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A CLÍNICA DA LOUCURA E A PRODUÇÃO DA DOBRA Resumo: O presente artigo levanta questões acerca da clínica da loucura. A partir do contato com a psicose, faz-se necessário pensar em dispositivos que possam servir para novas produções de sentido e, conseqüentemente, dar espaço para as composições de outros territórios existências para os sujeitos “loucos”, que estaria diretamente relacionado com a produção subjetiva dos mesmos. Isso se faz necessário, já que entendemos que o psicótico está preso no Fora, ou seja, é como se ele sentisse uma dissolução do seu eu no mundo, devido às inúmeras forças do Fora que o atravessam. A subjetividade pode ser definida como uma modalidade de inflexão das forças desse Fora, que cria um interior. Esse interior é o próprio Fora, ou seja, uma Dobra do Fora. A partir do relato de um caso as intervenções proporcionadas na clínica com a paciente são apresentadas no intuito de criar/inventar novos modos dela se relacionar com o mundo. Foi através de algumas estratégias clínicas que a paciente pôde produzir Dobras, ou seja, produzir outros modos de subjetivação para a sua existência. Palavras chaves: Clínica. Loucura. Subjetividade.

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A CLÍNICA DA LOUCURA E A PRODUÇÃO DA DOBRA

Resumo:

O presente artigo levanta questões acerca da clínica da loucura. A partir do contato com a psicose, faz-se necessário pensar em dispositivos que possam servir para novas produções de sentido e, conseqüentemente, dar espaço para as composições de outros territórios existências para os sujeitos “loucos”, que estaria diretamente relacionado com a produção subjetiva dos mesmos. Isso se faz necessário, já que entendemos que o psicótico está preso no Fora, ou seja, é como se ele sentisse uma dissolução do seu eu no mundo, devido às inúmeras forças do Fora que o atravessam. A subjetividade pode ser definida como uma modalidade de inflexão das forças desse Fora, que cria um interior. Esse interior é o próprio Fora, ou seja, uma Dobra do Fora. A partir do relato de um caso as intervenções proporcionadas na clínica com a paciente são apresentadas no intuito de criar/inventar novos modos dela se relacionar com o mundo. Foi através de algumas estratégias clínicas que a paciente pôde produzir Dobras, ou seja, produzir outros modos de subjetivação para a sua existência.

Palavras chaves: Clínica. Loucura. Subjetividade.

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TÍTULO: A CLÍNICA DA LOUCURA E A PRODUÇÃO DA DOBRA

AUTOR: DANIELA MACHADO AINHOREN 1

ORIENTADOR: LÍGIA HECKER FERREIRA 2

2º AVALIADOR: ROSEMARIE GARTNER TSCHIEDEL

1 Graduada em Psicologia – Habilitação: Formação de Psicólogos Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS [email protected] 2 Orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS Mestre em Psicologia Clínica [email protected]

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho, intenciona pensar questões acerca da clínica da loucura. Isso ganha

sentido, na medida em que as intervenções nos serviços de saúde mental parecem estar centradas

quase que exclusivamente nos sintomas, sendo o sujeito e seus modos de subjetivação pouco

considerados.

A relação paciente-terapeuta que aconteceu durante a realização do estágio, é um dos

aspectos que será abordado, já que o sentimento de impotência do terapeuta ao lidar com

determinadas situações de pacientes que vivem a psicose, muitas vezes, faz com que ocorram

vários questionamentos e inquietações. A proximidade com a loucura pode propiciar a sensação

de um “mergulho no desconhecido”, muitas vezes assustador, em outras nem tanto, mas sempre

impressionante, pois, o estranho, o desconhecido, o fantasmagórico parecem sempre se fazer

presente. A partir dessas sensações, tende a advir do terapeuta, na tentativa de estabelecer

comunicação e vínculo terapêutico, um desejo de proporcionar a criação de novos modos, dos

ditos “loucos” de relacionarem-se com o mundo.

A partir disso, a clínica da loucura questiona e propõe rupturas necessárias e novos

itinerários terapêuticos para as pessoas com sofrimento psíquico grave. Propõe a clínica da

psicose pensar na importância de constituição de um espaço no qual o sujeito possa restabelecer a

sua história conectada a uma trajetória cotidiana que lhe permita ser sujeito nesse processo. Tal

prática remete-nos a biografias, culturas, histórias, enfim, a sujeitos sociais, com suas trajetórias e

mundo subjetivos, que são muito mais do que sintomas como, muitas vezes, são vistos no campo

da saúde mental.

A partir do relato de um caso será possível ilustrar essa clínica que vem sendo proposta. A

participação na produção de mundo da paciente nos reporta a uma abertura para multiplicidades

permitindo, que, como terapeuta, seja rompida a noção de neutralidade, pois é preciso abrir o

próprio corpo e se deixar invadir pelas sensibilidades e irrupções de variados fluxos. Na clínica

da loucura, o terapeuta deve se transformar em corpo-passagem, corpo-caminho na produção de

potência de novos enredos, não havendo um conhecimento e um fazer a priori, mas sim uma

busca de um movimento de se lançar no intempestivo de cada intervenção.

Nesse sentido, as intervenções que foram proporcionadas na clínica com a paciente foram

com o intuito de criar/inventar novos modos de ela se relacionar com o mundo. Foi através de

algumas estratégias que a paciente pôde produzir outros modos de subjetivação para a sua

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existência. Estratégias como valorizar a relação com a terapeuta, os momentos de desenhar nos

atendimentos, a participação de oficinas de música, a psicoterapia. Será pensada a subjetividade

como produção de Dobras.

1 ENTRE O CAPS E A RUA: UMA RELAÇÃO CARTOGRÁFICA

O acompanhamento da paciente em questão iniciou através da prática da abordagem de

rua de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)3.

Os loucos em situação de rua pertencem a uma parte excluída da sociedade, pois há a

exclusão da condição de sujeitos, retirando-os do direito de serem diferentes uns dos outros, de

terem suas próprias indagações, seus próprios projetos, suas próprias escolhas e assim por diante.

Essa exclusão se dá por um lado, como resultado da própria loucura que lhes torna difícil a

relação com o outro, e, por outro, porque, a partir de então, começam a fazer parte de um

contingente em degradação do ponto de vista social, econômico, subjetivo e clínico.

