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Ágora. Estudos Clássicos em Debate 11 (2009) 55-76 — ISSN: 0874-5498 A conquista da liberdade: ecos das grandes batalhas na cultura greco-romana ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO 1 Univ. Católica Portuguesa — Braga Abstract: The West has been shaken by acts of terrorism that threaten its political organization, democracy. In Classical Antiquity, two striking events represent the milestones of the conquest of freedom underlying this political system: the Persian wars (V b. C.) and the Punic wars (III-II b. C.). Keywords: freedom; democracy; Punic wars; polis; Persian wars. Todos nós guardamos na nossa memória imagens da espiral de violência provocada pela publicação das caricaturas do profeta de Maomet em alguns periódicos europeus. Mais vivos estarão ainda os ecos da lectio magistralis que Sua Santidade, o Papa Bento XVI, pronunciou na Universidade de Ratisbona, na Alemanha, em defesa do diálogo entre a fé e a razão. Permitam-nos citar um das suas considerações em defesa da sua tese: “uma razão que é surda ao divino e relega a religião para o âmbito das subculturas é incapaz de entrar em diálogo” 2 . E se percor- rermos um pouco mais o baú das nossas recordações, logo nos hão-de acudir outras datas importantes. A primeira delas, quem sabe pela sua proximidade, poderá ser o dia 11 de Março de 2004, que assinala os atentados de Madrid, tendo celebrizado tragicamente a conhecida estação de Atocha. Porventura o dia 7 de Julho de 2005, que abalou uma das cidades mais seguras da Europa, Londres, virá logo a seguir. E naturalmente que o mundo jamais esquecerá a derrocada pavorosa das torres gémeas, na cidade de Nova York, a 11 de Setembro de 2001. A esta pequena lista, podem acrescentar-se mais algumas: no dia 12 de Outubro de 2002, duas centenas de pessoas encontraram a morte Texto enviado em 20 de Novembro de 2008 e aceite em 24 de Março de 2009. 1 [email protected] 2 “Fé, razão e universidade: memórias e reflexões”: discurso de Bento XVI, publicado no Diário do Minho, no suplemento Igreja Viva, de 24 de Setembro de 2006, 24-25.

A conquista da liberdade: ecos das grandes batalhas na cultura

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  • gora. Estudos Clssicos em Debate 11 (2009) 55-76 ISSN: 0874-5498

    A conquista da liberdade: ecos das grandes batalhas na cultura greco-romana

    ANTNIO MARIA MARTINS MELO1 Univ. Catlica Portuguesa Braga

    Abstract: The West has been shaken by acts of terrorism that threaten its political organization, democracy. In Classical Antiquity, two striking events represent the milestones of the conquest of freedom underlying this political system: the Persian wars (V b. C.) and the Punic wars (III-II b. C.).

    Keywords: freedom; democracy; Punic wars; polis; Persian wars.

    Todos ns guardamos na nossa memria imagens da espiral de violncia provocada pela publicao das caricaturas do profeta de Maomet em alguns peridicos europeus. Mais vivos estaro ainda os ecos da lectio magistralis que Sua Santidade, o Papa Bento XVI, pronunciou na Universidade de Ratisbona, na Alemanha, em defesa do dilogo entre a f e a razo. Permitam-nos citar um das suas consideraes em defesa da sua tese: uma razo que surda ao divino e relega a religio para o mbito das subculturas incapaz de entrar em dilogo2. E se percor-rermos um pouco mais o ba das nossas recordaes, logo nos ho-de acudir outras datas importantes. A primeira delas, quem sabe pela sua proximidade, poder ser o dia 11 de Maro de 2004, que assinala os atentados de Madrid, tendo celebrizado tragicamente a conhecida estao de Atocha. Porventura o dia 7 de Julho de 2005, que abalou uma das cidades mais seguras da Europa, Londres, vir logo a seguir. E naturalmente que o mundo jamais esquecer a derrocada pavorosa das torres gmeas, na cidade de Nova York, a 11 de Setembro de 2001.

    A esta pequena lista, podem acrescentar-se mais algumas: no dia 12 de Outubro de 2002, duas centenas de pessoas encontraram a morte

    Texto enviado em 20 de Novembro de 2008 e aceite em 24 de Maro de

    2009. 1 [email protected] 2 F, razo e universidade: memrias e reflexes: discurso de Bento XVI,

    publicado no Dirio do Minho, no suplemento Igreja Viva, de 24 de Setembro de 2006, 24-25.

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    num atentado perpetrado em Bali, um dos parasos tursticos da Indonsia frequentado essencialmente por ocidentais; a 23 de Julho de 2005, na estncia turstica egpcia de Sharm-el-Sheikh, por razes idnticas, o mesmo infortnio havia de atingir cerca de uma centena de pessoas; sete meses mais tarde, a 9 de Novembro, semelhante desventura destroaria o corao da Jordnia.

    Como se v, nestes ltimos anos, a civilizao ocidental tem sido abalada, de forma implacvel, pelo fenmeno do terrorismo, que tem ameaado a segurana em alguns dos seus pontos nevrlgicos. No presente, a guerra no Iraque, que se arrasta j h uns quatro longos anos, cumpridos no pretrito dia 18 de Maro, disso o sinal mais clarividente. E apesar de no se vislumbrarem tempos de concrdia para aquele pas, nuvens ameaadoras de novo conflito blico pairam no horizonte, desta vez a propsito do diferendo nuclear que ope o Iro e a Coreia do Norte ao Conselho de Segurana da ONU.

