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A cidade como palco: uma análise dos dramas sociais dos anos 80 a partir
do filme Os Saltimbancos Trapalhões ROSILDO RAIMUNDO DE BRITO*
Resumo
Grande parte da produção cinematográfica nacional dos anos 80 foi pautada no registro dos
dramas e conflitos políticos e sociais vividos pelos brasileiros durante o período da ditadura
militar. Parte das tramas tinha no cotidiano urbano das grandes cidades, o cenário perfeito
para uma representação denunciativa da realidade social que, mesmo depois do abrandamento
da censura com o advento da ‘abertura política’, em meados dos anos 1970, precisava ser
trabalhada de maneira metaforizada. Por esse motivo, muitos dos produtores cinematográficos
se utilizaram da comédia que, por meio do humor aparentemente despretensioso, transmitiam
um retrato do quadro político e social do Brasil daquela época. Dentre as diversas produções,
uma de maiores sucessos na década de 1980 foi o filme Os Saltimbancos Trapalhões, uma das
adaptações paródicas comuns às produções de Os Trapalhões, feita a partir da fábula musical
Os Saltimbancos, de Chico Buarque de Holanda, cujo enredo tem o cenário urbano como
palco de uma conflituosa trama alegórica. Este artigo apresenta uma análise do filme,
respaldado na ampliação conceitual de fontes históricas advinda da corrente teórica da Nova
História a qual contempla os mais diversos documentos visuais e, de maneira específica, na
abordagem de análise fílmica que vem sendo praticada pelo pesquisador Marcos Silva (2009;
2011; 2016) que, assim como outros historiadores vem se debruçando sobre a contribuição da
sétima arte para uma leitura mais profícua do período histórico que compreendeu a ditadura
no Brasil. É dentro desta perspectiva que este artigo se situa, tendo como objetivo central, não
apenas contribuir para uma maior compreensão acerca das articulações historiográficas que
desvendam as relações conflituosas e contraditórias que marcaram o cotidiano nas grandes
cidades, mas também sobre as possibilidades de confluência entre a História e os campos
distintos do cinema e da retórica do humor imagético.
Palavras-chave: Cinema. História. Cidade. Os Saltimbancos Trapalhões.
* Professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Doutorando do curso de História Social da
Universidade de São Paulo (USP) com pesquisa financiada pela CAPES.
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História, cinema e a retórica da imagem
Os estudos sobre a imagem no domínio da história apontam para um vasto e incipiente
campo de investigação que convida os historiadores para uma reflexão mais profunda acerca
do potencial cognitivo e testemunhal do documento visual. Trata-se aqui de um dos mais
desafiantes objetos de estudo do qual tentam dar conta as mais variadas ciências a procura,
especialmente, de novos parâmetros metodológicos e instrumentos de análises, reunindo um
esforço interdisciplinar. Nesse sentido, o pontapé inicial da retórica da imagem, conforme
assinala Reboul (1984), foi dado por Roland Barthes, na França, em 1964, a partir de seus
estudos feitos sobre peças publicitárias da época, dos quais, um dos principais pressupostos
resultantes foi a constatação do caráter denotativo e conotativo da imagem que para este e
vários outros autores é, essencialmente polissêmica.
Portanto, a imagem é portadora de mensagens diversas as quais vão além da
literalidade visual apresentada num primeiro plano. Assim, conforme a tônica metodológica
desenvolvida por Roland Barthes, a retórica da imagem encontra-se no “sistema que adota os
signos de outro sistema, para deles fazer seus significantes, é um sistema de conotação”
(BARTHES, 1994:22). E desta maneira, o autor conclui que todo signo é constituído por duas
faces: a literal, ou seja denotada, e a conotada, ou seja, simbólica, de tal forma que, portanto, a
imagem literal é denotada e a imagem simbólica é conotada. Por esta razão, conforme atestam
vários estudiosos, a imagem é sempre polissêmica e ambígua, razão pela qual precisar estar
sempre ancorada em outros signos que em geral, acompanham-na, seja em forma de texto ou
sons.
