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A ABORDAGEM BIOGRÁFICA E SUAS IMPLICAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS ENTRE A ANTROPOLOGIA E A EDUCAÇÃO' Alcides Fernando Gussi Introdução Seja o que for, era melhor não ter nascido, Porque, de tão interessante que é a todos os momentos, A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs, E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso, Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, õ vida. (Fernando Pessoa in Passagem das horas') Pesquisador CNPq-FUNCAP e Professor do MAPP - Mestrado em Avaliação de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará. A vida narrada, um entrelaçamento de experiências evocadas pelos sujeitos - tal como Fernando Pessoa intensamente nos lembra na Passagem das Horas "de tão in- teressante que é a todos os momentos"— é posta aqui como central para a construção do conhecimento que se depreende de pes- quisas que buscam interfaces entre a an- tropologia e a educação e que fazem uso da abordagem biográfica'. Mas que impli- cações epistemológicas podem decorrer quando se privilegia, em uma pesquisa, a vida do Outro? Este artigo tem como intuito responder essa indagação realizando uma reflexão te- órico-metodológica a partir da minha experi- ência anterior nos usos da abordagem biográfica, presente em vários momentos de minha trajetória acadêmica. Ela constituiu-

A ABORDAGEM BIOGRÁFICA E SUAS IMPLICAÇÕES ... · al, e subjetividade e objetividade. O que se propõe aqui é considerar esses ... Bourdieu e sua noção de trajetória. Em seu

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A ABORDAGEMBIOGRÁFICA E SUAS

IMPLICAÇÕESEPISTEMOLÓGICAS

ENTRE AANTROPOLOGIA E A

EDUCAÇÃO'

Alcides Fernando Gussi

Introdução

Seja o que for, era melhor não ter nascido,Porque, de tão interessante que

é a todos os momentos,A vida chega a doer, a enjoar,

a cortar, a roçar, a ranger,A dar vontade de dar gritos, de dar pulos,

de ficar no chão, de sairPara fora de todas as casas, de todas

as lógicas e de todas as sacadas,E ir ser selvagem para a morte

entre árvores e esquecimentos,Entre tombos, e perigos e

ausência de amanhãs,E tudo isto devia ser qualquer outra coisa

mais parecida com o que eu penso,Com o que eu penso ou sinto,que eu nem sei qual é, õ vida.

(Fernando Pessoa in Passagem das horas')

Pesquisador CNPq-FUNCAP e Professor do MAPP -Mestrado em Avaliação de Políticas Públicas daUniversidade Federal do Ceará.

A vida narrada, um entrelaçamento deexperiências evocadas pelos sujeitos - talcomo Fernando Pessoa intensamente noslembra na Passagem das Horas "de tão in-teressante que é a todos os momentos"— éposta aqui como central para a construçãodo conhecimento que se depreende de pes-quisas que buscam interfaces entre a an-tropologia e a educação e que fazem usoda abordagem biográfica'. Mas que impli-cações epistemológicas podem decorrerquando se privilegia, em uma pesquisa, avida do Outro?

Este artigo tem como intuito responderessa indagação realizando uma reflexão te-órico-metodológica a partir da minha experi-ência anterior nos usos da abordagembiográfica, presente em vários momentos deminha trajetória acadêmica. Ela constituiu-

se em um recurso metodológico utilizado nadissertação de mestrado, onde construí his-tórias de vida de descendentes de imigran-tes norte-americanos do interior de SãoPaulo (Gussi, 1997). Posteriormente, escre-vi dois artigos problematizando e utilizandoa abordagem biográfica: o primeiro, a partirda reflexão de um filme do diretor WoodyAlIen sobre a trajetória de um (fictício) violo-nista de jazz norte-americano (Gussi, 2002);e o segundo, por meio de um fragmento bio-gráfico que construí sobre o antropólogoNéstor Perlongher, conhecido por seus es-tudos de gênero (Gussi, 2004). Finalmente,realizei pesquisa sobre o mundo do traba-lho bancário por meio de construção de nar-rativas biográficas de trabalhadores de umex-banco público estadual à época recém-privatizado, que resultou em tese de douto-rado (Gussi, 2005).

Para tanto, parto do pressuposto de quea abordagem biográfica pode ser conside-rada em três aspectos, tal qual como Kof es(1994) afirma, quando se refere especifica-mente, às "estórias de vida' primeiro, ela éuma fonte de informação sobre o contextosocial; segundo, ela é uma evocação do su-jeito; terceiro, ela é uma reflexão, resultadoda relação entre o biografado e o pesquisa-dor. Esses três aspectos da abordagem bio-gráfica contudo trazem à tona algumasoposições que estão, quase sempre, postasquando se utiliza tal abordagem: entre indi-víduo e sociedade, sujeito e estrutura soci-al, e subjetividade e objetividade.

O que se propõe aqui é considerar essestrês aspectos da abordagem biográfica e asoposições deles decorrentes, tomando comofoco de referência analítico a noção de expe-riência e duas implicações epistemológicasdecorrentes da problematização dessa noção:a primeira, a de que a experiência constituium processo de aprendizagem dos sujeitos;e a segunda, refere-se às relações entre ex-periência, aprendizagem e a intersubjeti-vidade, fruto do envolvimento entre os sujeitose pesquisador.

