: Saraiva, 2008. p.

    193.

  • 14

    Quando da adoo de um conceito amplo, a prova ilcita engloba aquilo que proibido no s

    por lei, como tambm pela moral, pelos bons costumes e pelos princpios gerais de direito.

    As provas ilcitas so aquelas que violam uma norma jurdica de direito material ou

    afrontam a prpria Constituio Federal, ou seja, so provas que envolvem aquilo que

    materialmente ilcito. J as provas produzidas mediante violao de uma regra de direito

    processual so chamadas de provas ilegtimas. Ambas so espcies do gnero prova ilegal10

    .

    Nos dias de hoje, pode-se considerar a prova ilcita sob duas principais teorias. A

    primeira delas rejeita a utilizao da prova obtida por meio ilcito, j que haveria afronta ao

    direito positivo e aos princpios gerais do direito, ainda que o seu contedo seja juridicamente

    relevante em certo caso concreto. Logo, sustenta essa teoria que a prova ilcita deve ser banida

    do processo, ainda que os fatos apurados sejam determinantes para o sentido da deciso, pois

    o direito no deve proteger eventual infrao lei, que resulta certamente prejuzo alheio,

    para a obteno de qualquer prova. O resultado prtico seria, ento, o desentranhamento da

    referida prova dos respectivos autos, no sendo, ento, reconhecida a eficcia da prova

    ilicitamente obtida.

    Entretanto, h uma segunda teoria fundamentada no princpio da proporcionalidade,

    pela qual devem ser analisados os bens jurdicos afetados em cada caso. Nesse sentido, se o

    direito assegurado pela prova ilcita possuir maior importncia para o indivduo do que para o

    ofendido, a prova, mesmo que ilcita, dever ser permitida no processo. Essa teoria sustenta

    uma mitigao da proibio da prova ilcita, autorizando a sua utilizao em casos

    excepcionais e graves, quando sua obteno for considerada a nica forma possvel e razovel

    para proteger outros valores fundamentais mais relevantes.

    Em que pese a Constituio de 1988 ser expressa quanto inadmissibilidade das

    provas obtidas por meios ilcitos em todo e qualquer processo, a segunda teoria explicitada

    10LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e Sua Conformidade Constitucional. V.1. 6. ed. Rio de

    Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 558.

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    vem ganhando fora, principalmente, quando aplicada em favor do ru. Conforme leciona

    Aury Lopes Junior11, trata-se da proporcionalidade pro reo, em que a ponderao entre o

    direito de liberdade de um inocente prevalece sobre um eventual direito sacrificado na

    obteno da prova (dessa inocncia).

    3. A PSICOGRAFIA E A CONSTITUIO DA REPBLICA

    A psicografia um fenmeno que ocorre na religio esprita, nascida na Frana e

    criada por Allan Kardec. Etimologicamente, psicografia significa escrita dos espritos pela

    mo do mdium12. uma palavra de origem grega, cujo termo, em portugus, significa

    escrita da mente ou da alma. Nessa esteira, Weimar Muniz de Oliveira13, Presidente da

    Federao Esprita de Gois, entende por psicografia um dom medinico pelo qual o

    mdium recebe, por via intuitiva ou mecnica, a mensagem de autoria espiritual. O mdium

    a pessoa que funciona como intermedirio entre os espritos e os homens, entre o plano

    espiritual e o plano terrestre, independentemente de desenvolvimento intelectual.

    Decorre desse conceito inicial a primeira problemtica adoo do documento

    psicografado como meio de prova em processos judiciais criminais. Como dito, a carta

    psicografada um documento que se concretiza quando h a transmisso de uma mensagem

    por um esprito ao mundo terrestre, mediante a presena de um mdium. Portanto, ela envolve

    duas partes, quais sejam, o esprito e o mdium. Tanto o mdium pode ser pessoa imbuda de

    m-f, como pode o esprito que transmite a mensagem ser um esprito no evoludo, guiado

    11LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e Sua Conformidade Constitucional. V. 1. 6. ed. Rio de

    Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 562. 12 FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo Aurlio: O Dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro:

    Nova Fronteira, 1999, p. 1661. 13OLIVEIRA, Weimar Muniz. Provas Judiciais Psicografadas. Rio de Janeiro: Saraiva, 2001, p. 153.