Tomando, portanto, como verdadeiros esses pressupostos apresentados, segundo os
quais, a imagem é em síntese, constituída por um conjunto de códigos sígnicos, os quais,
conforme acrescenta Bakhtin (1995), são essencialmente ideológicos e seus significados
emergem da interação social, do ponto de vista da ciência histórica, a iconografia representa
um valioso campo de estudo histórico. Ao analisar o potencial da iconografia para a História,
Michel Vovelle defende que “A partir da iconografia, podemos constituir toda uma série de
dossiês pelo ângulo de uma história temática, de uma história-problema, como atualmente se
prefere conceituar [...]” (VOVELLE, 1997:178). Ao fazer menção à concepção de amplitude
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da documentação histórica, o autor acredita que é possível, portanto, a partir das imagens, se
conhecer a história social de um dado tempo, e não apenas dos grupos engajados na política.
E o cinema, neste caso, apresenta-se como um dos mais valiosos instrumentos para a
historiografia, como defendem diversos autores. Considerado pioneiro nos estudos sobre a
relação entre cinema e história, e mais particularmente, na abordagem sociohistórica que esta
modalidade audiovisual autoriza, o historiador francês Marc Ferro pôs em evidência, com
grande clareza, de que forma o cinema pode ser visto. Para ele, na confluência entre a História
que se faz e a História compreendida como relação de nosso tempo, como explicação do devir
das sociedades, o cinema intervém de diferentes formas: como fonte, ou seja, como fator de
documentação histórica (e isso pode valer tanto para os filmes documentários quanto para os
de ficção) e como agente da história, ou seja, como elemento que entra de modo ativo em
processos históricos, tamanho é o seu poder testemunhal.
É este mesmo autor que destaca, para além do caráter testemunhal de natureza
sociohistórica, a condição de instrumento combativo que o cinema encerra, ao afirmar que:
“[...] Não é suficiente constatar que o cinema fascina e inquieta: os poderes públicos e o
privado pressentem também que ele pode ter um efeito corrosivo e que, mesmo controlado,
um filme testemunha” (FERRO, 1992:38). E este, vale dizer, trata-se de um dos aspectos que
tem feito da produção cinematográfica, de modo geral, uma das mais instigantes fontes
documentais analíticas, por meio da qual, é possível compreender melhor os fatos registrados
na história e pela História. É a partir deste viés que multiplica-se o número de trabalhos de
pesquisa analíticos sobre o cinema, destacando-se, dentre outros, a capacidade que os filmes
tem de dialogar com o momento histórico. Dentro desta perspectiva, conforme defende o
historiador canadense Robert A. Rosenstone:
Filmes, minisséries, documentários e docudramas históricos de grande bilheteria são
gêneros cada vez mais importantes em nossa relação com o passado e para o nosso
entendimento da história. Deixá-los fora da equação quando pensamos o sentido do
passado significa nos condenar a ignorar a maneira como um segmento enorme da
população passou a entender os acontecimentos e as pessoas que constituem a história.
(ROSENSTONE, 2015:17).
Comédia e a narrativa do humor
Ao investirem no cinema enquanto valioso instrumento de pesquisa, enriquecendo, desta
maneira, de maneira particular, os estudos historiográficos da iconografia, campo este ainda
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pouco explorado pela ciência histórica, os historiadores se deparam com um importante
desafio que é a compreensão da linguagem que faz desse tipo de mídia visual, uma das
modalidades midiáticas mais bem sucedidas de toda a história da comunicação. Ciente da
relevância da linguagem como elemento central para o domínio desse desafio, e da
imprescindível importância que essa desempenha no processo constitutivo das narrativas
históricas, teóricos da história, a exemplo de Hayden White e Frank Ankersmit, chamam a
atenção dos historiadores para um olhar mais profícuo acerca desse aspecto. Nesse sentido,
(ANKERSMIT 1994, apud ROSENSTONE, 2015:60) defende categoricamente que “No
futuro, a nossa relação com o passado deverá se concentrar menos na aquisição de novos
dados sobre o próprio passado e mais na linguagem que usamos para falar do passado”.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, e se referindo especificamente ao desafio que o
cinema representa para os pesquisadores deste campo, Robert Ronsenstone acrescenta que:
Trata-se de uma linguagem que devemos (precisamos) aprender a interpretar,
uma linguagem constituída (no mínimo) pelas possibilidades inerentes às
mídias visuais e pelas práticas que os usuários dessa mídia desenvolveram.
