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1 Rudolf Steiner A ARTE DA EDUCAÇÃO I O estudo geral do homem,uma base para a Pedagogia (Curso de Antropologia Geral para professores Waldorf) Catorze conferências, proferidas em Stuttgart de 21 de agosto a 5 de Setembro de 1919, por ocasião da fundação da Escola Waldorf Livre Tradução de RUDOLF LANZ JACIRA CARDOSO

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    Rudolf Steiner

    A ARTE DA EDUCAO I

    O estudo geral do homem,uma base para a Pedagogia

    (Curso de Antropologia Geral para professores Waldorf)

    Catorze conferncias, proferidas em Stuttgart de 21 de agosto a 5 de Setembro de 1919, por ocasio da fundao da Escola Waldorf Livre

    Traduo de RUDOLF LANZ

    JACIRA CARDOSO

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    NOTA INTRODUTRIAa

    Aps o trmino da Guerra Mundialb o Dr. Rudolf Steiner, atendendo ao pedido de alguns membros da Sociedade Antroposfica, proferiu tambm em Stuttgart suas abrangentes conferncias sobre a trimembrao do organismo social, as quais formam o contedo de seu livro Die Kernpunkte der sozialen Frage [Os pontos centrais da questo social].c

    As sugestes dadas ento pelo Dr. Rudolf Steiner fizeram amadurecer no conselheiro comercial Emil Molt a deciso de fundar uma escola que pudesse representar uma espcie de clula germinativa de uma vida espiritual livre. A seu pedido o Dr. Rudolf Steiner assumiu a direo espiritual dessa escola, tendo-se empenhado incansavelmente em seu florescimento.

    inaugurao da Escola Waldorf Livre precedeu um curso pedaggico que o Dr. Rudolf Steiner ministrou durante trs semanas, em agosto e setembro de 1919, aos primeiros professores do estabelecimento e a uma srie de personalidades que desejavam atuar no sentido de sua pedagogia.

    Esse curso abrangia trs etapas. Inicialmente foram proferidas catorze conferncias sobre antropologia antroposfica como fundamento de uma pedagogia adequada nossa poca e ao futuro prximo. So o contedo deste livro. Seguiram-se conferncias que revelaram a eficincia da antropologia antroposfica no manuseio da metodologia e da didtica no ensino e na educao. Juntamente com as presentes conferncias, a cujo con-tedo se referem constantemente, formam uma unidade.

    s etapas das conferncias seguiram-se discusses sob forma seminarstica, nas quais Rudolf Steiner debateu com os professores a elaborao prtica de certas disciplinas e os caminhos para uma soluo de problemas educacionais. Essas discusses foram tambm publicadas.

    Os ouvintes vivenciaram nesse curso um acontecimento espiritual que realizando-se com toda a tranqilidade num pequeno crculo - tencionava servir Humanidade em sua evoluo superior. Os professores da Escola Waldorf Livre desejam, com o sentimento de sua profunda gratido, acompanhar esta obra de Rudolf Steiner em seu caminho pelo mun-do, a fim de fecundar a educao e o ensino em todo lugar onde for acolhida com plena compreenso.

    O Colgio de Professores da Escola Waldorf Livre

    a Da primeira edio do original (1932), sob o ttulo Uma palavra de gratido. (N.E.)

    b A primeira (19141918). (N.T.)

    c GA 23 (6. ed. Dornach: Rudolf Steiner Verlag, 1976). (N.T.)

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    PREFCIO PRIMEIRA EDIO (1932) Marie Steiner

    Estudo geral do homem foi este o ttulo escolhido por Rudolf Steiner para o primeiro ciclo de conferncias pedaggicas que proferiu aos professores da nova Escola Waldorf Livre a ser fundada. Pois sua arte educacional construda sobre o conhecimento plurilateral do ser humano no apenas do homem terreno, mas tambm do recndito homem anmico e espiritual. E para o mundo das manifestaes fsicas, moldadas segundo arqutipos, ele quer obter uma atenta formao da conscincia mediante esse mtodo educacional que conta com o eterno cerne essencial vivente no homem e com a transformao dos fenmenos no devir natural e histrico.

    Esta nova escola, diz ele em seu pronunciamento na festa de inaugurao, deve realmente ser inserida naquilo que exigido pela evoluo da Humanidade justamente em nossos dias e para o futuro prximo. E em verdade, tudo aquilo que afinal flui para a educao e o ensino a partir de tais premissas revela-se como um trplice dever sagrado.

    E prossegue: Que seria, enfim, de todo ato de sentir a si prprio, conhecer e atuar na comunidade humana, caso no pudesse confluir no sagrado compromisso que justamente o professor, o educador se impe ao levar a efeito em sua especfica comunidade social, para com o ser humano em formao e crescimento, um servio que se pode chamar de comunitrio no mais sublime sentido!

    Tudo aquilo que finalmente podemos saber do homem e do mundo s ser devidamente frutfero quando pudermos transmiti-lo vivamente queles que formaro o mundo social quando no mais pudermos estar presentes com nosso trabalho fsico.

    Tudo o que somos capazes de realizar artisticamente s se tornar algo sublime quando pudermos faz-lo afluir para a Arte maior, na qual no nos entregue um material artstico morto como argila e cor nela nos entregue sob forma inacabada o ser humano vivente, que devemos transformar at certo grau, de maneira artstica e educativa, num ser humano completo. E acaso no ser, afinal, um compromisso sublime, sagrado, religioso, cultivar na educao o aspecto divino-espiritual que se manifesta e revela de forma renovada em cada ser humano que nasce? No ser esse servio educativo um culto religioso no mais elevado sentido da palavra? No devemos todos ns fazer confluir nossas emoes humanas, devotadas justamente ao sentimento religioso, para o ofcio cultual que realizamos ao procurar desenvolver na criana em formao o elemento divino-espiritual do homem, que se manifesta como algo predisposto nele?

    Cincia permeada de vida! Arte permeada de vida! Religio permeada de vida!

    eis enfim a educao, eis enfim o ensino. Quando se compreende o ensinar e o educar neste sentido, no se tem a inclinao de exercer levianamente crticas ao que, de outro lado, estabelecido como princpios, intuitos e fundamentos para a arte da educao. S que a mim no parece que algum possa discernir de forma correta justamente aquilo que a cultura atual da educao e do ensino impe se no puder perceber o quanto necessria, em nossa poca, uma completa renovao espiritual se no for capaz de reconhecer profundamente como ao futuro deve afluir, no que fazemos como professores e educadores, algo totalmente diverso daquilo que pode prosperar na esfera hoje denominada educao cientfica. Contudo, hoje o professor que deve formar o homem do futuro introduzido na opinio, na mentalidade da cincia atual! Jamais me ocorreu censurar depreciativamente essa cincia atual. Estou inteiramente compenetrado do apreo por tudo que essa cincia do presente alcanou de triunfos para a evoluo da Humanidade, com sua opinio e seu mtodo cientfico baseados justamente no conhecimento da Natureza, e pelo que ainda alcanar no futuro. Mas justamente por isso

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    assim me parece , o que emana da opinio cientfica e cultural atual no pode ser frutiferamente transmitido arte da educao e do ensino, porque a grandeza dessa opi-nio reside em algo diferente do lidar com o ser humano e do insight no corao, na ndole do homem. Podem-se fazer enormes progressos tcnicos com o que jorra da atual mentalidade. Com ela pode-se tambm desenvolver uma livre opinio da Humanidade no aspecto social; mas no se pode por mais grotesco que isto possa soar ainda hoje maioria das pessoas , com uma opinio cientfica que, por um lado, chegou paulatinamente convico de que o corao humano uma bomba e de que o corpo fsico humano uma engrenagem mecnica, com os sentimentos e sensaes que emanam dessa cincia, vivificar a si prprio a fim de poder ser um artstico educador da pessoa em desenvolvimento. Justamente pelo fato de nossa poca engrandecer tanto o domnio da tcnica morta que impossvel desenvolver a viva arte de educar. Ento preciso que um novo esprito interfira na evoluo da Humanidade justamente o esprito que procuramos por nossa Cincia Espiritual. O Esprito que conduz a ver no homem vivente o portador de instrumentos de pulso e suco um mecanismo s pode ser compreendido segundo os mtodos cientfico-naturais. Cumpre introduzir na mentalidade espiritual da Humanidade a convico de que o esprito vive em toda existncia natural, e que se pode reconhec-lo.

    E assim procuramos, no curso que precedeu nossa iniciativa escolar Waldorf, e destinado aos professores, fundamentar uma antropologia, uma cincia educacional capaz de tornar-se uma arte da educao, uma arte da condio humana, que a partir do morto desperte novamente o vivo no homem. O morto e este o mistrio de nossa atual cultura moribunda , o morto torna o homem sapiente, torna o homem compreensivo quando este o acolhe como lei natural; mas enfraquece sua ndole, da qual deve emanar o entusiasmo, justamente na educao. Enfraquece a vontade. No coloca o homem harmoniosamente dentro da existncia total, abrangente. Procuramos por uma cincia que no seja simplesmente cincia, que seja ela prpria vida e sensibilidade, e que no momento em que afluir para a alma humana como saber desenvolva ao mesmo tempo a fora de viver nela como amor, a fim de jorrar como querer efetivo, como trabalho imerso no calor anmico , como trabalho que se transponha principalmente ao vivo, ao ser humano em formao. Precisamos de uma nova mentalidade cientfica. Precisamos de um novo esprito em primeiro lugar para todo e qualquer ensino, para toda e qualquer educao...

    A convico de que o chamado que ressoa da evoluo da Humanidade exige um novo esprito para a poca atual, e de que devemos levar esse esprito antes de tudo para o mbito da educao, que fundamenta es esforos da escola Waldorf, a qual deveria ser um exemplo-padro. E procurou-se ouvir o que inconscientemente reside nas exi-gncias justamente das melhores pessoas que no mais recente passado se empenharam num saneamento, numa regenerao da arte da educao e do ensino...

    Eis que o mestre em pedagogia se questiona: ser que podemos tambm compreender que tipo de foras atuam na natureza humana, que quase a cada ms mas, em todo caso, a cada ano nos dirige um semblante corpreo-anmico-espiritual diferente? Enquanto no tivermos uma cincia histrica real assim dizem esses pedagogos , tampouco poderemos saber como se desenvolve o homem individual. Pois o indivduo representa por si, de maneira concentrada, aquilo que toda a Humanidade representa no decurso de seu devir histrico.