    A propsito do conflito armado em territrio iraquiano, que tem mantido uma presena quotidiana nos meios de comunicao social, os comentadores, numa tentativa de melhor o caracterizarem, tm-no apelidado, por vezes, de uma caixa de Pandora. Numa aluso catastrfica, vo acentuando que de l ho-de sair ainda mais monstros!...

    Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que se trata de um mito; a sua funo primordial transmitir uma explicao para a origem do mal no mundo. Segundo os Trabalhos e Dias (vv. 90-99) de Hesodo, teria sido Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, que, ao retirar a tampa da vasilha que transportava consigo, acabaria por deixar fugir todos os males, que imediatamente se espalharam pelo mundo. Por ordem do pai dos deuses, Pandora voltaria a colocar a tampa, retendo, l dentro, a Esperana:

    . ,

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    Dantes vivia sobre a terra a raa humana a recato da desgraa e do penoso trabalho, e das doenas horrveis, que trazem a morte aos homens. Mas a mulher, com suas mos, ergueu a grande tampa da vasilha, e dispersou-os, preparando humanidade funestos cuidados. Dentro da vasilha, na morada indestrutvel, abaixo do rebordo, ficou apenas a Esperana. Essa no se evolou. Antes, j ela tornara a colocar a tampa, por desgnios de Zeus detentor da gide, que amontoa as nuvens.3

    No este o lugar para se discutirem as mais variadas interpretaes vindas a lume acerca da concepo de esperana para Hesodo, o que tem originado uma extensa bibliografia4. Por ora, talvez baste simplesmente cometer a ousadia de falar em esperana!...

    hoje um dado adquirido que a funo didctica desta obra encontra paralelo noutros textos parecidos das literaturas orientais, de origem sumria, babilnia ou egpcia. Idntica questo se coloca quanto ao mito das origens do mundo e dos deuses, que Hesodo narra na Teogonia (vv. 116-117, 120-122):

    , , , , .

    Primeiro que tudo houve o Caos, e depois a Terra de peito ingente, suporte inabalvel de tudo quanto existe, e Eros, o mais belo entre os deuses imortais, que amolece os membros e, no peito de todos os homens e deuses, domina o esprito e a vontade esclarecida.5

    3 Traduo: Maria Helena da Rocha Pereira, Hlade. Antologia de Cultura

    Grega (Porto 1998) 93. 4 Para uma pequena smula desta questo, cf. Maria Helena da Rocha Pereira,

    Estudos de Histria da Cultura Clssica. I Vol. Cultura Grega (Lisboa 1997) 165. 5 Traduo: Maria Helena da Rocha Pereira, op. cit., 92.

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    Com efeito, luz das descobertas dos ltimos anos, este mito grego procede de uma tradio antiqussima. Os textos semelhantes mais prximos de ns foram encontrados nos arquivos hititas de Boghazkoy, e esto datados entre 1400 a 1200 a. C.: o poema Mito do reino celeste e a Cano de Ullikummi. Sem que se possa, contudo, determinar a sua origem, pode acrescentar-se que esta linha de sucesso se alonga at meados do segundo milnio a. C., com outras verses hurrticas; primeira parte deste milnio pertence a epopeia da criao do mundo, Enuma elis (como l em cima), um texto dos babilnios6.

    Emerge desta pista literria a existncia de contactos estreitos entre os povos da Pennsula Balcnica e os do Prximo Oriente. Na verdade, os arquivos hititas mencionam um povo dominador que manteve relaes com o Egipto, a Sria e a Assria nos sculos XIV e XIII a. C.7 Desta poca, a arqueologia d como certa uma intensa actividade comercial entre Creta e a antiga cidade costeira da Sria, Ugarit8.

    Este ambiente havia de influenciar a direco das migraes dos Micnios. Com efeito, aquando da invaso dos Drios, aqueles povos ou se resignaram coabitao ou ento procuraram novas paragens, mais calmas, atravessando o mar Egeu: haviam de encontrar repouso no litoral da sia Menor e nas ilhas que lhe so mais prximas9.

    Estas movimentaes populacionais favoreceram o aparecimento, mais tarde, das primeiras colnias gregas nesta regio, no dealbar do sc. VIII a. C. Dois sculos mais tarde, a Jnia daria um impulso determinante para a histria do pensamento ocidental: assiste-se ao incio da espe-culao filosfica, que tinha por objectivo a busca do elemento primordial para a compreenso do mundo sensvel, isto , a descoberta do princpio de tudo. esta preocupao de natureza cosmolgica que marca

    6 Cf. Albin Lesky, Histria da Literatura Grega. (Lisboa 1995) 117-120.

    Traduo de Manuel Losa, SJ. 7 Cf. Jos Ribeiro Ferreira, Hlade e Helenos. I. Gnese e evoluo de um

    conceito (Coimbra 1983) 27. 8 Para mais pormenores, vide Michael Heltzer, Sinaram, son of Siginu, and

    the trade relation between Ugarit and Crete: Minos 23 (1988) 7-13. 9 Acerca da complexidade do declnio da civilizao micnica e da invaso

    drica, vide Ferreira, Jos Ribeiro Ferreira, op. cit., 77-79.

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    o pensamento dos primeiros pensadores de Mileto, a principal plis desta regio: so eles Tales, Anaximandro, Anaxmenes, Pitgoras e Xenfanes10.