(ROSENSTONE, 2015:60)
Daí, portanto, a necessidade, de se voltar o olhar para os elementos que compõem o
vasto e idiossincrático universo da linguagem cinematográfica que, conforme apontam
diversos estudos, é essencialmente metafórica e que, conforme descreve ainda este mesmo
autor anteriormente citado, através da tela, desenvolve uma capacidade de comunicar algo não
apenas de maneira literal, mas também de maneira poética e metafórica. Eis aqui um dos
aspectos centrais para a compreensão da produção cinematográfica que, para além das
técnicas de produção estético-visual, se vale de uma narrativa diversificada em gêneros e
linguagens, abarcando infinitas possibilidades de retratar o mundo real.
Dentro dessa amplitude de gêneros e linguagem está a comédia que constitui-se uma
das mais antigas modalidades humorísticas em uso na história da humanidade, inicialmente
explorada no universo das artes cênicas, sendo apropriada posteriormente pelo cinema. Mais
que uma diversidade linguageira oriunda do humor e que objetiva arrancar risos do público, a
comédia se revela uma das mais bem sucedidas ferramentas de combate, por meio da qual,
diversas mazelas sociais são denunciadas. É nesse sentido que Andrew Horton (2000) lembra
que, mais do que um gênero, a comédia é uma perspectiva. Para este e outros autores, nada é
5
inerentemente engraçado ou trágico e que o humor depende do olhar lançado sobre
determinado evento. “A comédia é a melhor forma de entender os assuntos mais relevantes
para uma sociedade em dado momento histórico” (HORTON 2000:23). Por esta razão,
certamente muitos cineastas vem investindo nesta modalidade que, para além de outros
gêneros tidos como mais realistas, a exemplo do drama e o documentário, ajudam a traçar um
panorama real de vários quadros sociais registrados em determinados período da história.
Para tanto, os cineastas tem se valido dos artifícios do humor que, na qualidade de
linguagem com um infinito potencial expressivo e de representação sígnica fala de muitas
realidades dramáticas, porém de modo jocoso. Uma linguagem plural e extremamente
ambivalente e que por meio das mais variadas composições poéticas como a sátira, a paródia
e a metáfora, fazem da comédia cinematográfica um dos mais instigantes gêneros estudados.
Tais estudos, vale salientar, se valem, dentre outros elementos, das idiossincrasias culturais de
que o humor é constituído e que dizem muito a respeito tanto dos sujeitos que se valem deste,
como das muitas formas com que o humor é apreendido individual e coletivamente. Nesse
contexto, também é importante frisar que, como esclarece o historiador Elias Thomé Saliba,
cada cultura produz sua forma de narrativa e também suas representações humorísticas
próprias, fazendo do humor uma das mais inteligentes e sagazes manifestações de catarse.
Para este pesquisador da História Cultural do humor: “Cada uma forja suas peculiares
línguas e falas cômicas, que se expressam (...) naqueles estereótipos concisos, sintéticos e
rapidamente inteligíveis, mas também cheios de subentendidos, de omissões, de silêncios e de
‘não-ditos’” (SALIBA, 2008:31). Trata-se aqui de uma observação importante uma vez que
realça o fator de que um filme, seja ele qual for, sempre vai além de seu próprio conteúdo,
além da realidade representada, mostrando zonas da história até então ocultadas,
inapreensíveis, não-visíveis. Ainda segundo este autor, os paradoxos do dia a dia são captados
com mais competência pelo olhar cômico do que pelo olhar mais sério. Ao destacar a
importância do humor para uma compreensão mais abrangente do cotidiano social e da forma
tardia com que as pesquisas históricas passaram a demonstrar interesse por este, Saliba (2016)
enfatiza ainda que “[...] os intérpretes do humor começaram a mostrar que, em tempos de
mudanças sociais, acultura cômica tornou-se aquela espécie de fio descoberto a provocar
curto-circuitonos sistemas de comunicação coletiva” (SALIBA, 2016:05).
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Tomando como critérios metodológicos, os aspectos conceituais em torno da
problemática aqui destacada, passemos agora para uma análise fílmica sobre a produção
cinematográfica Os Saltimbancos Trapalhões, por meio da qual, objetiva-se averiguar, dentre
outros aspectos, a relação intrínseca da comédia enquanto elemento catalisador de tensões
sociais reveladas por meio de imagens que fazem rir e ao mesmo tempo refletir acerca de
realidades sociais críticas de uma determinada época e sobre o espaço dos grandes centros
urbanos enquanto lugar privilegiado para os mais diversos e intentos conflitos políticos e
ideológicos.