    Tais pessoas sentem que, no fundo, a cincia atual falha quando lhe compete dizer algo sobre aquelas grandiosas leis vigentes atravs da Histria, e quando se deveria compreender, no atual momento, alquilo que emana para ns dessas grandes e abrangentes leis histricas da evoluo da Humanidade. Querer compreender o homem individual a partir da qualidade dos alimentos que ele assimila desde o primeiro sopro respiratrio at morte seria uma pretenso extremamente tola; mas no tocante Histria, compreenso da completa evoluo da Humanidade, no fundo assim que as

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    pessoas se comportam. No caso do homem preciso saber como, por exemplo, um processo fisiolgico como

    a troca dos dentes interfere na evoluo. preciso saber tudo que de misterioso ocorre fisicamente a partir de uma fisiologia totalmente nova, que a atual cincia ainda no possui. Mas tambm preciso saber o que acompanha animicamente essa reviravolta. Cumpre conhecer as metamorfoses da natureza humana. No caso do homem individual, ao menos no se negar, mesmo diante da impossibilidade de reconhec-lo, que a partir de seu mais ntimo ser o homem experimenta metamorfoses e transformaes. No devir his-trico de toda a Humanidade no se admite algo assim. Os mesmos mtodos so empregados para a Antigidade, para a Idade Mdia, para a poca moderna. Com isto no se permite que ocorram grandes saltos na evoluo histrica da Humanidade. Ao olharmos retrospectivamente para o devir histrico, encontramos um ltimo salto no sculo XV. Tudo que na poca mais atual se transformou no sentir, pensar e querer da Humanidade, tal como os conhecemos hoje, s recebeu seu ntimo carter na humanidade civilizada a partir do sculo XV. E essa humanidade civilizada se distingue daquela do sculo X ou VIII da mesma forma como a criana de doze anos diverge daquela que ainda no atingiu os sete anos. E o que ocorreu no sculo XV como reviravolta produziu-se a partir do mais ntimo cerne da Humanidade, tal como da mais ntima natureza humana se produz a regular evoluo da troca de dentes. E todo o clima em que vivemos hoje, no sculo XX esse anseio por individualidade, o anseio pela estruturao social, o anseio pelo aperfeioamento da personalidade apenas uma conseqncia daquilo que as foras inerentes Histria transmitiram desde o momento apontado acima.

    S poderemos compreender como o homem quer situar-se no presente se compreendermos a trilha que a evoluo da Humanidade empreendeu da maneira descrita...

    Quem observa em profundidade a gerao que se forma tem um ntido sentimento de que os homens, juntamente com o que elaboram, com o que pensam e sentem, e tambm com o que anseiam para o futuro como adultos, despontaram do seio da Histria. E o que hoje constitui as profisses, a organizao estatal, nos quais os homens podem situar-se, nasceu desses mesmos homens! No est anexo a esses homens como uma exterioridade! No se pode absolutamente perguntar: ser que se deve educar o homem mais para a natureza humana ou mais para a profisso exterior? pois, vistas corretamente, ambas so afinal a nica e mesma coisa!

    Se hoje pudermos desenvolver uma viva compreenso para o que exteriormente so as profisses, as pessoas, ento estaremos desenvolvendo tambm a compreenso para o que as geraes precedentes, as quais ainda vivem e tm ocupaes, trouxeram do seio materno da Humanidade para dentro do presente.

    Com a separao entre educao para o ser humano e educao para a profisso no chegamos a sentir-nos professores e educadores como necessrio. Para tal preciso viver em ns algo que exteriormente no visvel em uma profisso, em uma organizao poltica, em nenhum lugar no mbito externo. Para tal preciso viver em ns aquilo que somente as geraes subseqentes levaro ao plano exterior da vida. Para tal cumpre viver em ns um proftico e efetivo estado de unio com a evoluo vindoura da Humanidade. Dessa unio que depende o sentir, o pensar e o querer artstico-educativos de um universo docente. Que possa fluir para o universo docente o que possvel saber sobre o homem em formao, tal qual um sangue vital anmico-espiritual que, sem constituir apenas saber, torne-se arte eis a que deve aspirar uma viva pedagogia e didtica da atualidade. E dessa didtica viva s pode emanar aquilo que deve penetrar no corao, na ndole e no intelecto infantis...

    No nos compete, em absoluto, transmitir pessoa em formao nossos dogmas, nossos princpios, o contedo de nossa cosmoviso. No aspiramos a criar uma educao dogmtica. Aspiramos a que os dados obtidos por ns mediante a Cincia Espiritual se tornem ao educacional viva. Aspiramos a possuir em nossa metodologia, em nossa

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    didtica, as possveis emanaes da Cincia Espiritual viva aplicadas como tratamento anmico do homem. Da cincia morta s pode emanar o saber; da Cincia Espiritual viva emanar metodologia, didtica, um manejo no sentido anmico-espiritual. Poder ensinar, poder educar, eis nossa aspirao!...

    Entretanto, observaremos honestamente o que louvamos: que as diversas confisses religiosas possam ministrar seu prprio ensino religioso, podendo trazer para dentro de nossa escola seus princpios ideolgicos. Apenas esperamos que da mesma forma como perturbaremos ao mnimo as cosmovises que sero trazidas para nossa escola, tampouco seja perturbado aquilo que queremos introduzir da forma mais modesta apenas provisoriamente como uma arte. Pois sabemos que de incio a Humanidade dever entender que de uma cosmoviso espiritual pode surgir uma arte da educao no sentido pedaggico, metdico, didtico, antes de vir a ter uma correta compreenso das questes ideolgicas e suas inter-relaes. Portanto, no fundaremos uma escola ideolgica. Uma escola artstico-educativa o que estaremos esforando-nos por fundar com a Escola Waldorf.

    As conferncias sobre o estudo geral do homem seguiram-se aquelas sobre metodologia e didtica da educao e, finalizando, um seminrio decorrido em livre discusso. Com estes trs ciclos seria transmitido o fundamento da arte educativa de Rudolf Steiner, como um remdio redentor, nossa Humanidade em vias de submergir em carncia anmica e material.

    PRIMEIRA CONFERNCIA 21 de agosto de 1919

    Somente poderemos fazer jus nossa tarefa se no a considerarmos simplesmente intelectual e emotiva, mas tica e espiritual, no sentido mais elevado; portanto, os Senhores acharo compreensvel que, ao comearmos hoje este trabalho, procuremos em primeiro lugar refletir sobre a relao que desejamos, logo de incio, estabelecer com os mundos espirituais atravs desta nossa atividade. Devemos ter conscincia, quanto a essa tarefa, de no estarmos atuando simplesmente como pessoas que vivem aqui, no plano fsico; tal maneira de se proporem tarefas tem tido, nos ltimos sculos, uma propagao sempre crescente, tendo ocupado as pessoas de maneira quase exclusiva. O que resultou do ensino e da educao, sob essa concepo das tarefas, justamente o que deve ser melhorado pela misso que nos estamos propondo. Reflitamos, pois, ao iniciar esta atividade preparatria, sobre a forma pela qual podemos estabelecer, em seus detalhes, a relao com aqueles poderes espirituais a cujo encargo e sob cujo mandato cada um de ns dever de certo modo trabalhar. Peo-lhes, portanto, que compreendam estas palavras introdutrias como uma espcie de orao queles poderes que, imaginando, inspirando e intuindoa, devero estar em nossa retaguarda enquanto nos desincumbimos dessa tarefa.

    Meus queridos amigos, cumpre sentirmos a importncia de nosso trabalho. Ns o conseguiremos se tivermos conscincia da misso especial que caracteriza esta escola. Empenhemo-nos, pois, em realmente concretizar nossos pensamentos, dando-lhes uma forma que nos permita ter a conscincia de que com esta escola algo de especial ser rea-lizado. Para tal, a fundao desta escola no deve ser considerada algo corriqueiro, mas um ato solene da ordem universal. Neste sentido quero inicialmente expressar os mais cordiais agradecimentos aos bons espritos que inspiraram ao nosso querido Sr. Molt a boa idia, propcia ao prosseguimento da evoluo humana, de neste sentido e neste lugar

    a Sobre a imaginao, a inspirao e a intuiao no sentido antroposlico, v. Rudolt Steiner. O conhecimento inicitico (3. ed. So Paulo: Antroposfica, 2000), 1 e 2 confers. (N.T.)

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    realizar o que se concretizou como a Escola Waldorf a; quero faz-lo em nome do bom esprito que deve guiar a Humanidade, de uma situao de calamidade e sofrimento, para um estado superior de desenvolvimento em ensino e educao. Sei que o Sr. Molt est cnscio do fato de hoje s dispormos de dbeis foras para realizar essa tarefa. assim que ele julga a situao; mas justamente pelo fato de sentirmos, com ele, a grandeza da tarefa e o momento no qual esta se inicia como algo solene da ordem csmica, que ele poder atuar com acertada energia em nosso meio. Deste ponto de vista, meus caros amigos, consideremo-nos a ns prprios como entidades humanas que o carma colocou num lugar a partir do qual se deve realizar no algo comum, mas algo capaz de suscitar em todos os participantes a sensao de encerrar em si um solene momento csmico.

    Queremos iniciar com explanaes sobre nossa tarefa pedaggica, a cujo respeito eu gostaria de proferir-lhes hoje uma espcie de introduo. Teremos de fazer uma distino entre nossa tarefa pedaggica e aquelas que a Humanidade se props at agora. Deveremos faz-lo no pela vaidade e presuno de sermos o ponto de partida para uma nova ordem pedaggica mundial, mas porque a Cincia Espiritual Antroposfica nos certifica de que a seqncia das fases evolutivas da Humanidade coloca o homem diante de tarefas sempre novas. Diferente era a tarefa da Humanidade na primeira poca ps-atlntica, outra na segunda, e assim at adentrar nossa quinta poca.b Ora, aquilo que deve ser realizado em determinada poca da evoluo s se torna consciente para a Humanidade algum tempo depois de essa poca ter comeado.

    A poca atual da evoluo comeou em meados do sculo XV. somente hoje que de certa forma emerge das profundezas espirituais o conhecimento daquilo que deve ser feito em nossa poca justamente em matria de ensino. At agora os homens, mesmo quando animados da maior boa vontade, tm trabalhado pedagogicamente conforme os princpios da antiga educao, ainda relativa ao quarto perodo ps-atlntico. Muito depender do fato de sabermos, desde o incio, enfrentar nossa tarefa compreendendo que devemos dar nossa poca uma orientao bem definida uma orientao que no seja importante no sentido de ser absolutamente vlida para toda a Humanidade em sua evoluo, mas de s-lo justamente para a nossa poca. O materialismo tem provocado nas pessoas, entre outros efeitos, a falta de conscincia das especficas tarefas de uma poca especfica, mas principalmente peo-lhes guardar bem isto o conhecimento de que pocas especficas tm suas tarefas especficas.

    Os Senhores vo receber, para serem ensinadas e educadas, crianas que j atingiram uma determinada idade, e devero estar cnscios de que as recebero depois de elas haverem passado, em seus primeiros anos de vida, pela educao e, muitas vezes, pela deseducao por parte dos pais. S atingiremos nossa meta quando estivermos, como Humanidade, to adiantados que os prprios pais compreendam, j no primeiro perodo da educao, que tarefas especiais se impem Humanidade de hoje. Contudo, muito do que foi prejudicado na prinmeira poca da vida ainda poderemos melhorar quando recebermos as crianas na escola.

    Devemos, porm, imbuir-nos vigorosamente da conscincia que possibilitar a cada um de ns conceber nosso ensino e nossa educao.