  • 16

    por atitudes negativas e ms intenes, o que macularia a deciso judicial por introduzir fatos

    inverdicos no processo. Certamente, no seria o magistrado capaz de examinar tal idoneidade

    no caso concreto.

    Tanto assim que, no Livro dos Mdiuns, Allan Kardec14

    chama a ateno para o

    charlatanismo e para a falsificao, pois o espiritismo tambm pode se tornar objeto de

    explorao. Quanto aos mdiuns interesseiros, ensina-nos que esses buscam no s um ganho

    material, como tambm qualquer outro tipo de interesse, sobre os quais se fundem esperanas

    pessoais.

    Importa observar, tambm, se o meio de prova que se obtm com a psicografia pode se

    encaixar em uma das modalidades j analisadas. Como dito, a psicografia realizada por uma

    pessoa denominada mdium pela doutrina esprita, que seria uma espcie de intermedirio

    entre a alma dos mortos e o mundo dos vivos. Por conseguinte, o documento psicografado

    no pode ser equiparado prova pericial, eis que o perito uma pessoa dotada de capacidades

    tcnicas, e no transcendentais. Sendo o perito escolhido por suas habilidades tcnicas e

    profissionais, tal escolha no poderia levar em conta a sua religio ou raa.

    Por tal motivo, indaga o jurista Guilherme de Souza Nucci15

    , seria uma prova

    documental, fundando-se no escrito extrado das mos do mdium? Ou poderia ser uma prova

    testemunhal, levando-se em conta a pessoa do mdium, que a produziu?. Fato que espritos

    e desencarnados no podem ser considerados pessoas naturais para o mundo jurdico, no

    podendo figurar como testemunhas. Da mesma forma, a pessoa do mdium no viu o

    acontecimento a ser questionado em juzo, no podendo depor sobre suposta mensagem

    proveniente de um morto, visto que no se sabe ao certo se h vida aps a morte. Pelo

    14KARDEC, Allan. O Livro dos Mdiuns. Rio de Janeiro: Federao Esprita Brasileira. 76. ed. Traduo:

    Guillon Ribeiro, 2005, p. 428. 15NUCCI, Guilherme de Souza. Cdigo de Processo Penal Comentado. 8. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,

    2008, p. 351.

  • 17

    contrrio, o Cdigo Civil claro no sentido oposto, ao expressar que a existncia da pessoa

    natural termina com a morte em seu artigo 6.

    Por outro lado, por constituir-se manuscrito, a carta psicografada pode ser considerada

    um documento particular. Conforme o disposto no artigo 232 do Cdigo de Processo Penal,

    consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papis, pblicos ou

    particulares16, sendo certo que os particulares so aqueles que no sofrem, no ato de sua

    elaborao, interferncia de funcionrio pblico no exerccio das funes.

    No entanto, como j foi referido, a origem do documento que servir de prova de

    suma importncia para o alcance de sua credibilidade. Nesse sentido, bastante difcil

    considerar como legtimo um documento elaborado por um mdium, a partir da sua pessoal

    capacidade paranormal. Isso, pois tal documento dever submeter-se verificao de sua

    autenticidade, conforme regula o artigo 235 do Cdigo de Processo Civil, havendo, inclusive,

    no artigo 145 da citada lei, um incidente processual prprio para tanto. Como ser exercido,

    validamente, o contraditrio pela parte contrria, levando em conta que o autor da mensagem

    encontra-se em um plano espiritual? Quais critrios seriam utilizados pelo perito do juzo para

    examinar este documento psicografado? E, ainda, configurada falsidade ideolgica ou

    denunciao caluniosa, de quem seria a responsabilidade? Encontramos inmeros bices no

    ordenamento jurdico a tal adoo.