Os Saltimbancos Trapalhões: comédia para se fazer rir e refletir
Herança da forte tradição de humor que sempre acompanhou o cenário artístico-
cultural brasileiro, a comédia é considerada até os dias de hoje, um dos gêneros mais
consagrados do cinema nacional. Presente desde o início da história do cinema no país, o
sucesso do gênero no país se vê não apenas no desdobramento deste em diversos subgêneros
de grande sucesso na primeira metade do século XX (chanchada, pornochanchada, paródia,
dentre outros), como no significativo público que este continua levando aos cinemas,
responsável por algumas das maiores bilheterias de várias épocas do cinema. Trata-se do
gênero que leva às salas do país, em média, dois milhões de espectadores por lançamento.
Nada menos que 96% de toda a renda bruta do cinema nacional vem hoje do humor, que só na
última década gerou uma receita de R$ 500 milhões2. Um dos motivos para este sucesso,
segundo Patrice Pavis, está no fato de a comédia ter suas raízes “nas raízes cotidianas e
prosaicas das pessoas comuns” (PAVIS, 2008:52). Já para outros autores, a permanência do
sucesso deste gênero está associado ao fato de se tratar daquele com a maior capacidade de
acompanhar a velocidade das transformações, por sua proximidade com o cotidiano e vocação
para comunicar-se com grandes faixas de audiências. É o caso, por exemplo, da filmografia de
Os Trapalhões, que se tonaram ao longo das décadas de 70 e 80, o mais bem sucedido
conjunto de filmes de comédia no cinema brasileiro. Com uma filmografia de 41 longa-
2G1 Globo News. Disponível em'
<http://g1.globo.com/globomnews/noticia/2013/04/comediasmsaomresponsaveismporm96mdamrendambrutamd
omcinemamnacional.html>.
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metragem e uma média de 3,9 milhões de espectadores por filme3, a trupe formada pelos
quatro integrantes (Didi, Dedé, Mussum e Zacarias), impulsionaram este que já era um gênero
cinematográfico de sucesso no país.
Articulados ao projeto de popularização de temáticas nacionais de então, através de
narrativas que entrecruzam o cotidiano do país às tradições cinematográficas brasileiras do
riso e da paródia, os filmes se enquadram dentro do gênero comédia pastelão cujos
personagens principais recorrem a algo muito presente neste gênero dentro da produção
brasileira que é a estereotipação de personagens tipicamente brasileiros. Assim nasceu o
quartilho de trapalhões que uniu os circenses (Didi e Dedé) a um malandro do samba carioca
(Mussum) e à brejeirice mineira de um comediante de rádio (Zacarias), representando o
estereótipo de anti-heróis patéticos que, por sua vez, dá o tom do estilo pastelão. Não
obstante, por trás desse picadeiro paródico em que a dramaturgia do riso debochado e
aparentemente inocente se faz desenhar, e para além dos traços culturais indenitários
pitorescos, estão elementos indiciais que, de maneira subliminar, retratam alegoricamente, as
condições de vida e o cotidiano do Brasil nas cidades, marcadamente, durante um dos
períodos mais conturbados da história do país, que compreendia o golpe militar de 1964.
Neste caso, o contexto histórico em que a maior parte da produção cinematográfica de Os
Trapalhões se situa, serve como um espécie de pano de fundo para o roteiro burlesco e ao
mesmo tempo inquietante que quase sempre acompanha o humor enquanto linguagem
provocativa à reflexão. Foi desta maneira que, a produção desta filmografia cômica, como
descreve a crítica de cinema brasileira Fatimarlei Lunardelli “transportaram para a tela, a
concretude do precário, mas nela transitam livres das amarras do cotidiano” (LUNARDELLI
1996:59).
É dentro dessa conjuntura ideológica que se situa o filme Os Saltimbancos
Trapalhões. Produzido e lançado em 19814, o filme é fruto da parceria de Os Trapalhões e o
cineasta J.B Tanko que rendeu ao todo, 10 produções cinematográficas, destacando-se como
uma das maiores bilheterias de toda a filmografia do quarteto, chegando a levar 5,2 milhões
3 Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Filmografia_d'Os_Trapalh%C3%B5es> Acesso em 12.fev.2017 4 O sucesso da produção foi tamanho que em janeiro de 2017, o filme ganhou uma nova versão, baseado numa
peça musical feita para o teatro e lançada em 2014, intitulado Os Saltimbancos Trapalhões rumo a Hollywwod.