    No esqueam, ao dedicar-se ao seu trabalho, que toda a atual cultura, at as esferas mais espirituais, baseada no egosmo da Humanidade. Observem sem preconceitos o campo espiritual ao qual se dedica hoje o homem, o mbito da religio, e perguntem-se se nossa civilizao, justamente nesse mbito, no dominada em seu egosmo. O que em nossa poca caracteriza as prdicas justamente o fato de os predicadores procurarem atingir o homem em seu egosmo. Tomem logo aquilo que deveria atingir o homem mais

    a Sobre a fundao da primeira escola Waldorf, v. Johannes Hemleben, Rudolf Steiner (2. ed. So Paulo: Antroposfica, 1989), cap. Pedagogia Waldorf. (N.T.) b A respeito das fases evolutivas da humanidade, v. Rudolf Steiner, A cincia oculta (5. ed. So Paulo: Antroposfica, 2001), cap. A evoluo do Universo e o homem. (N.T.)

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    profundamente, ou seja, a questo da imortalidade, e considerem que no campo dos sermes tudo tende a enfocar o supra-sensvel pelo lado do egosmo. Graas ao egosmo o homem deseja atravessar o portal da morte mantendo o seu eu, e no desprovido de essncia. Isso no deixa de ser um egosmo, embora mais refinado. a ele que, de maneira mais ampla, toda religio apela hoje ao abordar o problema da imortalidade. Por este motivo, a religio costuma dirigir-se aos homens esquecendo uma das extremidades da existncia terrena e levando em conta apenas a outra focalizando antes de tudo a morte e ignorando o nascimento.

    Mesmo quando no claramente expressa, essa atitude est subjacente. Vivemos numa poca em que esse apelo ao egosmo humano deve ser combatido em todas as esferas, para evitar que os homens se afundem sempre mais no caminho descendente seguido por nossa civilizao. Teremos de focalizar sempre mais a outra extremidade da evoluo humana dentro da existncia terrena, ou seja, o nascimento. Teremos de acolher em nossa conscincia o fato de que o homem se desenvolve durante muito tempo entre a morte e o novo nascimento, atingindo nessa evoluo um ponto em que deve, por assim dizer, morrer para o mundo espiritual, uma vez que no pode continuar a viver a sem passar para outra forma de existncia. Essa outra forma o homem a recebe deixando-se revestir pelos corpos fsico e etrico. Ele no poderia alcanar o nvel que adquire mediante o revestimento dos corpos fsico e etrico se continuasse, em linha reta, sua evoluo apenas no mundo espiritual. Sendo-nos possvel olhar para a criana, do seu nas-cimento em diante, apenas com olhos fsicos, devemos ter conscincia de que isto tambm uma continuao. No vejamos, pois, apenas aquilo que o ser humano vive depois da morte, isto , a continuao espiritual da vida terrestre; tornemo-nos cnscios de que a existncia fsica aqui uma continuao da espiritual, e de que pela educao temos de continuar aquilo que j foi realizado, sem nossa participao, por seres superiores. Nosso sistema pedaggico e educacional s ser impregnado de uma mentalidade correta se nos tornarmos cnscios de que nossa atuao sobre o ser humano nada seno a continuao daquilo que os seres superiores j fizeram antes do nascimento.

    Em nossa poca, na qual os homens, em seus pensamentos e sentimentos, perderam o contato com os mundos espirituais, acontece freqentemente indagar-se de maneira abstrata algo que, para uma cosmoviso espiritualista, no tem qualquer sentido. Pergunta-se como se deve conduzir a chamada educao pr-natal. H muitas pessoas que hoje encaram as coisas de maneira abstrata: quando se consideram as coisas de maneira correta, no se pode, em certos domnios, continuar a formular a pergunta de uma forma qualquer. Uma vez mencionei este exemplo: Numa estrada de terra percebem-se sulcos; algum pode perguntar: De onde vm? De um carro que passou por ai. Por que o carro passou por a? Porque os passageiros queriam chegar em determinada localidade. Por que queriam chegar ali? Na realidade, tal srie de perguntas deve chegar a um fim. Permanecendo-se na abstrao, sempre se poder continuar a pergunta: Por qu? A roda das perguntas pode sempre continuar girando. O pensar concreto encontra sempre um fim: o pensar abstrato faz o pensamento transcorrer sem um final, tal qual uma roda. O mesmo acontece com perguntas relativas a mbitos no acessveis. Os homens refletem sobre educao e indagam a respeito da educao pr-natal. Mas antes de nascer, o ser humano ainda est sob a guarda de entidades suprafsicas, a cujo cuidado devemos deixar a relao imediata entre o Universo e o ser individual. Por isso, uma educao pr-natal ainda no uma tarefa relativa prpria criana. S pode ser uma conseqncia inconsciente daquilo que os pais, em particular a me, realizam. Se at o parto a me se comporta expressando em si mesma aquilo que, no sentido moral e intelectual, est correto, o resultado de tal auto-educao se transmitir criana. Quanto menos se pensar em educar a criana j antes de esta vir luz, e quanto mais se pensar em conduzir a prpria vida corretamente, tanto melhor ser para a criana. A educao s pode ter incio quando a criana est realmente integrada ao plano fsico, e isto se d no

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    momento em que ela comea a respirar o ar exterior. Uma vez que a criana surgiu no plano fsico, devemos ter conscincia daquilo que

    realmente lhe sucedeu nessa transio de um plano espiritual para o fsico. A convm lembrarmos que o ser humano realmente constitudo de dois membros. Antes de seu aparecimento na Terra, j se forma um vnculo entre o esprito e a alma; entendemos aqui por esprito algo que hoje est bem oculto no mundo fsico, e que na Cincia Espiritual denominamos personalidade espiritual, esprito vital e homem-esprito.a Esses membros da entidade humana tm, de certa forma, existncia na esfera supra-sensvel que devemos esforar-nos por alcanar; entre a morte e um novo nascimento, j estamos, de certa maneira, ligados ao homem-esprito, ao esprito vital e personalidade espiritual. A fora que emana dessa trade permeia a parte anmica do homem, ou seja, as almas da conscincia, do intelecto (ou do sentimento) e da sensao.

    Se os Amigos pudessem observar o ser humano que, terminada a existncia entre a morte e o novo nascimento, dispe-se a descer ao mundo fsico, encontrariam essa parte espiritual ligada anmica. Como uma alma espiritual ou um esprito anmico que o homem passa de uma esfera superior para a existncia terrena, com a qual se reveste. Podemos tambm caracterizar o outro membro que se une quele recm-descrito dizendo que na Terra vai ao encontro da alma espiritual aquilo que resulta da hereditariedade fsica. Ento, mediante a unio do esprito anmico (ou alma espiritual) e do corpo orgnico (ou organismo corpreo)b, novamente se ligam duas trindades. Na alma espiritual esto ligados o homem-esprito, o esprito vital e a personalidade espiritual com o elemento anmico, que consiste em alma da conscincia, alma do intelecto ou do sentimento e alma da sensao. Todos estes esto ligados entre si e devem unir-se, ao descer para o plano fsico, com o corpo das sensaes ou astral, o corpo etrico e o corpo fsico. Mas estes, por sua vez, esto ligados primeiro no ventre materno e, mais tarde, no mundo fsico ambiente, com os trs remos deste ltimo: o mineral, o vegetal e o animal, de modo que aqui se acham unidas tambem duas trades.

    Observem, sem preconceitos, a criana que se vem desenvolvendo no mundo, e os Senhores constataro que ainda no esto unidas a parte anmico-espiritual e a orgnico-corprea. No sentido espiritual, a tarefa da educao consiste na harmonizao do esprito anmico com o corpo orgnico (ou organismo corpreo). Estes devem harmonizar-se e ajustar-se reciprocamente, pois ainda no se adaptam quando a criana faz sua entrada no mundo fsico. A tarefa do educador e tambm do professor consiste no entrosamento desses dois membros.

    Ora, encaremos essa tarefa de maneira um pouco mais concreta. Dentre todas as relaes do homem para com o mundo ambiente, a mais importante a respirao. Esta comea justamente ao penetrarmos no mundo fsico. A respirao intra-uterina ainda tem um carter preparatrio, no ligando totalmente o ser humano ao mundo ambiente. Aquilo que realmente merece o nome de respirao s comea depois que o homem deixou o ventre materno. Essa respirao de suma importncia para a entidade humana, pois j abrange todo o sistema trmembrado do homem fsico.

    Entre os membros do sistema ternrio do homem fsico conta-se em primeiro lugar o metabolismo. Mas este se acha, numa extremidade, intimamente ligado respirao, enquanto esta, sob o prisma metablico, tem um nexo com a circulao do sangue. A circulao sangnea acolhe no corpo humano as substncias do mundo exterior in-troduzidas por outras vias, havendo, pois, de um lado, uma conexo entre a respirao e todo o sistema metablico. Alm de suas prprias funes, a respirao possui, pois, uma relao com o sistema do metabolismo.

    De outro lado, essa respirao tambm se liga ao sistema neurosensorial. Enquanto

    a Vide Rudolf Steiner, Teosofia (6 ed. Sao Paulo, Antroposfica, 2002), cap. A natureza do do homem. (N.T.) b Corpo orgnico e organismo corpreo so tradues aproximadas para Leibeskrper e Krperleib, termos cunhados por R. Steiner e intraduzveis na lngua portuguesa, que oferece apenas um termo (corpo) equivalente tanto a Krper quanto a Leib. (N.T.)

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    inspiramos, comprimimos continuamente o lquido enceflico para dentro do crebro; na expirao, fazemos com que volte para o corpo. Desta maneira implantamos o ritmo respiratrio no crebro. Tal como est relacionada de um lado com o metabolismo, a respirao possui, de outro lado, uma ligao com a vida neurosensorial. Podemos afirmar que a respirao o mais importante intermedirio entre o homem que entra no mundo fsico e esse mundo exterior. Mas devemos tambm ter conscincia de que essa respirao ainda no se processa inteiramente do modo como deve decorrer para que a vida fsica do homem seja mantida, especialmente de um lado: ao entrar na existncia fsica, o ser humano ainda no tem estabelecida a correta relao entre os processos respiratrio e neuro-sensorial.

    Observando a criana, devemos admitir que ela ainda no aprendeu a respirar de maneira a sustentar corretamente, pela respirao, o processo neuro-sensorial. A se situa a mais sutil caracterstica de como devemos agir com a criana. Em primeiro lugar, devemos compreender o ser humano de um ponto de vista antropolgico-antroposfico. As mais importantes medidas no campo da educao consistiro, portanto, na observao de tudo que transmite corretamente a organizao do processo respiratrio ao processo neuro-sensorial. Em sentido superior, a criana deve aprender a acolher em seu esprito o quanto lhe pode ser dado pelo fato de ela ter nascido para respirar. Como os Amigos podem notar, essa parte da educao ter uma inclinao para o anmico-espiritual: pelo fato de harmonizarmos a respirao com o processo neuro-sensorial, fazemos penetrar o elemento anmico-espiritual na vida fsica da criana. Falando em termos simples, pode-mos dizer que a criana ainda no sabe respirar interiormente de um modo correto, devendo a educao consistir em ensinar-lhe o respirar correto.