    Exemplificando, o exame do documento em questo levaria em conta as convices

    religiosas de cada uma das partes processuais, o que violaria frontalmente o Estado

    Democrtico de Direito, que por sua laicidade, respeita todas as crenas e cultos, sem impor

    qualquer delas. Como ensina o mestre Guilherme de Souza Nucci17, os operadores do Direito

    devem dar o exemplo, abstendo-se de misturar crena com profisso, culto com direito,

    liturgia com processo.

    16BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 03 de Outubro de 1941. Cdigo de Processo Penal. Artigo 232. 17NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit, p. 351.

  • 18

    Alm disso, a Constituio da Repblica assegura a igualdade de condies entre as

    partes em todo e qualquer processo. Na medida em que uma parte alega algo, a parte contrria

    tem o direito de contradiz-la, de contraditar a prova produzida, e at mesmo de

    contraproduzir. O juiz encontraria dificuldades em garantir aos sujeitos processuais o

    contraditrio e a ampla defesa sem interferncia da sua religio pessoal. H, inclusive,

    convices religiosas que no admitem a escrita pelo mdium esprita, como a religio

    catlica, a evanglica e o judasmo. Sendo a parte contrria seguidora dessas crenas, haveria

    uma grande celeuma.

    Com efeito, o contraditrio e a ampla defesa s estaro plenamente assegurados

    quando uma verdade tiver igual possibilidade de convencer o julgador, quer alegada pelo

    titular da ao penal, quer pelo acusado. A partir do momento em que se permite a produo

    de uma prova que envolve elementos transcendentais, resta claramente configurada uma

    desigualdade entre as partes.

    Em contrapartida, o princpio da persuaso racional ou livre convencimento motivado

    poderia operar no sentido de permitir a utilizao de prova psicografada. Conforme o disposto

    no artigo 155 do Cdigo de Processo Penal, facultado ao juiz formar a sua convico pela

    livre apreciao da prova, desde que vinculado motivao lgica.

    Entretanto, preciso ressaltar o ensinamento de Ada Pellegrine Grinover18

    :

    Tal princpio regula a apreciao e a avaliao das provas existentes nos autos,

    indicando que o juiz deve formar livremente sua convico. Situa-se entre o sistema

    da prova legal e o do julgamento secundum conscientiam.

    (...)

    Essa liberdade de convico, porm, no equivale sua formao arbitrria: o convencimento deve ser motivado (Const., art. 93, inc. IX; CPP, art. 381, inc. III;

    CPP, arts. 131, 165 e 458, inc. II), no podendo o juiz desprezar as regras legais

    porventura existentes (CPC, art. 334, inc. IV; CPP, arts. 158 e 167) e as mximas de

    experincia (CPC, art. 335).

    18 CINTRA, Antonio Carlos de Arajo. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cndido Rangel. Teoria

    Geral do Processo. 26. ed. So Paulo: Malheiros, 2010. p. 73-74.

  • 19

    Assim, tal princpio consiste na liberdade que possui o juiz de valorar as provas,

    independente de critrios previamente estabelecidos em nossa legislao. No entanto, essa

    valorao limitada, de forma a se abolir o abuso e o arbtrio. Se por um lado, o juiz deve

    seguir a sua prpria conscincia, dever tambm resguardar os princpios constitucionais que

    se aplicam ao processo penal, como por exemplo, a igualdade, a tolerncia religiosa, o

    contraditrio e a ampla defesa.

    No mesmo sentido opera o princpio da ntima convico no Tribunal do Jri. Apesar

    de os jurados decidirem segundo suas prprias conscincias, o julgamento dever transcorrer

    envolto por uma atmosfera de segurana jurdica, atravs da produo de provas idneas e da

    imposio de todas as garantias constitucionais. Os jurados, mesmo dotados de soberania, no

    podem ir de encontro a dispositivo da Constituio ou da lei federal.