Por outro lado, quem trabalha com “loucos” em situação de rua, sente-se estrangeiro em

relação ao contexto profissional e de trabalho, pois ainda é uma prática de poucos, sendo este o

único serviço a lidar com essas situações da cidade a qual pertence. A partir disso é que surgem

questões sobre o que de fato se faz à luz dos conceitos aprendidos, como por exemplo, se essa

prática é clínica ou assistencial. Neste caso a assistência se faz presente através dos recursos que

são disponíveis para o atendimento das necessidades básicas e urgentes que se apresentam e não

podem ser ignoradas, como por exemplo: a sede, a fome, o frio, a falta de higiene, de

documentos, de abrigo e assim por diante.

Os primeiros contatos com a paciente aconteceram a partir do oferecimento de alguns

desses recursos e cuidados básicos, como levá-la para fazer sua higiene (tomar banho, escovar os 3 Os CAPS são Centros de Atenção Psicossocial cadastrados junto ao Ministério da Saúde. Sua finalidade é ser um serviço substitutivo à internação psiquiátrica, que oferece tratamento por equipe interdisciplinar, com o intuito da reinserção social de pessoas em sofrimento psíquico grave. O CAPS incorporou em sua área de atuação, o atendimento em saúde mental a moradores em situação de rua. Esta prática compõe-se de um trabalho intersetorial entre a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), do município a qual pertence, e a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC). É entendido que o trabalho com vistas ao tratamento em saúde mental e à reabilitação psicossocial dos sujeitos, necessita de recursos que envolvem, necessariamente, ambos os órgãos. O CAPS teve como uma de suas propostas iniciais o atendimento aos “loucos” em situação de rua, por entender que essas pessoas faziam sim parte da sua população de abrangência. Conforme a Portaria/GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) só poderão funcionar em área física específica. Ainda, deverão ser capacitados para realizar prioritariamente o atendimento a pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial.

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dentes e lavar suas roupas) e fornecer alimentos. Por um tempo, a impressão que se tem é a de

estar fazendo uma simples assistência, sendo esse um movimento estranho para a psicologia.

Contudo, a partir disso que surge a afirmação de que aqui a assistência e a clínica não se

separam. A assistência está presente sim, mas, no momento em que é possível acompanhar o

enredo da vida do sujeito em situação de rua, nos ajuda a iluminar o estranho processo subjetivo

que faz com que o abandonado, apesar de tudo, continue antecipando uma outra chance de vida

no momento em que aceita uma aproximação. Gomes (2006, p. 24) caracteriza uma “clínica da

rua”, quando existe uma “aposta na possibilidade de vida para além da institucionalização, num

atendimento singularizado, na constituição do atendimento caso a caso, e na potência de

estabelecer conexões com a cidade e relações com o outro, como composições de saúde”. Então,

o trabalho com essa população se faz para muito além de uma assistência social. Tal

compreensão torna-se possível na medida em que o acompanhar a vida do sujeito, é encarado

como cartografia4. Segundo Rolnik (1989, p. 16) as cartografias trazem marcas dos encontros que

as foram constituindo.

A cartografia com Isa5 começa a delinear-se no momento em que é possível conhecer seu

percurso até aquele momento, ou seja, desde o primeiro contato com o seu prontuário: ela era

atendida pelo CAPS já há algum tempo. Com isso, iniciar o seu acompanhamento nas abordagens

de rua que se seguiriam, com o intuito de construir um outro percurso, que despertasse outras

dimensões subjetivas e criadoras de saídas para a sua existência, tornou-se, então, fundamental no

trabalho com a paciente. Desta forma, alguns pressupostos orientadores, como deixar-se afetar,

seguir os fluxos alheios, abrir-se para o novo eram importantíssimo.

Primeiro dia da abordagem de rua: Isa é encontrada no local onde “morava”, no Centro

da cidade. A aproximação é tímida, mas repleta de intensidades, pois, sair à rua, encontrar

pessoas, instalar-se na multidão, sentir os cheiros, os sons e os barulhos do movimento das ruas

de uma cidade grande sempre estão presentes nesse trabalho.

No momento em que é possível uma abertura para os encontros que estão se dando, já que

é entendido que todo encontro exige flexibilidade e abertura ao que virá6, surge uma reflexão, da

4 A cartografia vai se fazendo ao mesmo tempo que certos afetos vão sendo revisitados, ou visitados, pela primeira vez, e que um território vai se compondo, já que as cartografias se desenham junto com os territórios que vão tomando corpo, um não existindo sem o outro. (Rolnik, 1989, pg. 16) 5 Nome fictício que será dado para a paciente neste trabalho. 6 Será trabalhada melhor essa questão mais adiante.

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ordem do que é produzido entre7 a assistência (aqui é entendido como o trabalho com moradores

de rua) e a clínica (operar na produção subjetiva dos sujeitos8).

Como já afirmamos, a escuta clínica se fez presente desde o início, ou seja, desde o

primeiro contato com a história da paciente, o que permitiu construir um plano terapêutico9 para

seu acompanhamento na rua, pois, entendíamos esse processo como cartográfico. Os

procedimentos do cartógrafo não seguiam um protocolo, cabendo ao mesmo uma invenção em

função daquilo que o contexto em que se encontrava pedia, não importando se era na rua ou num

consultório. O cartógrafo deve deixar seu corpo vibrar e inventar posições as quais essas

vibrações encontrassem canais de passagem para as estratégias de produção de subjetividade e

construção de territórios.

Além disso, entendia-se que toda clínica diz da experiência vivida e das afecções que se

produzem em nossa posição no mundo, como corpo em encontro com outros corpos que se

afetam. Segundo Deleuze (1970, p. 27), comentando Espinoza, quando um corpo encontra um

outro corpo, pode suceder que as duas relações se componham. Nesse caso, as afecções que nos

afetam são de alegria, aumentando e favorecendo a potência de agir. Deve ser pensado, antes de

tudo, que o sujeito é um ser singular com um grau de potência. A esse grau de potência

corresponde um certo poder de ser afetado que é necessariamente preenchido pelas afecções.

Deleuze (1970, p. 50) entende por Afetos:

[...] as afecções do corpo pelas quais a potência de agir deste mesmo corpo é

aumentada ou diminuída, favorecida ou impedida. Um Afeto, a que chamamos paixão da alma, é uma idéia confusa pela qual o espírito afirma uma força de existir do seu corpo maior ou menor que antes.

Porém, quando encontramos um corpo que não concorda com o nosso (isto é, cuja relação

não compõe com a nossa), tudo ocorre como se a potência desse corpo se opusesse à nossa

potência, operando uma subtração. Nesse caso, o que acontece é que a potência de agir é

diminuída ou impedida, e as paixões correspondentes são de tristeza (Espinoza apud Deleuze,

1970, p. 40). Foi possível pensar que a potência de Isa foi sendo cada vez mais diminuída e

impedida de expressar-se devido ao abandono que sofreu e aos seus muitos anos de rua.