Este artigo está dividido em partes: 1) adiscussão da abordagem biográfica em três

diferentes aspectos, quais sejam, como infor-mação do contexto social, corno evocação dosujeito e como interpretação do autor; 2) a pio-blernabzação da noção de experiência na abor-dagem biográfica; 3) a articulação entre asnoções de experiência e de aprendizagem, e,entre essas duas últimas, e a intersubjeilvidade;(4) finalmente, realizo algumas consideraçõesquanto às possibilidades epistemológicas dadimensão biográfica.A abordagem biográfica,em diferentes aspectos

Perguntado em uma entrevista o que olevara a escrever, nas suas duas últimasobras, duas biografias, a do rei francês LuísIX, canonizado São Luís, e a de São Fran-ciscà deAssis, o historiador francês JacquesLe Goff, em entrevista ao jornal Folha de SãoPaulo de 15 de fevereiro de 2001 respon-de:... quando faço uma biografia, penso quedevo, por meio do personagem, chegar aurna explicação da sociedade daquele tem-po. O que é excitante é que preciso fazerisso de um modo rigoroso, e não literário,pois trata-se de um trabalho histórico.

A resposta de Le Goff nos remete paraum primeiro aspecto da abordagem biográ-fica: ela informa sobre o contexto social deuma época.

Segundo Bertaux, tal aspecto circunscre-ve-se ao "tipo de objeto sociológico , que sepretende investigar na abordagem biográfi-ca: On aura remarqué en effet que certainschercheurs ont choiside se concentrersurdesstructures et des processus objectifs tandisque d'autres ont pris pour objet des structu-res et des processus 'subjectifs' (Aertaux,1980, p. 203). No caso do aspecto apontadopor Le Goff, reforça-se mais o estudo daestrutura social do que propriamente a açãodos sujeitos.

Outro autor, Becker, reforça também esseaspecto. Para ele, se a narrativa romancea-da de uma biografia revela

'à imaginação e

a subjetividade", ao sociólogo cabe fazer Iarestitution fldéle de l'expérience ou sujet etson interpretatión du monde oà ii vil (Becker,1986, p. 105). Para tanto, segundo o autor:

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Le chercheur guide I'intetviewé vers Iasthàmes qui intéressent la sociologie; li!ui demande de préciser certains événe-ments; li vise à ce que son récit ne soitpas en désaccord avec Ias rapports éta-bus sur lvi par Ias institutions ot) ii estpassé, avec les témoignages fournis pard'autres individus qui le connaissent ouqui connaissent les événernents ou (eslieux décrits (Becker, 1986, p. 106)

Poderíamos pensar, a partir das consi-derações de Becker, que, se assim não pro-ceder, o pesquisador estaria fazendoliteratura e não sociologia ou história, comotambém nos diz Le Goff, na segunda frasede sua resposta, reforçando o seu compro-misso como historiador.

No tocante a esse aspecto da abordagembiográfica, Levi indica algumas tendências quevêm sendo utilizadas, principalmente por his-toriadores, procurando estabelecer alguns ti-pos de biografias, e que remetem à tensãoentre trajetória individual e sociedade na cons-trução de uma biografia. O primeiro tipo, quedenominou 'biografia modal' é aquele em quea biografia individual é considerada urna vari-ante estrutural, uma disposição individual, nosentido que lhe dá Bourdieu, de um "estilo pró-prio de uma época ou de uma classe" que, noentanto, é tomada como "exemplo modal",empiricamente construído, de uma determina-da estrutura social (Levi, 1996, pp. 174-175).

No segundo tipo, o context&é tomado paraexplicar a 'singularidade das trajetórias' en-tendendo-se aqui que o contexto social e his-tórico elucida os próprios acontecimentosparticulares ou, de outra forma, preenche la-cunas documentais do biografado. SegundoLevi, esse tipo de biografia entende que qual-quer que seja sua originalidade aparente, umavida não pode ser compreendida unicamenteatravés de seus desvios ou singularidades, masao contrário, mostrando-se que cada desvioaparente em relação às normas ocorre em umcontexto histórico que o justifica (Levi, 1996, p.176). Conclui que essa perspectiva resultanuma posição de equilibrio entre o individual,o específico de uma trajetória, e o sistema so-cial 1 considerado na sua totalidade.

Finalmente, um terceiro tipo, quando abiografia é utilizada para explicar o contexto,mas não como um caso modal, estatistica-mente regular, e sim como um "caso extre-mo", que, transversalmente, também explicaesse contexto, e, nesse sentido, indica quaissão as particularidades de uma experiênciaparticular, tomada como atípica, mas que, aomesmo tempo, indica as possibilidades de açãodo indivíduo em uma determinada estrutura. Ocaso mais exemplar, citado por Levi, é a co-nhecida biografia do moleiro Menocchio deCario Guinzburg, na qual é analisada a cultu-ra popular através de um caso extremo (Levi,1996, pp. 176-177).

Esses tipos, considerados por Levi, vêmproblematizar algumas oposições que emer-gem quando consideramos a abordagembiográfica: entre aspectos socioestruturais esubjetivos (Bertaux); objetividade e subjeti-vidade (Becker); e, acrescentaria, entre tatoe ficção.

Nesse sentido, o aspecto da abordagembiográfica, que informa o social, levantado nostrês tipos abordados por Levi, tenderia a en-focar mais a análise do contexto social que oindivíduo, mais a estrutura social que a açãodo sujeito, reforçando mais a objetividade docientista social ou historiador no trato do ma-terial recolhido que a subjetividade do biogra-fado, entendendo a biografia como fato e nãocomo ficção. E por isso que se toma neces-sário estabelecer distinções com a literaturaque faz uso de biografias: ela seria o lugar dasubjetividade e da ficção, presente na fala deLe Goff, e, mais precisamente, nas conside-rações de Becker (1986).