    Por todos os argumentos expostos, resta claro que a constitucionalidade do uso das

    cartas psicografadas extremamente duvidosa, sendo assim sustentado por parte significante

    da doutrina brasileira. O professor Alberto Silva Franco19

    acompanha esse entendimento,

    seno vejamos:

    Cada brasileiro inteiramente livre para adotar a religio que lhe aprouver, mas no

    poder exigir que o Estado faa valer, em relao a quem no tiver a mesma crena,

    os fundamentos dessa f religiosa. Estado e Religio esto, portanto, totalmente

    apartados por um muro que favorece a igualdade entre os crentes e os no-crentes, entre santos e libertinos, entre os redimidos e os condenados: todos so igualmente

    cidados e possuem o mesmo conjunto de direitos constitucionais. Transpor esse muro seria, como afirmou Walzer, citando Locke, revolver o cu com a terra; mesclar dimenses que no tm um processo tranquilo de acomodao e correr o risco da prpria tirania na medida em que se objetiva impor aos no-crentes os

    parmetros de conduta religiosa prpria dos crentes.

    Corroborando esse entendimento, h o Projeto de Lei n 1.705, datado do ano de 2007,

    de autoria do Deputado Robson Lemos Rodovalho, que visa a alterar o caput do artigo 232 do

    Cdigo de Processo Penal, para dispor que documentos psicografados no tero valor

    19FRANCO, Alberto Silva. Anencefalia: Breves Consideraes Mdicas, Bioticas, Jurdicas e Jurdico-Penais.

    In: Revista dos Tribunais, n 833, maro de 2005, p. 412.

  • 20

    probatrio no mbito processual penal. Atualmente, porm, esse projeto encontra-se

    arquivado na Mesa Diretora da Cmara dos Deputados.

    4. ANLISE JURISPRUDENCIAL

    Embora haja forte entendimento doutrinrio no sentido da inconstitucionalidade do

    uso das cartas psicografadas como meio de prova, existem pelo menos trs julgamentos no

    Brasil em sentido contrrio, cujas decises se fundamentaram em psicografias do mdium

    Francisco Cndido Xavier e resultaram na absolvio do ru. At porque, no h qualquer

    norma expressa no ordenamento brasileiro no sentido de proibir o uso de tais documentos,

    baseados em relatos unicamente espritas, como meio de prova.

    A figura do mdium Chico Xavier, falecido em 2002, a mais acatada e respeitada

    na doutrina esprita brasileira, e, de alguma maneira, e no por vontade prpria, como ele

    mesmo chegou a afirmar em entrevistas, acalorou a discusso da validade ou no da carta

    psicografada como meio de prova processual. Em pelo menos quatro casos emblemticos,

    suas psicografias foram utilizadas como meio de prova processual, influenciando diretamente

    no resultado de trs julgamentos envolvendo homicdios consumados, no sentido da

    absolvio do acusado.

    De fato, devido credibilidade desse homem, que a maior referncia nacional no

    campo do espiritismo, tendo sido respeitado, inclusive, internacionalmente, as psicografias

    ganharam repercusses processuais no campo da prova, em benefcio dos rus. As decises

    em questo alcanaram grande notoriedade, gerando divergncias at os dias de hoje.

  • 21

    O primeiro caso ocorreu no Estado de Goinia, no dia 10 de fevereiro de 1976, e

    envolveu dois amigos que brincavam de roleta russa quando um deles veio a falecer. O

    acusado, amigo da vtima, em todas as suas declaraes em sede policial e em juzo, alegava

    que no desejava matar o seu amigo, afirmando ter sido tambm vtima de terrvel fatalidade,

    ao provocar-lhe, involuntariamente, um ferimento fatal. Os peritos que realizaram a

    reconstituio dos eventos concluram que a verso narrada pelo acusado poderia ser aceita,

    por inexistir contradio em suas palavras com os dados tcnicos. O magistrado, hoje

    aposentado, Dr. Orimar de Bastos, optou pela absolvio sumria do acusado, proferindo sua

    deciso com base em uma prova psicografada pelo mdium Chico Xavier e pelo esprito da

    vtima, sustentando que a psicografia pode sim ser levada em considerao para a

    determinao da responsabilidade penal.

    Em seguida, na mesma cidade, no dia 08 de maio de 1976 houve outro homicdio

    culposo, onde jovens amigos brincavam com uma arma de fogo, ocasionando a morte de um

    deles, e a acusao do outro por homicdio doloso. Fundado em relatos ligados psicografia,

    tambm de autoria do mediu Chico Xavier, o Tribunal do Jri absolveu o acusado, e,

    coincidentemente, foi presidido pelo mesmo magistrado citado acima, Dr. Orimar de Bastos.