    O regime da plis caracterizava-se por uma forte vivncia comu-nitria, em que a soberania pertencia lei: nenhuma plis pertena de um s homem, dir Hmon, filho de Creonte, soberano de Tebas, na tragdia sofoclina Antgona. Todos os cidados eram convidados a parti-cipar na vida e no governo da plis, de forma que a afirmao do poeta grego Simnides (sc. VI V a. C.) se tornou lapidar: a plis mestra do homem. Pelo contrrio, os brbaros sobreviviam subjugados ao poder absoluto de um soberano, isto , esto votados a um estado de servido.

    Esta forma de vida, que uma especificidade do esprito grego, sobretudo dos Atenienses, materializa historicamente porventura a primeira expresso de Liberdade. Vocbulo oriundo do timo latino libertatem, significa ele a fruio dos direitos de cidadania, e, no plano poltico, sinnimo de independncia de um povo. Um pouco mais de reflexo e logo se descobre que este vocbulo latino deriva do adjectivo liber: livre, de condio livre; que est em liberdade, independente, que procede livremente. Mas tambm pode significar licencioso, desregrado, demasiadamente livre11.

    Fixemo-nos, contudo, naquela concepo radical de liberdade, a me de todas as Liberdades e que, em ltima anlise, brota do mais ntimo da alma humana. E vem a propsito retomar, aqui, um dos factos que apontmos no incio desta reflexo: os atentados de Madrid tiveram lugar na vspera de um importante acto eleitoral...

    luz deste contexto, dois grandes acontecimentos da Antiguidade marcaram a conquista da Liberdade, que ainda hoje continua a modelar o pensamento ocidental: as Guerras Medo-Persas, no primeiro quartel do sc. V a. C., e as Guerras Pnicas, que se prolongaram por um sculo, desde a primeira metade do sc. III a. C. at meados do sculo seguinte. Porventura pode mesmo afirmar-se que se trata de dois momentos

    10 De filiao Inica, embora j do sculo seguinte, so ainda trs pensadores

    pr-socrticos: Heraclito, natural de feso, Empdocles de Agrigento e Anaxgoras. 11 Francisco Torrinha, Dicionrio Latino-Portugus (Porto s. d.) 478.

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    distintos do primeiro confronto blico entre o Ocidente e o Oriente, embora com desfecho idntico.

    As Guerras Mdicas, como tambm conhecido o confronto entre os Gregos e os Persas, so o episdio porventura o mais decisivo para a histria da Europa, pois o imprio persa foi o primeiro de vocao universalista.

    Com Ciro II, o Grande, as colnias gregas da sia Menor e o seu grande protector, o rei Creso, da Ldia, perdem a independncia e ficam sujeitos ao novo regime das satrapias. A submisso da Babilnia trouxe-lhe o domnio da Palestina, Sria e Fencia. Quando Cambises II, seu filho, lhe sucede, os domnios deste imenso imprio estendiam-se do Mar Egeu at ao Indo, nos confins do Oriente.

    A Cambises, sucedeu Dario, que havia de enfrentar a revolta dos Gregos da prspera regio da Jnia, na costa asitica, em 499 a. C. Ainda solicitaram auxlio ao continente, mas a resposta foi tmida e somente Atenas e Ertria enviariam ajuda, mas miservel. Em consequncia, a sublevao foi dominada e a cidade de Mileto destruda (494 a. C.).

    Esta insurreio assumiu contornos de novidade, pois foi esti-mulada pela defesa de princpios que eram caros aos Gregos, como sejam a liberdade de pensamento e de organizao poltica. Irritado, talvez, para alm do mais, com esta especificidade, o rei persa formula, ento, o propsito de punir as cidades europeias aliadas dos Jnios. Surge, deste modo, um novo objectivo para o imprio persa: a expanso para Ocidente que, numa primeira fase, passaria pelo domnio da Hlade. O particula-rismo grego do regime da plis, plasmado num individualismo, por vezes, atroz, que acarretou a sua desunio em terras asiticas e a consequente derrota, entusiasmou o rei persa. Por isso, hbil poltico que era, Dario implementou uma poltica de alianas com alguns povos da Pennsula Balcnica, nomeadamente com a Macednia e a Tesslia, e foi urdindo astuciosamente o cerco aos Atenienses12.

    12 Este percurso diplomtico dos Persas foi facilitado pela presena de muitos

    Gregos na Prsia, alguns deles exilados polticos. Herdoto testemunha a presena de gregos no exrcito de Cambises (II.1 e III.44); da presena dos Gregos entre os brbaros fala-nos ainda Eurpides, nas Bacantes (vv. 13 sqq.).

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    Esta campanha militar, tradicionalmente, apresenta-se centrada em duas datas: 490 a. C. e 480 a. C. Assim, a primeira Guerra Medo-Persa tem incio com uma expedio chefiada por Mardnio: se a armada foi engolida pelas ondas alterosas de uma tempestade que a surpreendeu no Monte Atos (492 a. C.), as tropas terrestres haviam de sucumbir parcialmente ferocidade das tribos trcias. Uma nova investida foi preparada, agora sob as ordens de Dtis e Artafernes. Aps a conquista de Ertria, na ilha de Eubeia, dirigem-se para a plancie de Maratona, com o objectivo de alcanar Atenas. Para isso, esperavam um sinal favorvel dos opositores ao regime ateniense. Quando parte das tropas se encontrava j nas naus, os Atenienses e um pequeno nmero de Plateenses, que se encontravam nas colinas sobranceiras plancie s ordens de Milcades, precipitaram-se sobre os soldados persas que perma-neceram em terra e infligiram-lhe uma pesada derrota. Apesar do pedido de auxlio, os Espartanos chegariam tarde. O regresso atempado dos hoplitas atenienses afastou a possibilidade de novo recontro blico.