O segundo aspecto da narrativa biográ-fica é que ela constitui uma evocação dosujeito. Trata-se, de pensar o aspecto sub-jetivo da biografia, já que a narrativa biográ-fica contém muito da interpretação do sujeitoque é biografado na sua relação com o con-texto social que o cerca.

O 'tipo objeto sociológico "que se circuns-creve nesse aspecto, segundo Bertaux, nãoé o da biografia tomada como explicação desociedade, em seus aspectos mais estrutu-rais, mas em oposição, nas suas próprias

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palavras, les chercheurs s'attachent ici àdégager des compiexes de valeurs et de re-présentations qui existent d'abord au niveaucollectif avant de s'emparer pius ou moinstotalement des subjectivités (Bertaux, 1980,p. 204). O que se quer estudar são os fenô-menos sociossimbólicos, concentrando-semais atenção na ação individual que na es-trutura social.

Esse aspecto da abordagem biográficatenderia a enfocar, em oposição ao outro quetoma a biografia para informar o social, maiso indivíduo que o contexto social, mais a açãodo sujeito que a estrutura'social, reforçandomais a subjetividade do biografado que aobjetividade do pesquisador, pois é a repre-sentação do sujeito que deve ser levada emconta. Esse outro aspecto,todavia, novamen-te nos conduz às oposições entre indivíduoe sociedade, sujeito e estrutura social, obje-tividade e subjetividade. E, nesse sentido,pode-se pensar que esse aspecto conside-rado da abordagem biográfica esteja menospreocupado em distanciar-se da literatura,ainda que isso venha a ficar mais explicita-do adiante, quando recuperarei outro tipo debiografia, a que faz aproximação com a her-menêutica.

Todavia, esse outro aspecto novamente nosconduz às oposições entre indivíduo e socie-dade, sujeito e estrutura social, objetividade esubjetividade. Problematizemos novamenteessas oposições pensando juntamente comBourdieu e sua noção de trajetória.

Em seu ensaio "A ilusão biográfica"Bourdieu abandona o pressuposto de queuma vida é como um conjunto coerente eorientado que pode ser apreendido como ex-pressão unitária de uma intenção subjetivae objetiva, de um projeto (Bourdieu, 1996,p. 184). Considerando que uma vida não éum fim em si mesma, e, portanto, não temum sentido único, Bourdieu constrói a suanoção de trajetória como uma série de posi-ções sucessivamente ocupadas por um mes-mo agente (ou um mesmo grupo) numespaço ele próprio um devir submetido a in-cessantes transformações (Bourdieu, 1996,p. 189). Assim, as trajetórias definem-se

como colocações e deslocamentos no es-paço social, mais precisamente, nos esta-dos sucessivos da estrutura da distribuiçãodas diferentes espécies de capital que es-tão colocadas em jogo no campo considera-do (Bourdieu, 1996, p. 190).

Essa noção de trajetória nos faz aban-donar a idéia de que uma vida possa sercompreendida como uma cadeia de aconte-cimentos sem outros vínculos que não a as-sociação a um sujeito (Bourdieu, 1996, p.189). Podemos pensar que tal noção, pre-tende dar conta de romper com as dicotomi-as entre ação e habitus, posição edisposição, indivíduo e sociedade, propostarecorrente no conjunto da obra de Bourdieu.

O que é mais importante, contudo, é queessa noção de trajetória possibilita que consi-deremos as inter-relações que existem entre oaspecto da abordagem biográfica anteriormen-te considerado, o que informa sobre o social, eesse que fala sobre o sujeito.

Voltemo-nos agora para o terceiro aspec-to da abordagem biográfica, aquele que in-vestiga a relação entre o biografado e o autor.Crapanzano, ao descrever sua biografia sobreo marroquino Tuhami, define-a como um "ex-perimento", evocando que o seu texto é, antesde tudo, o produto de um encontro etnográfi-co. A biografia de Crapanzano remete para oterceiro aspecto da abordagem biográfica: elaé uma interpretação, resultado da interaçãoentre o biografado e o biógrafo. Esse aspectovem evocar, particularmente, as oposiçõesentre objetividade e subjetividade, entre a bio-grafia como fato ou ficção, aproximando-a, porvezes, de um texto literário.

Continuemos com o pensamento deCrapanzano para refletir esse aspecto daabordagem biográfica. Para o antropólogo,a história de vida is the result of a complexself-constituting negotiation. is is the product(at least, from the subject's point ot view) ofan arbitrary ano peculiar demand from ano-ther— the anthropologist (Crapanzano, 1980,pp. 955-956). Mas, além disso, a história devida, geralmente construída a partir de umaentrevista, é transformada em um texto, e,portanto,... carnes with ii ali the ontological

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and epistemofogical burdens of the text(Crapanzano, 1980, p. 957). Assim, uma his-tóda de vida é um texto, que tem uma estrutu-ra narrativa, subordinada às regras delinguagem. E sintetiza Crapanzano sobre"Tuhami": Above ali Tuhami' both as text andas a feiow human being enabies me to raiselhe probiernatic of the file history and etnogra-fie encounter (Crapanzano, 1980, p. 957). Po-demos dizer, ainda, que "Tuhamr, a biografia,é um pretexto para Crapanzano falar desseencontro e do próprio fazer antropológico.