A peça foi montada por Charles Möeller e Claudio Botelho e o filme dirigido por João Daniel Tikhomiroff.
Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Saltimbancos_Trapalh%C3%B5es>.
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de espectadores ao cinema, colocando a produção entre os 15 filmes mais assistidos da
história do cinema brasileiro5. Trata-se de mais uma das adaptações paródicas comuns às
produções de Os Trapalhões, feita a partir da peça teatral Os Saltimbancos, originalmente do
italiano Sérgio Bardotti que por sua vez, é uma adaptação do conto Os Músicos de Bremen,
de autoria dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. A peça trata-se de uma adaptação feita por
Chico Buarque de Holanda, cuja trilha sonora é destaque no filme.
O conto original narra as aventuras e desventuras de quatro animais (jumento,
cachorro, gato e um galo) que, explorados e maltratados pelos seus senhores, decidem mudar-
se para a cidade de Bremen, a qual representa, simbolicamente, um lugar de ruptura com as
relações feudais e seu modelo de servidão. Eis aqui, portanto, uma trama que traz à tona,
representações culturais que tem por tema a metrópole que, conforme especificam Kuster e
Pechman (2014), desperta nos sujeitos urbanos, as promessas de realizações de desejos
revelando, desta maneira, as subjetividades que dão vida às cidades e fazem destas, um lugar
privilegiado de encontros, desencontros e conflitos dos mais diversos possíveis e imagináveis.
Esse é, em síntese, o fio da narrativa principal em torno da qual, tanto o filme como a peça,
que lhe serviu de inspiração, foram desenvolvidos. Uma das poucas alterações feitas nestas
em relação à obra original, diz respeito à mudança dos personagens animais feita na peça e
replicada no filme. Nestas, o gato é transformado numa gata e o galo numa galinha, numa
hipotética alusão à identificação com o público feminino feita por Chico Buarque que, para
Rabelo (apud Souza 2016), utilizando-se de uma linguagem metafórica e de caráter
subliminar, teria a intenção de destacar a busca da mulher pelo empoderamento na sociedade.
Uma análise de Os Saltimbancos Trapalhões
O enredo de Os Saltimbancos Trapalhões se passa em um circo de periferia em que a
trupe de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias fazem o papel de quatro desastrados zeladores de
animais que se transformam, quase sem querer, na principal atração do espetáculo ao
interpretarem os animais mencionados na peça, ao lado da dançarina que interpreta a gata, a
jovem Karina (Lucinha Lins), filha do dono do circo, o Barão (Paulo Fortes). Mas o sucesso
não faz com que os circenses continuem recebendo salários miseráveis por causa da ganância
do Barão que representa o chefe impiedoso, substituindo o senhor feudal na narrativa do texto
5 Disponível em: <http://www.cinereporter.com.br/criticas/saltimbancos-trapalhoes-os/. Acesso em 14. Fev
2017.
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original dos irmãos Grimm. Ao contrário, eles passam a enfrentar a rivalidade do mágico
Assis Satã (Eduardo Conde) que, juntamente com a Tigrana (Mila Moreira), formam um par
de vilãos que enciumados, tentam a todo curso prejudicar o casal romântico do filme formado
por Karina e o acrobata Frank (Mário Cardoso).
Este roteiro representa o que se pode chamar de primeira parte do enredo desta
comédia de grande sucesso, por meio da qual, um olhar mais aguçado faz desvendar uma das
críticas veladas construídas subliminarmente contidas no filme. Trata-se da situação de
desigualdade social e de exploração dos poderosos sob os trabalhadores assalariados,
realidade esta muito comum no mundo do circo, e que caracteriza a conflitante relação de
poder que se vê na sociedade capitalista de modo geral. Em meio ao misto de sentimentos de
inveja, ambição e paixão, a trama desenhada neste primeiro momento e que se passa no
ambiente circense, o circo Bartolo, remete de forma subliminar aos mecanismos de poder e
pressão muito pertinente ao período histórico em que o filme se passa. Momento da Ditadura
Militar, regime de exceção implantando a partir de 1964 caracterizado não apenas por
restrições políticas e civis, mas também por uma forte crise socioeconômica que varreu o
Brasil, sobretudo, a partir dos anos 1980 quando os níveis da desigualdade social chegam a
patamares gritantes, ocasionando, dentre outros fenômenos sociais, um estremecimento das
relações entre patrões e empregados ainda maior.