    Estas movimentaes dos persas foram auxiliadas pelas preciosas informaes dadas pelo exilado Hpias, que sonhava restaurar a tirania em Atenas, com auxlio de algumas faces de cidados.

    A derrota, contudo, no fez vacilar a corte da Prsia. Com a subida ao trono de Xerxes (486 a. C.), ps-se em marcha uma vastssima operao militar, que exigiu uma metdica preparao. A nvel diplo-mtico, esta empresa do rei persa contou, provavelmente, com o apoio da aliada Cartago, que se comprometeu a atacar a Siclia e a Magna Grcia, na mesma altura. Acresce tambm que havia de conseguir a anuncia de vrios estados gregos: a Tesslia, a Becia e Argos. E h at a notcia de uma proposta persa, apresentada aos Atenienses por Alexandre da Macednia, para pr termo s hostilidades (Herdoto, VIII.143):

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    , . , .

    Os Atenieneses deram a Alexandre a resposta seguinte: Tambm ns sabemos que o poder dos Medos vale muitas vezes o nosso, de modo que no vale a pena depreciar-nos por isso. Mas, mesmo assim, ansiamos pela liberdade, e defender-nos-emos at onde pudermos. No tentes persuadir-nos a pactuar com os Brbaros, que no nos convenceremos. E agora vai anunciar a Mardnio o que dizem os Atenienses: enquanto o Sol seguir o curso que agora percorre, nunca pactuaremos com Xerxes. Confiantes no auxlio dos deuses e dos heris, cujos santurios e imagens ele incendiou sem respeito algum, iremos lutar contra ele, e expuls-lo-emos. E tu, doravante, no te apresentes mais com tais propostas diante dos Atenienses, nem lhes aconselhes aces inquas, sob a aparncia de serem nobres, pois no queremos que sofras algum desacato da parte dos Atenienses, de quem s prxeno e amigo. 13

    No obstante as dificuldades, os Gregos, no congresso de Corinto, alcanariam um consenso na estratgia defensiva a desenvolver, o que veio a unir umas trinta pleis helnicas. Quanto ao poder do inimigo, so elucidativas as palavras do historiador grego Herdoto (VII.45-46):

    , , , . , , . , . , .

    Assim que viu o Helesponto inteiro coalhado de navios, todas as suas margens e as planuras de bidos cobertas pelos seus homens, Xerxes felicitou-se a si prprio, mas, em seguida, chorou.

    13 Traduo: Maria Helena da Rocha Pereira, op. cit., 238.

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    Logo que se apercebeu disso, seu tio paterno, Artbano, aquele que anteriormente aventara livremente a opinio de que no era aconse-lhvel marchar contra a Grcia, esse homem, ao notar as lgrimas de Xerxes, disse-lhe: Rei, como diversa a tua atitude de agora e a de h pouco! H momentos felicitavas-te, agora choras! que me veio ao pensamento disse ele lamentar a brevidade de toda a vida humana, uma vez que, de tantos homens que aqui esto, dentro de cem anos, nem um s sobreviver. 14

    vista de to numeroso exrcito, magnificamente equipado, os Gregos no hesitam em lutar pelos seus princpios, pelas suas ideias, pela Liberdade, afinal, um bem imperecvel, a nica razo que sustenta to feroz conflito (Herdoto, VII.104):

    , . , . , . , . , , .

    ... Eu no pretendo ser capaz de lutar contra dez homens, nem mesmo contra dois; por minha vontade, nem com um s eu entraria em combate; se, porm, fosse foroso, ou se algum motivo imperioso me levasse a isso, combateria de preferncia com um desses homens de quem se diz que cada um vale trs Gregos. Do mesmo modo so os Lacedemnios: em combate singular, no so inferiores a nenhum varo; reunidos em tropas, so os mais valentes de todos. Apesar de livres, no o so de todo: esto sujeitos a um soberano a lei que temem muito mais ainda do que te receiam a ti os teus sbditos; de facto, fazem tudo o que ela lhes mandar, e ela manda-lhes sempre o mesmo: que no lhes permitido fugir do campo de batalha, ainda que seja grande a avalanche dos inimigos; devem conservar o seu posto, e vencer ou perecer...15

    14 Ibidem, 257-258. 15 Ibidem, 237-238.

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    A primeira escaramua ocorre no estreito das Termpilas, onde um grupo de Lacedemnios, comandados pelo espartano Lenidas, se preparava para impedir o avano persa. Eram em nmero reduzido. Quando Xerxes enviou um espio a cavalo, este observou que alguns deles estavam a fazer ginstica, outros a pentear os cabelos. De regresso, ningum o perseguiu. Como a realidade dos factos se tornava incom-preensvel para Xerxes, enviou outro espio que lhe relatou isto (Herdoto, VII.209):

    , , , . , . , . , , .

    J anteriormente me ouviste falar destes homens, quando vnhamos atacar a Grcia. Quando me ouviste, riste-te de mim, por eu dizer o fim que previa para esta empresa. Para mim, Rei, um combate muito rduo sustentar a verdade na tua presena. Mas ouve-me ainda outra vez. Esses homens vieram lutar connosco pela passagem, e para isso se preparam. O costume deles este: se subjugares estes homens e os que ficaram em Esparta, no h mais nenhum povo, rei, que te aguarde de braos erguidos. Caminhas neste momento contra o mais belo de quantos reinos h na Grcia, e contra os homens mais valentes. 16

    Um dos poemas de Simnides, poeta deste perodo herico grego, canta o destino glorioso destes primeiros mrtires da Liberdade, num epitfio que se tornou clebre:

    , , , ,

    16 Ibidem, 240.

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    . , .

