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Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina “Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro” ISSN 2177-9503 10 a 13/09/2013 GT 10. Teoria política marxista 97 GT 10. Teoria política marxista A atualidade da obra de Marx: a importância da teoria na rota da emancipação humana Rodrigo Prado Evangelista Sandra Rodrigues dos Santos Resumo: O objetivo deste trabalho é discorrer sobre a importância da obra de Marx, a atualidade dela no sentido da revolução social radical, no horizonte da emancipação humana, ou seja, é discutir sobre as possibilidades da teoria do autor alemão ser ou não relevante para um caminho libertário, na busca de uma ruptura com a ordem social vigente: o modo de produção capitalista. As principais referências, que serão adotadas neste trabalho, são as obras de Karl Marx produzidas na década de 40 do século XIX, a saber, A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), As Glosas Críticas ao Rei da Prússia (1843), a Questão Judaica (1843),o Manuscritos Econômicos-Filosóficos (1844), a Sagrada Família (1845) e a primeira parte da Ideologia Alemã (1846). Qualquer remissão a interlocutores importantes na trajetória marxiana como Hegel e David Ricardo, será feita a partir da maneira como esses autores aparecem na letra de Marx. Palavras-chave: teoria; atualidade; emancipação humana. Introdução Após 130 anos da morte de Karl Marx, mais de um século, fim da guerra fria com a derrota da União Soviética. Depois do surgimento de Foucault, Deleuze, Guattari, William Reich, Roberto Freire, entre outros, amplamente propagados durante o século XX, nos movimentos e organizações políticas de esquerda, ou com propostas pretensamente libertárias, uma questão se torna urgentemente importante, a obra de Marx ainda é atual? É possível encontrar alguma relação entre o que foi publicado com a autoria do Graduado em Psicologia pela UEL Universidade Estadual de Londrina, em 2010, atualmente trabalha como educador no Projeto Programa de Proteção ao Jovem em Território de Vulnerabilidade Social, em Londrina e região, no Paraná. Email: irreversí[email protected] Graduada em Serviço Social pela UFVJM Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em 2012, atualmente trabalha como assistente social no CRAS Centro de Referência de Assistência Social em Agua Boa, Minas Gerais.

A atualidade da obra de Marx: a importância da teoria na rota da

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ISSN 2177-9503 10 a 13/09/2013

GT 10. Teoria política marxista 97

GT 10. Teoria política marxista

A atualidade da obra de Marx: a importância da teoria na rota da emancipação humana

Rodrigo Prado Evangelista

Sandra Rodrigues dos Santos

Resumo: O objetivo deste trabalho é discorrer sobre a importância da obra de Marx, a atualidade dela no sentido da revolução social radical, no horizonte da emancipação humana, ou seja, é discutir sobre as possibilidades da teoria do autor alemão ser ou não relevante para um caminho libertário, na busca de uma ruptura com a ordem social vigente: o modo de produção capitalista. As principais referências, que serão adotadas neste trabalho, são as obras de Karl Marx produzidas na década de 40 do século XIX, a saber, A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), As Glosas Críticas ao Rei da Prússia (1843), a Questão Judaica (1843),o Manuscritos Econômicos-Filosóficos (1844), a Sagrada Família (1845) e a primeira parte da Ideologia Alemã (1846). Qualquer remissão a interlocutores importantes na trajetória marxiana como Hegel e David Ricardo, será feita a partir da maneira como esses autores aparecem na letra de Marx. Palavras-chave: teoria; atualidade; emancipação humana.

Introdução

Após 130 anos da morte de Karl Marx, mais de um século, fim da guerra fria com a

derrota da União Soviética. Depois do surgimento de Foucault, Deleuze, Guattari, William

Reich, Roberto Freire, entre outros, amplamente propagados durante o século XX, nos

movimentos e organizações políticas de esquerda, ou com propostas pretensamente

libertárias, uma questão se torna urgentemente importante, a obra de Marx ainda é atual?

É possível encontrar alguma relação entre o que foi publicado com a autoria do

Graduado em Psicologia pela UEL – Universidade Estadual de Londrina, em 2010, atualmente trabalha como

educador no Projeto – Programa de Proteção ao Jovem em Território de Vulnerabilidade Social, em Londrina e

região, no Paraná. Email: irreversí[email protected] Graduada em Serviço Social pela UFVJM – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em

2012, atualmente trabalha como assistente social no CRAS – Centro de Referência de Assistência Social em

Agua Boa, Minas Gerais.

