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A CIDADE-PERSONAGEM NO CINEMA DE JIA ZHANG-KE
MARCOS ANTÔNIO DA SILVA FERREIRA1 RESUMO: O cinema é uma arte predominantemente urbana e tem sido analisado e explorado pelas múltiplas linguagens do conhecimento científico como instrumento analítico da contemporaneidade. Mesmo na sua gênese, a cidade esteve presente em múltiplas instâncias do universo cinematográfico, seja como espaço de maior concentração das salas de exibições ou como palco documental e ficcional das narrativas fílmicas. Além de produzir e influenciar uma experiência sensorial e subjetiva do cotidiano. Com as aproximações teóricas e metodológicas tensionadas pela intertextualidade entre a Geografia e o cinema, que proporciona novas perspectivas possíveis e diversas de se ler a paisagem, a imagem em movimento tornou-se texto codificado, capaz também de ser decifrada. Os filmes são documentos culturais que produzem significados, ao mesmo tempo em que evidenciam os padrões espaciais, são capazes de reproduzir paisagens urbanas, ou criar novas, ao escolherem determinada cidade como palco de seus enredos. Na cinematografia de Jia Zhang-Ke, diretor inserido na sexta geração do cinema chinês, a cidade, além de ser pano de fundo imprescindível para se narrar as histórias, consegue também ser uma personagem presente no discurso fílmico. Dessa forma, esse trabalho intenta discutir a cidade-personagem no cinema de Jia Zhang-Ke, a partir da leitura da paisagem urbana cinemática como texto. Para isso, faz-se necessário apresentar a intertextualidade entre a Geografia e o cinema nos estudos da paisagem urbana cinemática; propor uma análise fílmica dos filmes “O Mundo” (2004) e “Em Busca da Vida” (2006); entender a relação entre o espaço urbano cinemático e a cidade não-ficcional a partir das representações espaciais, sociais e culturais nos filmes propostos; e, por fim, destacar, no plano do discurso, a cidade como personagem da trama. Enquanto aporte metodológico, foram realizadas decupagens de ambas as obras, cena por cena, utilizando os conceitos e definições da própria linguagem cinematográfica como meio para se compreender a paisagem urbana e a sua representação. Assim, nos filmes de Jia Zhang-Ke, a cidade não é lida somente como palco das contradições da sociedade e dos anseios das personagens, mas é também uma imagem que transcende as escalas do real, tornando-se, per si, personagem da trama. É pelo discurso aparente das histórias ficcionais, seja pela temática do amor ou da incomunicabilidade na era da globalização, que a cidade é lida, representada e vivida na contemporaneidade. Portanto, espera-se que este trabalho possa contribuir com as discussões acerca dos estudos da cidade sob a ótica cinematográfica, e que consiga tensionar, nas suas múltiplas escalas, cada vez mais a aproximação da Geografia com as artes. Palavras-chaves: Cidade-personagem. Paisagem Urbana Cinemática. Geografia. Cinema. Jia Zhang-Ke.
ABSTRACT: Cinema is a predominantly urban art and has been analyzed and explored by the multiple languages of scientific knowledge as an analytical instrument of contemporaneity. Even in its genesis, the city was present in the multiple instances of the cinematographic universe, either as a space of greater concentration of the exhibition rooms or as a documentary and fictional stage of the film narratives. In addition to producing and influencing a sensory and subjective experience of everyday life. With the theoretical and methodological approaches tensioned by intertextuality between geography and cinema, which provides possible new and diverse perspectives to read the landscape, the moving image has become encoded text also able to be deciphered. Films are cultural documents that produce meanings while at the same time evidencing spatial patterns, they are capable to reproduce urban landscapes or creating new ones by choosing a particular city as the stage of their entanglements. In the cinematography of Jia Zhang-Ke, director inserted into the sixth generation of Chinese cinema, the city, besides being the indispensable background to narrate the stories, also manages to be a character present in the filmic discourse. So, this research intends to discuss the character-city in Jia Zhang-Ke’s
1 Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail de contato: [email protected].