    A absolvio se deu por seis votos contra um, e foi mantida pelo juzo ad quem. Os peritos j

    haviam concludo que a verso do acusado, de disparo acidental, poderia ser aceita. vlido

    transcrever a r. sentena20

    :

    Fizemos esta anlise total de culpabilidade, para podermos entrar com cautela

    devida no presente feito sub judice, em que no nos parece haver o elemento DOLO, em que foi enquadrado o denunciado, pela explanao longa que

    apresentamos.

    (...) S por esta anlise e observao dos autos, pode-se verificar que o acusado no teve

    a inteno e nem a conscincia de querer o ilcito.

    (...)

    Temos que dar credibilidade mensagem de fls. 170, embora na esfera jurdica

    ainda no mereceu nada igual, em que a prpria vtima, aps sua morte, vem relatar

    e fornecer dados ao julgador para sentenciar.

    20XAVIER, Francisco Cndido; HENRIQUE, Maurcio Garcez (Esprito), ARANTES, Hrcio Marcos C.

    Lealdade. 4. ed. So Paulo: Instituto de Difuso Esprita, 1987, p. 9.

  • 22

    Na mensagem psicografada por Francisco Cndido Xavier, a vtima relata o fato e

    isenta de culpa o acusado. Fala da brincadeira com o revlver e o disparo da arma.

    Coaduna este relato, com as declaraes prestadas pelo acusado, quando do

    interrogatrio, s fls. 100/vs.

    Afastado o dolo, poderia aventar a hiptese da culpa, mas na culpa existe o nexo de

    previsibilidade.

    (...)

    Jos Divino, estando sozinho em seu quarto, no momento em que foi ligar o rdio,

    estava cnscio de que ningum ali se encontrava. Acionou o gatilho

    inconscientemente. Donde se afastar a culpa, pois o fundamento principal da culpa

    est na previsibilidade. (...)

    Julgamos improcedente a denncia, para absolver, como absolvido temos, a pessoa

    de Jos Divino Nunes, pois, o delito por ele praticado, no se enquadra em nenhuma

    das sanes do Cdigo Penal Brasileiro, porque o ato cometido, pelas anlises

    apresentadas, no se caracterizou de nenhuma previsibilidade. Fica, portanto,

    absolvido o acusado da imputao que lhe foi feita.

    O terceiro episdio ocorreu em junho de 1985, no Mato Grosso do Sul, quando uma

    modelo, Miss Campo Grande, foi morta por seu prprio marido com um disparo de arma de

    fogo na garganta. Foram apresentadas cartas psicografadas pelo mdium Chico Xavier em

    juzo, supostamente ditadas pelo esprito da vtima, que alegava que o tiro partiu da arma de

    seu marido de forma acidental. Apesar de o jri ter absolvido o acusado por sete votos a zero,

    a sentena foi anulada aps recurso da Promotoria de Justia, que buscava a condenao do

    ru no crime de homicdio doloso. Anos depois, o acusado foi levado a novo jri onde foram

    apresentados os referidos documentos, e ele foi condenado por homicdio culposo, no mais

    doloso, a um ano e meio de deteno, mas o crime j havia prescrito na poca. As cartas

    certamente influenciaram no segundo julgamento do ru.

    Outro caso emblemtico onde se fez uso de documentos espritas foi um crime de

    homicdio perpetrado na localidade de Mandaguari/PR, no dia 21 de outubro de 1982, por um

    soldado da Polcia Militar contra um ento Deputado Federal. Nesse, embora admitida como

    prova a mensagem psicografada pelo mdium Francisco Cndido Xavier, na qual o esprito da

    vtima inocentava o ru pelo tiro que deste recebera, o Tribunal do Jri, por cinco votos a

    dois, considerou-o culpado, tendo o Juiz de Direito, Dr. Miguel Toms Pessoa Filho, fixado a

    condenao em oito anos e vinte dias de recluso.