Inconformados com os baixos salários, estes passam a pressionar os patrões por
melhores salários, realidade esta retratada no filme, mais especificamente na cena em que,
sugestionados pelo trapezista (Mário Cardoso), o quarte trapalhão procura o Barão para pedir
melhoria no salário. E, embora responsáveis em parte pelo sucesso do circo naquele momento
e se depararem com o Barão sentando diante de uma mesa repleta de cédulas de dinheiro, os
funcionários ouvem deste a assertiva de que compreendia o pedido feito pelo quarteto tendo
em vista a situação de crise geral, mas que não podia atender ao apelo, justificando para isto,
o fato de o montante posto na presença deles, já ter destino certo, como por exemplo, o
pagamento de impostos e, sugerindo a esses o ‘direito’ que lhe estava que era o de pedir as
contas. Um retrato fiel do discurso patronal que se repete até os dias de hoje, mediante a
manifestação dos empregados por melhores condições de vida. Uma clara demonstração da
10
tática do cinema em trabalhar as verdades metaforizadas, simbólicas ao se referir a fatos reais,
conforme descreve Rosenstone (2015).
Revoltados com a situação de total precariedade, com a maldade do trio de vilãos
formado pelo Barão, a Tigrana e o mágico Assis Satã, e alimentados pelo sonho utópico de
chegar a Hollywood, os trapalhões e Karina decidem fugir do circo e saem rumo à cidade
grande, embevecidos pela áurea encantadora em torno desta e a sedutora promessa de
melhoria de vida. Trata-se do que pode-se chamar de segunda parte da trama, caracterizada
pelas aventuras do quinteto para além do ambiente circense, realçando a condição de artistas
mambembes. Nessa parte do enredo, verifica-se uma maior exploração da tática da narrativa
subliminar da realidade metaforizada aqui mencionada em que a comédia abre espaço para
cenas de maior dramaticidade, revelando, os nuances da realidade cotidiana dos que vivem
nas ruas das grandes cidades. Na sequencia do desenrolar da trama, é feita alusão a
sentimentos outros como os de liberdade e luta por ideais coletivos. Temas estes que, para
além das cenas, são realçados através das canções de forte apelo ideológico de Chico
Buarque, as quais dão à comédia pastelão, um tom contestador. Trata-se aqui de uma das
características inatas desse gênero específico que, principalmente quando adaptado de obras
literárias, trazem consigo uma crítica aparentemente rasa, mas que “[...] disfarçava a
intencionalidade política pelas vias da paródia, da carnavalização e da arquitetura grotesca”
(BORGES, apud SOUZA, 2016:85).
É dessa maneira que, ao explorar o desencanto do quinteto circense ao chegar na
cidade grande, o qual passa a enfrentar as dificuldades comuns a artistas mambembes, dentre
elas, a perseguição da polícia com ameaça de prisão, o filme passa a desnudar um outro tipo
de conflito de relações de poder que constitui a sociedade e, de maneira mais específica, a
vida nos grandes centros urbanos. Aqui, de maneira mais transparente e menos metaforizada,
se vê a opressão do Estado sob os trabalhadores informais e, por extensão, a todos aqueles que
fogem das regras disciplinares estabelecidas. Realidade esta retratada, sobretudo, através da
cena em que os trapalhões e Karina aparecem fugindo da polícia numa perseguição pelas ruas
da cidade, após realizarem uma apresentação artística entre populares. A cena retrata de
maneira fiel, a representação da rua enquanto local de intervenção e inovação cultural e
também de resistência, sobretudo ao silêncio, por vezes, imposto. A manifestação artística
11
realizada pelo grupo de mambembe traz à tona a transformação sofrida pelas ruas das cidades
que na qualidade de um espaço urbano privilegiado marcado pelas mais diversas tensões
sociais, políticas e culturais, conforme descrevem os estudiosos Kuster e Pechman (2014):
“além de ser tematizado por algumas manifestações artísticas, também passa a ser utilizado
como seu palco, muita vezes abrigando obras que são criadas objetivando apresentar a cidade
em seus múltiplos aspectos” (KUSTER; PECHMAN, 2014:79-80). A cena deixa vir à tona
de forma explícita, toda a subjetividade que dá vida própria à rua e que, conforme enfatizam
esses mesmos autores, se torna um elemento identitário da cidade, ressaltando a sua dimensão
essencialmente pública.