films, from the reading of the cinematic urban landscapes as a text. For this, it is necessary to introduce the intertextuality between Geography and cinema in the studies of the cinematic urban landscape; to propose a film analysis by "The World" (2004) and "Still Life" (2006); to understand the relation between the cinematic urban space and the nonfiction city from the spatial, social and cultural representations in the proposed films; and finally to emphasize in the plane of the discourse, the city as a character of the story. As a methodological contribution, both films were performed, scene by scene, using the concepts and definitions of the cinematographic language itself as a means to understand the urban landscape and its representation. Therefore, in Jia Zhang-Ke’s films, the city is not only read as the stage of the contradictions of society and the desires of the characters, but is also an image that transcends the scales of the real, becoming, per se, a character of the story. It is by the apparent discourse of fictional stories, whether by the theme of love or incommunicability in the era of globalization, that the city is read, represented and lived in contemporary times. Thus, it is hoped that this research can contribute to the discussions about the studies of the city from the cinematographic point of view, and that it will be able to tensioned in its multiple scales the approach between the Geography and the arts. Keywords: Character-city. Cinematic Urban Landscape. Geography. Cinema. Jia Zhang-Ke.
1 – Introdução
O presente trabalho busca compreender, a partir da intertextualidade entre a
Geografia e o cinema, os caminhos teóricos e metodológicos de como a paisagem
urbana cinemática é representada e concebida enquanto cidade-personagem nos
filmes de ficção O Mundo (2004) e Em Busca da Vida (2006), ambos do diretor chinês
Jia Zhang-Ke.
Para isso, priorizou-se tensionar as interrelações existentes entre o espaço
urbano cinemático e a cidade não-ficcional mediante as representações espaciais,
sociais e culturais nos filmes propostos; destacar os aspectos que configuram a cidade
enquanto personagem; e, por fim, realizar uma decupagem fílmica estritamente
geográfica que equipara a importância do espaço cinemático à narrativa.
Segundo Costa (2002; 2005; 2009; 2013), a arte cinematográfica é produto do
crescimento urbano, tecnológico e cultural do século XIX. A cidade tornou-se, ao longo
das complexificações das relações sociais modernas, agente produtora do imaginário
urbano, seja no desenvolvimento das narrativas fílmicas ficcionais ou documentais
capazes de projetar representações espaciais de lugares até então já existentes ou
mesmo recriar novas experiências urbanas completamente singulares.
Dessa forma, ao longo da história do cinema, a cidade não se limitou apenas a
compor cenários das narrativas fílmicas. As problemáticas urbanas vivenciadas
pelos(as) cineastas nas grandes metrópoles do século XX conduziram à cidade ao
protagonismo narrativo das suas próprias tramas.
Portanto, há uma sensibilidade geográfica dos filmes ao conduzirem a cidade
enquanto personagens nas suas próprias narrativas. Tal perspectiva, além de propor
uma leitura acerca das contradições do espaço urbano, ainda nos possibilita refletir
sobre os discursos e as ideologias que atravessam às relações sociais no mundo
hodierno.
2 – Caminhos teóricos e metodológicos para se pensar a intertextualidade entre
a Geografia e o cinema
Filme não é simplesmente um reflexo da realidade. Ele é capaz de “reunir
significados intertextuais que devem ser entendidos em face de outras representações
e realidades que porventura tenham relação direta ou indireta com seu conjunto”
(COSTA, 2013, p. 249). Não há uma verdade objetiva e exclusiva de se olhar e
interpretar qualquer que seja uma dada representação artística.
A sensibilidade do olhar sobre uma obra perpassa pelos conflitos entre a
intencionalidade do autor e o contexto social, político e cultural do espectador.
(OLIVEIRA FILHO, 2014). A construção cinematográfica de um produto audiovisual
não deve ser considerada como acrítica ou imparcial, pois
(...) escrever sobre o mundo revela tanto sobre nós mesmos quanto sobre os mundos representados (...). Quando escrevemos, o fazemos de um necessário contexto local. O mundo que representamos é inevitavelmente estampado com nosso próprio conjunto particular de interesses, perspectivas, normas, entre outros (...). O ponto principal é que quando “falamos como se é”, nós também estamos “falando como nós somos” (tradução nossa). (BARNES; DUNCAN, 1992, p. 3).2
Dessa forma, a arte cinematográfica na perspectiva geográfica não pode ser
considerada somente como mimese da realidade, mas sim enquanto processo
constitutivo onde novos mundos e contextos são produzidos. É com essa perspectiva
interpretativa do discurso fílmico que a Geografia ressignificou o cinema enquanto
2 (...) writing about worlds reveals as much about ourselves as it does about the worlds represented (...). When we write we do so from a necessarily local setting. The world we represent are inevitably stamped with our own particular set of local interests, views, standards and so on (...). The broader point is when we “tell it like it is” we are also “telling it like we are” (BARNES; DUNCAN, 1992, p. 3).
aporte teórico e metodológico, capaz de nos conduzir múltiplas leituras de mundo a
partir das imagens em movimento (COSTA, 2013; DUNCAN; LEY, 1993).