    Dos que morreram nas Termpilas, glorioso o destino, bela a morte. seu tmulo um altar; em vez de gemidos, a sua lembrana; o pranto se volve em elogio. Esta pedra tumular no a destruir o bolor, nem o tempo que tudo vence Esta sepultura de homens corajosos escolheu para a guardar a fama excelsa da Grcia. Testemunha-o Lenidas, rei de Esparta, que deixou o ornamento de uma grande valentia e um renome imperecvel .17

    Aps este horrendo desastre, Herdoto (VIII.26) narra um episdio revelador do esprito grego. No obstante a guerra, este povo no deixava de celebrar as Olimpadas e de assistir aos concursos gmnicos e s provas hpicas, o que surpreende o inimigo dentro de portas. O teste-munho dos desertores da Arcdia impressiona o rei Persa, para quem seria um absurdo lutar por um prmio simblico de uma coroa de oliveira. Tal foi o espanto que um subordinado no conseguiu ficar calado e fez em pblico esta declarao:

    , , .

    Ai, Mardnio, que homens so esses contra quem nos levas a combater, se eles no lutam pela riqueza, mas s pela superioridade. 18

    No mar, os combates no mostraram a clara supremacia de uma das frotas. Entretanto, conhecido o fim trgico de Lenidas, os Gregos avanam para o estreito de Salamina. Por seu turno, os Persas dirigem-se para a tica e o seu mpeto devastador nem vista da Acrpole refreado, cujos templos so destrudos.

    Animados com estas pequenas vitrias, no resistiriam ao ardil montado por Temstocles. A precipitao da frota persa conduziria sua

    17 Ibidem, 156. 18 Ibidem, 241.

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    estrondosa derrota (480). Apesar da partida de Xerxes, Mardnio permanece na Tesslia e procura, em vo, um acordo com os Atenienses. Novamente a vitria havia de sorrir aos Gregos, tendo-se destacado a chefia do espartano Pausnias (479). Neste ano, o triunfo dos helenos seria reforado ainda com a vitria naval de Mcale, um promontrio da sia Menor, frente ilha de Samos.

    Tamanha vitria s se explica, efectivamente, pelo demasiado apego dos Helenos Liberdade, o bem supremo (Herdoto, VII.102):

    , , , .

    A Grcia foi sempre criada na pobreza, mas junta-se-lhe a virtude, amassada na sabedoria e numa lei rigorosa. Apoiando-se nelas, a Grcia defende-se contra a pobreza e contra a sujeio. 19

    A campanha de Xerxes dirigia-se fundamentalmente contra Atenas, embora avanasse sobre a Grcia inteira. Face diviso dos Helenos, esta cidade transformou-se no seu plo aglutinador (Herdoto, VII.139):

    . , , , , . , .

    Porm, quem afirmar que os Atenienses foram os salvadores da Grcia, no falta verdade. Para qualquer dos dois partidos que se voltassem, se inclinaria a balana. Uma vez que escolheram que a Grcia continuasse livre, escolhendo assim, foram eles que despertaram todo o resto da Hlade, que no estava ao lado dos Medos, e eles que, depois dos deuses, repeliram o grande Rei.

    19 Ibidem, 237.

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    Nem mesmo os orculos temveis vindos de Delfos, que infundiam terror, os persuadiram a abandonar a Grcia, mas permaneceram, para deter o invasor e lhe fazer frente. 20

    Como se v, o prestgio de Atenas aumentou muito com as Guerras Mdicas, o que a projectou para a liderana da poderosa Confederao de Delos, com sede na ilha do mesmo nome. Tratava-se de uma aliana das cidades do Mar Egeu que procurava dissuadir uma nova investida dos persas. Em consequncia da crescente hegemonia ateniense, Pricles influenciou a Assembleia no sentido de se pronunciar favoravelmente pela reconstruo da Acrpole, que considerou a escola da Hlade. O dinheiro para tais obras foi busc-lo ao tesouro de Delos, entretanto transferido para Atenas.

    Uma outra consequncia das Guerras Prsicas foi a consolidao do regime democrtico ateniense, que a liderana de Pricles aperfeioou, nomeadamente com a introduo da mistoforia, um pequeno salrio para que tambm os cidados mais desfavorecidos pudessem exercer funes nos diversos cargos da cidade-estado: Por permitir uma maior igualdade na participao do governo da plis, a remunerao dos cargos pblicos ficou estreitamente ligada ao regime democrtico de Atenas, como uma das suas mais destacadas caractersticas21.

    A par das artes plsticas, tambm se desenvolveu o teatro, no mbito de um dos mais importantes festivais atenienses, as Grandes Dionsias. Interessante como a tradio relaciona os trs principais tragedigrafos com um dos momentos mais importantes das Guerras Persas: squilo combateu em Salamina, Sfocles dirigiu o coro dos jovens que celebrou a vitria, Eurpides nasceu nesse dia e nesse local22. A funo pedaggica da dramaturgia, no contexto da plis, ficaria incompleta sem uma referncia comdia, onde abunda a invectiva poltica e a crtica aos mais diversos aspectos da vida quotidiana23.

    20 Ibidem, 239. 21 Cf. J. Ribeiro Ferreira, A democracia na Grcia Antiga (Coimbra 1990) 87. 22 Cf. Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de Histria da Cultura

    Clssica I Vol. Cultura Grega (Lisboa 1997) 390-391. 23 Esta temtica tem inspirado numerosos estudos realizados por Maria de

    Ftima Sousa e Silva, que, em 1987, com o patrocnio do Instituto Nacional de

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    Assim, Aristfanes, em As Nuvens (vv. 961-971), faz uma dura crtica educao nova dos sofistas, contrapondo-a antiga que forjou os guerreiros de Maratona:

    , . , . , , . , , .