Nesse trecho do filme, uma determinada cena destaca com maior ênfase o caráter
contestatório da comédia que denuncia o quadro social preocupante naquela época em que o
regime ditatorial já se encaminhava para o fim. Trata-se do quadro em que os trapalhões
aparecem com sprays em mãos, grafando num muro palavras sugestivas, como: “arroz e
macarrãosis”; “educação” e “saúde”, numa alusão a alguns dos principais problemas sociais
enfrentados pela sociedade na época, a exemplo da fome e a precariedade com os serviços da
saúde e da educação. Vale lembrar que o contexto era a da denominada pelos economistas
como a ‘década perdida’, em alusão à estagnação econômica e da inflação descontrolada,
fatores estes que contribuíram para o agravamento da crise política do país e que culminou
com a queda do governo militar.
Na sequencia, para além do quinteto, surgem pessoas comuns correndo da polícia,
como uma forma simbólica de narrar a opressão sofrida pela classe trabalhadora que, além das
péssimas condições sociais, era também proibida de se manifestar livremente contra esse
quadro periclitante. Nesse sentido, para além do clima de tensão gerado pelos constantes
conflitos político-ideológicos que caracterizaram a década de 1980, e que anunciavam o início
do processo de redemocratização que se aproximava, cenas como esta no filme, não deixa de
também apontar para o forte movimento de resistência da sociedade civil que, através de
movimentos coletivos, populares e artístico-culturais, davam o tom daquilo que Paoli (1995)
chama de “a contraface do lado autoritário ou desagregador da crise brasileira”. Conforme
explicita esta estudiosa, tais correntes:
[...] traziam conflitos e atores que não só reinventavam formas e espaços de
luta que abriam os horizontes de um regime democrático para além dele
12
próprio como, além disso, eram feitos por atores historicamente depreciados,
os situados lá no fim das hierarquias sociais.(PAOLI, 1995:25)
Esse momento histórico de tensão vivido pelo país, especialmente no cenário urbano
das cidades desenvolvidas retratado de forma alegórica no filme, aponta para outro aspecto
importante nesta análise aqui feita que é o pode de representação do cinema que “age tanto
como comentarista poético e cronista das experiências em andamento nos espaços urbanos,
quanto na condição de proponente artístico de caminhos para esse mundo, interferindo nas
cidades que assistem a seus produtos” (SILVA, 2011:191). Desta maneira, a comédia Os
Saltimbancos Trapalhões através da narrativa de um tipo de humor que, mesmo se
enquadrando dentro da modalidade pastelão, em alguns momentos, satiriza a realidade
socioeconômica e política do país, deixando vir à tona, aspectos mordazes da vida nos centros
urbanos, de onde se irradiavam – e permanecem até os dias de hoje - as principais tensões e
conflitos sociais marcantes da época. Deixando, desta maneira, fazer ver que, conforme
ressalta Silva (2011), mais que cenários de tijolo e cimento, a existência das cidades se dá por
meio de seus seres humanos e de seus afazeres. Dentro deste raciocínio, o filme de fato se
sobressai de forma magistral ao apresentar diversas imagens da cidade e sua arquitetura
magistral as quais se contrastam com imagens de pessoas transitando apressadamente pelas
suas ruas, numa clara menção à rotina da dinâmica vida urbana.