7 O entre aqui tem o sentido de se pensar o que pode ser produzido a partir do encontro entre a assistência e a clínica, pois o que pode surgir é da ordem de um efeito singular, ou seja, uma outra possibilidade. 8 Guattari e Rolnik (1996, pg. 29) 9 Aqui, a construção de plano terapêutico está baseado no planejamento dos CAPS, com o intuito de poder construir um percurso singular para cada sujeito, considerando as potencialidades do mesmo.

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Por outro lado, a relação que foi se estabelecendo entre paciente e terapeuta, nos

encontros de corpos10, propiciaram aberturas para que os mesmos fossem tomados por uma

mistura de afetos. Isso pôde ser observado, principalmente, em um encontro específico em que

Isa faz a seguinte pergunta para sua terapeuta: “Qual é a tua idade?”. A terapeuta lhe responde.

A paciente continua: “a mesma idade da minha filha mais velha”. Filha a qual ela não via há

pelo menos dezoito anos. Após esse encontro inesperado a paciente decidiu querer sair da rua

para poder construir uma outra vida.

A partir disso, podemos voltar para a questão levantada anteriormente que todo encontro

exige flexibilidade e abertura ao que virá. Podemos pensar que não é em todos encontros que

estamos abertos à possibilidade de nos deixar afetar pelo que virá. O encontro com o diferente

tende a desassossegar a ponto de tornar, muitas vezes, impossível tolerar os estranhamentos que

se apresentam, fazendo com que ocorra, ao invés de uma abertura, um fechamento para os efeitos

das afecções.

Nesse sentido, a pergunta da paciente fez com que a terapeuta tivesse um encontro com o

diferente, pois a destituiu de um lugar de “saber”/poder, ou seja, protegida de ter uma verdade. Já

que, historicamente entende-se que, como psicólogos, deveríamos sustentar uma certa

neutralidade, não trazendo para a relação terapêutica nada de ordem pessoal. Entretanto, ter

colocado-se num lugar de “não-saber”, foi poder viver o mal-estar, permitindo que um certo caos

se instalasse. O mal-estar se apresenta no momento em que experimentamos o caos e sentimos a

agitação provocada pela diferença (Rolnik, 1995, p. 148). Trata-se de experimentar, justamente, o

que difere, no caso, lançar-se na relação/encontro que se apresenta, arriscando e deixando-se

experimentar múltiplas sensações e diferenças que se produzem no corpo.

Ter podido abrir o corpo para a diferença, e, deixar-se invadir pelos afetos que se

apresentavam e que tomavam corpo foi a experimentação da terapeuta. Percebeu-se, que uma

outra possibilidade para a paciente apresentou-se, ficando a afirmação de que havia

disponibilidade para inventar junto com ela, trajetórias outras que não só a do sofrimento. A

partir de tal fato, pôde realizar-se uma aposta na relação com a paciente; escutá-la e respeitá-la

10 No encontro de corpos, não quer dizer encontro apenas entre corpos humanos. Esses corpos podem ser também objetos, sons, pensamentos, idéias, situações,...São considerados corpos aquilo que é capaz de produzir uma afecção. No encontro, os corpos, em seu poder de afetar e serem afetados, podem se atrair ou se repelir.

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em sua singularidade, acompanhando sua trajetória na rua e desde aí possibilitar-lhe outros

modos de existência através da composição das relações.

Deleuze (1970, p. 40) nos diz que “quando encontramos um corpo que convém com a

nossa natureza”, e cuja relação se compõe com a nossa, a potência daquele corpo se adiciona a

nós, fazendo com que a nossa potência de agir seja aumentada e favorecida. O mesmo autor ainda

fala que toda a potência é ato e ativa, pois toda a potência é inseparável de um poder de ser

afetado, e este poder de ser afetado encontra-se constantemente e necessariamente preenchido por

afecções que o efetuam.

No momento em que foi possível um outro encontro com Isa, que não só o da rua e o da

loucura instalou-se uma abertura ao máximo na capacidade de afetar e ser afetada, tanto da

terapeuta quanto da paciente. As potências puderam expandir-se, compondo-se uma com a outra,

aumentando a capacidade de ação e conseqüentemente a força de existir, pois foram favorecidas

pelas afecções de alegria que se produziram.

2 LOUCURA: A PRISÃO DO FORA

A paciente, na rua, sem ser vista, excluída, presa na loucura, com seus afetos

escapando..., sensação de irreconhecível, de estranhamento, perda de sentido, impossibilitada

de uma produção singular.

Na loucura, há uma perda de potência, fazendo com que o corpo se enrijeça de forma que

não funcione mais como condutor de intensidades. Os territórios que deveriam se constituir

através dos encontros de corpos, não correspondem mais a nenhum plano de consistência dos

afetos11. Esse é o movimento de desterritorialização, que diz respeito aos territórios perdendo a

força de encantamento, a mundos que se acabam e partículas de afeto expatriadas, sem forma e

sem rumo (Rolnik, 1989, p. 33). O contorno do sujeito vai ficando cada vez menos nítido, ou,

mais precisamente, vai acontecendo uma abertura da Dobra.

A noção de Dobra é fundamental para que se possa entender o que vem a ser um processo

de subjetivação. Segundo Deleuze (2005, p. 111), baseado na obra de Foucault, a subjetivação se

faz por Dobras. A Dobra manifesta o caráter de uma existência simultânea do dentro e do fora,

portanto, ela manifesta tanto um território subjetivo quanto o processo de produção desse

11 É o plano das forças ou intensidades que vão se compondo, com isso vão ganhando sentido, vão ganhando consistência. Está relacionado com as múltiplas intensidades que vão se estabelecendo (Deleuze, 1998 pg. 152).

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território. Por isso, é possível pensar que a Dobra constitui tanto a subjetividade como os

territórios existenciais.