O "Tuhami" de Crapanzano filia-se a ou-tro tipo de biografia que Levi atribui comosendo tributária à hermenêutica, a que seaproxima da antropologia interpretativa nor-te-americana. Segundo o autor, esse tipo debiografia salienta o "ato dialógico" no seiode uma "comunidade de comunicação -aquela antropologia a que Crapanzano sefilia teoricamente. Nesse sentido, a biogra-fia é considerada em seu conteúdo "intrin-secamente discursivo", em que não seconsegue traduzir a natureza do real e, porisso, somente pode ser interpretado, de ummodo ou de outro (Levi, 1996, p. 178). Econsidera ainda: O debate sobre o papel dabiografia na antropologia tomou um rumopromissor, porém perigosamente relativista(Levi, 1996, p. 178).

Mesmo considerando esse perigo relati-vista de que fala Levi, a aproximação com ahermenêutica, todavia, trouxe outra proble-mática à abordagem biográfica, pondo à tonaduas questões: a primeira, que uma biogra-fia é uma forma de narrativa e deve ser tam-bém interpretada como tal; e a segunda, aquestão da autoria, a do biógrafo que narra,e o quanto dessa narrativa contém a suaprópria interpretação da vida da outra pes-soa, o biografado, resultado da interação quese estabelece entre os dois. E essas duasquestões colocam em xeque a objetividadeexacerbada decorrente da idéia da biografiaconsiderada apenas como fonte de informa-ção, e também a subjetividade extremada,quando se coloca uma trajetória individualcomo possibilidade de interpretação única,a do sujeito que naifa.

Tal qual afirma Crapanzano (1980, 1984),as narrativas biográficas são construçõestextuais que revelam a dimensão do encon-tro entre os sujeitos. Assim, não basta com-preender o que é narrado ou quem faz anarrativa, mas também é necessário com-preender como se constrói a narrativa nomomento do encontro do pesquisador comsujeitos e, com isso, possibilitar que as nar-rativas alarguem a experiência cognitiva pormeio de conhecimentos compartilhados comoutras subjetividades inseridas nas frontei-ras de campos de saberes aparentementedistintos, o científico/acadêmico e o da ex-periência da vida do Outro.

Isso posto, considerando os três diferen-tes aspectos referidos, a abordagem biográfi-ca nos permite a um só tempo: informar sobrecontextos sociais, evocar subjetividades dis-tintas e revelar a dimensão intersubjetiva en-tre os sujeitos e o pesquisador.

Vale ressaltar que, ao se considerar es-ses diferentes aspectos da abordagem bio-gráfica, é necessário entender que eles secomplementam e que não se excluem, e quetambém podem ser postos em relação nes-sa abordagem. Assim, considero tal comoBertaux (1980) que não se podem separartipos de objetos sociológicos distintos parao estudo na abordagem biográfica, ou seja,o estudo da estrutura social do estudo daação do sujeito, dono s'efforcer de réunifierIa pensée du structurei et ceife dy symbo-fique, et deles dépasser pourparvenir à unepensée dela práxis (Bertaux, 1980, p205).A abordagem biográfica torna-se estratégi-ca, para Bertaux, porque ela permite révélerIa qualité socioiogique de i'expérience hu-maine, et finalement Ia quaiité humaine dei'expérience socio-historique (Idem, p. 219).De forma análoga, considero também comoKofes que argumenta

as histórias de vida continuam sendoinstrumentos fundamentais para a com-preensão e análise de relações sociais,de processos culturais e do jogo semprecombinado entre atores individuais eexperiências sociais, entre objetividadee subjetividade (Kofes, 1984, p. 140)

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Acrescento, contudo, que a abordagembiográfica coloca também possibilidadespara pensar a própria narrativa, aproximan-do-a da interpretação hermenêutica. E queela apresenta a lógica intrínseca de um tex-to 1 que é o resultado do ato dialógico entre oOutro, o biografado, e o seu autor. Portanto,a narrativa biográfica recoloca algumas pos-sibilidades interpretativas, trazendo à tonaas questões da autoria (e da autoridade doautor), da elaboração da escrita, do encon-tro etnográfico e dos limites da compreen-são da própria cientificidade (Oliveira, 1998).

Nesse sentido, a abordagem biográficapossibilita a 'suspeição da razão", na signi-ficativa expressão de Roberto Cardoso deOliveira (1998) para se referir à hermenêu-tica, ainda que eu entenda que o que pre-tendi aqui foi articular a compreensãohermenêutica e a explicação monológica -ligada ao paradigma racionalista - comoconsidera Roberto Cardoso de Oliveira: Aexplicação, inscrita programa ticamentenos paradigmas 'da ordem' não colide comcompreensão constitutiva da hermenêuti-ca (Oliveira, 1998, p. 71). Que outras impli-cações epistemológicas no entanto podemdecorrer ao se tomar essa abordagem emseus diferentes aspectos para construir co-nhecimento? Tomemos como foco analíticoa noção de experiência para, em seguida,responder esta pergunta.Experiência, um termo presente

A abordagem biográfica constitui umatessitura de experiências vividas e narradaspelos sujeitos. As suas estórias constroememoções, imagens, reflexões, pensamentos,desejos e significados acerca de suas vidas,enfim, experiências vividas, A experiência éum termo - epistemologicamente - presen-te na abordagem biográfica, diferentementeda critica que Thompson (1981) faz sobre aausência do termo nas análises do estrutura-lismo marxista, sobretudo nas de Althusser.Thompson (1981) define esse termo ausen-te, a experiência:

Os homens também retomam como su-jeitos, dentro desse termo - não como

sujeitos autônomos, 'indivíduos livresmas como pessoas que experimentamsuas situações e relações produtivasdeterminadas como necessidades e in-teresses e como antagonismos, e emseguida ?ratam'essa experiência em sua'consciência' e 'cultura' (as duas expres-sões excluídas da prática teórica) dasmais complexas maneiras (sim, relativa-mente autônomas') e em seguida (mui-tas vezes mas nem sempre, através dasestruturas de classe resultantes) agem,por sua vez, sobre sua situação deter-minada (Thompson, 1981, p. 182).