    Mas h outra coisa que a criana ainda no sabe fazer corretamente, e isto deve ser equacionado para que se estabelea uma harmonia entre os dois membros: o organismo corpreo e a alma espiritual. O que a criana no faz corretamente no comeo de sua existncia aqui os Senhores constataro que, via de regra, aquilo que devemos realar espiritualmente parece contradizer a ordem do mundo exterior efetuar a transio entre o sono e o estado de viglia de maneira adequada ao ser humano. Olhando-se para as aparncias, pode-se dizer, sem dvida: a criana sabe perfeitamente dormir; ela dorme muito mais que o adulto, e at entra na vida dormindo. Contudo, ela ainda no sabe fazer aquilo que constitui intrinsecamente o fundamento dos estados de sono e viglia. A criana tem toda espcie de experincias no plano fsico; usa seus membros, come, bebe e respira. Mas enquanto faz tudo isso, em estados alternados de sono e viglia, no capaz de levar para o mundo espiritual tudo que experimenta no mundo fsico o que v com os olhos, ouve com os ouvidos, realiza com suas mozinhas, e a maneira como esperneia; tampouco poderia transform-lo no mundo espiritual e trazer o produto dessa atividade de volta para o plano fsico. O que caracteriza seu sono ser diferente do sono do adulto. No sono do adulto ocorre uma transformao, mormente das experincias ocorridas entre o despertar e o adormecer. A criana ainda no capaz de levar para o sono o que vivenclou nesse entremeio; sua integrao na ordem csmica durante o sono ainda no tal que ela leve consigo aquilo que vivenciou exteriormente no mundo fsico. A educao bem orientada deve ter por resultado que toda experincia do plano fsico seja integrada ao que a alma espiritual, ou esprito anmico, faz entre o adormecer e o acordar. Como professores e educadores, nada podemos ensinar criana acerca do mundo superior. Pois o que, do mundo superior, assimilado pelo homem penetra nele entre o adormecer e o despertar. Podemos aproveitar o tempo que a pessoa passa no plano fsico apenas de maneira que ela consiga levar gradualmente para o mundo espiritual o que com ela fa-zemos, e que, por esse meio, possa refluir para o mundo fsico a fora que ela pode trazer consigo do mundo espiritual a fim de ser autentica-mente humana na existncia fsica.

    Assim, toda atividade educacional e docente dirigida inicialmente a um campo bem elevado, ou seja, o ensino da respirao e do ritmo corretos na alternncia entre sono e viglia. As regras que orientaro nosso ensino e nossa pedagogia no tero,

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    evidentemente, a finalidade de adestrar a respirao, ou o sono e a viglia. Tudo isso permanecer em segundo plano. As regras que conheceremos sero medidas concretas, mas deveremos ter uma profunda conscincia do que fizermos. Ao ministrar criana esta ou aquela matria curricular deveremos, pois, estar conscientes de atuarmos, de um lado, sobre a integrao da alma espiritual no corpo fsico e, de outro, sobre a integrao da corporalidade orgnica na alma espiritual.

    No subestimemos a importncia do que acaba de ser dito, pois os Amigos no podero ser bons professores e educadores se olharem para o que fazem, em vez de olharem para o que so. A Cincia Espiritual Antroposfica existe para que nos compenetremos da importncia que possui o fato de o homem influir no mundo no s pelo que faz, mas antes de tudo pelo que . H uma grande diferena, para um grupo maior ou menor de alunos, se este ou aquele professor que entra na classe para dar aulas. Essa grande diferena no resulta do fato de um professor possuir maior habilidade que outro nas tcnicas pedaggicas exteriores; a diferena principal atuante no ensino decorre da atitude mental do professor em todo o tempo de sua existncia, atitude que ele leva para a aula. Um professor que reflete sobre a evoluo do ser humano atuar sobre os alunos bem diferentemente do colega que nada sabe a esse respeito e nunca lhe dedica seus pensamentos. Com efeito, o que acontecer quando os Amigos refletirem sobre tais idias, isto , quando comearem a saber qual o significado csmico do processo respiratrio e sua transformao pela educao, ou do processo rtmico entre o sono e a viglia? No instante em que os Senhores tiverem tais pensamentos, algo em seu intimo estar combatendo tudo que for mero esprito pessoal. Nesse momento ser apagado tudo que subjaz a esse esprito; ser extinto um pouco daquilo que predominou no homem pelo fato de ele ser um homem fsico.

    medida que os Senhores viverem nessa atitude de extino do elemento pessoal, levando-a para dentro da classe, foras interiores os faro estabelecer uma relao com os alunos. Pode acontecer que os fatos exteriores inicialmente contradigam isto. Talvez os Amigos entrem em suas classes e tenham sua frente moleques e molecas que lhes faam zombarias. Os Senhores devero estar a tal ponto fortalecidos por pensamentos como os que aqui queremos cultivar que nem reparem nessas zombarias, aceitando-as como um fato exterior eu diria: como uma chuva sbita durante um passeio para o qual samos sem levar guarda-chuva. Decerto isso uma surpresa desagradvel. Mas habitualmente a pessoa faz uma distino entre ser zombada e enfrentar uma chuva sem guarda-chuva. Mas no se deve fazer essa distino. Devemos desenvolver pensamentos to fortes que essa diferena no seja efetuada que aceitemos as zombarias como uma pancada de chuva. Se nos compenetrarmos dessa idia, acreditando nela da maneira correta, acontecer, depois de oito a quinze dias, ou ainda mais tempo, mesmo se as crianas fizerem de ns objeto de suas pilhrias, de estabelecermos com elas uma relao que poderemos considerar desejvel. Mesmo enfrentando obstculos, devemos estabelecer essa relao por meio de uma auto-educao. Temos de ficar cnscios, antes de tudo, desta primeira tarefa pedaggica, que consiste em primeiro educarmos a ns prprios, fazendo reinar uma relao mental e espiritual ntima entre o professor e os alunos, e em entrarmos na classe conscientes de realmente existir tal relao espiritual, e no apenas as palavras, repreenses e habilidades pedaggicas. Estas so exterioridades que naturalmente devemos cultivar; mas no as cultivaremos corretamente se no estabelecermos, como fato bsico, toda a relao entre os pensamentos que nos preenchem e os fatos que deveriam ocorrer nos corpos e nas almas das crianas durante o ensino. Toda a nossa atitude no ensino no seria completa se no tivssemos conscincia de que o homem nasceu para ter a oportunidade de fazer aquilo que no podia no mundo espiritual. Ensinando e educando, estabeleceremos a correta harmonia entre a respirao e o mundo espiritual. No mundo espiritual, como no mundo fsico, o homem no era capaz de realizar a alternncia rtmica entre a viglia e o sono. Devemos regular esse ritmo por meio da educao e do ensino, de tal modo que o corpo orgnico ou organismo

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    corpreo se entrose corretamente no esprito anmico ou alma espiritual. Essa idia, naturalmente, no pode ficar diante de ns como uma abstrao, nem como tal poderia ser aplicada diretamente no ensino; deveria, sim, sempre orientar-nos como pensamento a respeito da entidade humana.

    SEGUNDA CONFERNCIA 22 de agosto de 1919

    No futuro, todo ensino dever estear-se numa autntica psicologia elaborada a partir de uma cosmoviso antroposfica. Que o ensino e a educao em geral devem fundamentar-se na psicologia um fato que tem sido reconhecido nos lugares mais diversos; e os Amigos bem sabem que, por exemplo, a pedagogia de Herbart, outrora bem difundida, alicerava suas medidas pedaggicas na psicologia de Herbart. Ora, existe hoje, como existiu durante os ltimos sculos, um certo fato que impediu o surgimento de uma psicologia aproveitvel. Isso resultado de no se haver conseguido em nossa poca, a da alma da conscincia, um aprofundamento espiritual de tal porte que se pudesse realmente chegar a uma compreenso da alma humana. Porm, aqueles conceitos que se haviam formado, em matria de psicologia, na base da antiga sabedoria da quarta poca ps-atlntica, hoje so realmente vazias de contedo, tornaram-se mero palavreado. Quem, hoje em dia, tomar nas mos qualquer texto de psicologia ou que trate de conceitos psicolgicos, logo constatar que atualmente tais escritos no possuem mais um verdadeiro contedo. Tem-se a sensao de que os psiclogos apenas brincam com conceitos. Quem, por exemplo, desenvolve atualmente um conceito justo e ntido do que seja representao mental, do que seja vontade? Os Senhores podem consultar, uma aps outra, as definies de teorias psicolgicas e pedaggicas a respeito da representao mental, da vontade: elas no lhe proporcionaro qualquer autntica idia da representao mental, qualquer autntico conceito da vontade. As pessoas se esqueceram por completo naturalmente por uma necessidade histrica externa de relacionar tambm psiquicamente o indivduo com todo o Universo. Ningum foi capaz de entender a conexo da alma humana com o Universo. Somente quando se capaz de ter em mente a relao do homem individual com todo o Universo que surge uma idia da entidade humana como tal.

    Vejamos um pouco mais de perto aquilo a que se habituou chamar representao mental. nosso dever desenvolver nas crianas as faculdades de pensar, sentir e querer. Portanto, devemos primeiro ter para ns mesmos um conceito claro do que uma representao mental. Quem olha de forma realmente imparcial para o que no homem existe como representao mental atenta logo para seu carter pictrico: a representao tem um cunho de imagem. E quem busca na representao mental algum carter existencial, uma verdadeira existncia, entrega-se a uma grande iluso. Mas o que seria para ns tambm representao, caso possusse existncia? Sem dvida temos em ns ele-mentos existenciais. Basta pensar nos elementos existenciais de nosso corpo; basta tomar ao p da letra o que lhes digo agora: por exemplo, seus olhos, que so elementos existenciais; seu nariz ou seu estmago, tambm elementos existenciais. Os Senhores admitiro que vivem nesses elementos do ser, mas no podem ter representaes por seu intermdio. Os Senhores se derramam com seu prprio ser nesses elementos, identificam-se com eles. E justamente isto que proporciona a possibilidade de captarmos algo por meio das representaes: o fato de estas possurem carter de imagens, no se fundindo conosco a ponto de estarmos dentro delas. Portanto, elas no tm existncia real; so meras imagens. Foi precisamente nos ltimos sculos, ao findar o ltimo perodo evolutivo da Humanidade, que se cometeu o grave erro de identificar o ser com o pensar como tal. Cogito, ergo sum foi o maior erro que se pde colocar na vanguarda da cosmoviso mais recente, pois no grande circuito do cogito no est o sum, mas o non sum. Em outras

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    palavras, o que existe dentro dos limites de meu conhecimento no sou eu; apenas imagem.

    Ora, ao considerar o carter pictrico da representao mental, os Senhores devem, em primeiro lugar, encar-lo qualitativamente. Devem olhar para a mobilidade da representao e ter um conceito embora no completamente adequado da atividade envolvida, o que evocaria a idia de existncia. Devemos, porm, imaginar que tambm numa atividade mental exercemos apenas uma atividade pictrica. Portanto, tudo que tambm constitu apenas movimento na representao mental movimento de imagens. Mas imagens devem ser representaes de algo, no podendo ser imagens em si. Refletindo sobre a comparao com as imagens do espelho, pode-se dizer que do espelho surgem imagens refletidas, mas tudo que se encontra nas imagens no se acha atrs do espelho, mas em qualquer outro lugar independente do espelho; a este indiferente o que se reflete nele; qualquer coisa pode ser refletida.