O lado de Fora não é um limite fixo, mas uma matéria móvel, repleta de movimentos e de

Dobras que constituem um lado de dentro: nada além do lado de Fora, mas exatamente o lado de

dentro do lado de Fora. O lado de Fora diz respeito à força. Deleuze (2005, p. 108) nos diz que o

que pertence ao lado de Fora é a força, porque em sua essência ela é relação com outras forças:

em si mesma, ela é inseparável do poder de afetar outras forças e de ser afetada por outras, ou

seja, a força não está nunca no singular, ela tem como característica essencial estar em relação

com outras forças, de forma que toda força já é relação. Esse lado de Fora é uma batalha, é como

uma zona de turbulência e de furacão, onde agitam-se pontos singulares, e relações de força entre

esses pontos, ou seja, uma pluralidade de forças, ou uma tempestade de forças impetuosas e

violentas, onde o acaso e o abstrato lhe caracterizam.

É a Dobra que dá uma curvatura ao lado de Fora, constituindo um lado de dentro. A partir

disso, a subjetividade pode ser definida como um recurvamento dessa força solta e nômade, ou

seja, uma modalidade de inflexão dessas forças do Fora, criando-se um interior.

Por mais terrível que seja essa linha, é uma linha de vida que não se mede mais

por relações de forças e que transporta o homem para além do terror. Pois, no local da fissura, a linha forma uma fivela, centro do ciclone, lá onde é possível viver, ou, mesmo, onde está, por excelência, a Vida. [...] É como uma glândula pineal, que não pára de se reconstituir variando sua direção, traçando um espaço do lado de dentro, mas coextensivo a toda a linha do lado de fora. [...] É a câmara central, que não tememos mais que esteja vazia, pois o si nela está situado. Aqui, é tornar-se senhor de sua velocidade, relativamente senhor de suas moléculas e de suas singularidades, nessa zona de subjetivação: a embarcação como interior do exterior (DELEUZE, 2005, p. 130).

Guattari (1992, p. 29) nos diz que se, por um motivo qualquer, essa máquina de

subjetivação é ameaçada, é então toda a personalidade que pode implodir: é o caso da loucura,

conseqüentemente, é o caso da paciente em questão.

A loucura é, então, uma viagem para o Fora, um vagar no Aberto, mais precisamente,

trata-se de uma abertura brusca da Dobra, fazendo com que ocorra um vazamento selvagem, por

todos os lados, de tudo aquilo que através deu seu fino contorno ela refreava. Com isso, o sujeito

que antes curvava a força, fazendo uma Dobra do Fora, torna-se, a partir disso, um louco, sujeito

à força. Devastado por todas as forças, fracassa na constituição e reconstituição de algum

território, pois a Dobra se desfaz, abrindo-se para o Fora, tornando-se um campo aberto. O louco,

no Fora, até pode vivenciar encontros, mas é devastado e atravessado pelas forças e intensidades

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do Fora, não havendo uma produção de sentido para esses encontros vividos. Com isso, não é

possível a construção de Dobras, tendo como conseqüência mais imediata dessa reviravolta a

impressão sufocante e generalizada de que se esgotou o campo do possível, fracassando na

produção subjetiva.

Pensando em Isa, podemos entender que estava tomada pelo fluxo das forças do Fora, no

momento em que sua vida se desmontou, acabando por morar na rua e pelo tempo que na rua

permaneceu. De trabalhadora, dona de casa, mulher, mãe, moradora da sua própria casa, passou a

ser moradora de rua por dezoito anos, mais precisamente, moradora do Fora.

Com isso, o corpo do psicótico não é vivido mais como uma unidade. A dissociação

designa justamente essa falha – essa impossibilidade de restabelecer uma ligação entre as partes e

a totalidade do corpo – de modo que se trata de um corpo sem limites, sem delimitação entre um

dentro e um Fora, cujas partes podem reaparecer alucinatoriamente ou em forma de delírios.

Além disso, podemos pensar metaforicamente, junto com Pelbart (1993, p. 157), que o louco

estaria sobre areias movediças, que ameaçam permanentemente engolir o que sobre elas se

constrói.

Faz-se necessário ressaltar que a existência da loucura responde a uma exigência histórica

de enclausurar o Fora, fazendo com que ela não seja apenas uma exposição pura ao Fora, como

vínhamos falando. Ou seja, a interioridade é lançada na mais pura exterioridade, abolindo a

fronteira entre o dentro e o Fora, entre a superfície e a profundidade. É o que acontece quando a

superfície da membrana subjetiva desmorona, quando a linha do fora desaba numa profundidade

sem fundo e nela se enclausura. A respeito disso, Foucault (Deleuze, 2005, p. 104) dizia sobre o

dito louco: “ele é colocado no interior do exterior, e inversamente [...], prisioneiro no meio da

mais livre, da mais aberta das estradas, solidamente acorrentado à infinita encruzilhada, ele é o

passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem”.

Quando foi iniciado o acompanhamento com a paciente, ela estava mergulhada nesse

mundo tão desconhecido e assustador que é o Fora; mas, além disso, presa nesse Fora, pois

estava impossibilitada de falar, de ser ouvida e reconhecida em sua singularidade. A maneira

que conseguiu enfrentar isso foi através da construção de delírios e alucinações, já que sempre

estava falando “com alguém” quando a encontrávamos, mas não enxergávamos ninguém12.

12 Nós não enxergávamos, mas ela sim. Entendemos que para ela era como se ali tivesse alguém presente, então nunca foi apontado isso para ela, pois entendemos que os delírios e alucinações se fazem presente na vida do

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Partindo do entendimento que a paciente, por ser “louca”, estava presa no Fora, é que se

fazia essencial entender que o objetivo do trabalho com ela era possibilitar Dobras, ou seja,

novos modos de subjetivação para a construção de territórios existenciais.

Isso pôde começar a ser observado no acompanhamento da passagem da paciente da rua

para uma abrigagem, pois percebemos que ali existiam outras trajetórias para além das

instituídas, capazes de construir outros modos para a sua existência, desde que conseguisse

escapar da produção padronizada da loucura. Para tanto, era preciso abrir-se para as afecções,

dedicar-se, ter respeito e disposição para escuta.

Para que essa clínica aconteça, devemos sempre nos questionar como chegar ao máximo de

afecções alegres, para compor as relações que nos são apresentadas, mesmo quando a princípio,

parece não haver possibilidades como é o tradicional olhar para a loucura. Como profissionais da

saúde, que operam a subjetividade, devemos afirmar as potências, as diferenças, as

multiplicidades e as possibilidades ilimitadas do psicótico. Tornar possível a produção de Dobras

pode ser como chegar ao máximo de afecções alegres, sempre com o intuito de vitalizar o sujeito

e compor suas relações.