As subjetividades constituídas nas narrati-vas biográficas evocam, tal como Thompsonentende o conceito da experiência, as açõese os posicionamentos dos sujeitos diante desituações determinadas pelas condicionan-tes estruturais. Pensemos um pouco mais apartir da noção dessa experiência nas rela-ções entre subjetividade e ação, e estruturae condicionamento que estão subjacentes aessa noção.

A noção de experiência implica conside-rar as mediações entre o sujeito e a socie-dade. Nesse sentido, para Dubet (1996), aexperiência é uma atividade cognitiva, umamaneira de construir o real e, sobretudo, deo verificar, de o experimentar e constrói fe-nômenos a partir de categorias do entendi-mento e da razão, é uma maneira deconstruir o mundo (Dubet, 1996, p. 95). As-sim, aproximando-se de Thompson, paraDubet a experiência é um agenciamento dosujeito, um momento da subjetividade dian-te do mundo social, entendendo-a como umaatividade social gerada pela perda da ade-são à ordem do mundo, ao logo (Op.cit. p.101). Todavia, ela não é expressão de umsujeito puro mas é socialmente construída(Idem p. 103), pois somente é reconhecidapelos outros, eventualmente partilhada econfirmada por outros (Ibidem p104). Por-tanto, essa subjetividade não é pura ques-tão individual ( Idem, p99).

Mas, a noção de experiência implica tam-bém em rupturas. Para Dubet, a experiênciasocial é critica porque implica num trabalhoreflexivo do sujeito diante do papel das nor-

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mas sociais. Quando explica, quando justifi-ca suas atitudes diante dos outros, o sujeitoreflete sua experiência. Segundo o autor:

Por outras palavras, os atores não vivemna adesão imediata e no testemunhopuro, pois reconstroem sempre uma dis-tância em relação a eles próprios. O tra-balho reflexivo é tanto mais intensoquanto os indivíduos se acham em situ-ações que não são inteiramente codifi-cadas e previsíveis (Dubet, 1996, p. 106).

Dubet conclui que a experiência é subje-tiva e social, e também crítica. Desse modo,as experiências vividas evocadas na abor-dagem biográfica são, antes de tudo, umareflexão acerca do contexto social, ainda queessa idéia implique em já considerar a for-ma como essas experiências vividas sãopostas: elas são experiências narradas. Dis-cuto isso mais adiante. O que é importanteagora frisar é que a abordagem biográficarevela experiências vividas que são, ao mes-mo tempo, no sentido de Dubet, subjetivas,sociais e críticas.

Essa abordagem contudo nos permite"historicizar a experiência" a partir do quepropõe Scott (1999):

Para a autora, 'â experiência é a históriado sujeito" (Scott, 1999, p. 42). Partindo des-sa perspectiva, entendo que a abordagembiográfica possibilita a construção dos sujei-tos por meio de suas experiências vividas,configurando suas identidades pessoais ecoletivas. Vale ressaltar, contudo, que não se

trata de pensar que os sujeitos são construí-dos aprioristicamente por essas identidades,uma posição que vai de encontro à crítica deBourdieu (1996) de que uma vida não tem umsentido único - tal seria uma ilusão biográfi-ca. Porque, acredito, seria analiticamente tam-bém ilusório entender uma vida a partir de umaconstrução identitáda, pois, de outra forma,as experiências vividas constituem identida-des ao longo do tempo, ao que vem agregara uma noção de identidade social considera-da em seu aspecto fluido e historicizado e auma crítica à idéia de irredutibilidade que anoção encerra (Ruben, 1988, 1992).

A abordagem biográfica constitui, por-tanto, construções de experiências e de su-jeitos que nelas se posicionam e seconstituem. Mas, tratam-se de experiênciasvividas que tomam a forma de narrativas.Tal como Bruner (2001) que entende que oconceito de experiência incorpora a formacomo ela se expressa:

Pie relationship is ciearly dialogic ano di-alethic, of experience stnictures expres-sions, in that we understand otherpeopleano their expressions on basis of our ownexperience ano self-understanding. Butexpressions also structure experience, inthatdominantnarrativas of a historical era,important rituais ano festivais, ano das-sic wof*s of arl define ano iluminate innerexperience. As we well know, some textsare more intense, complex, ano revealingthan everyday experience ano therebyenrich ano clarify that experience. Moresimpiy put, experience is culturally covis-tructed whiie understanding presupposesexperience."(Bwner, 1986, p. 6).

Aqui é preciso pontuar a discussão en-tre a experiência vivida e a que é narrada.Kofes (2001) entende que a narrativa, senãoespelha a realidade, a configura, e, finalmen-te suscita experiência ( Kofes, 2001, p. 125).E isso abre, segundo Kofes, para uma dis-cussão acerca da correspondência entreuma vida como é vivida, uma vida como ex-periência e uma vida como é contada, ouseja, uma narrativa influenciada pelas con-venções culturais do contar, pela audiênciae pelo contexto social (2001, p,153-154). Já,

Precisamos dar conta dos processos his-tóricos que, através do discurso, posici-onam sujeitos e produzem suas

A abordagem experiências. Não são os indivíduos que

biográfica e e-

suas implicações tem experiência, mas os sujeitos que

epistemológicas são constituídos através da experiência.entre a antropologia A experiência, de acordo com essa defi-

nição, torna-se não a origem de nossa

Alcides E Gussi explicação, não a evidência autorizada(porque vista ou sentida) que fundamentao conhecimento, mas sim aquilo quebuscamos explicar, aquilo sobre o qualse produz conhecimento. Pensar a ex-periência dessa forma é historicizá-ia,assim como as identidades que eia pro-duz (Scott, 1999, p. 27).