    Direi pois em que consistia a antiga educao, quando eu florescia, proclamando a justia, e se apreciava a moderao. Primeiro, no era permitido ouvir uma criana a palrar; depois, caminhavam com ordem pela rua, para casa do mestre de ctara, os do mesmo bairro, sem manto, em filas cerradas, ainda que casse neve como farinha. Ento, de pernas afastadas, aprendiam primeiro que tudo um cntico, ou Palas que s terrvel a destruir cidades ou Voz forte que chegas longe, sustentando alto a msica que os pais lhes transmitiram. E, se algum deles se fazia engraado ou tentava inflexes de voz, to mal inflectidas, como essas de agora, maneira de Frnis, moam-no com pancada, por querer banir as Musas .24

    E no obstante a luta fratricida do Peloponeso (431-404 a. C.), que trouxe a runa poltica aos Atenienses, da maturao espiritual destes cidados haviam de erguer-se duas figuras incontornveis da cultura ocidental: Scrates e Plato. Do primeiro chegou-nos um texto paradigmtico, impressionante. Vivia ele os ltimos dias, na cadeia, para

    Investigao Cientfica e do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra, havia de publicar a sua dissertao de doutoramento Crtica do teatro na comdia antiga.

    24 Traduo: Maria Helena da Rocha Pereira, op. cit., 337-338.

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    onde tinha sido enviado, vtima da acusao de corromper a juventude e de no crer nos deuses em que acredita a cidade. ali que recebe a visita de seu amigo Crton, que lhe prope a fuga. Estabelece-se um dilogo e discute-se se isso seria justo, se licto responder ao mal sofrido com outro mal:

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    Mas repara nisto. Se ns estivssemos para nos evadirmos daqui pois assim que cumpre chamar-lhe e as Leis e o Estado viessem ter connosco, se colocassem na nossa frente e perguntassem: Diz-me, Scrates, que projectas fazer? Essa aco que tu intentas acaso outra coisa que no seja deitar-nos a perder, a ns e a todo o Estado, na medida das tuas foras? Ou parece-te que possvel um Estado subsisitir e no ser aniquilado, quando as sentenas proferidas no tm poder, antes se tornam impotentes e vs por meio dos particulares? Que diremos, Crton, a perguntas destas ou semelhantes? Muito teria que dizer qualquer pessoa, e sobretudo um orador, sobre a dissoluo desta lei, que impe como soberanas as sentenas proferidas. Ou dir-lhe-emos: O Estado foi injusto connosco, no julgou bem o nosso caso? Diremos acaso assim? 25

    Significativamente, esta passagem do dilogo platnico Crton (50 a-c) conhecida por prosopopeia das Leis, isto , a Lei ganha um rosto. No obstante a limpidez de pensamento do fundador da tica,

    25 Ibidem, 391-392.

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    esperou a morte nas condies mais injustas. A luz para tamanho desatino da democracia ateniense parece encontrar-se logo em Plato, quando, no tratado A Repblica (557 c), caracteriza o regime democrtico, que

    , . , , , , .

    muito capaz de ser a mais bela das constituies. Tal como um manto de muitas cores, matizado com toda a espcie de tonalidades, tambm ela, matizada com toda a espcie de caracteres, apresentar o mais formoso aspecto. E talvez que, embevecidas pela variedade do colorido, tal como as crianas e as mulheres, muitas pessoas julguem ser esta forma de governo a mais bela. 26

    Por entre esta caricatura dos excessos da democracia, no deixa o pensador de zurzir asperamente o oportunismo da pessoa democrtica (558 b):

    , ;

    com que arrogncia ela calca tudo aos ps, sem querer saber para nada da preparao com que se vai para a carreira poltica, mas s presta honras a quem proclamar simplesmente que amigo do povo. 27

    Esta atitude do homem democrtico tem a sua gnese numa juventude que, por hbito, foi (560 e, 561 a)

    , , , . , , ;

    designando a insolncia por boa educao, a anarquia por liberdade, a prodigalidade por generosidade, a desfaatez por coragem. Acaso no mais ou menos assim que um jovem educado a satisfazer os desejos

    26 Plato, A Repblica, (Lisboa 1976) 387.Traduo de Maria Helena da

    Rocha Pereira. 27 Ibidem, 388.

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    necessrios passa licena e indulgncia com os prazeres no necessrios e inteis? 28

    A sede de liberdade conduz, como se v, subverso do regime democrtico a tal ponto que a tirania chega a ser eleita a mais bela forma de governo. Este esprito de liberdade infiltra-se nas casas particulares e atinge os prprios animais: (562 e, 563 a)

    , , , , .

    que o pai habitua-se a ser tanto como o filho e a temer os filhos, e o filho a ser tanto como o pai, e a no ter respeito nem receio dos pais, a fim de ser livre; o meteco equipara-se ao cidado, e o cidado ao meteco, e do mesmo modo o estrangeiro. 29

    E a ironia aprofunda-se ainda mais, num estado em que (563 a-b)

    , , , , , .