3 O RITMO DO DESENHO E O RITORNELO

Através das idas de Isa ao CAPS, a partir de sua saída da rua, foi possível acompanhar

sua trajetória, entendendo-a como expressão de uma nova produção subjetiva, devido a

possibilidade de experenciar diferentes maneiras de perceber e se articular com o mundo. Com

isso, pôde ser mantido com a paciente a esperança e o desejo de (re)compor seus territórios,

dando sentido à sua vida num espaço mais fluido.

Ao acompanhá-la nesses espaços, foi possível perceber seu movimento de simulação da

vida. Esse simular nada tinha a ver com falsidade, fingimento ou irrealidade, e, sim, estava

relacionado com o experimentar as intensidades, onde seus afetos se compunham e tomavam

corpo, ou seja, delineavam novos territórios. Essa composição, efeito de uma série de processos

de simulação, no caso, de experimentação que ela foi conseguindo fazer ao longo de seu percurso

terapêutico. Possibilitar esses movimentos de simulação/experimentação na clínica com a

paciente foi dar passagem para que territórios se constituíssem, ganhassem credibilidade, o que

em termos subjetivos traduz-se como sensação de reconhecimento, de familiaridade, tão psicótico como construção de si, através de algumas estratégias defensivas. Será trabalhada essa questão mais

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importante na condição da loucura. Já que o que muitas vezes se apresenta é justamente o

contrário, como a estranheza, por exemplo.

Vivenciar os vácuos e, de dentro deles, buscar matéria de expressão para

administrar as partículas de afeto enlouquecidas, dando-lhes sentido. Fazer, com tais partículas, um plano de consistência; suportar criar esse plano. Fazer a passagem e descobrir que atrás da máscara não há rosto, só necessidade de criar novas máscaras. Descobrir que atrás da máscara só há um tipo de força e de vontade: a de criar máscaras (ROLNIK, 1989, p. 80).

A partir dessa citação podemos pensar o que é um território e a importância da sua

constituição nas existências. Na medida em que as intensidades ganham ou perdem sentidos,

produzem-se mundos e/ou desmancham-se outros. E o movimento de territorialização diz

justamente das intensidades que vão se definindo através de certas matérias de expressão que

permitem nascimento de mundos.

As intensidades vividas por Isa foram ganhando corpo, na medida em que ela vinha para o

atendimento e, repetidas vezes, solicitava desenhar. Segundo Balbo (1991, p. 32), desenhar em

grego, significa: arranhar, traçar, escrever, redigir, inscrever. Desse modo é possível pensar que

desenho e escritura encontram-se muito estreitamente associados. Portanto, o seu repetido

movimento de desenhar se faz importante na medida que podemos entendê-lo como tentativa/

possibilidade de inscrição de outros modos de subjetivação para a sua existência.

Tal movimento insistente da paciente nos interessava na verdade, não do ponto de vista da

forma ou da interpretação do desenho, ou, mais precisamente, do que ele representava; e, sim, a

dimensão do seu movimento de desenhar, de expressar, de dar passagem. Com isso, questões se

fizeram presente: qual valor poderia ser atribuído a esse impulso intempestivo e intenso de

expressão? Ainda, de “onde estes desenhos tiram sua força [...] senão precisamente por serem

desenhos que têm o poder de amenizar” o sofrimento vivido por ela? (Chemama, 1991, p. 21).

Fomos buscar algumas idéias e tentar formular hipóteses para esses questionamentos na

teoria de Jean Oury, discutido por Pelbart (2000, p. 145). Em primeiro lugar, se faz necessário

ressaltar que a paciente desenhava quando ela estava vivenciando uma crise. No momento de

crise é propício que se inicie um processo de acolhimento e compreensão da produção subjetiva

que está esfacelada, desencontrada e sofrida. É preciso, nesse momento, estabelecer outras

conexões, ou seja, é tempo de explorar um canal para que o mundo subjetivo não continue adiante.

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13

insustentável, colocando o sujeito cada vez mais no Fora, restando-lhe como única via de escape

a própria loucura.

Pensar a crise é pensar o caos. Já que a crise na loucura é estar no Fora. E estar no Fora é

viver o caos.

Obstruídas as saídas, a vida fica acuada e, aí sim, há grandes chances de se

produzirem situações devastadoras: é que a qualidade da vida tem a ver com o grau com que esta se afirma em sua potência criadora, e esse grau depende do quanto se está encontrando modos de expressão para as diferenças que vão se produzindo (ROLNIK, 1998, p. 158).

O Fora, como já dito, comporta uma pluralidade de forças, ou, uma tempestade de forças

impetuosas e violentas, onde o acaso e o abstrato o caracterizam. É o não estratificado, o sem-

forma, o reino do devir, sendo o “espaço” de onde surgem os conjuntos de relações de forças.

Essas relações saem do Fora, pois o mesmo não cessa de criar novas relações de forças (Pelbart,

1989, p. 133). A errância, o deserto e o exílio são o que caracterizam o sujeito que está no Fora.

O Fora também pode ser pensado como o ponto de horror que nos fala Oury (apud

Pelbart, 2000, p. 146). Segundo o autor, o psicótico situa-se nesse ponto de horror, que também é

chamado de ponto de parada, de suspensão, em que ainda não está configurada uma imagem do

corpo. É um estado de inacabamento radical, onde não há contorno nem mesmo para o vazio. É o

Fora absoluto.

Além disso, o ponto de horror pode ser onde o ritmo surge. Para que o ritmo surja é

preciso que um segundo ponto se situe, que é o ponto cinza13. É o ponto que representa o caos, no

caso, onde as formas do caos começam a se delinear; é o ponto de um ajuntamento do que se

passou no ponto de horror, fazendo com que esse seja o ponto do corpo reconhecido.

O que precisamente está perturbado na psicose é a não passagem de um ponto ao outro. O

ritmo é o que está entre essa passagem de um ponto ao outro. A partir disso, a loucura passa a ser

um transtorno do ritmo (Pelbart, 2000, p. 147), pois para haver a passagem é preciso o

surgimento do ritmo. É possível pensar que esse é o caso da paciente quando ela vive o caos, por

conta de estar presa ao ponto de horror14, acaba sendo impossibilitada de fazer essa passagem e,

com isso, há a perturbação do ritmo.

13 Este conceito é de Paul Klee, que é discutido por Pelbart (2000, p. 145) no texto “Da Psicose”. 14 É o Fora.

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Nesse sentido a intervenção clínica deve propiciar que um ritmo se anuncie e que possa

ser sustentado; para assim, fazer com que o ponto cinza abra um universo outro que não só o da

loucura como doença. O ritmo pode nascer em qualquer momento. É nesse jogo entre os dois

pontos citados (ponto de horror e ponto cinza) que o ritmo deve acontecer. É através do jogo

sincrônico entre os dois pontos que a clínica da psicose se produz, fazendo com que o “horror

aceda ao ponto de aurora15” (Pelbart, 2000, p. 146).