Corroboramos com a assertiva dos geógrafos da renovação da Geografia
Cultural, Cosgrove e Daniels (1988) e Duncan e Ley (1993), acerca da pluralidade de
interpretações sobre o espaço geográfico para além das formas matemáticas e suas
quantificações. Outras perspectivas também demonstram reflexões nas quais o
próprio espaço geográfico pode ser apreendido como discurso, seja no âmbito da
literatura, da fotografia ou do próprio filme. “As representações e o espaço devem ser
pensados não como simples ilustrações ou imagens ‘retiradas’ da realidade concreta,
mas como partes constituintes do significado dessa mesma realidade” (COSGROVE;
DANIELS, 1988, p. 29).
Assim, um único filme pode conter diversas acepções, pois as representações
visuais são essencialmente mais uma interpretação do que uma cópia imperecível da
realidade (PRYSTHON, 2014). O cinema, ao mesmo tempo em que evidencia padrões
espaciais, implícita ou explicitamente, representa o que é o espaço urbano ao propor
determinada cidade como palco de seus enredos.
Com isso, a cidade cinemática, proposta por Costa (2005) e Clarke (1993),
adquire sentido através do movimento, da montagem e do espaço narrativo. O cinema
é, portanto, capaz de reproduzir sensações e sentimentos relacionados à experiência
subjetiva de cada sujeito nas múltiplas escalas do espaço geográfico.
A cidade cinemática nos ajuda a compreender o significado da imagem real.
Por ser uma representação cultural, ela é preenchida por imagens e símbolos que
moldam nossa visão de mundo e da própria cidade não-ficcional. Ela é, assim como
a paisagem, uma construção histórica advinda de nossas práticas socioespaciais que
revela a maneira como percebemos a realidade que nos cerca.
A percepção das formas espaciais da paisagem urbana é guiada e
condicionada por um filtro cultural, portanto socialmente mediadas por valores
afetivos, esotéricos, religiosos ou científicos, que fortalecem a identidade do lugar
(BONNEMAISON, 2002; CORRÊA, 2007; COSGROVE, 2012).
O que corrobora com a assertiva de Cassirer (2001) ao ressaltar que a
paisagem também pode ser lida como forma simbólica permeada de valores e
significados. Deve ser considerada associada às transformações culturais,
econômicas, sociais e políticas envolvendo a apropriação e o controle do espaço
geográfico. Segundo Cosgrove (1993; 2012), o seu sentido é estritamente político,
constituída de uma ideologia visual. “Um poderoso meio através do qual sentimentos,
ideias e valores são expressos” (COSGROVE, 1993, p.8).
Diante dos autores apresentados, para se apreender a cidade para além dos
palcos narrativos, concordamos ainda com Aumont e Marie (2004) em discorrer uma
análise fílmica dos filmes a partir da própria linguagem e dos códigos
cinematográficos. Os planos, os movimentos da câmera, a mise-en-scène, a
profundidade de campo, as locações e os diálogos configuram e exponenciam a
cidade enquanto personagem nos filmes.
Diante disso, concordamos também com Costa (2013), e na sua proposta de
intertextualidade entre a Geografia e o cinema, ao dispor de um elemento importante
para interpretar um filme sob a sensibilidade do olhar geográfico: entender a
conjuntura histórica, social e política da paisagem representada.