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teórico alemão e o mundo vivido hoje? Alguma conexão com a sociedade, da qual fazemos

parte? Responder a essas questões não é empreendimento fácil, principalmente porque, já de

saída, demanda uma leitura, uma compreensão sobre o mundo atual, sobre a sociedade

contemporânea, mas se pensamos nessa leitura, nessa compreensão, como um exercício de

apreensão da materialidade do momento histórico vivido por nós, logo a nossa perspectiva é

influenciada pelo prisma de Marx, ou é convergente com a proposta dele, em todo caso

afirmar ou não a atualidade da teoria de Marx significa uma aposta. É extremamente frutífero,

potencializador, nessa encruzilhada, saber qual é a relação entre o que foi redigido pelo autor

alemão e as nossas vidas, inclusive no sentido mais imediato e individual. Nesse sentido é

fundamentalmente necessário conhecer e entender a proposta de Marx, não existe outro jeito,

é preciso se aproximar da teoria de Marx, se enveredar por ela, para saber se ainda é atual, se

corresponde ao mundo vivido por nós, se não agirmos dessa maneira, fica difícil exercer

qualquer posição (rever pontuação). Mesmo que exista a pretensão de ficar em cima do muro,

ainda que as nossas atitudes, o nosso comportamento, o nosso pensamento possam confirmar,

ou não, as tendências da atual ordem social, mesmo que não saibamos disso, que não seja um

fruto de nossa vontade, de nosso desejo.

A liberdade humana é o horizonte da atividade intelectual de Marx, a maneira como

ele chegou a essa problemática, e o que nos escreveu ser essencial para construir esse

horizonte configuram a particularidade de sua teoria. O estudioso alemão transitou pela

filosofia no decorrer de sua trajetória política e intelectual, mas não era apenas um filósofo.

Sua tensão com Hegel, extremamente polêmica, que o acompanhou até o fim de sua vida, não

se restringia a dizer quem era mais certo ou mais errado, quem era mais falso ou verdadeiro, o

que preocupava Marx era saber se a filosofia hegeliana podia, ou não, contribuir para a

elaboração da liberdade humana, é nesse mesmo sentido, que se aproxima e se afasta de

Feuerbach, que debate com Proudhon, que enfrenta David Ricardo e Adam Smith. “...Os

filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é

transformá-lo...”(MARX, 1999, p.14)

Não foi por generosidade, ou por altruísmo, que Karl Marx se enveredou pelo caminho

de contribuir para a construção da liberdade humana, desde a Introdução à Crítica da Filosofia

do Direito de Hegel (1843) até o Capital: crítica da economia política (1867). Nesse sentido é

necessário entender a trajetória do autor alemão, como a particularidade de sua teoria foi

configurada. Não se trata de fazer um retrato biográfico, o objetivo não é demonstrar como

era a personalidade de Marx, para que esta sirva de exemplo e inspiração, o que interessa é

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saber como a sua teoria foi desenvolvida, a sua proposta, para avaliarmos a atualidade dela, de

acordo com as nossas limitações.

Veredas

Em 1841, Marx defende a sua tese de doutorado “A diferença entre a filosofia da

natureza de Demócrito e a de Epicuro” (1841), é bem sucedido e consegue obter o título;

apesar de ter se formado em direito, a filosofia se tornou uma vereda mais atraente para ele. O

destino desejado por Marx era ocupar um lugar na academia, se tornar um professor

universitário, no entanto, seu amigo Bruno Bauer, que o ajudaria a construir essa

oportunidade, é proibido de lecionar na Universidade de Bonn1, e Marx precisa encontrar

outro emprego, mas que não seja um desencontro com suas convicções filosóficas e políticas

(KONDER, 1999, p.22). Dessa forma, começa a escrever artigos para a Gazeta Renana, um

jornal de orientações neo-hegelianas, financiado pela burguesia, suas ideias são tão bem

aceitas, que a partir de outubro de 1842, se torna o redator-chefe dessa mídia impressa. A

maior parte dos artigos da Gazeta Renana escritos por Marx são direcionados para a dieta

renana, uma reunião que acontecia entre representantes de segmentos sociais como a nobreza,

a burguesia, o clero e a monarquia. Nesses textos, Marx defende a liberdade de imprensa e

aposta na unificação alemã, na formação do Estado alemão como a possibilidade de acessar a

liberdade, de maneira geral. “O debate acerca da lei sobre o furto de lenha” é o artigo que

mais se destaca nesse momento de sua obra, é nele que Marx percebe a elaboração de uma lei

com o objetivo de defender interesses privados, de delinear a propriedade privada, porém, não

enxerga essa relação como intrínseca ao direito moderno burguês, para ele seria um desvio da

norma, da razão, e não imanente à especificidade do Estado na sociedade burguesa, como é

possível perceber no trecho abaixo.

[...]Uma vez que a propriedade privada não possui os meios para se

elevar ao ponto de vista do estado, o estado deve se rebaixar, contra o

direito e a razão, aos meios da propriedade privada, que são contrários

ao direito e à razão.(MARX, 1998, p.266)2

Para esclarecer melhor a situação, em uma das sessões da dieta renana, proprietários

rurais se manifestaram contra a apropriação da lenha caída de seus bosques por camponeses.