  • 23

    Por fim, em 2006, no Municpio de Viamo, em Porto Alegre/RS, o Tribunal do Jri

    absolveu uma mulher, acusada de ser mandante do assassinato de um tabelio com quem

    mantinha um relacionamento amoroso, morto em julho de 2003, em casa, com dois tiros na

    cabea, pelo seu caseiro, ru confesso. O mdium Jorge Jos Santa Maria da Sociedade

    Beneficente Esprita Amor e Luz psicografou uma carta supostamente emitida pela vtima,

    determinante para a convico dos jurados pela absolvio. Segue a notcia veiculada pelo site

    do Jornal Folha de So Paulo, em 30 de maio de 200621

    :

    Carta psicografada ajuda a inocentar r por homicdio no RS. LO GERCHMANN.

    da Agncia Folha, em Porto Alegre. Duas cartas psicografadas foram usadas como

    argumento de defesa no julgamento em que Iara Marques Barcelos, 63, foi

    inocentada, por 5 votos a 2, da acusao de mandante de homicdio. Os textos so

    atribudos vtima do crime, ocorrido em Viamo (regio metropolitana de Porto

    Alegre). O advogado Lcio de Constantino leu os documentos no tribunal, na ltima

    sexta, para absolver a cliente da acusao de ordenar o assassinato do tabelio Ercy

    da Silva Cardoso. Polmica no meio jurdico, a carta psicografada j foi aceita em

    julgamentos e ajudaram a absolver rus por homicdio. O que mais me pesa no corao ver a Iara acusada desse jeito, por mentes ardilosas como as dos meus

    algozes (...). Um abrao fraterno do Ercy, leu o advogado, ouvido atentamente pelos sete jurados. O tabelio, 71 anos na poca, morreu com dois tiros na cabea

    em casa, em julho de 2003. A acusao recaiu sobre Iara Barcelos porque o caseiro

    do tabelio, Leandro Rocha Almeida, 29, disse ter sido contratado por ela para dar

    um susto no patro, que, segundo ele, mantinha um relacionamento afetivo com a r.

    Em julho, Almeida foi condenado a 15 anos e seis meses de recluso, apesar de ter

    voltado atrs em relao ao depoimento e negado a execuo do crime e a

    encomenda. Sesso esprita. No consta das cartas, psicografadas pelo mdium

    Jorge Jos Santa Maria, da Sociedade Beneficente Esprita Amor e Luz, a suposta

    real autoria do assassinato. O marido da r, Alcides Chaves Barcelos, era amigo da vtima. A ele foi endereada uma das cartas. A outra foi para a prpria r. Foi o

    marido quem buscou ajuda na sesso esprita. O advogado, que disse ter estudado a

    teoria esprita para a defesa (ele no professa a religio), define as cartas como

    ponto de desequilbrio do julgamento, atribuindo a elas valor fundamental para a absolvio. A Folha no conseguiu contato com o mdium. Os jurados no

    fundamentam seus votos, o que dificulta uma avaliao sobre a influncia dos textos

    na absolvio. Os documentos foram aceitos porque foram apresentados em tempo

    legal e a acusao no pediu a impugnao deles. Polmica. A adoo de cartas

    psicografadas como provas em processos judiciais gera polmica entre os

    criminalistas. A Folha ouviu dois dos mais importantes advogados especializados

    em direito penal no Rio Grande do Sul. Um contra esse tipo de prova. O outro a

    aceita. De acordo com Antnio Dionsio Lopes, "o processo crime uma coisa sria, regido por uma cincia, que o direito penal. Quando se fala em prova

    judicializada, o resto fantasia, mstica, alquimia. Os critrios tm de ser rgidos

    para a busca da prova e da verdade real". O Tribunal do Jri se presta a essas coisas fantsticas. O jurado pode julgar segundo sua convico ntima, eles no tm

    obrigao de julgar de acordo com a prova. A carta s foi juntada aos autos porque

    21TARTUCE, Flvio. Breves Consideraes Quanto Utilizao da Prova Psicografada no Juzo Cvel. In:

    Revista Consulex. Ano X n 229. Braslia: 31 de julho de 2006, p. 32 a 35.