Ao consideramos o filme enquanto uma obra de arte, utilizamos as etapas
interpretativas de Panofsky (2004) para apreender as dimensões simbólicas da
imagem fílmica: 1) a pré-iconografia, que consiste em reconhecer os elementos
visuais que compõem o objeto a ser estudado; 2) o estudo iconográfico, que provém
da interpretação dos elementos estabelecidos pela imagem; 3) a análise iconológica,
momento no qual identificamos o contexto histórico, político e cultural dos símbolos
presentes na obra artística. Por fim, propomos neste trabalho também uma reflexão
geográfica sobre a decupagem fílmica, ao elencar e compreender o espaço
cinemático como agente imprescindível para se narrar uma história ficcional.
Esperamos que nossas considerações possam tensionar, cada vez mais, os
múltiplos caminhos teóricos e metodológicos para se ler a paisagem urbana através
do cinema. Há uma Geografia presente na arte cinematográfica, assim como um
cinema presente na Geografia.
3 – A cidade-personagem nos filmes “O Mundo” (2004) e “Em Busca da Vida”
(2006) do realizador chinês Jia Zhang-Ke
O desejo de discutir o cinema de Jia Zhang-Ke tende, a priori, de sua profícua
relação com as temáticas contemporâneas que atravessam o mundo a partir do seu
próprio contexto geográfico e político: as intensas transformações de uma
globalização chinesa incessante e incontrolável estabelecida desde a implementação
das metas econômicas idealizadas por Chu En-lai, primeiro-ministro, conhecidas
como as Quatro Modernizações.
Após o fim da Revolução Cultural, Deng Xiaoping, secretário-geral do Partido
Comunista Chinês e líder supremo da República Popular da China entre 1978 e 1992,
inicia a Era das Reformas (1978-1982), um conjunto de obras e sistemas técnicos
faraônicos que estabeleceram a abertura chinesa para a economia de mercado.
Fengjie, uma cidade com mais 500 mil habitantes, teve parte do seu espaço
urbano submerso mediante a construção da Represa Três Gargantas. E Pequim,
capital da República Popular da China e uma das metrópoles mais populosas,
construiu o parque temático The World com os geossímbolos turísticos da Torre Eiffel,
as pirâmides do Egito, o Central Park, dentre outros.
Jia Zhangke pertence à chamada sexta geração do cinema chinês, herdeira da
Revolução Cultural. São os narradores da abertura econômica, da construção e das
consequências do socialismo de mercado, oferecendo vislumbres de suas margens,
de suas fraturas e fissuras, de suas contradições, tensões e exclusões constitutivas.
Seu cinema é caracterizado por apresentar uma memória espacial e temporal de
personagens marginalizados pelo avanço iminente da globalização. A cidade em seus
filmes transcende a relação de simples plano de fundo narrativo e torna-se
personagem fundamental, e até mesmo protagonista, da trama.
Em “O Mundo” (2004), a cidade está presente no discurso, nas imagens e
enquanto personagem. O filme acontece no parque The World, em Pequim, que
oferece a seus visitantes a possibilidade de conhecer os principais pontos turísticos
dos cinco continentes sem sair da cidade: "Dê-nos um dia e lhe mostraremos o
mundo", é o que se lê na entrada. Com a predominância dos planos-sequência
vinculados à tentativa de experienciar o cotidiano das personagens que trabalham e
fazem o Parque funcionar, a paisagem urbana cinemática de Pequim é também
apresentada para além dos muros do Parque, mas em constante (des)construção.
Figura 1, 2, 3 e 4: Frames do filme “O Mundo” e os respectivos geossímbolos do Parque.
Tais (des)construções do espaço urbano cinemático nos permite refletir sobre
uma cidade que ainda está em expansão. O contraste entre a paisagem do Parque e
a da cidade representa as tecelagens das dinâmicas entre o local e global na trama
das personagens.
Figura 5 e 6: Frames do filme “O Mundo” e o contraste entre a paisagem cinemática de Pequim em
constante (des)construção.
A Pequim cinemática se faz presente como uma personagem de simulacros,
sintética. Ela atende as demandas de uma globalização desenfreada que reproduz a
incomunicabilidade entre as personagens. Entre a solidão e o acontecer da vida
urbana em uma das maiores metrópoles e mais populosas do mundo, somos
apresentados a uma cidade que devora a intimidade.
No filme “Em Busca da Vida” (2006), a antiga cidade de Fengjie ficou submersa
para a construção da Represa Três Gargantas, no rio Yangtze. Han Sanming (Han
Sanming) é um trabalhador de minas de carvão que viaja até o local para reencontrar
sua ex-mulher, a qual não vê há 16 anos. Simultaneamente Shen Hong (Zhao Tao),
uma enfermeira, também retorna à Fengjie na intenção de procurar seu marido que
não vê há 2 anos.