O desfeche final da trama fica por conta do retorno do quinteto circense ao lugar de
onde haviam saído, depois de desiludirem do encanto em torno da realidade da vida na cidade
grande e que os faz desistirem do sonho de ir até Hollywood. Ao fazerem isso, os Trapalhões
e Karina se deparam com o último plano diabólico do trio maquiavélico formado pelo Barão,
a domadora de leão Tigrana e o seu comparsa, o mágico Assis Satã que haviam sequestrado o
trapezista Frank que no filme, faz o par romântico com a filha do Barão, Karina. Nessa parte
do filme, antes que o quinteto invada a casa onde Frank está preso para salvá-lo e desmascarar
o grupo, há a exibição de uma cena cujo diálogo traçado entre os vilãos, sintetiza a ideologia
predominante presente no conto original dos irmãos Grimm e que dá conta dos conflitos
sociopolíticos no contexto do feudalismo, a qual é explorada de modo adaptado na versão
cinematográfica. Nela, sentados à mesa de um farto banquete e em meio a um cenário luxuoso
que remete ao período dos senhores feudais, Tigrana faz a seguinte assertiva: “Nobreza no
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passado é o dinheiro de hoje. Vamos dividir o dinheiro”. E, na sequencia, o Barão responde:
“Mas, antes vamos a um brinde. Ao poder!”. E Assis Satã, complementa: “Ao dinheiro!”. E
em seguida, o Barão responde, de forma abrupta: “Claro! Quem tem dinheiro tem poder.
Quem tem poder, tem dinheiro” E, Tigrana faz a seguinte pergunta sugestiva: “E quem não
tem não poder nem dinheiro?”. Então o Barão responde, afirmando que “É um pobre
desgraçado. Que se vire!”. O breve diálogo enfatiza o conflito que permeia as relações de
poder há séculos e que, de maneira especial, se vê no conflituoso embate das classes patronal
e a de trabalhadores.
Encerrada essa parte, o filme se encaminha para o final com uma de suas cenas mais
emblemáticas. Trata-se do momento em que os personagens heróis, Os Trapalhões na
companhia do par romântico Frank e Karina, promovem uma marcha até o circo Bartolo,
reunindo um grande número de pessoas, simbolizando os trabalhadores, para um confronto
direto com o Barão. O detalhe dotado de grande significado na cena fica por conta da letra da
canção “Todos Juntos”, de autoria de Chico Buarque que a multidão aparece entoando. Trata-
se de uma versão especial feita para o filme em que, para além dos bichos, são acrescidos
nomes de personagens do circo, a exemplo de o trapezista, o acrobata e o palhaço, atribuindo
a estes sentimentos positivos como a coragem, confiança e valentia. A música faz uma clara
alusão à força que brota da união coletiva. Uma menção indireta ao empoderamento que nasce
com a consciência da luta de classes, como forma da vitória do oprimido sob o repressor.
Acuado pela multidão, o Barão se dá por vencido, declarando ao final que o “circo é de
todos”, algo recebido com ares de festa pela plateia, representando o povo. E assim, a alegria
volta a tomar conta do circo Bartolo que tem de volta suas principais atrações circenses.
Por trás desse aparente despretensioso final feliz, está a mensagem subliminar de
otimismo que o filme parece dirigir àqueles que estão na luta, e por consequência, toda a
sociedade civil, levando-se em consideração que o contexto histórico em que o filme se
situava na época, era o de fortalecimento da luta contra o regime ditatorial militar. Nesse
contexto, a busca pela liberdade e confronto contra a repressão da força exploradora e
manipuladora a que eram submetidos os personagens da trama, formam a mensagem
simbólica transmitida pelo filme, fazendo valer que, conforme ressalta Barthes, a imagem é
portadora de mensagens diversas as quais vão além da literalidade visual apresentada num
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primeiro plano. E, nesse sentido, “Ainda que seja verdade que a alegoria presumivelmente
floresce sob censura política” (FLETCHER 1970, apud RAMOS, 2009:145), no caso do
cinema brasileiro, a opção pelo modo de composição alegórico responde, sobretudo, à
necessidade de lidar com problemas complexos. E isto foi observado através da película aqui
analisada ao abordar os diversos aspectos socioeconômicos e políticos que permeiam os
diversos conflitos que caracterizam o campo das relações de poder que tem nos espaços
urbanos, vale ressaltar, o lugar privilegiado não só das disputas de classes, mas também das
subjetividades que caracterizam e dão sentido à experiência da vivência urbana (KUSTER;
PECHMAN 2014). E, nesse sentido, os modos de resistência às opressões e aos ataques aos
direitos individuais e coletivos tem sido uma dessas experiências marcantes. Algo que pode
ser percebido por meio dos estrofes da música com que o filme se encerra, cuja letra entoa:
“Todos juntos somos fortes/ somos flecha e somos arco/Todos nós no mesmo barco/não há
nada pra temer/ao meu lado há um amigo/que é preciso proteger/Todos juntos somos
fortes/não há nada pra temer”.
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