  • 24

    era um tribunal popular. Isso o mesmo que documento apcrifo. Para Nereu Dvila, qualquer prova lcita ou obtida por meios lcitos vlida. S no vlida a ilcita ou obtida de forma ilcita, como a violao de sigilo telefnico. Quanto

    idoneidade da prova, ela ser sopesada segundo a valorao feita por quem for

    julgar. Ela no analisada isoladamente, mas em um conjunto de informaes. Os

    jurados decidem de acordo com sua conscincia.

    Assim, embora haja divergncia sobre a constitucionalidade do uso desse tipo de

    documento religioso em nossa doutrina e jurisprudncia, fato que podem ser encontrados

    julgados embasados em provas psicografadas, o que serve de respaldo para que outros juzes,

    de diferentes Estados, tambm faam uso das mesmas como meio de prova.

    CONCLUSO

    Apesar do uso de tais provas de origem sobrenatural nos processos acima citados,

    acarretando, muitas vezes, a absolvio dos acusados, certo que no h qualquer respaldo

    jurdico para tanto. Embora o ordenamento no proba expressamente, h inmeros bices

    infralegais e at mesmo constitucionais a essa adoo.

    Alm disso, caso, no futuro, tais provas cientficas sejam de fato admitidas para

    absolver rus em processos criminais com frequncia, nada impedir que as mesmas sejam

    usadas tambm para condenar acusados, o que seria mais absurdo ainda. Isso, pois no h

    qualquer certeza absoluta quanto ocorrncia de vida aps a morte, o que deixaria sempre um

    rastro de dvida nesses julgamentos. E, na dvida, deve sempre prevalecer o direito individual

    liberdade, devido ao princpio do in dubio pro reo.

    Torna-se, ento, imperioso reconhecer a separao necessria do Direito e de qualquer

    tipo de religio ou crena, sob pena de violar o princpio esculpido no artigo 5, VI da

  • 25

    Constituio da Repblica, que resguarda a liberdade de conscincia e de crena, alm de ferir

    indiretamente o Estado Democrtico de Direito.

    De fato, religies existem e possuem grande importncia para dar conforto espiritual

    aos seres humanos e para mant-los longe de perturbaes sociais. Mas, no deve ser

    permitido, jamais, transpor os julgamentos dos Tribunais de Justia para os centros espritas.

    A psicografia, especificamente, pode ser um meio til e agradvel de acalentar pessoas que

    sofreram perdas significantes em suas vidas, mas no serve como ferramenta para decises

    jurdicas.

    Em que pese a sua crena pessoal e as suas opinies religiosas, isso no pode se

    misturar com a cincia do Direito, de modo a incrementar o risco de termos julgamentos

    equivocados.

    REFERNCIAS

    ARANHA, Adalberto Jos Q. T. de Camargo. Da Prova no Processo Penal. 7. ed. So Paulo:

    Saraiva, 2008.

    CINTRA, Antonio Carlos de Arajo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cndido

    Rangel. Teoria Geral do Processo. 26. ed. So Paulo: Malheiros, 2010.

    FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 2002.

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  • 26

    FRANCO, Alberto Silva. Anencefalia: Breves Consideraes Mdicas, Bioticas, Jurdicas e

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    FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo Aurlio: O Dicionrio da Lngua

    Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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    KARDEC, Allan. O Livro dos Mdiuns. Rio de Janeiro: Federao Esprita Brasileira. 76. ed.

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    LIMA, Marcellus Polastri. A Prova Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

    MADEIRA, Ronaldo Tanus. Da Prova e Do Processo Penal. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen

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    NUCCI, Guilherme de Souza. Cdigo de Processo Penal Comentado. 8. ed. rev., atual. e

    ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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    Consulex. Ano X n. 229. Braslia: 31 de julho de 2006. Disponvel em:

    . Acesso em 21 de julho de 2011.

    OLIVEIRA, Weimar Muniz. Provas Judiciais Psicografadas. Rio de Janeiro: Saraiva, 2001.

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    XAVIER, Francisco Cndido; HENRIQUE, Maurcio Garcez (Esprito), ARANTES, Hrcio

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