Com a tentativa de explicação do que cada ponto representa, se faz possível continuar

pensando o significado do movimento de desenhar da paciente. Foi percebido que ali havia um

canal a ser explorado para que seu mundo subjetivo não ficasse tão insustentável nesses

momentos de crise.

O que podemos entender, então, é o movimento de desenhar como ritmo, que surge no

entre-dois, produzindo um caos ritmado, desde que se siga a condição de passagem de um ponto

ao outro. Com isso, o caos vai deixando de ser tão aterrador para poder representar a morada, ou

o em-casa (Deleuze & Guattari, 1997, p. 117), ou seja, o território.

Favorecer zonas de inscrição de territórios para a paciente se fez presente, isso parece ter

se dado através do evocar da hiper-sensibilidade dela no desenhar, que fala do acesso direto a um

lugar de produção que seria, segundo Oury (2000, p. 147), o lugar do ritmo. Segundo Pelbart (p.

151), o ritmo é o meio em que as coisas são na sua certeza, é o existencial. O ritmo é como o

fundo do mundo. O ritmo é o movimento essencial de uma obra, tendo o entendimento que a

produção da existência se dá como obra de arte, afirmando uma potência criadora. Na psicose, a

grande obra é o si mesmo, pois o sujeito está num esforço constante de construção e reconstrução

diante da ruína e catástrofe de seu mundo. Essa necessidade de Isa criar/criar-se era nitidamente

observada na sua vontade de desenhar.

Seguindo essa idéia, enquanto a paciente estava vivendo o caos, ainda não era uma obra

que se fazia presente, sendo, antes, uma ausência de obra, porque o que é difícil do psicótico

suportar é o vazio, mas, que parece ser tudo o que ele tem. Aí é que é preciso um ajuntamento,

um automovimento da ritmação. É como se eles, os psicóticos tivessem perdidos no mundo, e, o

ritmo, quando consegue manifestar-se, fala da existência desses sujeitos no mundo. Aí é que o

movimento de desenhar ganha uma importância tamanha na vida de Isa – passagem para uma

obra.

15 Podemos pensar o ponto de aurora como a Dobra subjetiva.

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Um território pode se constituir no momento em que há a expressividade do ritmo. Em

outras palavras, a territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo. Então, o ritmo só acontece

e torna-se expressivo através da formação de matérias de expressão, que, no caso da paciente, se

manifestava através do desenho.

Com isso, o movimento de desenhar da paciente, em nosso entendimento, caracteriza-se

como um ritmo, um ritornelo16, pois esse desenhar pode dizer da possibilidade de construção de

uma territorialidade da paciente. Num sentido geral, chama-se de ritornelo todo conjunto de

matérias de expressão que traça um território e que se desenvolve em motivos territoriais.

(Deleuze & Guattari, 1997, p. 132). A partir deste conceito de ritornelo, podemos cogitar que nas

ocasiões em que a paciente se colocava a desenhar em momentos de crise, tratava-se de um

movimento de constituição de um território que parecia se produzir, já que é o ritornelo que

marca um território, garantindo sua consistência. Seu desenhar dizia do retorno de um elo que

fazia e permitia conexões para que não desabasse de vez na loucura e pudesse, portanto, constituir

um modo existencial outro de relacionar-se com o mundo que não só o da loucura.

Deleuze e Guattari (1997, p. 117) falam de três movimentos que estão presentes no

ritornelo e que iremos pensar como foram acontecendo e sustentando-se com a paciente.

São três aspectos numa só e mesma coisa, o Ritornelo. [...] O ritornelo tem os

três aspectos, e os torna simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora. Ora o caos é um imenso buraco negro, e nos esforçamos para fixar nele um ponto frágil como centro. Ora organizamos em torno do ponto uma “pose” (mais do que uma forma) calma e estável: o buraco negro tornou-se um em-casa. Ora enxertamos uma escapada nessa pose, para fora do buraco negro.

Primeiro movimento: a busca da paciente pelo desenho. Isso era percebido, pois quando

ela encontrava-se com sua terapeuta, enquanto estava vivenciando uma crise, imediatamente

convidava-a para desenhar. Podemos dizer que a psicose não é uma eliminação do Eu, antes é

obra sua e que ela é o preço pago pela sobrevivência. Este era o papel que tinha o desenhar nesses

momentos de caos. Era uma necessidade que se fazia presente enquanto ela estava imersa no

Fora. Segundo movimento: os momentos em que ela estava desenhando e o desenho propriamente

dito. O seu delírio era transformado em desenho. Esses momentos eram organizadores do caos.

Ela conseguia, mesmo imersa no caos, encontrar aí o ritmo que se expressava através da

construção de um território calmo e estável, ou seja, o lugar do “em-casa”, da “morada”, do

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território. Com isso, o desenhar adquire a dimensão da territorialidade, que permite que ela

suporte o caos do Fora, do delírio. Através dessa territorialidade é que a Dobra se faz. Terceiro

movimento: após desenhar ela continuava mostrando a marca intensa de poder viver,

reconhecendo-se como autora de si mesma, podendo fazer diferente, podendo tirar de si um

pouco o delírio, no momento em que coloca-o nos desenhos. Esse movimento de territorialização

e expressão que se mostrava através de sua fala não tão delirante, fala da possibilidade de abrir-se

novamente para o Fora sem entrar no ponto de horror, no caso, sem desabar num dentro absoluto,

tendo como conseqüência uma parada do processo. E assim, podendo ter uma relação com o Fora

que consiga propiciar um permanente processo de subjetivação, um permanente devir-outro, em

que mudam os contornos do campo em que se reconhece. Como já dito anteriormente, em crise, o

desenhar vinha como uma necessidade, um impulso que tomava conta, um movimento

inconsciente, uma tentativa de sair do Fora absoluto.