1 Assim como Marx, Bruno Bauer era um hegeliano de esquerda, essa perspectiva, buscava aplicar a filosofia da

Hegel na análise de questões sociais, e foi perseguida pela gestão de Frederico Guilherme IV, por ser contrária

ao regime absolutista que vigorava naquele momento. 2 O artigo Debates acerca da lei sobre o furto de lenha foi publicado na íntegra, como anexo IV, na dissertação de

mestrado em filosofia “O Estado racional: lineamentos do pensamento político de Marx na Gazeta Renana

(1842/1843)” de Celso Eidt. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

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Buscavam o apoio institucional e legislativo para punir os indivíduos que resolvessem

apanhar a lenha caída presente em suas propriedades. Marx argumenta contra a punição, até

mesmo pela consideração do ato como um crime, pois, para ele, tal apropriação acontecia

devido às precárias condições de moradia e alimentação vividas pelos camponeses. Ele

defende que a pobreza deve ser o alvo de maior preocupação, assim como, a necessidade de

dispositivos institucionais e legislativos para mudar as condições do segmento social

camponês, ou seja, a resolução dessa situação é desenvolvida na esfera estatal.

[...]O legislador sábio previnirá o delito para não precisar puni-lo, mas

não o previnirá entorpecendo a esfera do direito, mas eliminando a

essência negativa de todo impulso jurídico, abrindo com isso, uma

esfera positiva de atividades. Não se limitará a remover a

impossibilidade dos componentes de uma classe integrarem uma

esfera de direitos mais amplos, mas elevará a própria classe à

possibilidade real de ter direitos. E se o estado, para isso, não é

bastante humano, rico e generoso, é, ao menos seu dever

incondicional não transformar em crime aquilo que só as

circunstâncias tornam uma transgressão. Deve proceder com maior

moderação, encarando como desordem social o que só com maior

injustiça poderia castigar como delito anti-social, senão combaterá o

instinto social crendo combater a forma anti-social do mesmo. Numa

palavra, quando se reprime direitos consuetudinários do povo, o

exercício destes só podem ser tratados como simples contravenção

policial, e nunca punidos como crime. A pena policial é o caminho

contra atos que as circunstâncias convertem em desordem externa,

sem que impliquem uma violação da ordem eterna do direito. A

punição não deve infundir mais horror do que a transgressão; a

infâmia do delito não deve transformar-se na infâmia da lei. A base do

estado está minada quando a desgraça se torna delito ou o delito uma

desgraça. Bem distante desse ponto de vista, a dieta não observa nem

mesmo as primeiras regras da legislação.(MARX, 1998, p.262)

Em 1843, por determinação do regime político prussiano, durante a gestão de

Frederico Guilherme IV, a gazeta renana foi fechada devido a enfrentamentos políticos. Marx

se muda para Paris, e juntamente com Arnold Ruge, a pessoa que havia lhe convidado para

participar da gazeta Renana, se dedica à publicação de um novo jornal chamado Anais

Franco-Alemães, no qual pela primeira vez a “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de

Hegel” e “A Questão Judaica” foram publicadas. Mas as tensões, os conflitos que são

abordados no artigo “Debates acerca da lei sobre o furto de lenha” (1842) deixam marcas

intensas na trajetória política e intelectual de Marx, a separação ou possível relação entre

sociedade civil, liberdade e Estado se torna uma questão de extrema relevância para o

estudioso alemão. Nesse mesmo ano, em que se casa com Jenny Von Whestphalen, com

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quem já mantinha um romance há bastante tempo, redige a Crítica da Filosofia do Direito de

Hegel (1843), na qual volta a estudar sua principal referência, no sentido da inserção do

Estado como acesso à liberdade, o filósofo idealista Hegel, o qual, de acordo com Marx, havia

percebido a separação entre sociedade civil e Estado, como também, em relação à família, e

que a solução para as tensões e conflitos entre essas entidades seria a união entre elas, no

sentido de uma subordinação da família e da sociedade civil ao Estado, como pode ser

percebido no trecho abaixo:

[...]Por “necessidade externa” pode-se entender somente que “leis” e

“interesses” da família e da sociedade civil devem ceder, em caso de

colisão, às “leis” e “interesses do Estado; que aquelas são

subordinadas a este, que sua existência é dependente da existência do

Estado; ou também que a vontade e as leis do Estado aparecem à sua

“vontade” e às suas “leis” como uma necessidade.(MARX, 2005,

p.28)

O Estado é, para Hegel, de acordo com Marx, a possibilidade mais concreta de

realização da liberdade humana. Esta é materializada quando os interesses particulares

correspondem exatamente aos universais, os primeiros podem ser encontrados na família e na

sociedade civil, enquanto os outros fazem parte da esfera estatal: existência corpórea da Idéia

Absoluta e Real. A liberdade, portanto, é a identidade entre o particular e o universal, assim

todos se tornam igualmente livres.

[....]a liberdade concreta consiste na identidade (sein sollende,

zweschlachtige) do sistema de interesses particulares (da família, da

sociedade civil) com o sistema do interesse geral (do Estado). A

relação dessas esferas será, agora, determinado mais de perto.