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segundo Ricouer (1991), a narrativa biográ-fica é uma forma de constituição de um "si"na medida em que considera uma identida-de que se revela na dialética entre a "ates-midade'Ç a identidade do mesmo (a aparentenúcleo não mutante da personalidade) e a"ipseidade", a identidade do outro, uma refle-xão de si com um outro. Assim, a narrativaconstrói a identidade do personagem quepodemos chamar de sua identidade narrativa,construindo a da história relatada (Ricouer,1991, p176).

Os sujeitos são, pois, narradores que con-tam suas estórias de vida constituindo-se a simesmos, à medida que constroem suas es-truturas narrativas. Aproximemo-nos ao queBenjamin (1985) esclarece sobre isso, Em ONarrador, Benjamin entende que a narrativaé um texto construído com base na relaçãocom aquele que ouve. Ao narrador interessa,antes de tudo, convencer o ouvinte, seja atra-vés de um conselho, de uma maneira de agirou de uma "lição de vida". A figura do narra-dor, sobretudo a arte daquele que narra, écentral para compreender uma narrativa:

o narrador figura entre os mestres eos sábios. Ele sabe dar conselhos: nãopara alguns casos, como provérbio, maspara muitos casos, como o sábio. Poispode recorrer ao acervo de toda uma vida(uma vida que não inclui apenas a pró-pria experiência, mas em grande parte aexperiência alheia. O narrador assimilaà sua substância mais íntima aquilo quesabe por ouvir dizer). Seu dom é podercontar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem quepoderia deixar a luz tênue de sua narra-ção consumir completamente a mechade sua vida (Benjamin, 1985, p. 221).

No sentido benjaminiano, uma narrativadirige-se a um ouvinte. Assim, é importantecompreender como se narra, pois a narrativa éreveladora do modo com que os sujeitos influ-enciam quem ouve sobre uma tomada de po-sição. Trata-se, pois, de pensar que a arte denarrar é a arte de trocar experiências; por ex-periência ele [Benjamin] entende não a obser-vação científica mas o exercício popular dasabedoria prática (apud. Ricoeur, 1991 p. 193).

A esse respeito, pode-se refletir o quan-to é possível apreender com essa troca deexperiências sobre o que é vivido e o que énarrado, partilhando o argumento de Kof es(2001) que considera numa discussão comBourdieu (1996) e a idéia desse autor de quea vida como um sentido único é uma ilusão:Seria, esta sim, uma ilusão ignorar no tratobiográfico a mediação da narração. Isto é,tomarmos uma narrativa de vida como a vidavivida (Kofes, 2001, p. 124).

Considerando a experiência vivida e nar-rada como um termo epistemologicamentepresente na abordagem biográfica, que im-plicações decorrem ao se tomar uma vidacomo foco para produção de conhecimento?Implicações epistemo!ógicas:aprendizagem e intersubjetividade

Uma primeira implicação epistemológicaque estabeleço é a de que a experiênciaconsiste num processo de aprendizagem.

Parto da idéia de que a aprendizagemse dá nos espaços da sociabilidade huma-na e da cultura. Segundo Simmel (1983), asociabilidade é uma forma autônoma oulúdica de socialização na medida em quepossibilita constituir urra interação plenaentre iguais. Nessa interação, os indivídu-os são motivados tanto por seus propósi-tos e conteúdos objetivos, quanto poraspectos subjetivos e inteiramente pesso-ais que são os limiares da sociabilidade(Simmel, 1983, p. 171).

Na perspectiva de Simrnel, para Gusmão(1999), o campo da aprendizagem tem comoelementos centrais a sociabilidade humana,mais que a socialização no sentido durkhei-miano, ao que agrega a cultura:

trata-se de um território comunicante einterativo, locus de mediação entre indi-vidualidade e sociedade, entre expres-são e identidade, cuja relação épossibilitada pela cultura como esferasocial propiciadora de trocas e capacita-obra de diferentes tipos de vida"(Gusrnão,1999, p. 52)

Dessa mesma forma, o antropólogo Vieira(1995) entende que o processo educativoestá mediado pela 'mentalidade" ou 'hiente

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cultural" que constitui um sistema de refe-rências de um grupo e é construída por to-das as experiências da vida social e pelasopções que se tomou ao longo do percursobiográfico. (Vieira, 1995, p. 127)

A experiência é um locus analítico em quepodemos pensar a aprendizagem construídanas esferas da sociabilidade e da cultura. Ain-da, se pensarmos que a noção de experiênciatambém implica rupturas e reposicionamentosdos sujeitos diante do mundo, tal como refereDubet (1996), e que a 'éxperiência é a históriado sujeito' no sentido de Scott (1999), a expe-riência é uma forma de aprendizagem na qualo sujeito refaz o seu mundo e, ao mesmo tem-po, (re)constrói a si mesmo.

As experiências vividas, contadas nasestórias de vida, evidenciam um processode aprendizagem na medida em que evo-cam sentimentos, emoções, reflexões, ima-gens, pensamentos, desejos e significados.Trata-se de uma aprendizagem que se con-figura em distintos lugares de sociabilidadescomo, por exemplo, no trabalho, na família,na Igreja e na escola, onde os sujeitos vãose posicionando ao longo do tempo.