A partir disso, é entendido que o ritornelo é o ritmo que se torna territorializado no

momento em que o mesmo é tornado expressivo. A constituição de um território e de dobras diz

de um reagrupamento das forças que estavam soltas no caos. Então, no território há sempre um

lugar onde todas as forças se reúnem. É interessante pensar que esse centro intenso das forças

reagrupadas está ao mesmo tempo no próprio território, mas, também, fora dos vários territórios,

pois é necessária a relação com o Fora para que seja possível abrir o corpo a conexões,

deslocamentos, passagens, territorializações. Como nos diz Lancetti (2007, p. 12), “é outra

subjetividade que aí se esboça, talvez mais fluxionária [...] com seus processos de recomposição

intensiva sempre em andamento e abertos à exterioridade”.

A partir desses três movimentos do ritornelo que acontecem simultaneamente entende-se

que a paciente pôde ir das “forças do caos às forças da terra; dos meios ao território; dos ritmos

funcionais ao devir-expressivo do ritmo” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 131). Tal idéia permite-

nos pensar a loucura como processo, fazendo-se essencial a relação com o Fora. Para Isa, estar

em relação com esse Fora era uma abertura que dependia dela suportar ou não o caos. Era uma

possibilidade de suportar a violência das diferenças que aí se engendravam, sem associá-las ao

perigo de desintegração.

Com isso ela vai deixando que, pouco a pouco, uma máscara possa ir construindo-se em

seu corpo, de modo a compor um plano de consistência para seus afetos, já que nos momentos de 16 Passaremos rapidamente pelo conceito de ritornelo que nos traz Deleuze e Guattari. Já que este é um conceito

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crise o sujeito se encontra devastado por todas as forças, fazendo com que os afetos escapem,

fracassando na constituição de um território.

Além do desenho, também podemos ressaltar a participação da paciente em uma oficina

de música17, podendo também ser entendido o seu movimento de cantar como um ritornelo, no

momento em que lhe possibilita a demarcação de um território, através desse tipo de expressão.

Dessa forma, o sentido que a música tinha para ela se aproxima da idéia que nos traz

Pelbart (1993, p. 147) de que a “obra do psicótico” é si mesmo, pois seu processo criativo

consiste numa reconstrução de si, onde ocorra uma auto-invenção, muito mais que uma

descoberta de si. A impressão que se tinha era que entrar em contato com algumas músicas18 (e a

maioria delas que falam sobre a loucura) estava relacionado com a constituição de um espaço

onde ela podia estabelecer novas relações e experiência de vida. Com isso, ela vai descobrindo a

si mesma, com a possibilidade de o seu mundo subjetivo ir se sustentando.

A sua voz que em geral era desprezada porque não se “ouvia” – questão comum de

acontecer na loucura, já que a voz do “louco” parece sair de sintonia com a realidade, pois não se

tem interesse em dar sentido ao que dizem – encontra aí, no espaço de uma oficina de música, um

efeito extraordinário, uma ressonância, uma eficácia na possibilidade de produção de vida e de

outros modos de subjetivação.

Então, no movimento de desenhar e cantar ia tecendo a si mesma, no caso, sua

subjetividade estava em obra em meio a necessidade de sempre estar operando com novas formas

de expressões e com cartografias até então inexistentes. Era uma produção: de obra, de

subjetividade, de rupturas e mudanças na trajetória de sua existência.

Portanto, o que esse caso nos remete a pensar, é o desafio da travessia que a paciente e a

terapeuta percorreram nos momentos de desenhar, e também de cantar, onde nossa “errante” foi

permitindo-se vencer a imensa força de resistência contra o caos promovido pelo terror. Só

vencendo essa força que se tornou possível desobstruir o acesso à experimentação do devir19:

complexo. Apenas levantaremos uma hipótese. 17 A música que ela sempre cantava na oficina era Maluco Beleza, de Raul Seixas, principalmente o seguinte trecho: enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual; eu do meu lado aprendendo a ser louco, um maluco total, na loucura real; controlando minha maluquez, misturada com minha lucidez [...]”. 18 A maioria das músicas que ela gostava falavam sobre a loucura. Outra, muito pedida por ela é Balada do Louco, dos Mutantes. 19 Devir, segundo Deleuze e Parnet (1998, p. 10) é a captura de intensidades que se dá no entre dois. Os autores falam que a idéia de encontro se aproxima da de devir, no sentido que encontrar é achar, capturar, roubar. Aqui, o devir tem esse sentido de poder se deixar encontrar com a diferença, que não só a loucura enquanto doença, e poder experimentar capturar as intensidades dos corpos que está encontrando.

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descobrindo que essa experimentação não era necessariamente desintegradora, podendo assim ser

ativada na afirmação de sua subjetividade. O desenhar possibilitou um novo modo de

subjetivação feito da ativação da potência criadora, criando territórios que foram lhe

corporificando, que foram possibilitando a produção de Dobras. Com isso fica a questão de ela

ser a operadora de sua existência construída como uma obra de arte.

4 (DES)DOBRAMENTOS

Através das intensidades vividas pela paciente que, muitas vezes, foram difíceis de

acompanhar e na surpreendente condição de encontrá-la em diversos lugares20, compondo

diversos cenários, onde essas suas intensidades vão podendo ganhar expressão, que lhe vem a

possibilidade de oxigenar o que há de mais humano: a necessidade de dar sentido a sua

existência.

Com o tempo, Isa foi substituindo o desenhar e o cantar, pelo falar. Nos atendimentos que

foram se configurando, era percebido que os seus relatos, a princípio, não seguiam um fluxo

linear, mas, tinham constância, contextualização e veracidade, apesar das pessoas acharem que

não faziam sentido, pois volta e meia ela continuava a ser chamada de “louca”. Não seguiam uma

linearidade, porque ela falava muitas coisas ao mesmo tempo, que eram difíceis de ser

acompanhadas. No exercício de estar disponível para escutá-la era possível perceber o quanto

seus relatos eram intensivos. Ao invés de entendê-los como sem sentido e sem explicações,

preferia vê-los como restos de verdade, que se aproximam do que nos diz Biehl (2005, p. 17): são

“códigos de vida”, através dos quais a pessoa abandonada tenta agarrar-se ao real. Os fragmentos

trazidos em seus relatos eram espaços em que seu destino era repensado e seu desejo tinha a

possibilidade de ganhar uma nova moldura.