    ... o professor teme e lisonjeia os discpulos, e estes tm os mestres em pouca monta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em aces; ao passo que os ancios condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e esprito, a imitar os jovens, a fim de no parecerem aborrecidos e autoritrios. 30

    Ao longo desta reflexo, j mencionmos Cartago, uma colnia fundada por fencios oriundos de Tiro. Situava-se ela numa posio estratgica, ao centro da costa norte de frica, numa pennsula que os aproximava da Siclia. Em frente, os seus habitantes eram notveis

    28 Ibidem, 393. 29 Ibidem, 393. 30 Ibidem, 397.

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    mercadores, que negociavam ao longo de toda a costa mediterrnica. Chegaram mesmo a estabelecer acordos comerciais com os Romanos.

    Senhora da pennsula itlica, por volta de 270 a. C., Roma via-se cercada pela potncia rival que dominava os mares. Estavam criadas as condies para um conflito blico. A histria havia de lhe atribuir a desi-gnao de Guerras Pnicas, que se estenderam ao longo de um sculo.

    A primeira Guerra Pnica durou cerca de duas dcadas (264-241 a. C.) e terminou com a vitria dos romanos nas ilhas gatas que, assim, alcanaram a soberania da Siclia. Deste perodo ficou-nos o exemplo de Rgulo que, aps sucessivas vitrias, seria derrotado por Xantipo e feito prisioneiro. A verso de Ccero (Dos Deveres, III.27.100) retrata-nos um homem exemplo de coragem (uirtus) e de fidelidade aos juramentos (fides), de abnegao em prol de um bem maior, a repblica romana. Enviado a Roma a negociar a sua libertao em troca de uns prisioneiros nobres cartagineses

    Num locupletiores quaeris auctores? Harum enim est uirtutum proprium nihil extimescere, omnia humana despicere, nihil, quod homini accidere possit intolerandum putare. Itaque quid fecit? In senatum uenit, mandata euit, sententiam ne diceret, recusauit; quamdiu iure iurando hostium teneretur, non esse se senatorem. Atque illud etiam, (O stultum hominem, dixerit quispiam, et repugnantem utilitati suae!), reddi captiuos negauit esse utile; illos enim adulescentes esse et bonos duces, se iam confectum senectute. Cuius cum ualuisset auctoritas, captiui retenti sunt, ipse Carthaginem rediit, neque eum caritas patriae retinuit nec suorum. Neque uero tum ignorabat se ad crudelissimum hostem et ad exquisita supplicia proficisci, sed ius iurandum conseruandum putabat. Itaque tum, cum uigilando necabatur, erat in meliore causa, quam si domi senex captiuus, periurus consularis remansisset.

    Acaso pretendes autoridade mais fidedigna? da essncia destas virtudes nada temer, desprezar tudo o que humano, no julgar insuportvel tudo o que possa acontecer ao homem. Ento que fez ele? Veio ao senado, exps a proposta de que estava incumbido, recusou-se a dar o seu voto, pois, enquanto estivesse ligado pelo juramento aos inimigos, no era senador. Mais ainda ( que insensato, dir algum, que luta contra o que lhe til!), negou a utilidade de entregar os cativos. Que eram jovens e bons chefes, ao passo que ele j estava alquebrado pela velhice. Como prevalecesse a sua autoridade, os prisioneiros ficaram retidos; ele mesmo voltou a Cartago, sem que o

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    retivesse o amor da ptria ou dos seus. No ignorava ento que partia para junto de um inimigo crudelssimo e para suplcios refinados, mas entendia que era seu dever manter-se fiel ao juramento. E assim, direi eu, enquanto o matavam pela privao do sono, a sua condio era melhor do que se permanecesse em casa, sendo um ancio activo e um consular perjuro.31

    O fim das hostilidades foi celebrado nos Ludi Romani de 240 a. C.; os Ludi Scaenici solenizaram ainda mais este acontecimento. Os romanos assistiram, assim, pela primeira vez, representao de uma pea de teatro adaptada do grego por Lvio Andronico, uma escravo vindo de Tarento, aquando da sua conquista em 272 a. C. Este autor, mestre--escola, faria tambm uma traduo da Odisseia, que se manteve como livro escolar at ao tempo de Augusto e de que nos chegaram apenas alguns fragmentos.

    O historiador romano, Tito Lvio, quando fala a propsito das origens do teatro em Roma, em Desde a Fundao da Cidade (VII.2.8-10), comea por explicar que os jogos cnicos foram institudos com a necessidade de aplacar a clera divina, uma vez que a violncia da epidemia no abrandava. Isto era uma novidade para este povo belicoso, habituado s a espectculos de circo. Aos versos Fesceninos haviam de suceder-se as saturas cheias de msica e movimento:

    Liuius post aliquot annis, qui ab saturis ausus est primus argumento fabulam serere, idem scilicet - id quod omnes tum erant - suorum carminum actor, dicitur, cum saepius reuocatus uocem obtudisset, uenia petita puerum ad canendum ante tibicinem cum statuisset, canticum egisse aliquanto magis uigente motu quia nihil uocis usus impediebat. Inde ad manum cantari histrionibus coeptum diuerbiaque tantum ipsorum uoci relicta.

    Ao fim de alguns anos, Lvio, o primeiro que ousou, abandonando as saturas, entretecer uma pea com argumento, e que era tambm como todos naquele tempo actor dos seus versos, ao que se conta, pediu vnia, por as muitas chamadas do pblico lhe afectarem a voz, para pr um rapaz a cantar diante do flautista; e pde representar as partes cantadas com um pouco mais de vigor nos gestos, j que no

    31 Traduo: Maria Helena da Rocha Pereira, Romana. Antologia de Cultura

    Latina (Coimbra 2000) 65.