Esse processo de aprendizado contudose reconfigura quando a experiência vividaé narrada. A narrativa de uma vida supõe areflexão sobre ela, que se apreende quandose narra. Pode-se entender, tal como Vieira(1995) que o sujeito realiza um exercício dereflexão sobre si ao construir uma históriade vida, aproximando-se do conceito de re-flexividade de Giddens (1991), e, com isso,realiza uma aprendizagem. E desse modoque Vieira (1995, 1996, 1999) propõe o quechama de 'método biográfico comparativo'utilizado para a formação de professores,que engloba três dimensões formativas: a"auto-análise biográfica'Ç em que o profes-sor faz uma reflexão própria sobre sua bio-grafia; a Létno.análise biográfica", em que élevado a perceber as inter-relações entre o"eu" e o "nós", construindo suas semelhan-ças culturais entre as estórias de vida dogrupo (ou dos grupos) a que pertence; final-mente, a 'antropo-análise biográfica" em oprofessor compara o £éu "e o "nós"a um 'bu-

tro" aparentemente distante, que tem umaestória de vida distinta relacionada a outrosuniversos culturais que não são os mesmosque o do professor.

Quando os sujeitos constroem suas nar-rativas, realizam uma re-elaboração cons-tante sobre o que eles viveram. Nessemomento, fazem uma reflexão sobre o vivi-do, o que permite que refaçam o seu mundoe se reconstruam nele como sujeitos. Por-tanto, com a experiência narrada, eles tam-bém aprendem.

Mas essa aprendizagem se dá no mo-mento do encontro entre os sujeitos e o pes-quisador. Isso nos leva a uma segundaimplicação epistemológica ao se tomar, ana-liticamente, as noções de experiência e deaprendizagem para compreender a dimen-são biográfica: trata-se da intersubjetivida-de, aquela estabelecida entre os sujeitos quenarram e o pesquisador, quando se configu-ra um ato dialógico. Trata-se, no sentido queatribui Roberto Cardoso de Oliveira, da "tu-são de horizontes": o que significa que (narelação dialógica] o outro é igualmente esti-mulado a nos compreender. Isso ocorre gra-ças à ampliação do próprio horizonte dapesquisa, incorporando, em alguma escala,o horizonte do outro. (Oliveira, 1998, p. 68).

A abordagem biográfica implica em con-siderar uma dimensão intersubjetiva na me-dida em que se interpõe, na pesquisa e noprocesso de construção do conhecimento,a biografia do pesquisador que está presen-te na construção das narrativas biográficasdos sujeitos.

Na perspectiva da antropologia, a relaçãodo pesquisador com o Outro tem sido proble-matizada sobretudo a partir da interação quese estabelece no trabalho de campo, comopropõe Grozzi (1992) ao pensara diferençacomo inerente à própria relação subjetiva quevai marcar indelevelmente cada Trabalho deCampo, experiência marcada pela biografiado autor (1992, p. 8). Nesse sentido, Smh(1993) enfatiza essa relação ao problemati-zar o conceito de sujeito nas narrativas bio-gráficas, utilizando-se da expressão 'ujeitoscolaboradores" para remeter à intersubjetivi-

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dado que marca a presença do autor no textoem que Often their stories emerge throughacts of colaborrattion that bring togheter whonarrates her or his story oral/y and anothersubject who co/lects, transcfibes, organizes,and edits thatsto,y(Smith, 1993, p. 398). Dis-cutamos mais as relações entre autor e o su-jeito a partir da antropologia.

Sobre isso, Okely (1995) problematiza aquestão da subjetividade ao estabelecer re-lações entre antropologia e a autobiografia.Ele propõe que o antropólogo esclareça so-bre sua experiência de campo e exponha suaposição de uma forma crítica por meio da prá-tica da reflexividade. Já, Callaway (1992) apre-senta a seguinte definição de reflexividade naprática antropológica,

in fts narrower focus, as Me self-reflectionanthropologist engaged in lhe interperso-nal relations of fielwork ano, in its broadersenso, asa searching pobe of lhe discipli-ne itseff, questioning lhe conditions anomodes of producing knowledge aboutothercuaures (Callaway, 1992, p. 32)

Ao exercitar essa prática reflexiva, o an-tropólogo enuncia sua condição na pesqui-sa de campo assim como no processo deprodução do conhecimento, o que o permiterefletir acerca de como ele se modifica e émodificado pela pesquisa, numa perspecti-va autobiográfica.

A intersubjetMdade possibilita ampliar, ana-lilicarnente, a discussão sobre a experiência ea aprendizagem. A dimensão autobiográfica daexperiência de pesquisa e produção de conhe-cimento, entendida como resultado do encon-tro com os sujeitos, permite que o pesquisadoraprenda com eles, com suas experiências vivi-das e narradas, Assim, o processo de aprendi-zagem se dá entre o vivido, o narrado e,finalmente, pelo que é compreendido na dimen-são intersubjetiva construída na experiênciadialógica entre os sujeitos e o pesquisador.