De um lado, o Estado é, em face das esferas da família e da

sociedade civil, uma “necessidade externa”, uma potência à qual

“leis” e “interesses” são “subordinados” e do qual são

“dependentes”.(MARX, 2005, p.27)

Na subordinação da sociedade civil e da família ao Estado, ocorreria um movimento

de retorno para si da Idéia Absoluta e Real, encarnado na figura estatal, ou seja, a própria

origem dessas outras esferas é um desdobramento da Idéia Real. Por isso, Marx indica que, de

acordo com a lógica hegeliana, as particularidades da sociedade civil e da família são

negadas, precisam ser para que os indivíduos pertencentes a estes segmentos sociais possam

se libertar, serem livres.

[...]A passagem da família e da sociedade civil ao Estado político

consiste, portanto, em que o espírito dessas esferas, que é em si o

espírito do Estado, se comporte agora, também, como tal em relação a

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si mesmo e que ele seja, quanto a sua interioridade, real em si. A

passagem não é, portanto, derivada da essência particular da família

etc. e da essência particular do Estado, mas da relação universal entre

necessidade e liberdade. É exatamente a mesma passagem que se

realiza, na lógica, da esfera da Essência à esfera do Conceito. A

mesma passagem é feita, da filosofia da natureza, da natureza

inorgânica à vida. São sempre as mesmas categorias que animam ora

essas, ora aquelas esferas. Trata-se apenas de encontrar, para

determinações singulares concretas, as determinações abstratas

correspondentes. (MARX, 2005, p.32)

Na citação acima, Marx aponta uma arbitrariedade na filosofia idealista de Hegel, uma

desconsideração da essência particular das coisas, de maneira geral, para adequá-la a

abstrações universais, essa é a lógica utilizada para elaborar seus posicionamentos políticos.

Portanto, a perspectiva política de Hegel é intrinsecamente concatenada com o seu ponto de

vista filosófico. Marx não se opõe ao filósofo idealista apenas no âmbito político, mas,

também, à sua doutrina filosófica. Para Marx, o Estado é uma invenção humana, foi

concebido por pessoas, a partir de suas individualidades particulares, assim como, a sociedade

civil e a família.

[...] As funções e atividades do Estado estão vinculadas aos indivíduos

(o Estado só é ativo por meio dos indivíduos), mas não ao indivíduo

como indivíduo físico e sim ao indivíduo do Estado à sua qualidade

estatal. É, por isso, ridículo quando Hegel diz: elas estão “unidas à sua

personalidade particular como tal de uma maneira exterior e

acidental”. Elas estão, antes, unidas ao indivíduo mediante um

vinculum substantiale, por uma qualidade essencial do indivíduo. Elas

são a ação natural de sua qualidade essencial. Esse disparate advém do

fato de Hegel conceber as funções e as atividades estatais

abstratamente para si, e, por isso, em oposição à individualidade

particular; mas ele esquece que tanto a individualidade particular

como as funções e atividades estatais são funções humanas; ele

esquece que a essência da “personalidade particular” não é a sua

barba, o seu sangue, o seu físico abstrato, mas sim a sua qualidade

social, e que as funções estatais etc. são apenas modos de existência e

de atividade das qualidades sociais do homem. Compreende-se,

portanto, que os indivíduos, na medida em que estão investidos de

funções e poderes estatais são considerados segundo suas qualidades

sociais e não segundo suas qualidades privadas. (MARX, 2005, p.42)

Mas o que significa a humanidade para Marx? Nesse momento, é possível perceber a

oposição a Hegel, como já dita anteriormente, tanto no sentido filosófico, como no político.

Ao se deparar com conflitos, com tensões na própria constituição de leis para atender a

interesses privados de um segmento social, Marx começa a se questionar sobre relação entre a

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sociedade civil e o Estado. Na Gazeta Renana, de 42, a sua resolução para estas tensões era

extremamente amparada pela perspectiva hegeliana. No entanto, quando revisa a filosofia de

Hegel, percebe uma incoerência entre essa perspectiva e a realidade. Compreender “as

determinações singulares concretas” torna-se fundamental, principalmente para buscar a

emancipação. Marx propõe o desvendamento da lógica da coisa, e não a adaptação da coisa à

lógica filosófica, como Hegel o faz para ele. E é na busca da determinação concreta do Estado

que o afirma como invenção humana, para o homem, este como ponto de partida para a

existência estatal. No entanto, ainda procura um movimento que seja para si, ou seja, um

retorno a uma essência. A essência do estado é humana, o melhor modo de alcançá-la é a

efetivação da democracia. Na figura humana avista o povo, e o que é o povo? Onde estão

nesta entidade, as particularidades e aspectos sociais ausentes, ou consideradas acidentais, na

perspectiva de Hegel? Não as enxerga ou as define claramente ao se referir diretamente ao

humano, ainda não contempla a separação e o conflito entre classes sociais. Como pode ser

conferido abaixo:

[...] Na democracia, o Estado político na medida em que ele se

encontra ao lado desse conteúdo e dele se diferencia, é ele mesmo um

conteúdo particular, como uma forma de existência particular do

povo. Na monarquia, por exemplo, este fato particular, a constituição

política, tem a significação do universal que domina e determina todo

o particular. Na democracia o Estado, como particular, é apenas

particular, como o universal é o universal real, ou seja, não é uma

determinidade em contraste com os outros conteúdos. Os franceses

modernos concluíram, daí, que na verdadeira democracia o Estado

político desaparece. O que está correto, considerando-se que o Estado

político, como constituição, deixa de valer pelo todo. (MARX, 2005,

p.50, grifo do autor)

O Estado não é pedra angular na busca por liberdade, não é afirmação da

universalidade humana em si, é mais um desdobramento da humanidade, identificada na

figura do povo por Marx. Como bem observado, o Estado é diluído, deixa de existir, quando a

democracia é bem sucedida, o povo não precisa mais dele para mediar, controlar ou legislar

relações. A vida política se torna igual a vida do povo, a esfera estatal não é mais necessária.

O que os franceses modernos, como o filósofo iluminista Rousseau, já tinham concluído, de

acordo com o próprio Marx. Entretanto, essa identidade entre o povo e a política, esta

igualdade, diferente da proposta de Hegel, não é para Marx a efetivação da liberdade, ele

inclusive demonstra um exemplo para esta conclusão.

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[...] Na Idade Média, a vida do povo e a vida política são idênticas. O

homem é o princípio real do Estado, mas o homem não livre. É,

portanto, a democracia da não-liberdade, da alienação realizada. A

oposição abstrata e refletida pertence somente ao mundo moderno. A

Idade Média é o dualismo real, a modernidade é o dualismo abstrato.

(MARX, 2005, p.52, grifo do autor)

Na “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1843), que foi redigida

depois da “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1843) apesar do título, Marx realiza um

salto em sua produção teórica. É nesse artigo que o estudioso alemão demonstra uma clareza

maior sobre a importância da política na rota da liberdade humana, um avanço na sua

perspectiva referente à relação entre o Estado e sociedade. É também nesse momento de sua

obra que acontece outra mudança radical, a “classe social” aparece pela primeira vez e já não

se refere à entidade “povo” para falar de humanidade, como pode ser percebido na citação a

seguir.

[...] Qual é a base de uma revolução parcial, meramente política?

Apenas esta: uma seção da sociedade civil emancipa-se e alcança o

domínio universal: uma determinada classe empreende a partir de uma

situação particular, uma emancipação geral da sociedade. Tal classe

emancipa a sociedade como um todo, mas só no caso de a totalidade

da sociedade se encontrar na mesma situação que esta classe, por

exemplo, se possuir ou facilmente puder adquirir dinheiro ou cultura

(...) Para que a revolução de um povo e a emancipação de um classe

particular da sociedade civil coincidam, para que um elemento seja

reconhecido como o estamento de toda a sociedade, outra classe tem

de concentrar em si todos os males da sociedade, um estamento

particular tem ser o estamento de repúdio geral, a incorporação dos

limites gerais. (MARX, 2005, p.154, grifo do autor)

A partir desse instante, é que Karl Marx, também demonstrará uma preocupação muito

intensa com uma classe social, o proletariado. “...A dissolução da sociedade, como classe

particular, é o proletariado...”(2005, pg.155), pois é o segmento social que incorpora os

“limites gerais”, ou seja, a superação das barreiras do proletariado, enquanto classe, implica

na emancipação de toda a sociedade, Marx também indica a importância da teoria nessa luta,

nessa batalha. “...A teoria é capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se ad hominem, e

demonstra-se ad hominem logo que se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz.

Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem...” (2005, pg.151). Não se trata apenas de

apreender a lógica da coisa, as determinações singulares concretas, mas, fundamentalmente,

compreender a especificidade da natureza humana, saber o que define o ser humano, e para

Marx, é a potência de mudança, de transformação da natureza e de si mesmo, de modificar a

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lógica da coisa, de determinar singularidades concretas, o humano é a vida engendredora de

vida, ou seja, pode reinventar a si, construir novas formas de sociabilidade. Nesse sentido, o

Manuscritos Econômicos-Filosóficos, escrito em 1844, e publicado apenas em 1932, possui

imensa relevância na trajetória política e intelectual de Marx, na sua elaboração teórica.