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    estorvava o uso da voz. Foi assim que os histries comearam a ter mo um cantor e a voz lhe ficou s para o dilogo.32

    Abriam-se a Roma os caminhos da Literatura. Os caminhos da arte tambm se abrem nesta altura, com a conquista da Siclia. Havia de ficar clebre, dois sculos mais tarde, o discurso de Ccero Das esttuas, que condena veementemente os roubos perpetrados por Verres naquela provncia.

    A segunda Guerra Pnica conheceu sensivelmente a mesma durao da anterior (218-201 a. C.). Num claro desafio a Roma, Anbal conquistou Sagunto (219), na Hispnia, e dirigiu-se pennsula itlica, procurando levar a guerra s portas de Roma. Contudo, inesperadamente, as vitrias de Pblio Cornlio Cipio pem em perigo a segurana de Cartago. O general cartagins, que veio em seu auxlio, havia de capitular na batalha de Zama (202 a. C.).

    Cartago, no obstante os tributos pesados a que estava obrigada, prosperava com a revigorada actividade comercial e isso inquietava Roma. Por isso, a terceira Guerra Pnica foi breve (149-146 a. C.): Cornlio Cipio, aps uma sangrenta carnificina, poria termo definitivo aos sonhos cartagineses, arrasando a cidade.

    este general romano, neto adoptivo daquele Pblio Cornlio Cipio, o Africano Maior, que Ccero celebra no seu tratado A Repblica (VI.13). Daqui cito um excerto do conhecidssimo Sonho de Cipio. Cipio ouve, em sonho, a profecia do seu av, que o exorta defesa da repblica:

    Sed quo sis, Africane, alacrior ad tutandam rem publicam, sic habeto, omnibus, qui patriam conseruauerint, adiuuerint, auxerint, certum esse in caelo definitum locum, ubi beati aeuo sempiterno fruantur; nihil est enim illi principi deo, qui omnem mundum regit, quod quidem in terris fiat, acceptius quam concilia coetusque hominum iure sociati, quae ciuitates appellantur; harum rectores et conseruatores hinc profecti huc reuertuntur.

    Para que tenhas mais ardor na defesa da repblica, Africano, fica a saber que assim: para todos aqueles que salvaram a pria, que a

    32 Idem, 227.

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    socorreram, que a dilataram, est guardado no cu um lugar reservado, onde os bem-aventurados gozam de uma vida eterna. que quele deus principal, que governa todo o mundo, nada mais caro, de tudo quanto se passa na terra, do que aquelas sociedades ligadas pelo direito, que se chamam cidades. Os regedores e conservadores delas que daqui partiram, aqui regressam.33

    A concluir esta nossa reflexo, vem a propsito recordar as palavras do ento Presidente da Associao de Fillogos Clssicos da Alemanha at Fevereiro de 2005. Segundo ele, as realizaes da antiguidade greco-romana no so de modo algum apangio exclusivo do mundo ocidental; com efeito, a metodologia cientfica afirma-se como um elemento unificador que se sobrepe s fronteiras das civilizaes:

    O Islo diz o ilustre acadmico alemo acrescenta um aspecto particular tradio europeia: do sc. IX ao XII estudavam-se os escritos de Aristteles com mais afinco e profundidade no mundo islmico do que no ocidente cristo. Foi em grande medida o islo helenizado quem fez redescobrir a Grcia aos Europeus durante o Renascimento. Os Muulmanos de hoje ainda alimentam a esperana de que o renovar da conscincia da herana grega comum possa constituir uma ponte para futuros reencontros entre o Islo e a civilizao ocidental da Europa 34.

    Se j temos um p no Oriente, com a prxima adeso da Turquia Unio Europeia, falta, agora, cumprir-se frica!...

    33 Idem, 42. 34 Francisco de Oliveira, A Antiguidade cria laos. Iniciativa em favor de

    uma cultura humanstica na Europa: Boletim de Estudos Clssicos, 43 (2005.1) 198: traduo portuguesa do original alemo, intitulado Antike Verbindet. Initiative fr humanistische Bildung in Europa, criado pelo Dr. Helmut Meissner, presidente da Associao de Fillogos Clssicos da Alemanha at Fevereiro de 2005. Este texto foi apresentado na Assembleia Geral da Euroclssica, que se realizou em Dubrovnik, em Abril de 2005.

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    * * * * * * * * *

    Resumo: O Ocidente tem sido abalado por actos terroristas que ameaam a sua organizao poltica, a democracia. Na Antiguidade Clssica, dois grandes acontecimentos marcaram a conquista da liberdade, garante daquele regime poltico: as Guerras Medo-Persas (V. a. C.) e as Guerras Pnicas (III-II a. C.).

    Palavras-chave: liberdade; democracia; Guerras Pnicas; polis; Guerras Medo-Persas.

    Resumen: El mundo occidental ha sido sacudido por actos terroristas que amenazan su organizacin poltica, la democracia. En la Antigedad Clsica dos grandes acontecimientos marcaron la conquista de la libertad, garanta de aquel rgimen poltico: las Guerras Mdicas (s. V a. C.) y las Guerras Pnicas (s. III-II a. C.).

    Palabras-Clave: libertad; democracia; Guerras Pnicas; polis; Guerras Mdicas.

    Resum: Loccident se trouve branl par des actes terroristes qui menacent son organisation politique, la dmocratie. Dans lAntiquit Classique, deux grands pisodes marqurent la conqute de la libert, garante de ce rgime politique: les Guerres Mdo-Perses (V. av. J. C.) et les Guerres Puniques (III-II av. J. C.).

    Mots-cl: libert; dmocratie; Guerres Puniques; polis; Guerres Mdo-Perses.

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