    Sabendo-se, precisamente neste sentido, que a atividade representativa tem carter de imagens, trata-se de indagar: de qu essa atividade imagem? A esse respeito, naturalmente, nenhuma cincia exterior d informao: s pode d-la uma cincia de orientao antroposfica. Representar mentalmente a imagem de todas as vivncias que tivemos antes do nascimento, ou at antes da concepo. Os Senhores no chegaro a um conceito real da atividade representativa a no ser que estejam conscientes de terem passado por uma existncia pr-natal e pr-concepcional. E assim como as imagens habituais do espelho surgem como reflexos espaciais, a existncia entre a morte e o novo nascimento reflete-se na vida atual, e esta reflexo o representar mentalmente. Os Senhores devem, pois, imaginar de maneira figurada sua vida se estendendo entre as duas linhas horizontais, delimitadas, direita e esquerda, pela morte e pelo nascimento.

    Devem ainda imaginar que da regio pr-natal que o representar reflete continuamente, sendo refletido de volta pela prpria entidade humana. Desta maneira, por meio da reflexo, pela corporalidade, da atividade exercida no mundo espiritual antes do nascimento ou antes da concepo, que se vivencia o ter representaes. Para quem real-mente sabe discernir, o prprio representar constitui uma prova da existenda pre-natal, por ser a imagem dessa existncia.

    Eu quis expor isto de incio (voltaremos a esse assunto com as explicaes de fato) para chamar sua ateno evidncia de que dessa maneira samos das meras explicaes verbais encontrveis nos compndios de psicologia e pedagogia; e de que chegamos a uma real compreenso do que a atividade representativa aprendendo que, ao representar, refletimos a atividade exercida pela alma no mundo puramente espiritual antes do nascimento ou da concepo. Nenhuma outra maneira de se definir a representao serve para nada, pois no proporciona uma real idia do que essa representao em ns.

    Passemos agora a indagar da mesma forma a respeito da vontade. Para a conscincia

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    comum, a vontade , de fato, algo extraordinariamente enigmtico; um problema para os psiclogos, simplesmente pelo fato de se lhes apresentar como algo muito real, mas no fundo carecendo de verdadeiro contedo. Com efeito, se os Senhores consultarem os psiclogos para saber que contedo atribuem vontade, sempre obtero a resposta de que tal contedo provm de uma representao. A rigor, por si s a vontade no possui um autntico contedo. Sendo assim, no existem definies para a vontade; essas definies so bem difceis neste caso, porque a vontade carece de contedo. Mas o que ela, afinal? Nada seno j o germe daquilo que, aps a morte, ser em ns uma realidade anmico-espiritual. Portanto, se os Senhores imaginarem o que, de ns, aps a morte se tornar realidade anmico-espiritual, e se o imaginarem como germe em ns, tero che-gado ao conceito da vontade. Em nosso desenho, o curso da vida acaba com a morte, e a vontade a transcende.

    Temos, pois, de imaginar o seguinte: de um lado a representao mental, que devemos encarar como uma imagem da vida pr-natal; de outro a vontade, que devemos considerar como o germe de uma vida posterior. Peo focalizar bem claramente a diferena entre germe e imagem. Com efeito, o germe algo supra-real, e uma imagem algo infra-real; um germe s ter realidade mais tarde, contendo, pois, a predisposio para o real vindouro, de maneira que a vontade , de fato, de natureza espiritual. Isso foi pressentido por Schopenhauer, embora ele no houvesse, naturalmente, chegado ao conhecimento de que a vontade o germe do anmico-espiritual, tal como este desabrocha, depois da morte, no mundo do esprito.

    De certa forma dividimos, portanto, a vida anmica humana em duas regies: a da representao pictrica e a da vontade germinal: entre a imagem e o germe h um limite a existncia do prprio homem fsico, o qual, espelhando o contexto pr-natal, produz as imagens da representao e no permite a expanso da vontade, mantendo-a como germe, como um simples embrio. Por meio de que foras devemos perguntar ocorre isso, afinal?

    Devemos ter conscincia de que no ser humano devem existir certas foras que provocam a reflexo da realidade pr-natal e a conservao, em estado germinal, da realidade ps-morte; e aqui chegamos aos mais importantes conceitos psicolgicos dos fatos que constituem o espelharnento daquilo que os Senhores j conhecem do livro Teosofia: antipatia e simpatia. Por no mais podermos permanecer no mundo espiritual, somos transferidos para o mundo fsico. Transportados a este ltimo, desenvolvemos antipatia contra tudo que espiritual, de modo que refletimos a realidade espiritual pr-natal numa antipatia que nos inconsciente. Trazemos em ns a fora dessa antipatia e por seu intermdio transformamos o elemento pr-natal em mera imagem de representao. E com aquilo que, como realidade volitiva, irradia da vida aps a morte para a nossa existncia, ns nos ligamos em simpatia. De nenhuma delas simpatia e antipatia temos diretamente conscincia, mas ambas vivem inconscientemente em ns e constituem o nosso sentir, que continuamente se compe de um ritmo, de uma alternncia entre simpatia e antipatia.

    Desenvolvemos em ns a vida dos sentimentos, que uma alternncia contnua sstole-distole entre simpatia e antipatia. Essa alternncia est sempre em ns. A antipatia, que tende para um lado, transforma continuamente nossa vida anmica num agente de representaes: a simpatia, tendendo a outro lado, tranforma-nos a vida an-mica naquilo que conhecemos como nossa vontade ativa, na conservao embrionria da realidade espiritual ps-morte. Aqui os Senhores chegam real compreenso da vida anmico-espiritual: ns criamos o germe da vida anmica como um ritmo de simpatia e antipatia.

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    Ora, o que refletimos na antipatia? Refletimos toda a vida, todo o mundo que percorremos antes do nascimento ou, mais exatamente, antes da concepo. Isto possui, essencialmente, um carter cognitivo. Devemos, pois, nossa cognio irradiao de nossa vida pr-natal. E essa cognio que existia em escala bem maior antes do nascimento ou da concepo apagada e reduzida a imagem. Podemos, portanto, dizer que esse conhecimento, ao enfrentar a antipatia, esmaecido em imagem da representao.

    Se a antipatia se torna bastante forte, algo bem especial acontece. Com efeito, no poderamos formar representaes em nossa vida normal aps o nascimento se no o fizssemos ainda com a mesma fora que nos restou da poca pr-natal. Se hoje os Amigos, como homens fsicos, formam representaes, no o fazem com uma fora que lhes inerente, mas com a fora oriunda do tempo antes do nascimento, e que ainda continua a atuar nos Senhores. Talvez algum imagine que ela haja cessado com a concepo, mas ela est sempre agindo: formamos representaes com essa fora, que continua irradiando para dentro de ns. Temos em ns o elemento vivo do tempo pr-natal, s que possumos a fora de refleti-lo. Ela reside em nossa antipatia. Quando hoje formamos representaes, a cada vez essa atividade enfrenta a antipatia; e se esta bastante forte, surge a imagem da reminiscncia, a memria de forma que a memria nada seno um produto da antipatia que vigora em ns. Eis a relao entre o elemento meramente sentimental da antipatia, que reflete de maneira ainda indeterminada, e a reflexo determinada, ou seja, a reflexo da atividade perceptiva, agora exercitada ainda imaginativamente na memria. A memria apenas uma antipatia intensificada. Os Senhores no poderiam ter memria se tivessem por suas representaes uma simpatia to grande que as engolissem: sua memria existe apenas por haver uma espcie de repugnncia diante das representaes, uma rejeio das mesmas, o que tem por efeito torn-las presentes. Esta a realidade.

    Tendo os Senhores passado por todo esse procedimento, tendo formado representaes sob forma de imagens, rejeitando-as na memria e guardando o aspecto pictrico, ento nasce o conceito Desta forma temos, de um lado da atividade anmica, a antipatia, que est relacionada com nossa vida pr-natal.

    Vejamos agora o outro lado, o do querer que em ns germinal e transcende a morte. O querer vive m ns por termos simpatia por ele, por termos simpatia por esse germe que s se desenvolve depois da morte. Assim como a representao se baseia na antipatia, o querer se esteia na simpatia. Se esta for bastante intensa tal como era a antipatia no caso da representao, que se torna memria , ento da simpatia nasce a fantasia. Exatamente como da antipatia surge a memria, da simpatia nasce a fantasia. E se a fantasia recebida de forma suficientemente intensa o que na vida comum acontece apenas inconscientemente , assumindo tal vigor que permeie todo o ser humano at os sentidos, obtemos as imaginaes comuns, pelas quais representamos os objetos exteriores. Assim como o conceito nasce da memria, da fantasia nasce a imaginao, que fornece as vsualizaes sensrias. Isto emana da vontade.

    Os homens cometem um grande engano ao dizer continuamente, na psicologia, que

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    olhamos para as coisas, em seguida as abstramos e obtemos as representaes mentais. Tal no o caso. Se, por exemplo, temos no giz a sensao da brancura, isso decorre de uma aplicao da vontade, a qual, pelo caminho da simpatia e da fantasia, transforma-se em imaginao. Quando, ao contrrio, formamos um conceito, este tem origem totalmente diversa, pois o conceito nasce da memria.

    Com isto eu lhes descrevi o aspecto anmico. Ser-lhes- impossvel compreender o ser humano se os Senhores no captarem a distino entre os elementos da simpatia e da antipatia no homem. Conforme j descrevi, esses dois elementos se exprimem depois da morte, no mundo anmico. A reinam a descoberto a simpatia e a antipatia.

    J lhes descrevi o homem anmico. Ele est ligado, no plano fsico, ao homem corpreo. Tudo que anmico exprime-se, manifesta-se no corpreo, de forma que, de um lado, no corpreo se manifesta tudo que se exprime em antipatia, memria e conceito. Isto est relacionado com a organizao corprea dos nervos.a Enquanto as organizaes nervosas se formam no corpo, encontra-se atuante no organismo humano tudo que pr-natal. O pr-natal anmico atua no corpo humano atravs da antipatia, da memria e do conceito, dando origem aos nervos. esse o conceito correto dos nervos. Qualquer aluso a uma distino entre nervos sensitivos e motores , como j lhes expliquei vrias vezes, apenas uma insensatez.

    Da mesma forma a vontade, a simpatia, a fantasia e a imaginao atuam, de certa maneira, a partir do homem para o seu exterior. Isto se liga ao estado germinal, no podendo, pois, chegar a uma concluso, e sim devendo perecer novamente j ao nascer. Tem de ficar no estado de germe, e este no pode ir longe na evoluo. Estamos chegando aqui a algo muito importante no ser humano. Os Senhores devem aprender a compreender o homem inteiro: fsica, anmica e espiritualmente. Ora, no homem est-se formando continuamente algo que tende sempre a espiritualizar-se. Mas como se quer conserv-lo no corpo com grande amor, porm um amor egosta, esse algo nunca pode tornar-se espiritual: desintegra-se em sua corporalidade. Temos em ns algo que material, mas que sempre quer transcender esse estado para tornar-se espiritual. No o deixamos espiritualizar-se, destruindo-o no momento em que quer tornar-se espiritual. Esse algo o sangue, o contrrio dos nervos.