[...] o homem não é apenas um ser natural, mas natural humano, isto é,

ser existente para si mesmo (fur sich sebst seiendes wesen), por isso,

ser genérico, que, enquanto tal tem de atuar e confirmar-se tanto em

seu ser quanto em seu saber. Conseqüentemente, nem os objetos

humanos são objetos naturais assim como estes se oferecem

imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e

objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. A

natureza não está, nem objetiva nem subjetivamente, imediatamente

disponível ao ser humano de modo adequado. (MARX, 2004, p.128,

grifo do autor)

Na cisão entre família, sociedade civil e estado, na separação entre o particular e o

universal, na incorporação ao espírito livre hegeliano (de acordo com Marx) como necessária

e simultânea negação das particularidades singulares concretas, Marx percebe uma divisão e

tensão ainda mais intensa, quando se depara com o contínuo devir do potencial humano em

decorrência da re-invenção e da contínua sustentação das barreiras relativas à liberdade

humana. Escravo de si mesmo, de sua própria força, o que produz se torna e é difundido

enquanto mercadoria, inclusive ele próprio. Todo valor que seja vendável, todo valor que seja

comprável. A sociedade, formada por pessoas, por indivíduos, produz riqueza material, mas

esse processo de produção também cria miséria, ruínas para a própria sociedade.

[...] O trabalhador se torna mais pobre quanto mais riqueza produz,

quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O

trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais

mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas

(Sachenwelt) aumenta em proporção direta com a desvalorização do

mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente

mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma

mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em

geral. (MARX, 2004, p.80)

Enquanto Marx aponta em Hegel o geral, a universalidade como esfera a ser alcançada

para poder acessar a liberdade. Aqui, ele demonstra a generalidade como categoria social,

expressa no fazer humano, inclusive na vida em seu modo mais imediato. O indivíduo é ser

social, a sua particularidade singular é desenvolvida quando se relaciona socialmente. De

acordo com Marx, em qualquer forma de sociedade, em qualquer época é assim. Mas varia a

configuração desta sociabilidade, no modo de produção capitalista, o devir cotidiano do

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indivíduo, do ser social, se torna meio de vida. Ele vive para poder trabalhar, e trabalha para

poder viver. O próprio processo produtivo para ele é estranho, assim como, o que é produzido

mediante o seu trabalho. O lugar que ele ocupa na sociedade é nebuloso, a conexão que existe

entre si e os outros se perde na linha do horizonte. Produz a si mesmo, cotidianamente, em seu

trabalho, em seus fazeres, de modo geral, mas não se reconhece naquilo que é produzido por

ele próprio.

[...] o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas

também, e principalmente no ato da produção, dentro da própria

atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio

(fremd) ao produto de sua atividade se no ato mesmo da produção ele

não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o resumo

(Resumé) da atividade, da produção. Se, portanto, o produto do

trabalho é a exteriorização, então a produção mesmo tem de ser

exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da

exteriorização. No estranhamento do objeto do trabalho resume-se

somente o estranhamento, a exteriorização do trabalho mesmo.

(MARX, 2004, p.82)

Na sociedade burguesa, a pessoa só pode se apropriar da riqueza material produzida,

de maneira privada, através da posse, por isso, a pessoa se define não pelo que é, mas sim

pelo que tem. A propriedade privada se tornou um fenômeno histórico-mundial (MARX,

2004, pg.102), ela é um modo de apropriação de si mesmo e do outro, é uma maneira de se

relacionar socialmente. É possível de ser sentida como limitadora, não só pelo distanciamento

entre o produto e seu produtor, mas, também, nas esferas consideradas mais íntimas de nossas

vidas. A propriedade é um modo se relacionar socialmente, romper com ela, significa

construir uma nova maneira de se relacionar (MARX, 2004, pg.103). Nos alerta Marx: “...O

lugar de todos os sentidos físicos e espirituais passou a ser ocupado, portanto, pelo sentido do

ter. A esta absoluta miséria tinha de ser reduzida a essência humana, para com isso trazer para

fora de si sua riqueza interior...”( MARX, 2004, p.103)

É preciso conhecer, portanto, a especificidade da propriedade privada, saber como ela

se tornou um fenômeno histórico-mundial. Enxergar o seu enraizamento em nosso ser, nos

nossos fazeres, nas nossas relações. Não é possível simplesmente ignorá-la. Por esse motivo,

a necessidade da elaboração teórica, de encontrar conscientemente a conexão entre a

propriedade privada e o advento do modo de produção capitalista, saber da importância que

ela ocupa na sociedade contemporânea. Por isso, a crítica de Marx ao comunismo considerado

rude, por ele:

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[...] O comunismo é, finalmente, a expressão positiva da