Isso pôde ser percebido com a paciente, em alguns momentos, através da construção de

explicações para seus delírios, mesmo que essa explicação fosse também delirante. Ela

conseguia, junto comigo, ou sozinha montar uma explicação para seus delírios e alucinações, me

remetia a um movimento de buscar certas âncoras fundamentais tais que dessem sentido a sua

existência. Um exemplo disso foi quando ela disse que havia levado “sua casa com um pé de

cabra para outro lugar”. Ela havia perdido tudo (casa, amigos, família, lugar social, etc). Com

essa fala, de seus atendimentos, aumentou suas conexões com o mundo que haviam sido

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interceptadas pelo processo de adoecimento, permitindo a produção de um novo sentido e do

rumo de sua existência, para poder continuar vivendo, mesmo diante de tanto sofrimento. Seu

passado ia ganhando forma, na medida em que ela ia trazendo novos dados de sua história,

mesmo que através de construções delirantes. Com isso, foi se produzindo seus territórios

existenciais.

Neste processo, nas nossas “conversas” apresentava o desejo de reconstruir sua vida

afetiva como mãe, ter o seu lugar para morar, poder cuidar de suas coisas e assim por diante.

“Quando eu tiver minha casa, será que posso pegar de volta minhas coisas que estavam na casa

onde eu morava antes de sair de lá?”. Desejava fazer algo valorizado socialmente, como por

exemplo, a vontade de trabalhar. Aos poucos foi conseguindo organizar-se para que essa sua

vontade se concretizasse: continuou freqüentando o Centro da cidade, mas agora, para vender

pinças. Com o dinheiro que conseguia através de esmolas, comprava pinças e vendia pelo dobro

do preço.

Poder ter percebido que, na vida de Isa, existem outros afetos legítimos que não só o de

uma relação com os sintomas da psicose, como valorizar a relação com a arte (música e desenho),

apoiar sua vontade de trabalhar, participar de movimentos de seu mundo, permitiu, a

possibilidade de criação de novas produções de sentido.

Foi somente com a condição de que era possível seguir descobrindo algo novo em sua

história, que não fosse apenas estranheza e violência, como tão freqüentemente acontece, que sua

loucura pode mostrar seu verdadeiro rosto: o de uma relação diferente com o mundo, e, mesmo

cercada em sua estranheza, mostrar sua diferença.

Essa clínica proposta com a paciente tem convocado a abrir mão da interpretação da

loucura como erro, incapacidade, inferioridade e doença mental, e, sim, poder colocar questões

como as do lugar social do sujeito em sofrimento psíquico, suas potencialidades e possibilidades,

sua autonomia diante da vida, sua diferença e assim por diante. Potencializar a loucura como

diferença, isto é, como um modo diferente de relação com o mundo, através de uma abertura para

multiplicidades que permita, como nos diz Amarante (2001, p. 82), “a manifestação do devir-

louco sem interditar sua expressão, sem regulá-lo no jogo das sanções institucionais e legais ou

objetificá-lo, fazendo com que se desistorize e deixe de ser um sujeito”.

20 A idéia de lugar aqui não quer dizer apenas espaço físico, e sim o como a paciente se coloca em suas situações vividas.

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A “cura” tornou-se, então, a ação de produzir subjetividade e sociabilidade, isto é, poder

mudar a história de Isa, conseqüentemente, passou a mudar a história de sua própria doença.

Deve ser proposta uma inversão que coloca a loucura como doença entre parênteses para tornar

possível lidar com o louco como sujeito. O fazer neste trabalho estava relacionado ao multiplicar

as formas de conexão, de linguagens, de abordagens e de entendimento. Como nos diz Guattari

(1992, p. 201), a cura não é uma obra de arte, mas deve proceder do mesmo tipo de criatividade.

Então, foi através de elementos múltiplos como o desenho, a música, a fala que as Dobras

subjetivas da paciente foram se constituindo. Como terapeuta, foi essencial propiciar a passagem

das intensidades que foram ganhando corpo através de um movimento de poder “mergulhar na

geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia” (ROLNIK,

1989, p. 67).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca de vivenciar possibilidades, criando outras formas de viver produtoras de novos

modos de subjetivação foi o que moveu o acompanhamento a paciente para (re)construção de

seus territórios existenciais. Foi percebido então, que não existia uma fórmula pronta para tais

questões. Houve uma tentativa de ocupar espaços visando a potencialização e desobstrução das

forças que adoeciam a paciente, que extraíam dela a capacidade criativa. Esses espaços se deram

na tentativa de compor com ela a (re)constituição de um lugar subjetivo singular, propondo meios

que favorecessem novas possibilidades de interlocução e de sentido para sua vida.

É desses enlaces do sujeito entre o Dentro/Fora que torna-se possível a criação de novos

itinerários, de mais ruas que clausuras; mais fluxos que fixidez; mais escuta que contenções; mais

coloridos que escuridão; mais tensão que passividade; mais diversidade que normalização; mais

metamorfose que estagnação; mais autonomização, mais acolhimento, mais sensibilidade e, para

além da doença e do sofrimento, mais saúde, mais alteridade, mais subjetividades criadoras.

É nesse palco de contradições e sobre esse fio chamado “vida” que a paciente foi se

equilibrando, passo a passo, para fazer frente aos inúmeros desafios de um mundo ainda pouco

protagonizado por ela. Fez um trajeto exatamente como nos diz Dalmolin (2006, p. 203), na

“corda-bamba”, no desassossego, por vezes tão doloroso, mas que ela mostrou o encanto pela

vida e pela liberdade, e também, fez vislumbrar a “esperança equilibrista” (Dalmolin, 2006, p.

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21

203) de poder serem encontrados outros lugares cada vez mais dignos e condizentes com a

complexa trama da vida.

As Dobras subjetivas da paciente foram construídas através do movimento de adentrar

nos labirintos da própria vida. Ao tentar comunicar, recordar, cantar, desenhar ela preservava

algo único, sobrevivia ao intolerável e não se submetia ao impossível.

THE CLINIC OF THE INSANITY AND THE PRODUCTION OF THE FOLD

Abstract:

The present essay raises issues concerning the clinic of the insanity. When in contact with the psychosis, it becomes necessary to think in devices that may serve as to new sense productions and therefore, give space to productions of other existential territories to the “insane” subjects. Which would be directly connected with the subjective production of themselves. It is made necessary, as we understand that the psychotic is stuck in the Outside, that is, it’s as if one felt a dissolution of one’s self in the world, because of innumerous forces of the Outside that crosses that one. The subjectivity can be defined as a way of bend of forces of this Outside, that creates an interior. This interior is the Outside itself, that is, Fold of the Outside. From the description of a case the interventions offered at the clinic with the patient are presented with the purpose of creating/inventing new ways for her to connect with the world. It was through some clinical strategies that the patient was able to produce Folds, that is, produce other ways of subjectivation for her existence.

Key words: Clinic. Insanity. Subjectivity. Production of the Fold.

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