    O sangue mesmo uma seiva muito especial.b Com efeito, aquela seiva que, se pudssemos afast-la do corpo (nas condies terrestres isso no possvel) sem que deixasse de ser sangue, e sem que fosse destruda pelos demais agentes fsicos, evaporaria como esprito. Para impedir o sangue de evaporar como esprito, e para conserv-lo em ns enquanto estamos na Terra, isto , at morte, ele deve ser destrudo. Por isso temos em ns a alternncia contnua entre a formao e a destruio do sangue, graas inspirao e expirao.

    Temos em ns um processo polar. Temos os processos que decorrem ao longo do sangue, dos vasos sangneos, tendendo continuamente a levar nossa existncia para o espiritual. Falar, como se tornou costumeiro, em nervos motores um contra-senso, porque os nervos motores seriam de fato os vasos sangneos. Em contraste com o sangue, todos os nervos so dispostos de tal forma que tendem sempre a morrer, a materializar-se. O que se encontra ao longo dos nervos , de fato, matria segregada; o nervo realmente matria eliminada. O sangue quer tornar-se sempre mais espiritual o nervo sempre mais material; nisso consiste o contraste polar.

    a Vide Rudolt Steiner e Ita Wegman, Elementos fundamentais para uma ampliao da arte de curar (3. ed. So Paulo: Antroposfica/SBMA, 2001). (N.T.) b Citao do Fausto, de Goethe, I Parte. (N.T.)

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    Acompanhando os princpios bsicos aqui fornecidos, veremos como isso pode realmente propiciar-nos algo til no tocante estruturao higinica do ensino, a fim de conduzirmos a criana sade anmica e corporal, e no decadncia. Tantos erros educacionais so cometidos por no se conhecerem tais coisas. No obstante a importn-cia atribuida pela Fisiologia distino entre nervos sensitivos e motores, na realidade isto no passa de um jogo de palavras. Fala-se em nervos motores porque de fato o homem no pode andar se certos nervos so danificados, como por exemplo os que vo s pernas. Diz-se que essa incapacidade decorre de uma paralisia dos nervos que, em sua qualidade de motores, movimentam as pernas. Na verdade o indivduo no pode andar porque no consegue perceber as prprias pernas. A poca em que vivemos teve de incorrer necessariamente numa quantidade de erros para que novamente tivssemos a possibilidade de, como seres humanos, desenredar-nos autonomamente dos mesmos.

    Pelo que desenvolvi at agora, os Senhores tero notado que o ser humano s pode realmente ser compreendido em relao com o mbito csmico. Com efeito, ao representar mentalmente temos dentro de ns o csmico. Estvamos no csmico antes de nascer, e nossas vivncias de ento espelham-se agora em ns; e novamene estaremos no csmico quando houvermos transposto o limiar da morte, sendo que nossa vida futura se exprime, qual um germe, naquilo que vigora em nossa vontade. O que em ns vigora inconscientemente vigora bem conscientemente no Cosmo, para a atividade cognitiva superior.

    Alis, at na manifestao corporal temos uma trplice expresso dessa simpatia e antipatia. De certa forma temos trs focos nos quais a simpatia e a antipatia se entretecem.a Primeiro temos um desses focos em nossa cabea, l onde nasce a memria pela ao comum do sangue e dos nervos. Em todo ponto onde a atividade do nervo est interrompida, havendo um hiato, h um foco de entrelaamento da simpatia e da antipatia. Outro foco encontra-se na medula espinhal, por exemplo quando um nervo vai para o aguilho posterior da medula, enquanto outro sai do aguilho anterior. Outro hiato ocorre nos ndulos ganglionares inseridos nos nervos simpticos. No somos seres to descomplicados quanto parece. Em trs lugares do nosso organismo na cabea, no trax e no abdome h limites onde a simpatia e a antipatia se encontram. Em relao percepo e vontade, no h circuito que desvie de um nervo sensitivo a um motor; uma corrente direta se transmite de um nervo a outro, e por isso o anmico em ns atingido tanto no crebro quanto na medula espinhal. Nesses lugares onde os nervos so interrompidos, somos entrosados no anmico com nossa simpatia e antipatia; e novamente somos entrosados onde os ndulos ganglionares se desenvolvem no sistema nervoso sim-ptico.

    Estamos integrados ao Cosmo com nossas vivncias. Assim como desenvolvemos atividades cujas conseqncias podem ser observadas no Cosmo, o prprio Cosmo desenvolve continuamente atividades conosco, ou seja, as da antipatia e da simpatia. Observando-nos como seres humanos, constatamos sermos produtos das simpatias e antipatias do Cosmo. Ns desenvolvemos antipatia a partir de ns e o Cosmo desenvolve

    a Vide RudoIf Steiner, A Fisiologia oculta (2. ed. So Paulo: Antroposfica, 1996), 1 e 2 conferncias. (N.T.)

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    antipatia junto conosco; ns desenvolvemos simpatia e o Cosmo desenvolve simpatia junto conosco.

    Ora, em nossa manifestao externa somos, como seres humanos, compostos dos sistemas da cabea, do trax e do abdome, incluindo os membros. Peo, porm, levar em conta que essa diviso em sistemas articulados pode muito facilmente ser objetada, porque os homens, em seu atual af de sistematizar, querem ter cada membro bem certi-nho ao lado do outro. Portanto, quando se diz que no homem se distingue um sistema da cabea, um do trax e um abdominal com os membros, de acordo com a opinio das pessoas cada sistema deveria ter uma delimitao rgida. Ao fazer divises, as pessoas querem traar linhas, e isso no possvel quando se trata de realidades. Na cabea somos principalmente cabea, mas todo o resto do homem cabea, s que no principalmente. Pois assim como temos na cabea os rgos dos sentidos propriamente ditos, temos expresso por todo o corpo, por exemplo, o sentido do tato ou o sentido trmico; medida, pois, que sentimos calor, somos inteiramente cabea. S que na cabe-a somos principalmente cabea, e no resto do corpo apenas de leve. Portanto, as vrias partes se interpenetram e os membros no se apresentam to confortavelmente separados como os meticulosos gostariam de ter. Sendo assim a cabea se prolonga, embora seja especialmente desenvolvida na regio superior. O mesmo se d com o trax. A regio do peito e costas o autntico trax, mas s principalmente, pois novamente o homem inteiro trax. Tambm a cabea tem algo de trax, e assim o abdome com os membros. O mesmo se d com o abdome. Os fisilogos j notaram que a cabea abdome, pois a estrutura muito sutil do sistema nervoso da cabea no se acha na me-ninge externa a do crtex, do qual tanto nos orgulhamos, mas embaixo da mesma. Sim, a estrutura mais artstica da meninge externa j , de certa forma, uma involuo; a a construo complicada j est compreendida na involuo muito mais um sistema de alimentao. De maneira que o homem se quisermos fazer uma analogia no precisa orgulhar-se muito de seu crtex cerebral, que , no fundo, uma reduo do crebro mais complexo a um crebro mais nutridor. Temos o crtex cerebral para que os nervos relacionados com a funo cognitiva sejam ordenadamente alimentados. Se em confronto com os animais temos um crebro melhor, a razo reside no fato de alimentarmos melhor os nervos cerebrais. S temos a possibilidade de desenvolver conhecimentos superiores pelo fato de podermos alimentar os nervos cerebrais melhor do que o fazem os animais. Mas o crebro e todo o sistema nervoso nada tm a ver com o conhecer em si apenas com a sua expresso no organismo fsico.

    Cabe aqui a pergunta: por que temos o contraste entre o sistema da cabea (deixemos de lado, por enquanto, o sistema mediano) e o sistema polar dos membros e do abdome? Temo-lo porque o sistema da cabea, em dado momento, exalado pelo Cosmo. O homem tem a formao de sua cabea provocada pela antipatia do Cosmo. Quando ao Cosmo repugna tanto aquilo que o homem traz em si que ele o expele, nasce ento esse retrato. Na cabea o homem traz realmente o retrato do Cosmo. A forma redonda da cabea humana esse retrato. Pela sua antipatia o Cosmo cria uma cpia de si prprio, fora de si: nossa cabea. Podemos, pois, usar nossa cabea como rgo para nossa liberdade, porque primeiro o Cosmo a expeliu de si. No consideramos a cabea corretamente quando a imaginamos intensamente integrada ao Cosmo como nosso sistema de membros, ligado esfera sexual. Nosso sistema motor est integrado ao Cosmo e este o atrai, tem simpatia por ele, da mesma forma como tem antipatia pela cabea. Na cabea nossa antipatia encontra a antipatia do Cosmo, e a ambas se enfrentam. Nesse choque de nossas antipatias com aquelas do Cosmo nascem nossas percepes. Toda vida interior que nasce no outro lado do homem resulta de um amoroso enlaamento simptico de nosso sistema dos membros pelo Cosmo.

    Assim se exprime, na configurao do corpo humano, a maneira como ele foi

    a Camada denomindada dura-mater. (N.T.)

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    animicamente plasmado pelo Cosmo e tudo que ele acolhe novamente do mesmo. Com base nessas consideraes, os Senhores compreendero mais facilmente que uma grande diferena existe entre a formao da vontade e a formao das representaes mentais. Se atuarem especificamente sobre esta ltima, de forma unilateral, os Amigos relegaro o homem inteiro ao mbito pr-natal, e o prejudicaro se o educarem intelectualmente, pois confinaro sua vontade no que ele realmente j percorreu, isto , no pr-natal. Os Senhores no devem introduzir muitos conceitos abstratos na educao que levam criana. Devem introduzir, de preferncia, imagens. Por qu? Imagens so imaginaes, percorrem a fantasia e a simpatia. Conceitos abstratos so abstraes, atravessam a memria e a antipatia, vm da vida pr-natal. Portanto, se os Senhores impingirem criana muitas abstraes, estaro incentivando-a a dedicar-se com particular intensidade ao processo produtor do gs carbnico do sangue, ao processo do endurecimento do corpo, da extino. Se, pelo contrrio, levarem criana a maior quantidade possvel de imaginaes, se a educarem falando-lhe por meio de imagens, ento lanaro nela a semente para a contnua conservao do oxignio, para um contnuo desenvolvimento, pois lhe estaro indicando o futuro, o ps-morte. Como educadores, pois, retomamos as atividades exercidas conosco, seres humanos, antes do nascimento. Devemos, hoje, confessar que formar representaes mentais uma atividade pictrica oriunda daquilo que vivenciamos antes do nascimento ou da concepo. Naquele tempo, os poderes espirituais implantaram em ns a atividade representativa, que continua atuando em ns depois do nascimento. Propiciando imagens s crianas comeamos a retomar, na educao, essa atividade csmica. Implantamos nelas imagens que podem germinar porque ns as inserimos numa atividade corprea. Quando, como pedagogos, adquirimos a capacidade de atuar por intermdio de imagens, devemos sempre ter, pois, o sentimento de que atuamos sobre todo o homem, havendo uma ressonncia de todo o ser humano quando se atua em imagens. incutir em nosso prprio sentimento a convico de que em toda educao se provoca uma espcie de continuao da atividade suprasensvel pr-natal d a todo ato de educar a necessria solenidade, sem a qual no se pode absolutamente educar.

    Adotamos, assim, dois sistemas de conceitos: cognio, antipatia, memria, conceito vontade, simpatia, fantasia, imaginao; dois sistemas que podem servir-nos, na aplicao especfica, para tudo que temos de praticar em nossa atividade pedaggica.