propriedade privada supra-sumida, acima de tudo a propriedade

privada universal. Ao apreender esta relação em sua universalidade,

ele é 1) só uma generalização e aperfeiçoamento da mesma em sua

mesma figura; como tal, mostra-se em uma figura duplicada, uma vez

o domínio da propriedade coisal (sachliche) é tão grande frente a ele

que ele quer aniquilar tudo que não é capaz de ser possuído por todos

como propriedade privada; ele quer abstrair de um modo violento do

talento etc.; a posse imediata, física, lhe vale como finalidade única da

vida e da existência; a determinação do trabalhador não é supra-

sumida, mas estremecida a todos os homens; a relação da propriedade

privada permanece [sendo] a relação da comunidade com o mundo das

coisas (Saschewelt); finalmente, este movimento de contrapor a

propriedade privada universal à propriedade privada se exprime na

forma animal – na qual o casamento (que é certamente uma forma de

propriedade exclusiva) é contraposto à comunidade das mulheres, no

qual a mulher vem a ser, portanto, uma propriedade comunitária e

comum. Pode-se dizer que esta idéia da comunidade das mulheres é o

segredo expresso deste comunismo ainda considerado rude e

irrefletido (...) Este comunismo – que por toda a parte nega a

personalidade do homem – é precisamente apenas a expressão

consequente da propriedade privada, que por sua vez é esta negação

(...) Ele tem uma medida determinada limitada. Quão pouco esta

supra-sunção da propriedade privada é uma apropriação efetiva prova-

o precisamente a negação abstrata do mundo inteiro da cultura

(Bildung) e da civilização; o retorno à simplicidade [IV] não natural

do ser humano pobre e sem carências que não ultrapassou a

propriedade privada, e nem mesmo até ela chegou.

A espiritualidade humana, a sua maneira de sentir o mundo também é lugar inventado,

oriundo das relações sociais. Nesse sentido, é possível percebermos a amplitude do que é a

sociabilidade, e saber que não é apenas estar entre pessoas. Nos nossos momentos mais

solitários, mais isolados, ainda vivemos, a nossa vida ainda pulsa, nossos sentidos ainda

existem e se expressam. Aprendemos a sentir o ambiente construído ao nosso redor e a nós

mesmos na nossa relação com o outro, com a natureza que é apropriada, não porque usamos

um pronome possessivo para se referir a ela, mas porque dialogamos com as suas

particularidades concretas. A natureza é re-inventada, tudo o que faz parte de quem somos é

oriundo dessa interlocução que é um ato de transformação, de um novo devir que não nega a

história, que não nega o que um dia foi, o que um dia houve. É preciso saber da diferença, das

particularidades, para nos situarmos entre elas, para lançá-las em novo horizonte:

[...] assim como a música desperta primeiramente o sentido musical

do homem, assim como para o ouvido não musical a mais bela música

não tem nenhum sentido, é nenhum objeto, porque o meu objeto só

pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, portanto

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só pode ser para mim da maneira como a minha força essencial é para

si como capacidade subjetiva, porque o sentido de um objeto para

mim (só tem sentido para um sentido que lhe corresponda) vai

precisamente tão longe quanto vai o meu sentido, por causa disso é

que os sentidos do homem social são sentidos outros que os não os do

não social; [é] apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da

essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que

um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em suma as

fruições humanas todas se tornam sentidos capazes, sentidos que se

confirmam como forças essenciais humanas, em parte recém

cultivados, em parte recém engendrados. Pois não só os cinco

sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os

sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra o sentido

humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela

existência do seu objeto, pela natureza humanizada. (MARX, 2004,

p.110, grifo do autor)

A pessoa que estranha a si naquilo que faz, assim como, lhe é estranho e alheio o

produto realizado por ela, não percebe a conexão de sua essência, de sua particularidade

individual com a força essencial humana. Na “Ideologia Alemã” Marx demonstra com

bastante clareza a tensão entre relação social e força essencial humana, portanto produtiva. A

propriedade privada, enquanto fenômeno histórico mundial do modo de produção capitalista,

é a própria confirmação das barreiras para a liberdade humana, por isso superá-la é

fundamental, saibamos:

[...] A supra-sunção da propriedade privada é, por conseguinte, a

emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos;

mas ela é esta emancipação justamente pelo fato desses sentidos e

propriedades terem se tornado humanos, tanto subjetiva quanto

objetivamente. O olho se tornou olho humano, da mesma forma como

o seu objeto se tornou um objeto social, humano, proveniente do

homem para o homem (...) Eu só posso, em termos práticos,

relacionar-me humanamente com a coisa se a coisa se relaciona

humanamente com o homem. A essência ou fruição perderam, assim,

a natureza egoísta e a natureza a sua mera utilidade (Nutglirhkeit) na

medida em que a utilidade (Nutzen) se tornou utilidade humana.

(MARX, 2004, p.109, grifo do autor)

Marx viveu num outro século, há muito tempo já faleceu, a escritura de suas obras

datam de um período bastante distante, mas ainda vivemos num mesmo momento histórico,

na época da sociedade burguesa, por isso a importância de sua teoria, e da própria elaboração

teórica na rota da emancipação humana: é conhecer a si mesmo, o que só pode ser possível se

implica no conhecimento de todo o emaranhado de relações sociais, do qual fazemos parte e

somos conseqüência. “...A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões não para que o

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homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva

brote...”(MARX, 2005, p.146)

Não retrocedamos, não neguemos que o próprio conhecimento também adquiriu a

forma mercadológica, que o seu desenvolvimento caminhou no sentido de um

aperfeiçoamento da propriedade privada. Possuir qualificação científica na atualidade

significa a garantia ou, pelo menos, a preocupação de garantir a renovação e continuidade

deste modo de relação social. É nesse sentido que eficiência e produtividade científicas são

julgadas, são medidas. E para julgar, para medir, não existe apenas uma ciência, mas pacotes

de conhecimento, cada um com um objeto, com uma especificidade funcional que contribuem

tanto para o desenvolvimento da força essencial humana (logo produtiva), como para a

manutenção dos grilhões do atual momento histórico, ou seja, da maneira como as pessoas se

relacionam. Cada indivíduo situado num modo de conhecimento, como profissional do ramo,

torna o seu meio de vida uma afirmação de sua identidade, vê a sua potência no

aperfeiçoamento de sua especialidade, confia nesta como confirmação de sua existência, a sua

maior garantia de vida é transitar cotidianamente como mercadoria.