Os primeiros quinze minutos do filme já informam ao espectador do que está
por vir: a cidade de Fengjie não existirá mais no mapa. Não há romantismo na
condição social das personagens, apenas em suas memórias. A paisagem
apresentada é de constante destruição, coberta pelas cinzas dos prédios. O rio
Yangtze, sempre presente nas cenas com uma vegetação verde rasteira, transforma-
se numa ameaça silenciosa.
Han, ao aterrissar em Fengjie, procura pela Rua do Granito, número 5, distrito
onde viveu com a sua ex-mulher, e descobre que o local já não existe mais no mapa.
Através do diálogo entre dois personagens, obtemos informações históricas da cidade
e a sua relação com a Represa Três Gargantas.
Figura 7 e 8: Frames do filme “Em Busca da Vida” que indicam a altura em que o Rio Yangtze atingirá
a cidade de Fengjie.
Apesar da ameaça iminente do Rio, a rotina em Fengjie permanece intocável.
As pessoas continuam morando entre as demolições. E não por apego à cidade, mas
por ter ali a única subsistência miserável possível.
O filme possui longos planos abertos e fixos, de longas minutagens, para
apresentar e expor a atmosfera em ruínas que aflige a cidade cinemática de Fengjie.
É quase uma espécie de documentário ficcional sobre a paisagem urbana em
demolição, cujas personagens estão sempre com seus corpos enquadrados em cena.
Ao trocarmos de protagonista, mudamos também a visão que temos da cidade.
Fengjie, sob a perspectiva de Shen, é muito mais moderna do que foi até então nos
apresentada. A personagem encontra-se do outro lado do Rio, local até então não
atingido pela construção da Represa.
Figura 9, 10, 11 e 12: Frames do filme “Em Busca da Vida” que apresentam as duas facetas da paisagem urbana cinemática de Fengjie.
O filme termina com a voz off de uma guia turística que destaca, num tom
irônico, os pontos positivos da modernização: “Graças a Represa Três Gargantas, os
olhos do mundo estão de novo neste lugar. A Represa têm sido uma meta de nossos
líderes de Partido por muitos anos. As pessoas que aqui vivem também fizeram um
grande sacrifício. E em primeiro de maio de 2006, o nível da água aqui subirá para
156.3 metros. Estas pequenas casas que vocês veem ficarão submersas.”
4 – Conclusões
A cidade sempre esteve presente no cinema como pano de fundo para se narrar
determinadas histórias. Contudo, em alguns filmes em específico, ela converte-se
além de uma simples paisagem fílmica para tornar-se personagem da trama.
No cinema de Jia Zhang-Ke, especialmente nos filmes “O Mundo” e “Em Busca
da Vida”, a cidade possui a trama principal que rege as demais subtramas das outras
personagens. Apesar da temática dos filmes abordarem assuntos pertinentes à
globalização e as suas devidas consequências nas relações sociais, seja na
incomunicabilidade entre as pessoas ou nas microescalas dos (des)afetos amorosos,
o espaço urbano fílmico de Pequim e Fengjie são imprescindíveis para narrar essas
histórias. A narrativa ficcional confunde-se com a realidade não-ficcional. O que
estamos assistindo de fato aconteceu na China contemporânea ou estamos lidando
somente com uma representação?
Dessa forma, a cidade-personagem, perspectiva teórica na qual ainda estamos
amadurecendo na tese de doutorado, apreende-se enquanto um recurso
metodológico para compreender as dinâmicas e as contradições do espaço urbano a
partir da representação fílmica.
As ponderações teóricas e metodológicas engendradas neste trabalho
permitem refletir sobre a intertextualidade entre a Geografia e a linguagem
cinematográfica. Assim, como recorte científico e artístico para se ler o mundo, a
paisagem urbana cinemática se apresenta como uma fonte múltipla capaz de suscitar
debates pertinentes à sensibilidade geográfica.
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• Referências fílmicas:
O Mundo, de Jia Zhang-Ke, 2004, China.
Em Busca da Vida, de Jia Zhang-Ke, 2006, China.