    TERCEIRA CONFERNCIA 23 de agosto de 1919

    O professor moderno deveria ter, como fundamento de tudo que desempenha na escola, uma ampla viso das leis do Universo. Obviamente nas primeiras classes, nos primeiros graus da vida escolar que o ensino exige um relacionamento da alma do docente com as mais elevadas idias da Humanidade. Um cancro da organizao escolar existente at agora consiste no fato de se haver mantido o professor das classes inferiores, pode-se dizer, numa certa dependncia, isto , numa esfera que fazia sua existncia parecer desvalorizada em relao dos professores de classes superiores. Naturalmente no me cabe falar aqui nessa questo genrica do setor espiritual do organismo social.a Mas convm chamar a ateno para a necessidade de futuramente se equipararem todos os participantes do corpo docente, fazendo nascer no pblico um forte sentimento de que o professor dos graus inferiores perfeitamente igual, inclusive em sua capacidade intelectual, ao professor de classes superiores. Os Amigos no se admirem, pois, se hoje

    a Sobre a concepo antroposfica do organismo social, vide Rudolf Steiner, Economia e sociedade (2. ed. So Paulo: Antroposfica, 2003) e Rudolf Lanz, Nem capitalismo nem socialismo (So Paulo: Antroposfica, 1990). (N.T.)

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    apontarmos justamente como que na base de todo ensino mesmo nas primeiras classes deve estar algo que naturalmente no se pode aplicar diretamente s crianas; porm, o professor deve sab-lo incondicionalmente, caso contrrio o ensino no poder ser proveitoso.

    No ensino apresentamos criana, de um lado, o mundo da Natureza, e, de outro, o mundo espiritual. Como seres humanos somos, por um lado, afins ao mundo da Natureza, e por outro ao mundo espiritual, enquanto vivemos na Terra, no plano fsico, e realizamos nossa existncia entre o nascimento e a morte.

    Acontece, porm, que o conhecimento de Psicologia , em nossa poca, precariamente desenvolvido. Sofre, em particular, das conseqncias daquela determinao dogmtica da Igreja, ocorrida no ano de 869 a, que anulou um entendimento mais antigo baseado num conhecimento instintivo: a compreenso de que o ser humano se compe de corpo, alma e esprito. O princpio que hoje predomina em quase toda a Psicologia o de uma simples bimembrao do ser humano. Os Amigos possivelmente ouvem dizer que o homem consiste em corpo e alma, ou corpo e esprito, conforme se queira cham-lo, sendo os termos alma e esprito considerados quase sinnimos. b Quase todas as teorias psicolgicas so baseadas nesse erro da constituio binria do ser humano. No se pode chegar a uma real compreenso da entidade humana levando em conta apenas essa dupla constituio. Por isso, no fundo tudo que hoje em dia se intitula Psicologia constitui um total diletantismo, quando no um mero jogo de palavras.

    Porm, isto decorre geralmente daquele erro que ganhou porte apenas na segunda metade do sculo XIX, quando se interpretou erroneamente uma conquista realmente importante feita pela Fsica. Os Amigos sabem que os bravos cidados de Heilbronn erigiram no centro de sua cidade um monumento ao homem que, em vida, eles confinaram no manicmio Julius Robert Mayer. Sabem tambm que essa personalidade, da qual os cidados de Heilbronn so hoje obviamente muito orgulhosos, vinculada chamada lei da conservao da energia ou da fora. Diz essa lei que a soma de todas as energias ou foras existentes no Universo constante, e que essas foras apenas se trans-formam, de modo que uma fora se manifesta uma vez como calor, outra vez como fora mecnica etc. Contudo, s desta forma que se interpreta a lei de Julius Robert Mayer, quando, no fundo, este mal compreendido! Ele descobriu a metamorfose das foras, mas no pretendeu formular uma lei to abstrata como a da conservao da energia.

    Qual , visto num grande contexto, o sentido histrico-cultural dessa lei da conservao da energia ou da fora? Ela tem sido o grande obstculo para a compreenso do homem. Enquanto se acreditar que nunca surgem foras realmente novas, no se poder chegar a um conhecimento da verdadeira natureza do ser humano. Com efeito, essa verdadeira natureza se baseia justamente no fato de novas foras serem formadas continuamente por meio dele. verdade que, nas circunstncias atuais de nossa vida no mundo, o homem o nico ser em que so formadas novas foras e, como mais tarde veremos, at novas substncias. Mas como a cosmoviso atual no quer aceitar elementos tais que permitam compreender tambm o homem plenamente, recorre a essa lei da conservao da energia, que em certo sentido no incomoda desde que se considerem apenas os outros reinos da Natureza o mineral, o vegetal e o animal , mas que exclui qualquer real conhecimento que se queira ter do homem.

    Como professores, os Senhores tero necessidade de, por um lado, tornar compreensvel a seus alunos a Natureza, e por outro conduzi-los a uma certa compreenso da vida espiritual. Sem estar familiarizado com a Natureza pelo menos at certo grau, e sem uma relao com a vida espiritual, o homem de hoje tampouco ser capaz de integrar-se na vida social. Consideremos, portanto, em primeiro lugar a Natureza exterior.

    A Natureza exterior se nos apresenta defrontando-se, de um lado, com nossa vida das

    a IV Conclio de Constantinopla. (N.T.) b No original o Autor faz ainda meno s palavras Krper e Leib, que em alemo tm uma sutil diferenciao. mas em portugus so traduzidas ambas por corpo. (N.T.)

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    representaes e dos pensamentos, a qual, como os Senhores j sabem, tem carter pictrico, sendo uma espcie de espelhamento da existncia pr-natal; de outro lado, volta-se para a Natureza tudo que tem carter volitivo, apontando qual um germe para nossa vida aps a morte. Dessa maneira, somos sempre conduzidos Natureza. primeira vista isto parece ser uma orientao para a Natureza em apenas dois membros da entidade humana, o que tem provocado o erro da composio binria do homem. Ainda voltaremos a este assunto.

    Se enfrentamos a Natureza por nosso lado cognititvo, o das representaes, captamos dela apenas aquilo que um contnuo perecer. Esta uma lei extraordinariamente importante. Estejam bem cncios disto: por mais bonitas que sejam as leis da Natureza encontradas com o auxlio do intelecto e das foras representativas, elas sempre se refe-rem quilo que, na Natureza, est morrendo.

    Algo bem diferente dessas leis naturais que apenas visam o morto vivenciado pela vontade viva existente como germe, quando esta se dirige Natureza. Esse um ponto de difcil compreenso para quem vive repleto de conceitos oriundos da poca atual e dos erros da cincia moderna.

    Tudo que nos sentidos no campo total dos doze sentidos leva relao com o mundo exterior tem carter volitivo, e no cognitivo. Para o homem moderno desapareceu por completo a compreenso disto. Por isso ele julga pueril a afirmao, lida em Plato, de que a viso consiste no envio de uma espcie de tentculos que se estendem dos olhos at os objetos. Tais tentculos, evidentemente, no podem ser observados por meios sensrios, mas o fato de Plato ter tido conscincia de sua existncia prova que ele conseguiu penetrar no mundo supra-sensvel. Quando olhamos para uma coisa, existe realmente um processo que corresponde, se bem que de modo muito sutil, ao ato de pegarmos um objeto. Se, por exemplo, os Senhores pegam um pedao de giz, esse ato fsico semelhante ao processo espiritual que se realiza quando enviam de seu olho as foras etricas para captar o objeto na viso. Se os homens atuais soubessem observar, esses fatos se lhes revelariam pela simples observao da Natureza. Se os Amigos observa-rem, por exemplo, os olhos de um cavalo voltados para fora, tero a sensao de que pela simples posio de seus olhos o cavalo se acha, em relao ao mundo ambiente, situado diferentemente do homem. Posso esclarecer-lhes a causa subjacente a isto pela seguinte hiptese: imaginem que seus braos tenham uma forma que impossibilite junt-los sua frente, sendo, pois, impossvel qualquer cruzamento dos mesmos. Os Amigos, ao fazer euritmia, ficariam limitados ao A, nunca conseguindo fazer um O, pois uma fora de resistncia tornaria impossvel juntar os braos sua frente. O cavalo se encontra nessa situao, no que concerne aos tentculos supra-sensveis de seus olhos: nunca o tentculo do olho esquerdo pode ser tocado pelo tentculo do olho direito. Por sua colocao ocular o homem est em situao de estabelecer um contato contnuo entre os dois tentculos supra-sensveis dos olhos. Nisto consiste a sensao de natureza supra-sensorial do eu. Se nunca consegussemos estabelecer um contato entre o esquerdo e o direito, ou se tal contato tivesse to diminuta importncia como acontece nos animais, que nunca usam to corretamente suas patas dianteiras para, digamos, uma orao ou qualquer atividade espiritual semelhante, tampouco chegaramos a uma sensao espiritualizada de nossa identidade.a

    O que mais importa, nas sensaes sensoriais do olho ou do ouvido, no tanto o aspecto passivo, mas o ativo que levamos volitivamente s coisas. s vezes, a filosofia mais recente teve pressentimento de algo acertado, tendo ento descoberto todo tipo de palavras que no entanto, via de regra, demonstram o quo distantes as pessoas esto da compreenso do assunto. Assim, nos signos locais da filosofia de Lotze existem tais pressentimentos da atividade de uma vida sensrio volitiva. Porm nosso organismo inferior, que no tato, no olfato e no paladar mostram bem claramente sua ligao com o

    a No original Selbst, correspondendo ao ingls self, porm sem traduo exata em portugus. (N.T.)

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    metabolismo, tem essa ligao at nos sentidos superiores, possuindo carter volitivo. Podemos, pois, dizer que o homem se defronta com a Natureza por seu intelecto, e

    por isso assimila o que nela morto, apropriando-se dessas leis mortas. Mas aquilo que na Natureza se eleva do seio daquilo que morto para tornar-se o futuro do mundo, o homem o capta por intermdio de sua vontade aparentemente indeterminada, que se estende at os sentidos.

    Imaginem os Amigos quo vivida ser sua relao para com a Natureza se levarem devidamente em conta o que acabo de dizer. Podero ento constatar: Quando adentro a Natureza, o esplendor da luz e das cores vem ao meu encontro; ao acolher a luz e suas cores, aproprio-me daquilo que a Natureza projeta em direo ao futuro; e quando volto minha sala de trabalho e fao reflexes sobre a Natureza, formulando leis a seu respeito, ento ocupo-me com aquilo que na Natureza est em contnuo perecimento. Na Natureza, o perecer e o nascer so constantemente interligados. Podemos captar o processo de perecimento porque temos em ns a reflexo de nossa vida pr-natal, o mundo do intelecto e do pensar, pelo qual podemos compreender o morto subjacente Natureza. E o fato de podermos contemplar o que existir da Natureza no futuro resulta de a enfrentarmos no somente com nosso intelecto e com nosso raciocnio, mas com aquilo que, em ns, tem carter volitivo.