[...] As ciências naturais desenvolveram uma enorme atividade e se

apropriaram de um material sempre crescente. Entretanto, a filosofia

permaneceu para elas tão estranha justamente quanto elas

permaneceram estranhas para a filosofia. A fusão momentânea foi

apenas uma ilusão fantástica. Havia a vontade, mas faltava a

capacidade. A própria historiografia só de passagem leva em

consideração a ciência natural como momento de esclarecimento

(Aufklarung) da utilidade de grandes descobertas singulares. Mas

quanto mais a ciência natural interveio de modo prático na vida

humana mediante a indústria, reconfigurou-a e preparou a

emancipação humana, tanto mais teve de completar de maneira

imediata, a desumanização. (MARX, 2004, p.111)

FUTURO PRESENTE

Todas as obras de Marx, independente de terem sido publicadas durante a sua

existência, ou postumamente, seguem um mesmo sentido, a busca do máximo florescer das

potencialidades humanas, ou seja, a capacidade de ser uma forma de vida que reinventa a si

mesma, que constrói a sua própria história.

[...] Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história. A

história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e

história dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis,

enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos

homens se condicionarão reciprocamente. A história da natureza, a

chamada ciência natural, não nos interessa aqui; mas teremos que

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examinar a história dos homens, pois quase toda a ideologia se reduz a

uma concepção distorcida desta história, ou a uma abstração completa

dela. A própria ideologia não é senão um dos aspectos desta história.

(MARX, 1999, p.23)

Se pretende buscar o amanhecer da liberdade, da emancipação humana, a ciência

pretendida, a de convergência dos diversos saberes, é a história, não a historiografia, não a

disciplina inscrita no âmbito acadêmico, mas aquela referente ao percurso da humanidade,

que nos ajuda a compreender como o trabalho humano, as relações sociais, as forças essências

humanas adquiriram a atual configuração. Não é somente uma análise social, é uma pesquisa,

investigação constante, realizada cotidianamente, possível em nossos mais variados

pensamentos e ações. Constatar no ato de fazer uma comida, de compor uma canção ou de

tecer uma roupa, a intrínseca heterogeneidade desvelada quanto mais nós aproximamos de

algo ou de alguém. Saber que a nossa personalidade, nossa individualidade singular, é

conseqüente de nossas relações sociais, da maneira como nos posicionamos todos os dias.

Posições re-inventadas, participantes de uma história que nos precede, somos herdeiros da

riqueza humana, mas, também, da atual miséria. Esta, além do desprovimento mais alarmante,

se dá na própria condição de existência na sociedade burguesa, os grilhões desse momento

histórico são as correntes em nossos atos. Se somos o que fazemos e como fazemos, o limite

do nosso vôo é sentido no trabalho que é condição para que tenhamos condição de viver, é nas

mediações que não enriquecem a nossa sensibilidade, e sim configuram abismos e sombras

que restringem a nossa visão sobre as nossas próprias vidas. A proposta de ciência elaborada

por Marx é a de saber de si ao conhecer o outro, ao conhecer aquele não é idêntico a ti, é

perceber que a corda bamba, bem afiada, em baixo de seus pés, não é exclusivamente tua.

Esta tensão, explícita ou implicitamente está presente em toda sociedade, às vezes sentida a

flor da pele, às vezes sem conseguir romper a barreira da aparente indiferença. A teorização é

uma maneira de compartilhar o seu conhecimento, e se abrir para o espaço a ser preenchido

que constantemente haverá nele. Se não puder responder a todas as dúvidas, a todas as

questões possíveis de serem levantadas, erguidas, haverá o ímpeto do seu levante, expresso na

sua busca, não para saber mais, não para conseguir acumular mais informações. Tornar a

consciência de sua própria existência uma sonda por fendas que ainda te permitam sonhar, e

que o sonho seja motivo para prosseguir.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MARX, Karl. Debate Acerca da Lei Sobre o Furto de Lenha, Anexo IV, In: EIDT, CELSO. O

Estado Racional: Lineamentos do Pensamento Político de Karl Marx nos Artigos da Gazeta

Renana (1842 - 1843). Belo Horizonte: UFMG, 1998. Em:

http://www.verinotio.org/di/di4_racional.pdf

__________. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1999.

__________. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo,2004.

__________. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.