Em suma, nos dizeres de Gusmão(2003), com a abordagem biográfica é pos-sível '»render a aprender" com o Outro e,com isso, construir ao mesmo tempo umareflexão autobiográfica e conhecimento ci-entífico, num exercício que envolve simulta-

neamente as dimensões da alteridade e daaprendizagem.Considerações Finais

Consideremos dois últimos pontos comoindicativos para refletir as possibilidadesepistemológicas da abordagem biográfica. Oprimeiro ponto é o que se a experiência,analiticamente presente nessa abordagem,está associada a um processo de aprendi-zagem, decorre daí que os sujeitos constro-em saberes, entre o vivido e o narrado,mediados pela dimensão da cultura, tal comoconsidera Galli:

Segundo Caiu, [o saber] é uma dimensãosocial holístic.a que vai do caos à ordem,para outra ordem; que se desconstrói combases em pressupostos construtivos, pos-tos em movimento pela experiência e pelavivência. Trata-se da fruição da cultura,que gera um fazer reflexivo e crítico, porvezes chamado educação. (Apud, Gusmão,1997, p. 14) [Grifo nossos]

O segundo ponto a se refletir é que aexperiência intersubjetiva na dimensão bio-gráfica possibilita situá-la na fronteira entresaberes distintos: os dos sujeitos que nar-ram sua experiência de vida, e do saber an-corado no conhecimento científico e naexperiência autobiográfica do pesquisador.Esses dois pontos permitem refletir sobre ofazer científico.

Aproximemo-nos das reflexões de Santos(2000) acerca da emergência de outro para-digma científico; 'b paradigma de uma ciên-cia prudente e de um paradigma social, "oparadigma de uma vida decente". Para esseautor o paradigma funda-se na idéia de que osujeito, que a ciência moderna lançara na di-áspora do conhecimento irracional, regressainvestido da tarefa de fazer erguer sobre siuma nova ordem científica (Santos, 2000, p.43). Decorre daí que todo o conhecimento ci-entífico é autoconhecimento (Op.cit, p. 53) e,desse modo, ensina a viver e traduz-se emum saber prático (Idem, p. 55) e que todo oconhecimento científico visa constituir-se emsenso comum, pois tem uma dimensão dialó-gica. Essa forma de conhecimento é a basede um paradigma emergente que incorpora

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"outras racionalidades". Em suas própriaspalavras, conclui:

... a ciência pós-moderna sabe que ne-nhuma forma de conhecimento é, em simesma, racional; só a configuração detodas elas é racional. Tenta, pois, dialo-gar com outras formas de conhecimentodeixando-se penetrar por elas. A maisimportante de todas é o conhecimento dosenso comum, o conhecimento vulgar eprático com que no quotidiano orientamosas nossas acções e damos sentido à nos-sa vida. (...) É certo que o conhecimentodo senso comum tende a ser um conhe-cimento mistificado e mistificador mas,apesar disso e apesar de ser conserva-dor, tem uma dimensão utópica e liberta-dora que pode ser ampliada através dodiálogo com o conhecimento científico."(Santos. 2000: 55-56)

Nesse sentido entendo que é possívelbuscar uma compreensão científica sobre ossaberes que os sujeitos constroem nas nar-rativas biográficas. E assim construir um co-nhecimento entre os saberes que envolvadistintas 'tacionalidades fl. em que as narrati-vas biográficas formam um entrelaçamentode experiências vividas, narradas e interpre-tadas entre os sujeitos envolvidos, tanto dosbiografados como o do autor.

Como se trata de um processo que en-volve reflexão, esses saberes dizem algosobre o próprio processo de aprendiza-gem. lima abordagem biográfica constróisuas pedagogias na medida em que nosfaz pensar sobre a possibilidade de seaprender com a própria experiência vivi-da. Vieira (1999) analisa que as práticaseducativas estiveram historicamente an-coradas em um modelo de ciência, ligadoao paradigma cartesiano do primado darazão (Vieira, 1999, p. 83), e que esseparadigma marcou a pedagogia escolar e

a educação em geral, marcadas pela for-ma dualista de ver o mundo: entre razão/emoção, racional/irracional, instruído/anal-fabeto (p. 84). Assim considera como seconfigurou essa educação pautada na ci-ência cartesiana:

Aprendemos a pensar com a cabeça enão com o coração; desumanizamos,desantropomorfofizámos a ciência e talteve também efeitos directos na educa-ção... Ensinou-se a ler, contar, escrever- educação essencialmente racionalis-ta, cognitivista. Não era importante aeducação dos sentidos, o pensar asemoções, o afecto entre docente e dis-cente; a relação... Claro que aqui e aliforma surgindo os dissidentes que pro-puseram as pedagogias activas versusmagisterdixit. (Vieira, 1999, p. 84)

Biografias podem, contudo, constituirpedagogias da experiência, de modo distin-to considerada por Vieira (1999), pois reve-lam outras formas de aprender por meio dosafetos, dos sentidos, das reflexões, das per-cepções, das imagens, dos pensamentos,desejos. E assim o fazem sem dissociar edu-cação e vida, o que Paulo Freire - um dissi-dente - nos fazia compreender, como lembraVieira (1999) ao citá-lo:

Podemos conhecer aquilo que conhece-mos colocando-nos por trás das nossasexperiências passadas e precedentes.Quanto mais formos capazes de desco-brir porque somos aquilo que somos, tan-to mais será possível compreenderporque é que a realidade é o que é (apud.Vieira, 1999: 144)

Em suma, a abordagem biográfica pos-sibilita descobrir quem somos no processode aprendizagem que é a própria vida, edesse modo ter alguma compreensão darealidade que nos cerca, tal como um dianos mostrou Paulo Freire.

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NotasUma versão preliminar deste artigo foi apresentada na

W. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre osdias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil,

Utilizo o termo "abordagem biográfica' no seu sentidoamplo, o que inclui suas várias modalidades: as "estórias

de vida" ('ide stories", "récits de vie"), aquelas que são con-tadas pela própria pessoa que as vive, histôrias de vida"("hfe history', 'récits de via'), aquelas onde há uso de ou-tras fontes além da contada pela pessoa que as vive; 'bio-gratias'; e "autobiografias".

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