    Se o homem no pudesse salvar algo que permanece sempre nele da vida pr-natal atravs de toda a existncia terrestre, se no pudesse salvar algo daquilo que ao fim de sua vida pr-natal se transformou em mera vida de pensamentos, nunca poderia alcanar a liberdade. que ficaria ligado ao que est morto e, no momento em que quisesse chamar para a liberdade o que nele prprio afim com a Natureza morta, estaria chamando apenas algo moribundo. Se quisesse servir-se daquilo que liga sua entidade volitiva com a Natureza, ficaria inconsciente; pois tudo o que o une, como ser volitivo, com a Natureza apenas embrionrio. O homem seria um ser natural, mas no um ser livre.

    Acima desses dois elementos a compreenso do morto pelo intelecto e a captao do vivo, do evolvente pela vontade existe no homem algo que s ele, e nenhum outro ser terrestre, traz em si entre o nascimento e a morte: o pensar puro, no relacionado com a Natureza exterior, mas com aquele elemento supra-sensvel situado no prprio homem, que faz dele um ser autnomo, algo transcendente inclusive ao inframorto e ao supravivo. Portanto, se queremos falar em liberdade humana devemos observar esse elemento autnomo do homem, o pensar puro e liberto no qual sempre vive tambm a vontade.a Porm, se os Senhores observarem, desse ponto de vista, a prpria Natureza, constataro o seguinte: Estou olhando para a Natureza e tenho dentro de mim a corrente da morte e tambm a da renovao: morrer-renascer. Dessa correlao a cincia moderna muito pouco entende; pois para ela a Natureza de certa forma uma unidade, misturando continuamente o que morre com o que evolui reinando assim grande confuso em tudo que hoje em dia se afirma a respeito da Natureza e sua essncia, pois o perecer e o nascer so continuamente entremeados. Quem quiser separar nitidamente essas duas correntes da Natureza ter de perguntar: o que seria da Natureza se nela no existisse o homem?

    Diante dessa pergunta a cincia moderna, com sua filosofia, est em grande embarao. Suponham os Senhores que formulassem a um desses cientistas modernos a seguinte pergunta: Que seria da Natureza e de seus seres se a no se inclusse o homem? Ele ficaria naturalmente algo chocado, pois a pergunta lhe pareceria estranha. Mas depois, refletindo sobre os argumentos que sua cincia lhe fornece para responder a essa pergunta, diria: Haveria na Terra minerais, plantas e animais, e s o homem no existiria nela; a evoluo ter-se-ia realizado desde a nebulosa de Kant-Laplace da mesma

    a Vide Rudolf Steiner, A filosofia da liberdade (cit. v. nota 3 no final do livro e O conhecimento dos mundos superiores (5. ed. So Paulo: Antroposfica, 2002) (N .T.)

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    forma como realmente aconteceu; s que o homem no existiria nessa evoluo. Outra resposta no seria, no fundo, de esperar. Ele talvez ainda acrescentasse: O homem, quando agricultor, lavra o solo e assim transforma a superfcie terrestre; ou constri mquinas e provoca, dessa maneira, transformaes; mas tudo isso irrelevante em comparao com outras transformaes realizadas pela prpria Natureza. Sempre, pois, nosso cientista diria que minerais, plantas e animais se desenvolveriam sem a presena do homem.

    Isto no correto. Se o homem no estivesse presente na evoluo terrestre, os animais, na maior parte, tampouco existiriam; pois uma grande parte, mormente dos animais superiores, s surgiu durante essa evoluo graas ao fato de o homem naturalmente uso agora uma metfora ter sido obrigado a usar seus cotovelos. Em determinado grau de sua evoluo na Terra, ele teve de extirpar de seu prprio ser, que naquela poca ainda continha algo bem diferente do que hoje contm, os animais superiores; teve de extirp-los para poder continuar em seu prprio desenvolvimento. Eu gostaria de caracterizar essa eliminao com uma analogia: imaginem um lquido contendo uma substncia dissolvida; essa substncia passa a segregar-se e a sedimentar-se no fundo. Assim o homem, em estados primevos de sua evoluo, estava unido ao mundo animal, e somente mais tarde segregou o reino animal como um resduo. Os animais no teriam evoludo para seu estado atual se o homem no tivesse sido determinado a vir a ser como hoje. Sem a presena do homem na evoluo, as formas animais e a Terra seriam bem diferentes do que so hoje.a

    Passemos agora aos reinos mineral e vegetal. Deveramos estar cnscios de que no somente as formas animais mais primitivas, mas tambm os reinos vegetal e mineral ter-se-iam petrificado e deixado de evoluir h muito tempo se o homem no existisse na Terra. Novamente a cosmoviso atual, baseada numa concepo unilateral da Natureza, sente necessidade de dizer: Bem, os homens morrem, seus corpos so queimados ou enterrados e, com isso, entregues terra; mas isso no tem significado algum para a evoluo terrestre; pois esta no alteraria seu curso pelo simples fato de no receber os cadveres humanos como tem ocorrido. Isto, porm, significa que no se tem conscincia de que a entrega contnua de cadveres humanos terra, seja por cremao ou sepultura, um processo real com efeitos que continuam atuando.

    As camponesas conhecem melhor que as senhoras da cidade o fato de o fermento ter alguma importncia no preparo do po, mesmo se adicionado em pequena quantidade; sabem que o po no cresce sem o acrscimo da levedura. Da mesma forma, a evoluo da Terra teria h muito chegado ao seu estado final no fora a adio contnua das foras do cadver humano, que no momento da morte se separa da entidade anmico-espiritual do homem. por meio dessas foras recebidas continuamente pela Terra mediante a adio dos cadveres humanos que mantida a evoluo terrestre. Com isto os minerais se tornam aptos a desenvolver ainda hoje suas foras de cristalizao, as quais, sem tais foras, h muito se teriam desintegrado e dissolvido. Com isto, plantas que h muito teriam deixado de crescer continuam crescendo nos dias de hoje. O mesmo se d com as formas animais inferiores. Em seu corpo o homem d Terra o fermento, como que a levedura, para a evoluo posterior.

    Por isso no indiferente se o homem vive ou no sobre a Terra. Simplesmente no verdade que a evoluo terrestre continuaria, no que se refere aos remos mineral, vegetal e animal, se o homem no existisse. O processo da Natureza uno e homogneo, e a ele pertence o homem. O homem s corretamente compreendido quando considerado ele prprio, mesmo aps sua morte, integrado no processo csmico.

    Tendo isso em mente, os Senhores nem mais se admiraro do que lhes direi agora: ao descer do mundo espiritual para o fsico, o homem recebe o invlucro de seu corpo fsico.

    a Vide Rudolf Steiner, A cincia oculta (cit. - v. nota na pg. 20). (N.T.)

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    Naturalmente, porm, esse corpo fsico diferente, quando o homem o recebe em criana, de quando, em qualquer idade, atravessa a morte. A algo sucedeu ao corpo fsico, algo que s pode realizar-se pelo fato de esse corpo ter sido permeado pelas foras anmico-espirituais do homem. Afinal, todos ns ingerimos o mesmo que os animais ingerem, isto , transformamos as substncias exteriores tal qual eles o fazem; porm transformamo-las com a colaborao de algo que falta aos animais, ou seja, aquilo que desce do mundo espiritual para juntar-se ao corpo fsico humano. Fazemos, pois, com as substncias algo diferente do que fazem os animais ou plantas. E as substncias que so entregues terra no cadver humano so substncias transformadas, diferentes das que o homem recebeu ao nascer. Podemos, portanto, dizer que o homem renova as substncias e as foras recebidas ao nascer transmitindo-as, transformadas, ao processo terrestre. As foras e substncias que ao morrer ele entrega a esse processo no so idnticas quelas recebidas ao nascer. Com isto ele transmite, pois, ao processo terrestre algo que, por seu intermdio, flui constantemente do mundo supra-sensvel para o processo fsico-sensorial. Ao nascer ele traz algo do mundo espiritual; com sua morte a Terra recebe esse algo incorporado s substncias e foras que constituram seu corpo durante a vida. Com isso o homem intermedeia o gotejar do supra-sensvel no sensvel, no fsico. Imaginem os Senhores como que uma chuva contnua que desce do supra-sensvel para o sensvel, permanecendo porm essas gotas infecundas para a Terra, caso o homem no as acolhesse, transmitindo-as por si Terra. Essas gotas que o homem recebe ao nascer e libera ao morrer constituem uma fecundao contnua da Terra por foras supra-sensveis, e so estas foras fertilizantes supra-sensveis que mantm o processo evolutivo terrestre. Sem cadveres humanos a Terra estaria, pois, morta h muito tempo.

    Isto posto, podemos indagar: qual , afinal, a atuao das foras mortas sobre a natureza humana? Atuam de fato sobre a natureza humana as foras mortferas que predominam na Natureza exterior; pois se o homem no propiciasse Natureza exterior vivificao constante, ela teria de perecer. Como atuam, pois, essas foras mortferas na natureza humana? Atuam de tal maneira que o homem, por seu intermdio, produz todas aquelas organizaes que se estendem do sistema sseo ao sistema nervoso. H uma grande diferena intrnseca entre o que construdo pelos ossos e tudo que lhes afim, e aquilo que elaborado pelos outros sistemas. As foras mortferas irradiam para dentro de ns: deixando-as intactas, somos homens sseos. Mas as foras letais penetram em ns mais profundamente: ns as enfraquecemos, e com isso somos homens dotados de nervos. Que um nervo? Algo que quer constantemente transformar-se em osso, sendo impedido de faz-lo por estar em relao com elementos no-sseos ou no-nervosos da natureza humana. O nervo sempre quer ossificar-se, sempre impelido a morrer, tal qual o osso que, no homem, sempre algo morto em alto grau. (No osso animal as condies so diversas ele muito mais vitalizado que o osso humano.) Podemos, pois, imaginar um lado da natureza humana dizendo que a corrente mortfera atua nos sistemas sseo e nervoso. Este o primeiro plo.

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    As foras continuamente doadoras de vida, ou seja, a outra corrente, atuam nos sistemas muscular e sangneo, e em tudo que com estes se relaciona. Os nervos s no so ossos por estarem ligados de tal forma aos sistemas sangneo e muscular que sua tendncia ossificadora se ope s foras que atuam no sangue e nos msculos. O nervo s deixa de transformar-se em osso porque os sistemas sangneo e muscular se lhe opem, impedindo a ossificao. Se durante o crescimento existe uma relao incorreta entre o osso, de um lado, e o sangue e os msculos, de outro, surge o raquitismo, que um impedimento, por parte da natureza sangnea e muscular, desvitalizao correta do osso. Da a extraordinria importncia de uma correta inter-relao entre o sistema muscular-sangneo, de um lado, e o sseo-nervoso, de outro. medida que o sistema sseo-nervoso avana em nosso olho o sistema sseo ficando no envoltrio e penetrando no olho apenas uma debilidade, ou seja, o nervo , surge no olho a possibilidade de uma unio entre a natureza volitiva do msculo e do sangue e a atividade representativa do sistema sseo-nervoso. Remontamos assim a um fato que teve papel importante na cincia antiga, mas que ridicularizado pela cincia moderna como idia infantil. S que com certeza ela o abordar novamente, embora de outra forma.

    Os antigos sempre sentiram em sua cincia um parentesco entre a medula nervosa, a substncia dos nervos, e a medula ssea ou substncia dos ossos. Segundo eles, o homem pensava tanto com os ossos quanto com os nervos. Isto, alis, a verdade. T